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Sociologia, Problemas e Práticas

Print version ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.62 Oeiras Apr. 2010

 

A transformação cultural de cidades médias, segundo os seus agentes culturais

 

Augusto Santos Silva* e Helena Santos**

* Faculdade de Economia da Universidade do Porto. E-mail: asilva@fep.up.pt

** Faculdade de Economia da Universidade do Porto. E-mail: hsantos@fep.up.pt

 

Resumo

No quadro de um projecto de investigação sobre dinâmicas culturais urbanas levado a cabo na segunda metade dos anos 1990, assente em cidades portuguesas de média dimensão do Norte-Litoral, foram entrevistadas em profundidade, entre Março de 1999 e Março de 2000, personalidades que ocupavam lugares e desenvolviam actividades de protagonismo na cena cultural urbana (quadros de instituições e serviços públicos, dirigentes de associações culturais, activistas de estruturas de produção artísticas, galeristas de arte). No presente artigo, utilizaremos a informação recolhida em 31 entrevistas realizadas em Aveiro, Braga, Coimbra e Guimarães, tomando-as como fonte para a análise dos discursos dos entrevistados como representações de agentes culturais sobre o passado recente, a situação então presente e os caminhos de evolução das cidades médias portuguesas e das respectivas cenas culturais.

Palavras-chave: dinâmicas culturais urbanas, agentes culturais, cidades médias portuguesas.

 

The cultural transformation of medium-sized cities, according to their cultural agents

Abstract

Within the framework of a research project on urban cultural dynamics, carried out in the second half of the 1990s in connection with medium-sized cities in the Northern region of Portugal, in-depth interviews were held between March 1999 and March 2000 with people who occupied positions and carried out activities involving promotion of the urban cultural scene (management personnel in public institutions and services, cultural association officials, activists from artistic production structures, owners of art galleries). In this article, the information gathered in 31 interviews held in Aveiro, Braga, Coimbra and Guimarães will be the source for an analysis of the respondents’ discourses, taken as the representations of cultural agents on the recent past, the then present and the development routes of medium-sized Portuguese cities and their cultural scenes.

Key-words: urban cultural dynamics, cultural agents, medium-sized Portuguese cities.

 

La transformation culturelle des villes moyennes, d’après leurs agents culturels

Résumé

Dans le cadre d’un projet de recherche sur les dynamiques culturelles urbaines mené dans la seconde moitié des années 1990, dans plusieurs villes portugaises moyennes du littoral nord, des personnalités ont été interrogées en profondeur, entre mars 1999 et mars 2000. Celles-ci occupaient toutes des postes importants et développaient des activités marquantes sur la scène culturelle urbaine (cadres d’organismes et services publics, dirigeants d’associations culturelles, activistes de structures de production artistique, galeristes). Cet article utilise l’information recueillie au cours des 31 entretiens effectués à Aveiro, Braga, Coimbra et Guimarães et qui serviront de base à l’analyse des discours des interlocuteurs comme représentations des agents culturels sur le passé récent, la situation alors présente et les chemins de l’évolution des villes moyennes portugaises et de leurs scènes culturelles.

Mots-clés: dynamiques culturelles urbaines, agents culturels, villes moyennes portugaises.

 

La transformación cultural de ciudades de media dimensión, según sus agentes culturales

Resumen

En el ámbito de un proyecto de investigación sobre dinámicas culturales urbanas llevado a cabo en la segunda mitad de los años 1990, enfocado en ciudades portuguesas de media dimensión del Norte-Litoral, fueron entrevistadas a profundidad, entre Marzo de 1999 y Marzo de 2000, personalidades que ocupaban lugares y desenvolvían actividades de protagonismo en la escena cultural urbana (funcionarios superiores de instituciones y servicios públicos, dirigentes de asociaciones culturales, activistas de estructuras de producción artísticas, galeristas de arte). En el presente artículo, utilizaremos la información recabada en 31 entrevistas realizadas en Aveiro, Braga, Coimbra y Guimarães, tomándolas como fuente para el análisis de los discursos de los entrevistados como representaciones de agentes culturales sobre el pasado reciente, la situación presente y los caminos de evolución de las ciudades portuguesas de media dimensión y de las respectivas escenas culturales.

Palabras-llave: dinámicas culturales urbanas, agentes culturales, ciudades portuguesas de media dimensión.

 

Um ensaio sobre a percepção social das mudanças

A investigação sobre as dinâmicas culturais urbanas que foi realizada por sociólogos das Faculdades de Economia de Coimbra e do Porto e tomou por referência empírica as cenas culturais das cidades de Aveiro, Braga, Coimbra, Guimarães e Porto, ao longo da segunda metade dos anos 1990, foi colocada sob a orientação de um corpo de hipóteses gerais acerca da influência da espacialidade urbana no jogo de relações entre globalização e localização, modernização e patrimonialismo, integração e ruptura. Com tais hipóteses, chamámos a atenção para as lógicas de redesenvolvimento das cidades em que pontuam recursos e iniciativas de natureza simbólica, alterando significativamente o papel da cultura na determinação das identidades colectivas, do tecido socioeconómico, dos padrões de consumo, da configuração do espaço público e das formas de afirmação e competição entre localidades e regiões. E propusemos dar conta da complexidade dos processos de articulação entre as escalas global e local e entre os movimentos de centralização, periferização e lateralização social, a partir da análise de agentes e zonas de intermediação em acção nesses processos.[1] Pensamos que uma indagação fina de mediações como as que se estruturam em torno das “terceiras culturas” transnacionais (no conceito de Featherstone, 1997), da dialéctica entre estranhamento e tolerância sociocultural (como modulações intermédias entre as formas polares do inter-reconhecimento e do conflito), da reinvenção da domesticidade como um lugar aberto à comunicação (e não apenas de reclusão e isolamento) e dos novos ou renovados espaços de proximidade relacional, essa indagação faz-nos perceber melhor a típica situação de desfecho incerto das tensões que animam o redesenvolvimento urbano e o futuro do respectivo espaço público (Fortuna e Silva, 2001).

Este programa de pesquisa pede a exploração de perspectivas diversas e complementares. Procurámos, para as cidades referidas e também para outras de média dimensão, pôr em relevo a complexidade das articulações entre dinâmicas culturais e transformações urbanas, observando sucessivamente vários lados do problema: a construção e disseminação de identidades simbólicas e respectivos ícones e emblemas patrimoniais (Fortuna e Peixoto, 2002); a composição dos públicos culturais e os padrões de procura cultural (Santos e outros, 1999; Silva e outros, 2000; Silva e outros, 2002a); a formação dos hábitos e gostos dos consumidores regulares de bens culturais (Silva e outros, 2002b); a estrutura dos equipamentos e da oferta cultural (Silva e outros, 1998; Silva, 2002); as políticas autárquicas (Silva, 2000: 87-137).

Foi utilizado um dispositivo de construção de informação relativamente complexo, que compreendeu um inquérito por questionário, administrado em 1997 a uma amostra de 1500 residentes de Aveiro, Braga, Coimbra, Guimarães e Porto, 80 entrevistas em profundidade a consumidores regulares de cultura das mesmas cidades, entrevistas realizadas em 1998, a observação sistemática de fontes de imprensa, agendas culturais municipais, programas e outros materiais de divulgação, para caracterizar a oferta cultural das cidades ao longo do ano de 1998, entrevistas com eleitos locais e entrevistas com informantes privilegiados.

Neste quadro, 48 personalidades que ocupavam lugares e desenvolviam actividades de certo protagonismo na cena cultural urbana foram entrevistadas em profundidade, entre Março de 1999 e Março de 2000. No presente artigo, utilizaremos a informação recolhida através das entrevistas a 31 delas, trabalhando nas quatro cidades médias de Aveiro, Braga, Coimbra e Guimarães. Não reteremos as 17 entrevistas referentes ao Porto, cuja escala metropolitana é distinta da escala das demais urbes.

Das 31 entrevistas aqui consideradas, 6 dizem respeito a Aveiro, 11 a Braga, 7 a Coimbra e 8 a Guimarães; e 12 foram feitas a quadros dirigentes ou técnicos de instituições e serviços públicos, tais como autarquias, universidades e equipamentos culturais, 10 a dirigentes de associações culturais (incluindo secções culturais de associações académicas), 6 a activistas de estruturas de produção artísticas (companhias de teatro e de dança) e 3 a galeristas de arte. Elas providenciaram informação relevante sobre a estrutura e a dinâmica do campo cultural local e, a esse título, foram objecto de cruzamento com outras fontes, para suportar a descrição sociológica desse campo (Silva, 2002). Mas o seu interesse analítico vai muito para além deste plano: o que, em diálogo com os entrevistadores, fez a larguíssima maioria dos protagonistas foi discorrer reflexivamente não só sobre os seus projectos e a maneira como se inserem na paisagem social, como também sobre como eles próprios vivem e interpretam essa paisagem e antevêem o seu futuro. É bem possível focar os discursos dos entrevistados como representações de agentes culturais sobre o passado recente, a situação presente e os caminhos de evolução das cidades médias portuguesas e das respectivas cenas culturais.

Eis o que tentaremos fazer, de seguida. Com a plena consciência de provocar uma dupla confrontação: a confrontação daquelas representações com os factores estruturais e conjunturais em acção nas respectivas cidades, quer os que foram gerando mudanças quer os que forçaram permanências; e a comparação entre os dois discursos reflexivos elaborados, um, do lugar da acção cultural local e, o outro, a partir da sociologia da cultura. Não é, pois, questão — seria bem primário pensá-lo — de “verificar” o realismo das representações dos protagonistas à luz dos indicadores disponíveis sobre as “condições objectivas” da dinâmica urbana, nem de sujeitá-los à prova do escrutínio sociológico; mas sim de considerar os seus discursos e as disposições que exprimem como elementos constitutivos da dita dinâmica, factores, entre outros, do seu movimento — e também como um saber, uma percepção social com a qual se pode cruzar e enriquecer o conhecimento sociológico.

 

As cidades mudam: e os protagonistas?

Lidos da perspectiva que as nossas hipóteses gerais alimentam, e que coloca em destaque o processo de redesenvolvimento cultural das cidades, os discursos dos activistas culturais podem ser entendidos como abordagens reflexivas de encruzilhadas sociais. Saltam à vista as mudanças que as nossas cidades médias têm vivido, nas diferentes escalas de tempo convocáveis: a institucionalização da democracia, ou seja, os últimos trinta e cinco anos; a integração europeia, ou seja, os últimos vinte e cinco anos; e as escalas mais fluidas, mas não menos operativas, da progressiva enunciação, por parte das câmaras municipais, de políticas culturais (o que se tem feito sentir desde os anos 80, com interessantes casos precursores, mas relativamente excepcionais, entre os quais se pode contar, aliás, Braga (cf. Silva, 2000: 119-137), do crescimento da população universitária, discente e docente, nas cidades em que a presença de estabelecimentos de ensino superior público é recente (no nosso caso, todas menos Coimbra), ou das transformações no ambiente de cultura e lazer associadas à contemporaneidade.

Estas mudanças significam um enorme potencial de inovação e qualificação. Mas confrontam-se com factores de bloqueio, ao nível da estrutura e/ou da acção, que os agentes culturais são dos primeiros a experimentar. Nem no registo da análise de condições objectivas, nem no das apreciações dos sujeitos sociais, é linear a evolução da realidade urbana intermédia portuguesa. A conjuntura parece ser de encruzilhada, caracterizada pelo jogo entre forças contrapostas, pela tensão entre movimentos contrários, ou ao menos diferenciados, e onde os protagonistas podem ajudar melhor o olhar sociológico é na percepção e na expressão desta tensão.

É certo que as cidades mudaram: as cidades e os seus concelhos. Basta uma consulta rápida aos resultados censitários para evidenciá-lo. A população residente cresceu: no conjunto dos concelhos (ao longo da década de 90, mais 16% em Braga, mais 10% em Aveiro, mais 7% em Coimbra, mais 1% em Guimarães), e nas suas freguesias urbanas, cujo aumento populacional foi ligeiramente superior, em proporção ao do concelho, salvo em Guimarães, em que até perderam gente (quadro 1).

 

Quadro 1 Evolução da população residente nos concelhos, segundo a natureza das freguesias, 1991-2001 (%)

 

Como resultado destas dinâmicas demográficas, as freguesias urbanas valem mais de 90% da população concelhia, havendo a registar mais uma vez a excepção de Guimarães, onde só valem 79%. Contudo, se considerarmos apenas as freguesias interiores aos limites administrativos da cidade principal de cada concelho (porque há freguesias urbanas fora dessa cidade), as percentagens descem para valores próximos dos 70% em Aveiro, Braga e Coimbra, e para os 45% em Guimarães, concelho em que a maioria da população vive fora da cidade que lhe dá o nome. De qualquer modo, a utilização deste critério acentua, salvo em Aveiro, a natureza da evolução recente, no sentido do crescimento do peso específico da cidade (quadro 2).

 

Quadro 2 Evolução da população residente nas cidades, relativamente à população dos respectivos concelhos, 1991-2001 (%)

 

São também significativas as mudanças na composição social da população destes concelhos. E as mais relevantes, para o que concerne às práticas culturais, são o aumento do peso relativo das novas classes médias e dos grupos mais fortes em capital escolar. De facto, como mostra o quadro 3, os nossos concelhos acompanham a tendência nacional: entre 1991 e 2001, a proporção dos quadros dirigentes e dos quadros superiores e intermédios passou de 13% para 18% no Continente, e de 18% para 25% em Aveiro, de 16% para 22% em Braga, de 26% para 33% em Coimbra e de 8% para 11% em Guimarães. A tendência nacional também é seguida no que diz respeito aos níveis de instrução: a percentagem dos que concluíram ou frequentaram o ensino superior quase duplicou, no conjunto do Continente (8% para 15%); ora, mais do que duplicou em Guimarães (4% para 9%) e em Braga (11% para 24%), e praticamente duplicou em Aveiro (12% para 23%) e Coimbra (18% para 32%) (quadro 4).

 

Quadro 3 Evolução da população activa dos concelhos e do Continente, segundo o grupo socioeconómico, 1991-2001 (%)

 

Quadro 4 Evolução da população dos concelhos e do Continente, com 15 e mais anos, segundo o nível de instrução, 1991-2001 (%)

 

Quando sabemos que os indicadores mais seguros da intensificação do consumo cultural são a combinação entre idade (jovem) e escolarização, e entre escolarização e qualificação profissional — quer dizer, é a condição social ligada às novas classes médias que eles revelam (Conde, 1997; Silva e outros, 2002a) —, é indispensável fazer notar que, em resultado do movimento geral de translação das estruturas sociais, um em cada três dos residentes em Coimbra maiores de 15 anos e inseridos no mercado de emprego é quadro dirigente, superior ou intermédio, e o mesmo sucede com um em cada quatro dos aveirenses, um em cada quatro dos bracarenses e um em cada nove dos vimaranenses. Entre os chamados inactivos, o aumento do número e do peso relativo dos estudantes é também marcante, em todos os casos, e com particular expressão em Guimarães, o que, combinado com a intensidade da transformação na estrutura das habilitações académicas, indicia que a mudança neste concelho, sendo mais recente, não é menos efectiva (quadro 5).

 

Quadro 5 Evolução dos estudantes no conjunto da população com 15 e mais anos, residentes nos concelhos e no Continente, 1991-2001

 

Outro domínio em que os nossos concelhos acompanham uma tendência nacional é a composição etária. Mas, se a população envelhece aqui como no país, continua a ser marcante o facto de Aveiro, Braga e Guimarães conhecerem uma proporção de habitantes com idades compreendidas entre os 15 e os 44 anos significativamente superior à do Continente (quadro 6). A este grupo, que os inquéritos mostram ser o mais propenso aos consumos culturais, pertencem 62% dos residentes em Braga e Guimarães, 55% dos residentes em Aveiro e 52% dos residentes em Coimbra, a qual está em linha com a média nacional. O grupo perdeu peso percentual entre 1991 e 2001, mas continua a determinar o carácter relativamente mais juvenil dos concelhos.

 

Quadro 6 Evolução da população dos concelhos e do Continente, com 15 e mais anos, segundo o grupo etário, 1991-2001 (%)

 

A breve viagem que realizámos pela paisagem socioeconómica dos quatro concelhos foi, entretanto, dando nota da diversidade entre eles. Se todos vivem processos de qualificação no plano escolar e socioprofissional, o certo é que os vivem diferenciadamente e, conjugados tais processos com as situações herdadas, a composição social varia bastante. Tipicamente, Guimarães distingue-se dos restantes concelhos por ser uma zona fortemente operária, em que os assalariados industriais valem mais de metade dos activos. Braga combina a presença forte do operariado industrial com uma boa presença dos empregados terciários e dos quadros. Em comparação, Aveiro distingue-se por ter no grupo dos empregados a maior representação relativa, e Coimbra por tê-la nos quadros superiores e intermédios (cf. quadro 3).

Ora, estas modulações na sociografia estão sintomaticamente ausentes do discurso dos agentes culturais entrevistados. A mudança, para eles, existe, sem qualquer margem para dúvidas, mas pintada a traço grosso. Desde logo, a democratização subsequente ao 25 de Abril, capital para a criação cultural. Depois, a massificação de acessos que foram outrora, décadas a fio, extremamente restritivos: a frequência da escola, a existência de tempo livre, o consumo de bens de cultura e entretenimento, a integração nos circuitos da comunicação de massas. Enfim, a inovação nos padrões de comportamento e interacção, privada e pública, e nos padrões de lazer e de consumo, com o surgimento de uma disposição de abertura ao consumo de bens imateriais e de valorização da novidade, contrastando com os velhos hábitos de contenção que tanto marcaram ainda o século XX português.

Esta mudança é vista a duas cores. Em si mesma positiva, parece, aos olhos dos protagonistas culturais, carregar também ameaças, ou pelo menos ter um lado lunar. A liberdade democrática é inigualável, há um antes e um depois da sua conquista, mas pode significar também conformismo, pouca participação cívica, perda da capacidade de resistência aos poderes estabelecidos: “a democracia é boa, mas leva a que muita gente se acomode”, diz um professor coimbrão (XX).[2] A intensificação das práticas de consumo potenciou também a influência hegemónica das indústrias culturais e do modelo de recepção abandonada que elas inculcam: perdem-se os interesses que fogem ao mainstream, ignorados pelos media, o que cria, como explica um cineclubista de Guimarães, um ciclo vicioso: “o que é minoritário nunca é divulgado porque é minoritário e o que é maioritário eterniza-se exactamente porque continua a ser divulgado” (XXIV). A inovação nos padrões de comportamento alimenta paradoxalmente a continuação e até o revivalismo de rituais tradicionalistas, designadamente nas praxes e festas académicas, que estarão no pólo oposto ao da criatividade cultural; o que é apenas um exemplo de uma mais geral superficialidade das transformações no que toca à prática cultural propriamente dita, o que, entre outras coisas, poderia ser comprovado pelo desaparecimento progressivo dos velhos intelectuais activos e de largo espectro, isto é, envolvidos em múltiplas facetas da vida pública (XXIV).

A percepção dos efeitos gerados pela implantação de universidades novas, em Aveiro, Braga e Guimarães, ilustra bem a dialéctica entre dimensão solar e sombria da mudança social. Coimbra é um caso à parte, cidade que é da mais velha universidade do país e das mais antigas na Europa. Aí, é só o crescimento do número de alunos do ensino superior que se tem de assinalar (quadro 7). Mas, nas restantes cidades, a presença universitária é uma novidade de primeiro plano, indestrutivelmente associada à viragem no dinamismo e nos hábitos urbanos. A Universidade de Aveiro e a Universidade do Minho (com instalações em Braga e Guimarães) são criações da década de 1970, que se consolidaram e desenvolveram nas duas décadas seguintes. Não há, entre os activistas entrevistados, quem não as assinale como um, senão o factor de mudança. Mas, outra vez, não é líquida a efectivação do potencial que transportam: ou porque o tradicionalismo universitário (“há ali uns resquícios do Concílio de Trento”, como diz um académico coimbrão a propósito da sua Universidade, XX) pode esmagar a inovação cultural; ou porque a cidade não acompanha, e mesmo hostiliza, a dinâmica académica (“a cidade é ingrata para os estudantes”, denuncia um dirigente da Secção de Fados da Associação Académica de Coimbra, XXII); ou porque a cultura esbarra com estudantes amorfos, mais dados à sociabilidade lúdica e aos consumos induzidos pela indústria do espectáculo e do entretenimento do que às práticas e linguagens artísticas (como refere o animador da Rádio Universitária de Coimbra, XXI).

 

Quadro 7 Evolução dos alunos matriculados no ensino superior, público e privado, nas cidades, entre 1994-95 e 2001-02

 

Dualismo social e cultural, pois. Como nota o director de uma companhia profissional de teatro, a propósito da disparidade entre o facto do crescimento urbano de Braga e a dificuldade de pensar uma estratégia cultural que o aproveite, “nós hoje vivemos quase em dois países. Por um lado, falamos da modernidade e da Europa e, por outro lado, temos um país que está nos anos 60, ao nível do gosto e etc. ” (XV)

Ora, esta paisagem social “real” alimenta-se, no que à oferta cultural diz respeito, sobretudo de dois actores: os poderes autárquicos e o movimento associativo. A apreciação dos protagonistas locais converge, assim, com a conclusão a que chegara a observação sistemática dos acontecimentos e operadores culturais referenciados nas fontes de imprensa e nos materiais de divulgação pública, ao longo de todo o ano de 1998 (Silva, 2002: 81-91).

Aliás, a atenção prestada pelas câmaras municipais e a sua concretização em sequências mais ou menos organizadas de actividades, obedecendo a certos propósitos, quer dizer, a emergência de (à respectiva escala) políticas culturais municipais, é assinalada, por vários entrevistados, como uma das boas novidades dos anos 1980. Quer ouçamos os dirigentes políticos e técnicos das autarquias, isto é, os decisores e executantes, quer ouçamos os activistas de estruturas artísticas profissionais ou amadoras, isto é, os parceiros e beneficiários, o entendimento é o mesmo: a centralidade do apoio camarário, seja através de financiamentos, seja através da disponibilização de recursos logísticos, técnicos e humanos, seja pela organização de eventos, seja até pela criação, como diz um animador da edilidade bracarense, de um “clima propício à construção de um projecto na área cultural” (X). Há défices de planeamento e cooperação, o que significa alguma incapacidade de pensar a prazo e de contornar emulações paroquiais e quezílias de protagonismo (XXI, XXIV, XXVII). Mas os nossos interlocutores preferiram assinalar riscos globais, que vão para lá de eventuais favorecimentos ou perseguições políticas. E são, a crê-los, sobretudo dois. Em primeiro lugar, essa absoluta centralidade dos incentivos municipais — e da participação directa da Câmara como produtora de acontecimentos culturais — tem por inevitável contraponto o risco de “municipalização da cultura” (expressão do dirigente do Cineclube de Guimarães, que a usa para sustentar que ainda não se verifica, mas é preciso evitar que possa haver, XXIV), a excessiva dependência do associativismo. Em segundo lugar, a lógica de prestação de serviço a toda a população, associada à própria necessidade política de garantir o reconhecimento alargado da utilidade social da acção municipal, coloca claros limites ao que, na iniciativa artística, possa desafiar os consensos, afastando segmentos dos públicos para conquistar outros; ora, nem todos os projectos artísticos convivem bem com esta relação não-problemática com os públicos, esta ideia de que, como continua dizendo o técnico bracarense, “a autarquia tem a preocupação de realizar eventos que se dirijam a todo o tipo de públicos, para a autarquia não há públicos, há um público” (X).

Da banda do movimento associativo, de que vários entrevistados são activistas militantes, ou com que têm relacionamentos privilegiados, a situação de encruzilhada pode verificar-se em várias dimensões. Vive-se a nostalgia do velho movimento associativo popular, estruturado em torno do teatro amador, das bandas, da formação dos mais jovens, e o reconhecimento de que a sua actual retracção resulta de um desajustamento objectivo às novas condições e desejos de interacção e consumo. Não se quer desprezar o potencial participativo e inclusivo que as colectividades conquistam no lazer e na convivialidade, no serem “recreativas”, mas ao mesmo tempo constata-se e lamenta-se o definhamento de tantas, reduzidas ao bar e aos jogos. Celebra-se a associação enquanto escola cívica, mas verifica-se que ela só muito lateralmente abala a enorme pressão para a apatia social. Da sua própria estrutura cada dirigente gosta de dizer que é um prático e concreto espaço de participação, pessoas que se reúnem voluntariamente para fazerem coisas que simultaneamente trazem, a elas, satisfação individual e grupal e, à comunidade envolvente, um bem público primário — mas o núcleo duro que assegura o funcionamento da estrutura, a rotação pelos cargos de direcção, a partilha de custos e responsabilidades, é relativamente reduzido. Não se quer diminuir o valor fundamental do voluntariado, ser-se amador da cultura no duplo sentido de devotado e benévolo, mas os limites do amadorismo na organização e no projecto artístico são evidentes. Lembra-se histórias mais ou menos recentes, activistas culturalmente qualificados que souberam transformar colectividades de recreio em associações culturais, sem romper com a identidade e o enraizamento tradicional nem eliminar a função convivial; mas parece hoje mais difícil ignorar a diferenciação socioprofissional, a diversidade dos grupos de que se faz uma cidade, e contrariar a sua repercussão em termos também de diferenciação do próprio movimento associativo e dos seus círculos socioculturais. Sabe-se, por último, que a transformação das cidades passou e passa pela capacidade de afirmação regional e nacional e que, para isso, pode ser crucial a selectividade, escolher certos nichos de mercado e público ou concentrar esforços em certos eventos; o que não deixa de contrariar a abrangência social característica do associativismo local.

São inúmeras as citações possíveis, a partir do corpo de entrevistas, para ilustrar a percepção destas tensões. Não surpreende, dado o olhar interior e interessado da maior parte dos interlocutores, que são ou dirigentes associativos, ou produtores e intérpretes de teatro e dança organizados em sociedades cooperativas, ou dirigentes profissionais e políticos formados na escola associativa, ou técnicos que trabalham de perto com ela, não surpreende que sejam encarecidos o papel e a disponibilidade dos activistas benévolos, esses “lutadores” (dirigente do Círculo de Arte e Recreio de Guimarães, XXV) da causa da cultura, assim como relevada a importância da rede de associações para a constituição de um espaço público local — essa “dinâmica de afectos” (XXV), que também pontua o relacionamento interassociativo, e essa capacidade colectiva de (continuar a) oferecer uma oportunidade própria à experimentação e desenvolvimento artístico de cada um, à combinação da posição de destinatário com a de sujeito do acto cultural, às formas artísticas que o entretenimento deixa à margem ou na sombra, à aproximação informal, da “boa ganga” (por contraponto ao fato e gravata, XXIV), ao mundo da cultura. Não só se consegue assim qualificar a oferta local de eventos e práticas (e a dimensão real deste contributo, já a nossa análise dessa oferta o mostrou, cf. Silva, 2002), como também se mantém um tempo e um espaço de iniciação cultural e cívica, que faz dos grupos amadores, associativos ou universitários, viveiros para a formação de futuros profissionais destas áreas (“escola prática”, “tempo de encontro, de aprendizagem e de definição para cada um”, como diz, a propósito do teatro universitário, o dirigente de uma companhia profissional de Coimbra, XVIII), contextos de socialização de futuros consumidores esclarecidos e regulares e, não se esqueça, de futuros responsáveis das instituições cívicas e políticas. Porém, a “transformação geracional” (técnico municipal de Guimarães, XXVII) que atravessa todas as instâncias sociais mas é especialmente relevante, pelas razões que os inquéritos documentam (Pais e outros, 1994; Silva e outros, 2002a), no domínio das práticas culturais não parece encontrar respostas seguras numa liderança associativa ainda formada no espírito dos anos 1960 e 1970. E o mesmo se diga da letargia do associativismo de base popular e recreativa, do peso das associações que “são grupos de amigos que se reúnem para conversar e mais nada”, como diz outro técnico municipal vimaranense (XXVI), e da inércia que ela faz pesar sobre os projectos artísticos: ou porque a boa vontade e a dedicação não chegam para colmatar as falhas do amadorismo; ou porque a “aventura”, como lapidarmente tipifica o dirigente de uma das mais activas associações de Braga (VII), que é organizar nesta base um evento é adversária da sua sustentação; ou porque, para os observadores mais distanciados e críticos da malha associativa e do seu colectivismo ingénuo, o enaltecimento apriorístico do associativismo amador impede a ruptura com o que de “bacoco” e “estupidificante” ele também produz, impede que a transformação da cidade seja interpelada, no discurso e na prática cultural, através da necessária “discussão entre o novo e o velho” (líder de Companhia de Teatro de Braga, XV).

 

Um novo desafio: que projectos para que públicos, que públicos para que projectos?

Como os sociólogos que têm abordado a evolução recente das cidades médias portuguesas a partir de elementos de objectivação como as estatísticas sociográficas, os encadeamentos de factos ou as fontes documentais, os protagonistas culturais dessas cidades convergem na caracterização da sua conjuntura presente como encruzilhada, tensão, jogo de forças diferentes, senão contrárias. Ora, não há provavelmente domínio onde seja mais evidente e decisiva a tensão do que o relacionamento entre os portadores de projectos culturais próprios e os públicos.

Eis um desafio relativamente novo, pelo menos na dimensão que hoje se vislumbra ter. De facto, o modelo que orientou, anos a fio, o comportamento dos activistas locais era o “animador cultural” (como a si próprio se define o entusiasta do cineclube vimaranense, XXIV). Mais do que autor, criador e portador de um projecto próprio, individual ou de grupo, ele concebia-se e largamente ainda se concebe como um mediador (cf. Silva, 2002: 87-89). Mediador, porém, no sentido que lhe confere a doutrina da democratização do acesso à cultura, isto é, um facilitador e estruturador do acesso de cada vez mais gente a bens culturais que são ou devem ser património de todos e eixo de valorização de cada um, assim como do acesso de cada vez mais gente, em especial nas jovens gerações, à actividade cultural, quer dizer, à participação na produção de bens culturais, como sujeitos implicados em práticas que, com um mínimo de qualificação, ficarão ao seu alcance, como o teatro académico ou popular, a fotografia, as artes plásticas, a música não-erudita, a literatura. As palavras-chave deste modelo são “formação” e “públicos”.

Formação de públicos. Conquistar, “cativar” para formas de que as pessoas estão ainda arredadas — como diz o responsável da Companhia de Dança de Aveiro, “hoje o público está cativado para o futebol, porque viu muito futebol antigamente e as pessoas ficaram conquistadas. Há um papel muito importante a fazer com as companhias de dança no sentido de cativar o público” (I). É preciso, pois, “despertar as pessoas, provocar” (activista de companhia teatral, Aveiro, II), ir onde estão os públicos potenciais, ser pedagógico, “apoiar as escolas” (VIII, XVIII), assumir as responsabilidades próprias das universidades e das associações académicas (como dizem vários dos seus dirigentes) e concretizar o papel formativo das instituições culturais públicas, como os museus e outros equipamentos (como dizem os técnicos entrevistados).

Formação dos públicos. Não basta atrair, é essencial formar as pessoas, habituá-las ao consumo regular e apetrechá-las para o consumo crítico: saber, “num mundo inundado de imagens, olhar de uma forma crítica para as imagens” (responsável dos Encontros da Imagem, Braga, VII), induzir a cinefilia e a recepção crítica do cinema (cineclubista de Guimarães, XXIV), e outros diriam o mesmo do teatro, da música ou da literatura.

Ora, como se faz a formação de públicos e dos públicos? Em pano de fundo, a dramática pequenez do público fidelizado. Como assinala, com uma ironia amarga, o professor conimbricense ligado ao teatro, “há um grupo de pessoas que vai a tudo […]. Dá-me a impressão de que conseguia identificá-los a todos”; e esse grupo, supostamente esclarecido e crítico, não fará deste consumo uma pose, afinal tão postiça quanto outras? Continua o professor, referindo-se à audiência habitual de certa companhia teatral: “é um público bem pensante que de tudo o que é moderno, vanguarda ou um certo tipo de esoterismo nunca é capaz de dizer mal, porque tem medo; e ao mesmo tempo faz parte do ser intelectual de esquerda gramar as maiores pasteladas sempre com um ar de grande seriedade” (XX).

Quando, sobre este pano de fundo, se pensa a questão dos públicos, regressam as antinomias. Para cativar e qualificar, o que se deve preferir? Ser ecléctico, abrangente, dirigir-se a todos os tipos de públicos, para “alimentar”, como reclama o técnico municipal de Guimarães que temos citado (XXVII), os que não gostam “de música pimba e de futebol”, que “esses são alimentados todos os dias”; ou focalizar, centrar esforços em certos segmentos, sejam os estudantes das escolas ou universidades, os quadros que, como vimos (quadro 3), vão tendo presença crescente na paisagem social das cidades, ou aqueles que, já com uma preparação cultural básica, constituem, por exemplo, o público sensível a iniciativas de jazz ou música clássica? E qual deve ser a atitude? Bastará aproximar as obras e os intérpretes ou divulgadores das obras do público-tal-qual-ele-é, será isso legítimo, do ponto de vista estético, contribuirá isso para a inovação, não acabará por reproduzir os equívocos e impasses do presente? Ou, inversamente, o que é preciso é romper com o pedagogismo, sacudir o “marasmo”, “trabalhar para um público novo também, para um público jovem que tivesse apetência por essa actividade de risco” (Escola da Noite, Coimbra, XVIII), assumir a diferença, dizer, como faz o líder da Companhia de Teatro de Braga (XV), “nós somos relativamente elitistas. […] partimos do princípio de que temos de trabalhar para públicos não virgens, já iniciados e com gosto”?

Com todas as cautelas necessárias, quando se trata de generalizar a partir de um conjunto limitado de entrevistas, cremos poder dizer-se que a atitude predominante entre os protagonistas culturais das nossas cidades médias, localizados nas associações, nas autarquias, nas escolas, nas instituições ou nas estruturas artísticas profissionais ou semiprofissionais, é a que concebe a formação dos públicos em torno de dois eixos: de um lado, a educação, a animação, quase a pedagogia cultural (mesmo os galeristas entrevistados é assim que representam a sua actividade, pedagogia mais do que comércio, XII, XIII, XXIX); do outro lado, divulgação das obras e eventos por esses concelhos periféricos face a Lisboa e ao Porto, e pelas próprias periferias interiores a cada um, isto é, o território que vai além da respectiva sede, através de itinerância de espectáculos ou exposições e descentralização de festivais, serviços ou equipamentos. Esta é, sem dúvida, uma das linhas de força que conduzem à centralidade das actividades de mediação e das artes médias onde elas se sustentam, na oferta cultural das cidades médias (Silva, 2002: 101-102).

Mas o que a abordagem da dinâmica sociocultural pelo ângulo dos discursos doutrinários e artísticos dos protagonistas do campo cultural local faz ver também, porque nos aproxima mais da ordem do desejo e destaca vectores de transformação cujo peso relativo é ainda reduzido, são os distanciamentos e as demarcações, perante a atitude, ainda prevalecente, dos que têm como seu programa acentuar a dimensão de autoria e criação da sua prática, afirmar-se mais como profissionais das artes ou da comunicação e/ou como membros de grupos e estruturas referenciadas ao mundo cosmopolita das artes do que como “animadores” dos jogos locais de oferta e procura.

Ora, esta tensão na relação com os públicos — a ruptura com a lógica da abrangência programática, com a relação não-problemática e a aproximação pedagógica aos públicos potenciais — associa-se, por sua vez, com a não menos importante relação de tensão com a própria estrutura associativa — com o que lhe subjaz de enfatização do colectivo, do grupal, do cooperativo. Para vários protagonistas entrevistados, a associação mais ou menos informal e a cooperativa dos profissionais ou semiprofissionais deixaram de constituir referência. O seu projecto é de inovação e diferença artística, e isso implica posicionamentos que convivem mal com a tradição associativa.

Há um status quo local, muito baseado, como vimos, na cumplicidade mais ou menos fácil entre associações e autarquias, que não consegue acomodar, et pour cause, o desafio estético. A presidente da Associação de Autores de Braga, uma organização de escritores locais, diz: “nós, no fundo, somos a voz da criação desta terra” (VIII). Ora, não é isso que pretende ser a Companhia de Teatro de Braga, mas antes uma instância de interpelação da cidade e da sua modernidade por alcançar (XV). Ou, em Coimbra: a perspectiva da Escola da Noite, outro grupo profissional de teatro, era romper com o “enconchamento” a que tantas companhias tiveram de recorrer para sobreviverem em tempos difíceis, e o “marasmo” criativo a que assim se chegou: “os actores tinham sido expropriados do teatro”, a “experiência [artística] ia até um certo limite e depois parava”, e foi como gesto intencional de corte com esta situação que se formou o novo grupo (XVIII).

Posição de divergência, de problematização, de inovação, que casa mal com o consenso que vem estruturando a cena cultural local e o seu discurso de representação e abrangência. O acto cultural que está na raiz dessa posição já não pode ser descrito apenas no molde da mediação, divulgação descentralizadora e animação formativa. O projecto da Companhia de Teatro de Braga, diz o seu director, é artístico e pessoal (dele próprio). E, ao dizê-lo, instaura duas diferenças para com o modelo prevalecente: a prioridade da criação estética (sobre o valor social da actividade); e a natureza autoral da criação. Outros protagonistas serão menos assertivos, preferirão estribar a diferença e singularidade artística no trabalho e projecto colectivos do grupo a que pertencem. Mas desenha-se aqui uma linha de evolução, o desenvolvimento de projectos de profissionalização nas artes — como criadores, intérpretes, produtores ou programadores — e a aposta em eventos de escala supralocal, que potenciem e afirmem, em contextos territoriais e institucionais mais amplos, o valor da estrutura cultural e da cidade em que se insere e apoia e de cuja transformação quer ser agente, sejam esses eventos festivais de música, ciclos de exposições e oficinas temáticas, sequências estruturadas de espectáculos ao longo de uma temporada. Podia dizer-se, sem risco de desmentido completo, que, no ano 2000, Aveiro ainda não conseguira construir um evento desta escala; mas Braga encontrara-o nos Encontros da Imagem, Coimbra nos Encontros da Fotografia, Guimarães nos Encontros da Primavera ou no Guimarães Jazz. Ora, qualquer deles era formalmente organizado por uma associação local; mas em cada um deles o comissariado começava a ganhar um protagonismo que representava, por si só, uma diferença face aos padrões habituais do associativismo cultural. Comissários que a associação escolhia fora de si própria, no campo profissional de cidades como Porto e Lisboa, como acontecia em Guimarães; ou que descobria e valorizava em si mesma, como nas duas restantes cidades. E o caso de Coimbra elucida lapidarmente como, passo a passo, a associação se foi tornando numa mera extensão quase burocrática do programador-criador, ele sim o verdadeiro autor e centro do projecto artístico, digno de nomeação autónoma como figura doravante incontornável quer do campo nacional das artes visuais, quer da paisagem artística, cultural e até política da cidade. Não surpreende, pois, que a estrutura formal, ainda de natureza associativa, se venha a confundir com a personalidade do director e só o nome deste, o fotógrafo e programador Albano da Silva Pereira, passe a contar.

 

Falar da encruzilhada, falar na encruzilhada

A importância, já de si crescente, das práticas lúdicas, culturais e comunicacionais na configuração das sociedades contemporâneas adquire um redobramento específico em contexto urbano. Em conjunturas mais recentes, o desenvolvimento das cidades tem sido pontuado pela atribuição de um papel de primeiro plano às identidades historicamente construídas e agora revividas e recriadas, aos símbolos e obras emblemáticas, aos equipamentos e serviços de cultura e lazer, à revalorização dos espaços públicos por via de acontecimentos de variável, mas relevante, dimensão. Esta atribuição é feita por cidadãos, instituições, poderes. O lugar da cultura no que chamámos “redesenvolvimento urbano” não deve ser, pois, menorizado. Ao mesmo tempo, a sua relação com as mudanças sociais que as cidades vão conhecendo e a constituição e dinamismo da sua esfera pública merecem atenção e análise fina. A “espacialização das práticas culturais” é uma via de investigação prometedora, até para enriquecer e modular algumas regularidades empíricas que métodos extensivos, como o que assenta em inquéritos por questionário, vão pondo em evidência (Fortuna e outros, 1999).

Ora, as cidades médias portuguesas oferecem boa referência empírica para uma investigação norteada por estas hipóteses. Vivem um processo de transformação social que é, simultaneamente, recente e intenso. Recente: três décadas de democracia, de expansão do ensino superior (com a óbvia excepção de Coimbra), de mudança profunda na estrutura económica, social e profissional, assim como nos hábitos e padrões de consumo. Pode naturalmente dizer-se que vivem um processo de âmbito mais geral, tocando como toca o conjunto da sociedade portuguesa (cf. Barreto, 2003). Mas vivem-no com particularidades próprias.

Localizando-se fora das duas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, o desenvolvimento das cidades médias confronta o facto da bipolarização do território continental português, cujos efeitos sofre (porque o limitam), mas também, na medida em que se vai fazendo, contraria. Para este desenvolvimento, tem sido fundamental a contribuição do ensino superior: desde logo, a implantação de novas universidades e institutos politécnicos, depois o seu crescimento, em número de alunos e docentes e em áreas de formação, pesquisa e prestação de serviços, depois a sua gradual inserção na vida urbana. A fundação, as atribuições e competências do poder local democrático e a definição e aplicação de políticas autárquicas nos diversos domínios, com especial relevo, a partir dos anos 1980, para a área da cultura, tem sido, também, decisiva, colmatando alguns dos défices de equipamento e oferta que as cidades experimentavam. Seja por liderança das respectivas câmaras municipais, seja por impulso do Estado, seja por iniciativa de instituições como as escolas e universidades, seja pela dinâmica própria dos círculos associativos e dos agentes privados, ao longo dos anos 1990 as cidades médias foram ganhando certas estruturas de produção, divulgação e formação cultural: as rádios locais vieram juntar-se à tradicional imprensa, e novos jornais e publicações surgiram, as companhias de teatro (e, num ou noutro caso, de dança), profissionais ou em vias de profissionalização, foram-nas escolhendo como sedes, as autarquias e as universidades foram construindo espaços para eventos públicos, como auditórios, teatros ou complexos multiusos, a oferta de ensino artístico foi-se qualificando, designadamente através de escolas profissionais ou de cursos das escolas superiores, as cidades passaram a conhecer, normalmente por responsabilidade directa ou indirecta da autarquia, “temporadas” de acontecimentos culturais, com ciclos, festivais, festas, exposições ou espectáculos singulares de certo impacto.

No campo associativo, que é, como temos visto, aqui determinante, as mudanças também se fizeram sentir com tonalidades próprias, face às grandes áreas urbanas do país. Por um lado, o associativismo de resistência, que vinha já do tempo da ditadura, e o associativismo recreativo, de base claramente popular e tradicional (rural ou urbana), foram-se transformando: ou decaíram, ou actualizaram-se. Por outro, uma nova vaga associativa pontuou a conjuntura posterior a 1974 e conformou significativamente, nas décadas seguintes, o espaço público local, trazendo novos interesses temáticos, ou valorizando mais alguns que eram usualmente secundarizados — e falamos, entre outros, da defesa e divulgação do património, da valorização da história e do artesanato local, do teatro não-popular, dos rituais académicos, das artes plásticas e visuais, com relevo para a fotografia, do sector audiovisual, com a revalorização do cineclubismo e a exploração de gramáticas ligadas à rádio ou às tecnologias de vídeo, e também do jazz e da música erudita.

Mudou a dimensão das cidades (várias cresceram, em termos absolutos e relativos, designadamente no que toca à sua centralidade no quadro dos respectivos concelhos e regiões), mudou a composição social (mais profissões terciárias, mais quadros, mais estudantes), mudou a rede de equipamentos e serviços, mudaram os círculos e hábitos de sociabilidade, de ocupação do espaço público, de expressão, lazer e consumo, mudaram as instituições, as relações de poder e os protagonistas. Tornaram-se, à sua escala, mais urbanas, mais modernas. Desenvolveram-se?

É difícil dizer que não, olhando para os indicadores estatísticos disponíveis e tomando como termo de comparação os anos anteriores à revolução democrática de 1974. Mas também é difícil dizer que sim, sem mais especificação, como se se tratasse de um processo simplesmente linear, o que sabemos ser falso, para esta e qualquer outra circunstância. Tendências contraditórias, que arrastam a cidade em sentidos contrários, evoluções incongruentes, quando distinguimos os diversos planos da organização colectiva, recursos ou ganhos potenciais ainda por efectivar, acelerações no sentido da convergência com o padrão metropolitano nuns domínios a que correspondem, noutros, travagens ou mesmo retrocessos. Também é possível recorrer a indicadores estatísticos para mostrar bloqueamentos.

Daí que seja mais adequado usar palavras que conotem complexidade e incerteza: a realidade social urbana é um poliedro cujos vários lados devem ser observados, a dinâmica urbana é compósita, a situação presente pode bem ser descrita como de confluência de caminhos, encruzilhada: quer dizer, tempo de escolhas, tempo de definições.

Não compete aos sociólogos ajuizar ex cathedra se estes são ou não casos de “desenvolvimento”, “modernidade” ou “progresso”. Sê-lo-ão em parte, deixarão de sê-lo noutra parte, eis a resposta elementar, mais óbvia mas também mais segura. O que interessa é procurar, analiticamente, qualificar: que desenvolvimento, que modernidade? É esboçar uma caracterização teórica e empiricamente fundada do como das coisas, da complexidade dos percursos e das estações.

A nossa aposta, pelas razões que ficaram já vertidas, foi olhar do lado da cultura, das cenas culturais que localmente se configuram (não, portanto, os efeitos locais dos grandes meios de comunicação e de produção cultural, mas sim os eixos principais de formação do que se poderia chamar um espaço público cultural endógeno); e foi trazer para o nosso o olhar de protagonistas desse espaço cultural, de agentes culturais das cidades, procurando assim, não só enriquecer o objecto de estudo com a sua reflexividade, cruzando mudança social e percepção social da mudança, como também fazer dialogar a perspectiva “exterior” dos sociólogos com a perspectiva “interior” — à cena cultural que os sociólogos consideram — de protagonistas locais.

Não é uma opção equivalente a qualquer outra. É uma opção teórico-metodológica que nos parece indispensável se quisermos dar conta das encruzilhadas contidas na situação presente das cidades médias portuguesas: e, se esse é, por excelência, um tempo de escolhas, então os lugares, as visões e os projectos dos que escolhem devem ser convocados.

Ora, a partir do corpo de entrevistas que nos serve de referência, o que se pode dizer é que tais visões e projectos devem muito, entre os activistas culturais locais, ao modelo da democratização cultural (cf. Lopes, 2003: 5-6). As suas linhas de força fundamentais são: (1) tornar acessíveis ao maior número de pessoas os bens e eventos culturais, (2) melhorar as condições de usufruto desses bens, formando e qualificando culturalmente os receptores, (3) suscitar contextos de aproximação recíproca entre os bens e os praticantes, e entre as posições de consumidor e participante, criando oportunidades de expressão, experimentação e, até, alguma criação estética. A associação é vista como o melhor quadro para esta actividade de animação e mediação, por várias razões. Porque constitui, idealmente, um meio de aprendizagem da cidadania através do seu exercício concreto — e a actividade cultural é, nesta visão do mundo, exaltada como forma superior de actividade cívica. Porque remete para uma lógica de formação colectiva de decisões e projectos. E porque se orienta por uma escala que propicia aquela aproximação de posições e o enraizamento numa realidade social manipulável, isto é, na qual podem ser visíveis os efeitos práticos de uma intervenção organizada.

A esta luz, o relacionamento da cultura com a esfera pública parece inquestionável. Só é possível pensar a democratização do acesso e usufruto cultural a partir da valorização dos espaços públicos, por contraposição aos espaços institucionalizados da cultura cultivada (Pinto, 1994: 767-770), a partir da conquista, para funções de participação e expressividade lúdica e cultural, dos espaços urbanos, das praças, dos cafés, das escolas, das sedes de colectividades, dos recintos desportivos; a partir do empenhamento na reafirmação das identidades culturais colectivas, designadamente através da educação patrimonial e da defesa da identidade e do património locais como recursos comunitários; a partir de intervenções programadas e metódicas, oriundas dos serviços e poderes públicos, ou seja, das instituições culturais e educativas do Estado e, sobretudo, das autarquias locais. Há, pois, uma relação de reciprocidade, um jogo positivo entre desenvolvimento cultural e desenvolvimento urbano pela qualificação do seu espaço público: e a associação, mais ou menos estruturada, ou mesmo informal, representa, nos termos das hipóteses teóricas que nos guiaram, a “zona de intermediação” por excelência, aquela que potencia a proximidade relacional entre os sujeitos e a sua capacidade de esclarecimento e participação.

Ainda a esta luz, várias transformações recentes das cidades médias devem ser positivamente avaliadas: o aumento dos poderes e recursos das câmaras municipais, mormente quando é acompanhado pela atenção à coisa cultural e pela atitude de apoio aos seus agentes (logo, a avaliação é crítica, este par incontornável do espaço público local está sempre em alguma tensão); a recomposição mais qualificante do tecido social; a maior presença e graduação de escolas, professores e estudantes; o alargamento relativo (em comparação com o passado) do grupo de consumidores regulares ou ocasionais de eventos culturais ou lúdicos; a maior acessibilidade de certos bens culturais, sobretudo daqueles que esta visão do mundo tenderia a categorizar como uma espécie de cultura de massas benigna (o jazz, o rock, a fotografia, o cinema “de qualidade”, etc.); a modernização geral das referências de comportamento, privado e público; até, embora não isenta de críticas, a conquista juvenil do centro das cidades.

Em contrapartida, o ponto de vista que julgamos ainda prevalecente, na conjuntura do ano 2000, nas cidades médias que considerámos, não permite aperceber, ou, se o permite, não permite destacar, ou, se o permite, não permite valorizar outros eixos de mudança sociocultural que efectiva ou virtualmente caracterizam as cenas urbanas e o espaço nacional e global que as envolve. A emergência de cachos de actividades, quer do lado da oferta quer do lado da procura, que desafiam a hierarquização dos níveis de cultura e insinuam, assim, esses movimentos de lateralização que já defendemos constituírem potenciais requalificadores dos processos socioculturais (Fortuna e Silva, 2001: 420-424); a complexificação das práticas de consumo e recepção organizadas em torno da domesticidade, abrindo mais o leque de contactos com os diversos mundos da comunicação e da arte — outra via, como dissemos, de intermediação positiva; a maior diferenciação dos bens e práticas culturais, e não necessariamente estruturada por lógicas hierárquicas, com a possibilidade de constituição de nichos e redes significativas, ainda que e porque minoritárias; a expansão de formas de relação com a cultura que põem em relevo as singularidades individuais e a capacidade de cada sujeito compor um conjunto próprio de práticas através da combinação entre consumos e sociabilidades, entre o usufruto de bens imateriais e a apresentação pública do seu corpo, vestuários, adereços, movimentos e gestualidade, entre os actos de prevalência lúdico-convivial e os actos de prevalência estética; o recurso a modos informais de organização e circulação de actividades, que, à margem ou em complemento da estrutura associativa, abrem redes eficientes em certos meios sociais urbanos — estas transformações que se insinuam ou vão já ocorrendo na paisagem social citadina ou são obscurecidas, porque o foco de luz está direccionado noutra direcção, ou então são categorizadas mais como problemas ou ameaças do que como recursos.

A transformação geracional, a rotinização da democracia, a progressiva integração na cultura de massas e a maior acessibilidade às produções industrialmente produzidas ou divulgadas, a individualização dos consumos, a acentuação das dimensões corporais, expressivas, relacionais e comunicacionais da prática cultural fazem, pois, aos olhos dos protagonistas entrevistados, parte da encruzilhada das suas cidades. Mas fazem-no porque eles próprios, protagonistas, são também parte, de outro modo, dessa encruzilhada. Porque caracteristicamente vinculados, os que entrevistámos, que são os autores do discurso político-cultural mais consistente e mais audível no espaço público local, a uma ou várias de três posições institucionais: administração do Estado, central ou local (câmaras, universidades, museus, bibliotecas e outros equipamentos públicos); movimento associativo de produção, divulgação e consumo cultural, com ou sem componente recreativa, segmento ou não de organizações benévolas mais largas; e pequena iniciativa cultural local, que tipicamente se organiza ou numa base semiprofissional (podendo sê-lo, então, por conta própria), ou numa base associativa, ou em empresas de natureza jurídica cooperativa, e só muito mais raramente em microempresas do sector privado.

Quer isto dizer que estes protagonistas e as esferas institucionais de que são, em certa medida, porta-vozes pertencem sociologicamente ao passado, à situação com que, num tempo ou noutro, o redesenvolvimento urbano há-de romper? Não se justifica responder que sim. E por duas importantes razões.

A primeira é que instituições e protagonistas não constituem uma realidade parada. Como julgamos ter mostrado com suficiente cópia de factos e argumentos, nem a sua acção nem o seu discurso são uniformes e estáticos. As oportunidades e os trajectos de profissionalização no sector cultural — com uma nova valorização de funções como o comissário e programador, ou o produtor —, os ganhos de escala e gama que a prossecução de uma actividade regular na cidade, sobretudo resultante de parcerias entre poder local e agentes culturais, vai permitindo conseguir, nos concelhos em que se verifica, e o crescimento do peso relativo da componente de projecto artístico, autoral e criativo, nas actividades desenvolvidas, quer por estruturas profissionais, quer por associações benévolas — todos são factores dinâmicos que transformam, se bem que a ritmos diferenciados, e por vezes contrastantes, o espaço público cultural local.

A segunda razão para evitar juízos sumários é que o que se observa, pelos menos nas cidades analisadas, está longe de ser apenas o desajustamento entre a rapidez da mudança social e a lentidão da mudança cultural. O jogo é mais complexo. Do ponto de vista das representações e dos modelos de acção, parece ser um facto que os protagonistas locais mais influentes se referem ainda a uma conjuntura histórica e geracional anterior à que vivemos: consoante as referências dos classificadores, uns dizem ser o “espírito dos anos 60 ”(a grande convulsão das mentalidades, na Europa e América do Norte), outros o “espírito do anos 70” (a revolução portuguesa). Mas a sua acção não deixou e não deixa de gerar efeitos, que por sua vez transformam a paisagem sociocultural das cidades. Como o estudo dos públicos de acontecimentos culturais tem mostrado, a intervenção do lado da oferta, seja por via da própria excepcionalidade de um grande evento, que faz subir expectativas e abre oportunidades, seja por via da persistente regularidade de um evento que se repete ou de uma estrutura que se consolida, assim sedimentando o respectivo público e os laços com ele, essa intervenção tem um potencial não desprezível de formação e qualificação de públicos (Gomes e outros, 2000; Santos, 2002; Gomes, 2004). Há também, em Aveiro, Braga, Guimarães ou Coimbra, um trabalho continuado que vai formando, ano após ano, círculos de conhecedores, interessados e frequentadores: os públicos dos cineclubes, das companhias de teatro e dança, dos encontros de fotografia e artes visuais, do festival de cinema, das exposições de artes plásticas, dos concertos promovidos por esta ou aquela associação, dos ciclos organizados ou patrocinados pelas autarquias. O limite para o alargamento é, em várias circunstâncias, de natureza objectiva: escassez da procura, ausência de massa crítica demográfica e socioeconómica, orçamentos municipais rudimentares, falta de tradição e experiência. Mesmo os sinais mais promissores têm a sua face lunar: sazonalidade da vida académica, que no Verão fica em letargia, quando muitos dos estudantes universitários provêm de fora das cidades onde estudam.

A encruzilhada é mesmo isto: jogo de desfecho incerto, ronda de muitos caminhos. Mas há várias maneiras de entender e preencher as múltiplas dimensões da forte territorialidade das actividades culturais (Costa, 2004: 98-101). Ora, o que parece predominar no discurso cultural e cívico de protagonistas das cidades médias é a interpretação que privilegia a ligação entre cultura e participação pública: a ligação entre a cultura e os seus públicos, os que são e os que devem ser, por via do alargamento da sua acessibilidade social; e a ligação entre a acção cultural e o espaço público local, tal como é configurado pelas instituições e as competições políticas, a actividade dos media, as representações partilhadas das identidades e a força possível de um associativismo benévolo. Se este discurso resistirá à emergência de novas formas de territorialização das actividades culturais é uma questão que o futuro decidirá.

 

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Notas

[1]   Faculdade de Economia da Universidade do Porto (comunicação ao Colóquio “Produção Cultural e Transformação da Cidade. Perspectivas Transdisciplinares”, ISCTE, 21 de Maio de 2004).

[2]  A numeração romana identifica o registo escrito da entrevista, consultável na biblioteca da Faculdade de Economia da Universidade do Porto.

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