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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.66 Oeiras mayo 2011

 

Pessoas deslocadas internamente: da actuação do Estado soberano à intervenção da comunidade internacional

 

Allan Nascimento*

 *Investigador do CesNova, doutorando em Sociologia, História e Política Comparadas na UNL. E-mail: allanvcn@gmail.com

 

Resumo

A investigação acerca das pessoas deslocadas internamente (isto é, no interior dos seus países, mas fora dos seus espaços de vida habituais) se mostra um desafio, em virtude dos volumes de pessoas actualmente envolvidas e das condições com que se confrontam, da incapacidade (ou desinteresse) dos Estados nacionais em garantir protecção aos seus cidadãos, e do princípio de neutralidade internacional, que dificilmente permite intervenções externas no sentido da salvaguarda dos direitos humanos. Este artigo discute as categorizações adoptadas, as normas jurídicas existentes e o quadro institucional vigente no que se refere à protecção das pessoas deslocadas internamente, faz um paralelo com os refugiados, analisa o conceito de Estado soberano e a noção do não intervencionismo. Argumenta-se a possibilidade de uma esfera pública transnacional como possível mediadora entre Estado e cidadãos.

Palavras-chave pessoas deslocadas internamente, esfera pública transnacional, refugiados, soberania, Estado, intervencionismo, protecção internacional.

 

Internally displaced persons: from the action of a sovereign state to intervention by the international community

Abstract

Research on internally displaced persons (i.e. those living inside their own countries but outside their usual areas of settlement) is a challenge, due to the large number of people involved, the harsh conditions they face, the inability (or lack of interest) of national states to protect their citizens, and the international neutrality principle, according to which any external intervention aimed at safeguarding human rights is a difficult issue. This article discusses the categories adopted, the legal provisions and the institutional framework for internally displaced persons protection. A parallel is drawn with refugees. The concept of the sovereign state and the notion of non-interventionism are also examined. Finally, the article discusses the possibility of a transnational public sphere as a mediating authority, where necessary, between governments and their citizens.

Keywords internally displaced persons, transnational public sphere, refugees, sovereignty, state, interventionism, international protection.

 

Les personnes déplacées à l’intérieur de leur propre pays: de l’action de l’État souverain à l’intervention de la communauté internationale

Résumé

La recherche sur les personnes déplacées à l’intérieur de leur propre pays n’est pas aisée, en raison du grand nombre de personnes concernées et des conditions auxquelles elles doivent faire face, de l’incapacité (ou du désintérêt) des États à assurer la protection de leurs citoyens et du principe de neutralité internationale qui ne permet guère les interventions extérieures afin de sauvegarder les droits de l’homme. Cet article aborde les catégorisations adoptées, les normes juridiques existantes et le cadre institutionnel en vigueur en matière de protection de ces personnes déplacées, il fait un parallèle avec les réfugiés et il analyse le concept d’État souverain et la notion de non-ingérence, tout en soutenant la création d’une instance publique transnationale qui servirait de médiateur entre l’État et les citoyens.

Mots-clés personnes déplacées à l’intérieur de leur propre pays, instance publique transnationale, réfugiés, souveraineté, État, ingérence, protection internationale.

 

Personas deplazadas internamente: de la actuación del Estado soberano a la intervención de la comunidad internacional

Resumen

La investigación acerca de las personas desplazadas internamente (es decir, en el interior de sus países, pero fuera de los espacios de vida habituales) se muestra un desafío, en virtud de los volúmenes de personas actualmente envueltas y de las condiciones con las cuales se confrontan, de la incapacidad (o desinterés) de los Estados nacionales en garantizar protección a sus ciudadanos, y del principio de neutralidad internacional, que difícilmente permite intervenciones externas en el sentido de salvaguardar los derechos humanos. Este artículo discute las categorizaciones adoptadas, las normas jurídicas existentes y el marco institucional vigente en lo que se refiere a la protección de las personas desplazadas internamente, realiza una comparación con los refugiados, analiza el concepto de Estado soberano y la noción del no intervencionismo. Argumenta con la posibilidad de una esfera pública transnacional como posible mediadora entre Estado y ciudadanos.

Palabras-clave personas desplazadas internamente, esfera pública transnacional, refugiados, soberanía, Estado, intervencionismo, protección internacional.

 

Introdução

A análise das novas dinâmicas migratórias que caracterizam as últimas décadas bem como a pluralidade de suas causas evidenciam a importância da temática das pessoas deslocadas internamente (PDI) para a agenda de Estados, ONG, organismos internacionais e instituições transnacionais. Através da investigação sobre este “novo” e crescente fluxo migratório, os deslocados em massa dentro das fronteiras nacionais, tenciona-se perceber como a falta de uniformização de procedimentos das instituições a quem cabe sua protecção dificulta seu censo e o estabelecimento de padrões e instrumentos jurídicos, além de possibilitar sua susceptibilidade a ficar desamparados. As semelhanças e diferenças em relação aos refugiados e aos que ficam retidos nas zonas de crise, a linha ténue que separa migrantes forçados e espontâneos, e a confluência de razões económicas, políticas, étnicas, religiosas e ambientais no processo de deslocamento também contribuem para dificultar a situação.

No que concerne ao reconhecimento de um estatuto jurídico ao deslocado interno, o direito existente propicia uma real protecção às PDI ou seria necessário a criação de instrumentos específicos? Qual o entendimento dos actores envolvidos?

Como se organizam, a nível nacional e transnacional, os intervenientes que se perfilam como parte interessada (stakeholders) de um bem comum que extravasa fronteiras nacionais (paz, ambiente, direitos humanos…)? Quais são as suas características e as suas motivações (formalmente apresentadas)? E como os interesses nacionais e transnacionais se articulam em torno de interesses globais? Relativamente a este último aspecto, importa também aferir os determinantes das posturas dos Estados, enquanto emanação de nações soberanas, não apenas em relação à sua própria população, no enquadramento e no apoio a este tipo de deslocação em massa, como ainda percebendo como esta soberania se conjuga com a presença ou a intervenção dos organismos internacionais e de Estados terceiros.

Em última análise, o objectivo desta investigação consistirá em contribuir para o estudo da emergência de uma esfera pública transnacional e problematizar a sua articulação com os Estados enquanto reguladores centrais do mundo actual — papel que continuam a manter no mundo globalizado em que vivemos.

 

Aproximação com os refugiados

O facto de não haver uma protecção internacional institucionalizada e de as causas da deslocação serem por vezes as mesmas que produzem refugiados justifica a intervenção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no sentido de estabilizar uma definição: “grupos numerosos de pessoas que foram forçados, de forma súbita ou inesperada, a desenraizar-se e a abandonar suas casas, fixando-se em locais diferentes no seu país, devido a conflitos armados, lutas internas, violações sistemáticas dos direitos humanos ou calamidades provocadas pelo homem” (ACNUR, 2007).[1]

A terminologia utilizada é importante para o reconhecimento de direitos e a ajuda humanitária. O ACNUR só em alguns documentos se refere à questão. Reconhece que as PDI são por vezes mais numerosas que os migrantes internacionais, incluindo os refugiados, e identifica um número significativo de situações em que ex-refugiados sofreram um segundo desenraizamento após terem regressado ao seu país. A instituição sustenta ainda que o facto de nenhuma organização internacional possuir um mandato global para proteger e assistir as PDI se deve em grande parte à falta de consentimento do país que não está garantindo a protecção aos seus cidadãos.[2]

Por esse motivo, Castles (2005) apela à criação de um sistema de protecção internacional mais abrangente que o actual. Porém não existe consenso com vista a um alargamento do estatuto do refugiado. Mais provável é o aumento das restrições. Reconhecendo a complexidade das razões que levam as pessoas a se deslocar, o autor considera que se trata de uma situação anacrónica. Para Oliveira (2004) as definições de deslocados internos são limitadas, pois baseiam-se no critério da refugee-like situation, onde somente o facto de não cruzarem uma fronteira nacional os diferenciaria dos refugiados.

Mais de meio século após a criação e a delimitação de quem pode ou não ser enquadrado como “refugiado”, a violação sistemática dos direitos humanos, as transformações ambientais, o alargamento de áreas de cultivo extensivo, a construção de grandes infra-estruturas, entre outras razões, fazem proliferar os fluxos de PDI na Ásia, em África e na América do Sul. Apesar dos movimentos migratórios existirem ao longo da história, esta actual proliferação caracterizada pelo envolvimento de milhões de pessoas tornou-se mais visível pelos actuais meios de comunicação, tornando esta questão recorrente nas presentes discussões dos actores sociais locais, nacionais e internacionais. A “novidade” dos fluxos de PDI relaciona-se com a postura de países pobres e ricos frente a milhões de vítimas que podem tornar-se futuros requerentes de asilo e estopim de rebeliões e conflitos internos. Apesar da Convenção da Organização da União Africana de 1969[3] e da Declaração de Cartagena de 1984[4] inovarem ao ignorar a obrigatoriedade de provar o receio fundado da perseguição e considerarem aspectos de cariz não apenas político como elementos que proporcionam a perseguição na determinação da definição de um refugiado, preserva-se intocado o conteúdo do Estatuto do Refugiado de 1951[5] baseado nos indivíduos e na premissa de inviolabilidade soberana dos Estados.

Alguns autores vêem na reformulação do conceito e dos direitos dos refugiados uma forma de garantir a protecção às PDI. Já que as razões para os deslocamentos de refugiados e PDI são por vezes as mesmas, muitos acreditam que o termo possa evoluir de tal maneira que as PDI sejam consideradas “refugiados internos”, passando a contar com protecção internacional. Outros, porém, sustentam que apenas os Estados dispõem, no mundo que actualmente conhecemos, de capacidade para garantir a protecção pretendida — assim rejeitando as pretensões, surgidas na década de 1990, de garantir “fronteiras abertas” às migrações, ou a ideia de Estados “post-nacionais”.

Apesar de ter ocorrido há seis décadas, a Convenção de Genebra de 1951, relativa ao estatuto do refugiado e adoptada aquando da Conferência das Nações Unidas dos Plenipotenciários,[6] continua sendo o principal instrumento internacional que regula a protecção dos refugiados.

A referida Convenção peca por limitações temporais, geográficas e individuais, não considerando os fluxos ocorridos após 1951, fora da Europa, e os movimentos em massa de refugiados. Além de não vir sendo revista ao longo destas décadas, o que implica sua desactualização frente a novas questões surgidas com a emergência de outros fluxos migratórios.

A Acta Final da Conferência de Plenipotenciários[7] que adoptou a Convenção de 1951 manifesta sua esperança que mesmo os “refugiados” que não estejam abrangidos no conceito estabelecido tenham o tratamento nela previsto. Fazendo-se perceber que esta definição desde o momento que foi criada já possuía limitações.

Apesar das melhorias estabelecidas pelo Protocolo de Nova Iorque de 1967, o alargamento do conceito só vem sendo observado em contextos regionais, como o africano e o latino-americano. Deixar de fora os refugiados internos não seria por acaso. Percebe-se a preocupação dos legisladores com a questão da soberania dos Estados e o princípio do não-intervencionismo.

Ao longo das últimas décadas, vêm sendo adoptados novos termos para designar grupos de “refugiados” que não se encaixam na definição reconhecida desde a Convenção de Genebra de 1951. Por exemplo: refugiados ambientais; refugiados económicos; refugiados de guerra; e também os refugiados internos sem especificação adicional. Isto revela que a formatação dos quadros jurídico-institucionais existentes foi feita em função de realidades e preocupações diversas das que actualmente chamam a atenção para a deslocação de contingentes numerosos de pessoas.

Criaram-se nas últimas décadas protecções complementares como a humanitária e a temporária.[8] Os críticos destas figuras sustentam que estas mostram-se mais frágeis na sua concretização do que instrumentos mais sólidos e com maior reconhecimento internacional, já que aqueles meios radicam na jurisprudência dos países que os concedem. Uma protecção temporária também falha pelo seu carácter momentâneo, gerando insegurança e vulnerabilidades que podem dificultar ou inviabilizar a integração social do beneficiado. Os seus defensores, porém, reconhecendo embora as suas fragilidades, continuam a insistir no facto de apenas os Estados nacionais poderem assumir o papel de garantes da segurança dos indivíduos.

Segundo Morikawa (2006), o direito internacional dos direitos do homem é a fonte das regras e dos princípios da protecção dos refugiados, e, de acordo com a Declaração dos Direitos do Homem de Viena de 1993,[9] o problema dos refugiados deve ser compreendido à luz da protecção dos direitos humanos. Permanecer fiel à interpretação restritiva da Convenção de 1951 seria violar o princípio do “efeito útil” dos tratados, que sustenta que a sua interpretação prática deve ser feita de tal maneira que o “efeito útil e efectivo” das suas disposições seja maximizado.

Esta autora critica ainda a criação de um sistema que vise substituir, no todo ou em parte, o sistema de protecção interna dos Estados. Para Morikawa (2006), é preferível criar mecanismos que garantam o cumprimento por parte dos Estados do dever de assegurar os direitos humanos aos seus cidadãos.

Segundo o ACNUR, no fim de 2009 o número de refugiados chegou a 15,2 milhões e o de deslocados internos atingiu 27,1 milhões.[10] Números que podem ser contestados: pela dificuldade de recensear os deslocados internos, visto que os Estados não querem assumir a violação ou o incumprimento dos direitos humanos de seus cidadãos; pela coexistência de diferentes critérios para definir quem pode ou não ser considerado como um refugiado ou deslocado interno; pela grande destruição provocada por recentes desastres ambientais; e ainda pelo facto de esses números, por vezes, reflectirem interesses políticos na resolução ou não da questão.

Se a preocupação internacional com o não cumprimento dos direitos humanos aumenta proporcionalmente com a quantidade de novos conflitos armados, guerras civis e deslocamentos forçados por diversas razões, também crescem as preocupações dos países receptores de refugiados. Estes, ao mesmo tempo que temem que o alargamento do conceito se possa reflectir em obrigações acrescidas, em virtude do alargamento do direito de milhões de pessoas a beneficiarem de sua protecção, receiam igualmente que a instabilidade em diversas regiões do mundo possa comprometer transacções económico-financeiras e possa gerar novos fluxos de migrantes ilegais.

 

Pessoas deslocadas internamente: a construção de um quadro institucional embrionário

Para além da vigência do princípio da não-intervenção, consequência da manutenção da concepção de soberania dos Estados, a falta de um reconhecimento internacional do conceito de PDI e a consequente inexistência de um agente a quem caiba sua protecção traduz-se numa grande dificuldade no estabelecimento de um verdadeiro amparo aos deslocados internos. Formalmente, a legislação internacional referente aos direitos humanos por si só garantiria a protecção às PDI; porém, seu incumprimento mostra-se bastante comum no que se refere a deslocados internos. Ao invés de gerar desânimo, esta deficiência pode servir para impulsionar a comunidade internacional a criar, desenvolver ou remodelar instituições que regulem e fiscalizem os processos de prevenção, protecção, assistência e criação de soluções duradouras.

Em 1998, os Princípios Orientadores Relativos aos Deslocados Internos (PORDI)[11] foram lançados pelo então representante especial do secretário-geral para os deslocados internos, Francis Deng. Estes princípios devem orientar os governos e as agências humanitárias e de desenvolvimento internacional na protecção, na identificação de garantias e direitos, na assistência e na protecção durante a deslocação, o retorno, a reinstalação e a reintegração. Os PORDI não têm força vinculativa, apesar de surgirem da carência de jurisdição internacional referente às PDI, comungarem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos e serem análogos aos direitos dos refugiados.

Quando definem o termo PDI, os PORDI englobam as calamidades naturais como causa de deslocamento, mas deixam de fora as razões económicas, abrindo assim uma brecha à protecção dos deslocados por razões económicas, que também tenham sofrido violações dos direitos humanos, como no caso das deslocações arbitrárias em consequência de projectos de desenvolvimento em grande escala.

A coexistência de diversos motivos para o deslocamento pode gerar confusão na determinação do estatuto de PDI e assim contribuir para a dificuldade de actuação. Como estabelecer o factor determinante? Para Martin (1999), em certos casos, a deslocação interna pode ter origem numa combinação de factores de natureza coerciva e económica. As pessoas que se deslocam voluntariamente de um lugar para outro, por razões económicas, sociais e culturais, não integrariam assim a definição de deslocados internos, a quem se aplicam os Princípios Orientadores.

No Quénia, onde o fluxo de PDI se agravou após as eleições em Dezembro de 2007, o governo privilegiou um rápido realojamento com intenções de melhorar a imagem nacional no exterior e impedir que os campos de PDI sejam alvo da actuação de milícias e grupos criminosos. Entretanto novos deslocamentos ocorrem, pois o governo não está levando em consideração os conflitos étnicos (Mwiandi, 2008).

Os PORDI reiteram a importância fundamental do papel do Estado como agente protector de sua população, mas apelam (princípio 25) aos países para que não vejam os serviços das organizações humanitárias internacionais (e de outros actores envolvidos) como um acto de ingerência nos assuntos internos.

Com uma linguagem acessível, de modo a facilitar a sua aplicação prática, Susan Martin (1999), através do Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários, lançou o Manual de Aplicação dos Princípios Orientadores Relativos aos Deslocados Internos. Além de orientar o pessoal de campo das agências humanitárias, de desenvolvimento e de defesa dos direitos humanos na promoção dos Princípios Orientadores, o manual pretende tornar os direitos mais compreensíveis aos deslocados internos.

Um grande passo que foi dado para a consolidação dos Princípios Orientadores como instrumento que deve ser utilizado por todos Estados a fim de garantir os direitos humanos de sua população deslocada internamente foi sua adopção e implementação no Protocolo de Protecção e Assistência das Pessoas Deslocadas Internamente na Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos (IC/GLR),[12] em Novembro de 2006. O objectivo central do Protocolo é estabelecer um quadro jurídico capaz de garantir o cumprimento dos Princípios Orientadores. Os Estados devem adoptar uma legislação nacional que respeite os Princípios Orientadores plenamente e fornecer um quadro jurídico para a sua execução dentro dos sistemas jurídicos nacionais. O Protocolo determina as responsabilidades dos Estados-membros de proteger, impedir a deslocação, auxiliar no regresso e na reinstalação e ser parceiro com a ajuda humanitária, de acordo com o direito humanitário internacional. Ainda destaca a importância de mecanismos de monitoramento da protecção das PDI na região dos Grandes Lagos; da participação dos deslocados, especialmente das mulheres, no retorno, na reintegração, na reinstalação e na preparação e concepção da legislação; e da justificação dos projectos de desenvolvimento que geram migrações.

Cerca de metade dos deslocados internos do mundo vive no continente africano e cerca de metade destes está concentrada na região dos Grandes Lagos (Kälin, 2007). O principal motivo dos deslocamentos nesta região são os conflitos armados, o que reforça a urgência da busca de soluções duradouras para os deslocados para a construção da paz.

É necessário complementar as iniciativas de construção da paz e de desenvolvimento sustentável com uma abordagem regional. A exigência de respostas regionais se dá em virtude da interligação dos povos e das economias da região dos Grandes Lagos. Uma instabilidade em algum país pode afectar a estabilidade dos seus vizinhos. Os países da região dos Grandes Lagos assinaram diversos pactos, protocolos e convenções no passado, daí resultando porém pouca mudança real na vida das pessoas. A conferência iniciada em 2006 radica em bases diferentes, que podem conduzir a outros resultados: é que a IC/GLR tem sido um processo mais inclusivo e participativo, onde não são ouvidas apenas as opiniões dos governos signatários e os seus respectivos parlamentos, mas também de grupos da sociedade civil, tais como grupos de mulheres, de juventude e do sector privado (Kamungi e Klopp, 2008).

São relevantes para a consolidação da paz após os conflitos: segurança através da desmobilização, desminagem, restabelecimento do Estado de direito, combate à impunidade; resolução de problemas relacionados com a propriedade; promoção da reconciliação entre as comunidades locais e de repatriados; restabelecimento da infra-estrutura básica e dos serviços, bem como garantir o acesso a serviços, recursos e meios de subsistência; e garantir a transição política para o estabelecimento de um eficaz e legítimo governo no qual os diversos sectores da sociedade, incluindo os deslocados e repatriados, podem participar (Kälin, 2007).

O continente africano recentemente voltou a inovar, ao organizar a Cimeira Especial dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana sobre Refugiados, Repatriados e Deslocados Internos em África, ocorrida em Outubro de 2009 em Kampala. Para a União Africana (2009) faz-se necessário perceber que os deslocados internos (estima-se que são cerca de 18 milhões em África) deixam de poder contribuir para o desenvolvimento do continente. Lembra que os deslocamentos forçados no continente são causados em grande parte pela acção ou omissão dos Estados, pelas violações dos direitos humanos, pela marginalização política e socioeconómica, pelos conflitos relacionados com os recursos naturais e a má governação. As soluções passariam então pela criação por parte do Estado de condições de protecção contra o assédio, a intimidação e discriminação. Apesar de inovadora, a Cimeira dedica-se exaustivamente à questão dos refugiados, não respondendo de forma precisa como obter os resultados esperados às questões específicas dos deslocados internos.

A falta de instrumentos jurídicos internacionais também foi alvo de discussão na Cimeira. Kamungi (2010) debruça-se sobre esta questão ao afirmar que a maioria dos deslocamentos em África dá-se por questões políticas, fazendo-se necessário mais soluções legais. Entretanto a Cruz Vermelha destaca que:

A convenção estabelece um quadro sólido para reforçar a protecção e assistência dos deslocados internos na África. O desafio crucial agora é o mesmo que encara o Direito Internacional Humanitário no geral: garantir que uma vez que a convenção seja assinada e ratificada pelo maior número possível de Estados, ela seja aplicada e respeitada de verdade. Os Estados agora devem tomar medidas concretas para aplicar a convenção em sua própria legislação nacional e nos sistemas de regulação, e desenvolver planos de acção para resolver questões de deslocamento. (Cruz Vermelha, 2009)

Walter Kälin (2008), actual representante especial do secretário-geral para os deslocados internos, no 10.º aniversário dos Princípios Orientadores, destaca alguns avanços dos princípios e insiste no que ainda é necessário ser feito. Kälin diz que em muitos países confrontados com o deslocamento interno, os princípios orientadores têm inspirado as leis e as políticas. Eles também forneceriam um quadro para os governos tomarem as medidas necessárias para a redução dos riscos de desastres; forneceriam orientações para as agências humanitárias internacionais e a sociedade civil dos países em causa, a fim de moldar as suas acções em favor das pessoas deslocadas internamente, não apenas durante a emergência, mas também durante a reconstrução; e têm inspirado processos de paz. No entanto, para ele, mais pessoas deslocadas internamente devem conhecer os seus direitos e ter acesso a procedimentos legais para reclamá-los. Os governos devem assumir sua responsabilidade principal de proteger e ajudar essas pessoas de forma muito mais séria. Eles têm que adaptar as suas legislações e políticas para as exigências dos Princípios Orientadores e providenciar os recursos necessários para reforçar as capacidades das suas instituições para implementar plenamente essas leis. As organizações regionais devem assumir um papel de liderança na vigilância e na execução dos princípios da sua região, e as Nações Unidas e outros agentes humanitários têm de continuar a utilizá-los sistematicamente como pontos de referência para a prestação de assistência de emergência e de protecção às populações deslocadas . Os doadores têm que continuar e mesmo aumentar o seu apoio à acção humanitária em nome das PDI. O Conselho de Segurança da ONU deverá pedir e monitorar a implementação dos Princípios Orientadores por todos os actores em situações de conflito armado.

Em Outubro de 2008, a Brookings-Bern Project on Internal Displacement[13] publicou o documento Protecting Internally Displaced Persons. A Manual for Law and Policymakers, baseado no direito internacional humanitário e nos Princípios Orientadores. Destinado aos responsáveis políticos nacionais, aos ministérios, legisladores e grupos da sociedade civil envolvidos com deslocamento interno, este documento tenciona promover leis e políticas nacionais eficazes na prevenção, no tratamento e na resolução destas questões.

É sublinhada no manual a importância do censo dos deslocados, além da relevância de se saber sua localização e principais características demográficas. Pretende-se impedir o acesso fraudulento à escassa assistência humanitária e facilitar a emissão de bilhetes de identidade temporários. Assim os recursos escassos serão mais bem aplicados de acordo com as especificidades de cada caso e local, e da presença dos grupos vulneráveis. Mas o documento alerta ainda para a necessidade de evitar que a criação de uma nova categoria jurídica venha a constituir burocracias capazes de dificultar o acesso à ajuda humanitária, e diz que o isolamento de algumas áreas e o trauma sofrido pelos deslocados dificulta seu acesso.

Discorrendo como Joppke (2007), que define a emergência da tolerância e da imparcialidade, nos lugares da solidariedade e da igualdade, como valores centrais em uma sociedade multicultural, o manual orienta os Estados a apresentar medidas específicas e direccionadas à assistência e à protecção correspondentes às necessidades e vulnerabilidades decorrentes do deslocamento. Esta imparcialidade não vigoraria além do tempo necessário, através de uma atenção especial às comunidades vizinhas, no sentido de perceber se e quando poderão ter necessidades semelhantes ou até maiores do que os deslocados internos.

Reconhecendo os esforços realizados pelas autoridades nacionais em muitos países e visando informar aqueles que ocupam posições de responsabilidade em outros países afectados pelo deslocamento interno, no manual Protecting Internally Displaced Persons. A Manual for Law and Policymakers, evidencia-se a vulnerabilidade das mulheres e crianças; destaca-se a importância da formação dos funcionários governamentais sobre novas leis e políticas com explicação sobre o problema do deslocamento interno, incluindo acerca das obrigações do Estado; insta-se a uma análise visando perceber se os actuais quadros legislativos nacionais devem ser alterados; chama-se a atenção para a importância do investimento dos Estados em soluções duradouras (retorno para o antigo local de residência, integração a nível local no lugar de deslocamento, ou reinstalação num terceiro local dentro do país — todas concomitantes com acções que devolvam aos deslocados capacidade de auto-subsistência); e elencam-se as disponibilidades de assessoria técnica das organizações internacionais e regionais com experiência na abordagem de deslocamento interno para efeitos de elaboração de leis e políticas.

 

Soberania e intervenção

Vivemos num mundo globalizado, mas ainda formalmente organizado em função da premissa da inviolabilidade soberana dos Estados. Várias organizações internacionais denunciam o anacronismo da situação, admitindo que os Estados que hoje temos, e que são fruto da modernidade, dificilmente acomodam a multitude de desafios colocados pela “globalização”. Segundo Marchueta (2002), o Estado necessita descobrir uma nova definição de sua função para uma nova sociedade, visto que vê-se afectado no próprio cerne das suas competências e legitimidade. E há quem fale de uma “esfera pública transnacional” (Fraser, 2005).

O conceito de soberania surge no século XVI, com o filósofo francês Jean Bodin, com o objectivo de legitimar o poder absoluto do rei, e também de impedir o caos social causado por desordem, conflitos de interesses ou guerras religiosas. Thomas Hobbes busca igualmente justificar o contexto político do absolutismo. No pacto social firmado entre o Estado e os indivíduos, os últimos perderiam suas liberdades e poderes individuais em troca de segurança no convívio social. Locke e Rousseau acreditavam em um consentimento consciente dos governados. A confirmação do poder soberano viria da vontade da maioria dos indivíduos, não se tratando de um poder soberano de origem divina, absoluto, arbitrário e impositivo (Ferrer e Silva, 2003).

O conceito de soberania vem desde então se transformando lentamente com os acontecimentos históricos; todavia as últimas décadas presenciaram mudanças radicais no que diz respeito aos direitos humanos, ao conceito de fronteira, aos processos de globalização e particularmente no que respeita aos fluxos migratórios, assim questionando os elementos constitutivos dos Estados em fundamentos essenciais como o poder soberano. Soberania garantida em instrumentos internacionais através do princípio da não ingerência e do não intervencionismo em assuntos internos, ora abalada pela proliferação de ordenamentos transnacionais.

Apesar do florescimento de organizações transnacionais dando resposta a um novo contexto político, social, estratégico, financeiro e tecnológico e na busca por preencher lacunas deixadas pelos Estados nacionais acerca das questões ambientais, direitos do homem, entre outros, presencia-se nas últimas décadas do século XX e início do século XXI a proliferação de novos Estados.

Forjaz (2000) nega que o reforço de identidades sociais, culturais e políticas a nível local, e o enfraquecimento das estruturas políticas nacionais e identidades construídas em nível nacional poderiam enfraquecer a consolidação de uma esfera pública transnacional capaz de responder às omissões estatais. Para a autora, seja internamente ou externamente, os Estados nacionais vêm sendo pressionados pelas forças da globalização. Enquanto a construção do Estado envolveu a subordinação de poderes infra e supranacionais, vivemos hoje o processo inverso de subordinação do Estado por poderes infra e supranacionais.

A situação das PDI relaciona-se directamente com essa ineficácia estatal em protegê-las, ao mesmo tempo que a ingerência internacional vê-se limitada em uma actuação que depende do próprio Estado opressor ou ineficaz. Porém questionam-se os interesses dos principais actores da política internacional, que, ao intervirem, legitimam o poder soberano em casos de Estados que não assumem a responsabilidade de protecção que lhes caberia.

Não havendo objectividade em relação aos conceitos, nem regularidade na protecção das pessoas, de forma independente do contexto político e económico de seus países, os objectivos “escusos” continuarão existindo e determinando quando e de que forma as intervenções serão realizadas.

Os defensores dos direitos humanos advogam a perda da soberania estatal a partir do momento que um Estado persegue seus nacionais ou não pode protegê-los. Para Regis (2006), porém, a intervenção humanitária não abalaria o princípio da soberania. Para o autor, esta intervenção externa pode ser promovida por organizações internacionais, ou, até mesmo, por organizações regionais e, em último caso, por intervenções unilaterais, promovidas por países membros da comunidade internacional, contribuindo para reforçar os Estados afectados. O alto comissário das Nações Unidas para os refugiados, António Guterres, reforça a possibilidade de intervenção continental ao afirmar em Kampala[14] que “o acordo representa na prática o conceito de ‘responsabilidade de proteger’. Demonstra que a soberania nacional é plenamente compatível com a responsabilidade de proteger.” E acrescentou que a convenção serve como lembrete de que a responsabilidade de proteger seus próprios cidadãos é primeiramente dos Estados e que, quando estes falharem, há uma responsabilidade colectiva africana de agir (Fleming e Hassan, 2009).

Porém não deve ser esquecido que, especialmente em casos de intervenções unilaterais, estas vêm carregadas de interesses e suas justificativas nem sempre são confirmadas e aceites pela comunidade internacional — como a última invasão ao Iraque iniciada em 2003. No caso afegão havia um nítido interesse de retaliação pelos atentados do 11 de Setembro de 2001, mostrando ao mundo o poder bélico e destrutivo estadunidense. Podendo até mesmo ser comparado ao lançamento das bombas atómicas sobre o Japão no fim da Segunda Guerra Mundial quando os vencedores do conflito já eram conhecidos.

Apesar de a Carta das Nações Unidas (1945) determinar o respeito dos Estados pela soberania dos outros, seu capítulo VII diz:

O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas… [e ainda] … poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a acção que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal acção poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações Unidas.

Porém, na actual ordem política mundial, os regimes violadores dos direitos do homem não são tratados do mesmo modo pelos principais actores da comunidade internacional, como recorda Lopes (2008). O que reforça a necessidade da instituição de conceitos amplamente aceites e do fortalecimento de entidades transnacionais capazes de actuar apenas em prol dos direitos humanos.

O autor divide as intervenções em dois tipos. O primeiro, com fins humanitários, que visa socorrer as populações vítimas de catástrofes naturais ou fenómenos similares, com o consentimento dos Estados onde se verificam; e o segundo, para fazer respeitar os direitos humanos, consistindo em acções levadas a cabo por uma força militar contra o poder dos países onde intervêm a fim de garantir uma vivência democrática.

No entanto outra questão essencial deve ser mais elaborada. O respeito pelos direitos humanos pode coincidir com guerras e invasões que provocam inúmeras mortes, mutilados e que destroem toda a infra-estrutura? Para Lopes (2008), além de as intervenções terem que ser clara e inequivocamente decididas pelo Conselho de Segurança da ONU, têm que respeitar requisitos legais; não é apenas por acções militares que a intervenção pode ser efectivada. Sanções económicas, campanhas nos média, pressões económicas, políticas e sociais, corte de relações diplomáticas, ingerência judiciária seriam alternativas.

Assim como as acções militares, as outras opções descritas por Lopes devem ser devidamente estudadas e adaptadas às diferentes realidades para que não atinjam essencialmente a população já vulnerável.

 

Construção de uma esfera pública transnacional?

As transformações da realidade social são determinantes para repensar conceitos e teorias. As desigualdades globais de riqueza e renda, a fome, as alterações climáticas, os fluxos migratórios, os conflitos armados, os direitos das minorias marcam os debates do início do século XXI. Muitas destas discussões põem a nu as limitações dos quadros de análise herdados do passado e desaguam na exposição das fragilidades da capacidade de resposta dos Estados — e da esfera pública nacional, enquanto mediadora de interesses.

Pensar em democracia e cidadania restritas ao âmbito nacional é, hoje em dia, arriscado. Conceitos como “cidadania mundial” e “esfera pública transnacional” emergem na era da globalização, não apenas para explicar o crescente intercâmbio cultural, de pessoas, comercial e tecnológico, mas também para tentar perceber as contradições do processo e as razões para a dificuldade de encontrar soluções às questões referidas.

Para Ortiz (2004), a modernidade e o decurso da globalização implicariam a emergência de um território público em escala ampliada; o processo de mundialização redefiniria a noção de espaço de articulação de interesses, o “local” já conteria em si elementos do “nacional” e do “global”. Portes (2008) refere mesmo que as pessoas podem tornar-se transnacionais sem nunca terem saído de seus países.

O crescimento das desigualdades entre Estados, regiões e classes sociais questiona o papel dos Estados e dos mercados e a sua capacidade reguladora. E o despertar nos cidadãos, em diversos contextos nacionais, de uma consciência pública decorrente de uma adesão a valores e lealdades não apenas nacionais, mas transnacionais, legitima o surgimento de uma esfera pública capaz de atendê-los. Leis (1995) acredita que a criação de uma esfera pública transnacional, que torne viável a democratização das relações internacionais e a construção de bases firmes para uma governabilidade global (mormente o surgimento de instituições aceites pelos vários actores do cenário internacional, o enraizamento de valores convergentes e a liberdade do fluxo de comunicação), é hoje prioritária. Existiria, em seu entender, uma contradição entre o nível de globalização alcançado e os antigos conceitos e instituições que regem ainda a vida nacional e internacional.

Os processos de mudança não são simples e rápidos. As normas que encarnam directrizes para a acção concreta são efectivamente enraizadas em valores (que representam princípios morais gerais), que tendem a resistir à mudança. Por seu lado, as estruturas de poder mudam lentamente, já que quem o tem não busca renunciar a ele. Mas as classes dominantes ou os “titulares do poder” precisam de um consentimento voluntário dos governados se querem legitimar seus valores (Portes, 2006).

As instituições são elementos cruciais nesses processos. Como a esfera pública, enquanto mediadora das relações entre o Estado e seus cidadãos, poderia situar-se num mundo onde as relações transnacionais requerem soluções para seus desafios e problemas? De que forma o princípio fundamental dos Estados-nação, a soberania, seria transformado? Que novas instituições o sustentam?

Assim como a esfera pública, o poder soberano das nações existe como mediador entre o Estado e seus cidadãos, como um instrumento que garanta igualdade, democracia e respeito pelos direitos humanos. A pressão que se faz em repensar estes conceitos numa vertente transnacional vem ao encontro da busca dos princípios de participação, inclusão e protecção, mormente quando estes são esquecidos ao nível nacional.

Fraser (2005) já consegue ver avanços na flexibilização destes conceitos. A discriminação da soberania em vários níveis seria influenciada pelas “intervenções humanitárias” e pelas “operações de manutenção da paz”, a actuação do Tribunal Penal Internacional, a criação dos blocos económicos regionais e a actuação dos organismos internacionais, a presença de empresas transnacionais, os processos que regem as relações económicas, as migrações, as diásporas, os fenómenos de dupla cidadania, de múltiplas residências, que acabam por fazer descoincidir nacionalidade e cidadania.

Porém, adianta ainda a autora, nas questões sociais e humanitárias, essa flexibilização é mais lenta e demorada. Instituições de um espaço público transnacional poderão não apenas “colocar sobre a mesa” as limitações dos Estados em garantir protecção e respeito aos seus cidadãos, como identificar perseguições estatais e interferir com mais relevância e força para impedi-las. A esfera transnacional relativiza o conceito de soberania e alerta os Estados para uma nova garantia de protecção aos seus cidadãos, que poderiam ser considerados “cidadãos globais”; mas não serve como meio legitimador de intervenções políticas, económicas e estratégicas de outras nações.

Fraser (2005) diz ainda que a institucionalização de novas forças públicas transnacionais pode ajudar a reprimir as forças privadas transnacionais, sujeitando-as a um controle democrático transnacional. Para a autora, se não houver uma grande renovação institucional, nem os movimentos sociais transnacionais, nem a esfera pública transnacional podem assumir as funções democráticas emancipatórias.

Para Leis os problemas gerados pelos Estados soberanos serão solucionados a longo prazo pelas instituições transnacionais:

O soberano Estado moderno se legitimou garantindo a ordem e a convivência pacífica de seus cidadãos, mas hoje verificamos que a desordem global da biosfera e da espécie humana nunca foi maior. Vale a pena ter presente isto porque a institucionalização de espaços públicos transnacionais, em um primeiro momento, vai gerar provavelmente um aumento da desordem, ainda que esta seja de diferente tipo da correspondente aos sistemas político e econômico internacionais. Em nossa opinião, se isto chega a acontecer, teríamos um sinal homeopático (similia similibus curantur) de que as patologias de nossa época começam a ser tratadas. Através dessa “desordem” discursiva estaríamos gerando mecanismos democráticos (não-coercitivos) para resolver os conflitos e problemas de uma comunidade global fragmentada. (Leis, 1995)

 

Considerações finais

Inúmeras pessoas, por diversas razões, são obrigadas a deslocarem-se de seus lugares habituais de residência. Algumas não chegam a atravessar qualquer fronteira. Frequentemente, perdem suas referências sociais, sejam os amigos, os vizinhos ou suas famílias; e vêem-se desamparadas por seus Estados, que não garantem sua protecção e por vezes as perseguem, e por instrumentos jurídicos internacionais desfasados e insuficientes, que os renegam pelo facto de não cruzarem as fronteiras de seu país.

Neste estudo é determinante a percepção da evolução das categorias e do sistema de protecção das pessoas deslocadas internamente, bem como dos volumes de pessoas envolvidas e da sua espacialização. E ainda as concretizações e os hiatos no cumprimento dos instrumentos e dos textos internacionais em matéria de direitos humanos, a participação da assistência humanitária e a contribuição dos Estados-nação, das organizações internacionais e das organizações não governamentais na garantia dos direitos fundamentais às populações.

Importante é buscar compreender estes fenómenos migratórios e as discussões que têm suscitado na esfera pública com a emergência da actuação de novos actores na determinação das relações em um mundo globalizado. Debates que ultrapassam os limites dos Estados, já que estes não garantem a plena inclusão de todos os cidadãos nacionais, e as instituições transnacionais buscariam suprir esta carência, além de investigar a viabilização da democratização das relações internacionais. Pretende-se aproximar casos aparentemente tão diversos como o angolano e o brasileiro, sendo que a observação de divergências e semelhanças ajudará a compreender a complexidade das questões institucionais, políticas, sociais e económicas referentes às PDI. Particularmente três tipos de questões se afiguram como relevantes: a capacidade institucional (a nível nacional e transnacional — por exemplo, a contenção das populações no interior das fronteiras nacionais, a actuação dos Estados e a participação de organizações internacionais e de ajuda humanitária, o retorno e as políticas sociais de apoio); as repercussões individuais e sociais (por exemplo, a separação familiar, as motivações “espontâneas” ou “forçadas” que levam à deslocação); e os factores estratégicos (económicos, geográficos e políticos), sejam nacionais, comunitários ou internacionais, que interferem ou não na resolução das questões que geram fluxos de deslocados internos.

Esta investigação busca suprir uma carência de estudos relativamente à situação de exclusão dos deslocados internos. Pretende-se que ele incentive novos estudos, debates e reflexões acerca da sobreposição das razões políticas, económicas e estratégicas mundiais que, de acordo com seus actuais interesses, interferem ou não na resolução deste problema; questionar as bases dos direitos humanos, a sua exequibilidade e as limitações à sua consagração; polemizar a necessidade de criação de um organismo internacional específico para as PDI, questionando se os instrumentos existentes são suficientes; discutir o conceito de soberania dos Estados e perceber a contradição de um sistema que, por um lado, pretende-se globalizante, por outro, fecha-se em conceitos e procedimentos que são herdados de um passado em que as fronteiras nacionais correspondiam a territórios e colectividades homogéneos e soberanos; e ainda indagar da pertinência da questionação de uma esfera pública transnacional.

 

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Notas

[1] http://www.cidadevirtual.pt/acnur/refworld/refworld/legal/instrume/idp/idp.htm (29/12/2007).

[2] http://www.cidadevirtual.pt/acnur/acn_lisboa/swr/cx1-4.html (29/12/2007).

[3] http://www.cidadevirtual.pt/acnur/acn_lisboa/e-oua.html (28/6/2008).

[4] http://www.cidadevirtual.pt/acnur/acn_lisboa/cartagen.html (9/1/2008).

[5] http://www.cidadevirtual.pt/acnur/refworld/legal/instrume/asylum/conv-0.html (19/12/2007).

[6] http://www.cidadevirtual.pt/acnur/refworld/legal/instrume/asylum/conv-0.html (19/12/2007).

[7] Ibid.

[8] A protecção humanitária propõe conceder refúgio a pessoas que não reúnem os critérios estabelecidos pela Convenção de Genebra de 1951 para adquirir o estatuto de refugiado. Podem receber esta protecção desde aqueles que fugiram de zonas de conflitos ou de abuso de direitos humanos como por catástrofes ambientas, questões médicas ou familiares. A protecção temporária mantém as pessoas em uma situação indefinida aguardando que se reúnam condições de segurança no país de origem para que seja possível o repatriamento, desta forma são excluídos da sociedade de acolhimento  não podendo contribuir para seu desenvolvimento.

[9] http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/decl-prog-accao-viena.html (20/12/2008).

[10] http://www.unhcr.org/cgibin/texis/vtx/search?page=search&docid=4c176c969&query=refugees.number (5/7/2010).

[11] Princípios Orientadores Relativos aos Deslocados Internos, Nova Iorque, Organização das Nações Unidas, 2001.

[12] Fazem parte da região dos Grandes Lagos: Angola, Burundi, República Centro - Africana, República do Congo, República Democrática do Congo, Quénia, Ruanda, Sudão, Tanzânia, Uganda e Zâmbia. Apenas Angola e Sudão não ratificaram o Protocolo.

[13] Projecto criado para promover uma resposta mais eficaz, seja local, nacional ou internacional, sobre deslocamento interno, apoiando o trabalho do representante do secretário-geral da ONU sobre os direitos das pessoas deslocadas internamente.

[14] Cimeira Especial dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana sobre Refugiados, Repatriados e Deslocados Internos em África, ocorrida em Kampala em Outubro de 2009.

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