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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.61 Oeiras dic. 2009

 

Gender and the military: women in the armed forces of western democracies

[Helena Carreiras, 2006, Londres, Routledge]

Isabel Farinha*

 

In the field of observation, chance favours only the prepared mind” Louis Pasteur (1822-1895).

Se o movimento social que abarca a ciência e os seus resultados é elíptico, a veia que corre no mundo científico é serendípica.1 A ciência está repleta de serendipidades, de acasos felizes, de acidentes que levam a descobertas inesperadas. Mas, existirão achados absolutamente casuais, no sentido positivista do termo? Ou estaremos antes na presença de descobertas inesperadas já fundeadas no espírito do cientista? Na verdade, se a força do acaso joga aqui um papel central, a descoberta do inteiramente novo apenas é inteligível, no hemisfério analítico de uma mente receptiva. Mente sagaz e criativa que, ao aliar perseverança e sentido de observação, é capaz de erguer um projecto a partir dessa descoberta. Fenómeno que pode remeter para o início do ciclo, e que precede todo o edifício científico:2 o ponto de partida elaborado crítica e assertivamente. Já a chegada à meta, procedimento clokwise que percorre distintas lógicas complementares entre si (discovery/evaluation/explication/specification/description/inference/proof cit in Schmitter, 2008), deve radicar numa resposta segura e replicável. Resposta que, perante uma adequada formulação teórica, filtrada por um set de triangulação técnico-metodológica, possa contribuir, pelo conhecimento que permite de uma dada realidade social, para o avanço cumulativo de um dado ramo científico.

Dotada desta lente de leitura do real, penso poder afirmar que, foi assente num processo de serendipidade que a autora Helena Carreiras elaborou a sua tese de doutoramento, de que viria a resultar a obra — Gender and the Military. Women in the Armed Forces of Western Democracies, motivo desta recensão. Obra assente numa pesquisa comparativa realizada no ano 2000, sobre políticas desenvolvidas em todos os países da NATO relativamente à participação militar feminina (WMP, Women Military Participation). Conclui surpreendentemente a autora que não é a dimensão temporal a que mais pesa na amplitude da representação das mulheres nas Forças Armadas. Na verdade, uma presença feminina mais longa nas suas fileiras, não é sinónimo de um aumento consistente dos seus números relativos. Logo, e contrariando o senso comum, a temporalidade, só por si, não favorece a integração de género, nem contribui para eliminar discriminações existentes a nível ocupacional e/ou hierárquico. Na mesma linha de descobertas, quanto mais afastado está o exército de um formato massificado, e portanto mais assente no voluntariado, mais elevada é a taxa de participação feminina. Inovadoramente, ficamos ainda a saber que aparentemente têm pouca influência na sua representatividade numérica variáveis externas, como as socioeconómicas ou relacionadas com as estruturas políticas, embora possam contribuir significativamente para o impacto da sua integração global. Neste sentido, ainda, os factores que contribuem para a simples presença numérica, tendem a não ser os responsáveis pela alteração qualitativa do status das mulheres militares; pelo contrário, a qualificação da participação social das mulheres, relaciona-se fortemente com o grau de integração que estas alcançam nas forças militares.

Partindo agora do início desta edificação científica, pode constatar-se que o objecto teórico (capitalizado nos primeiros quatro capítulos) incide na observação e comparação de instituições militares, organizações propícias à ampliação de pressões e tensões, no que toca ao relacionamento entre homens e mulheres. Cenário ideal, segundo a autora, para a realização de uma análise de construção social das diferenças e identidades de género. Contexto organizacional, o dos exércitos da NATO, que a partir do início dos anos 70 do século passado, passou a incorporar mulheres. Época de ruptura com o esquema tradicional de participação feminina, nas instituições de defesa ocidentais, e, contrariamente ao que os precedentes históricos podiam querer indicar, não ocorreu em tempo de batalhas o apelo lançado para as Forças Armadas. Foi aliás em tempos de “Guerra Fria” que as mulheres deixaram cair o papel de auxiliares, e conquistaram o estatuto de militares, com plenos direitos de formação. Assumiram funções em domínios até então excluídos à população feminina. Trata-se de mutações que, nos países comparativamente analisados, assumem, porém, ritmos próprios e distintos processos organizacionais. Processo truculento, visto o acesso feminino a dadas especialidades militares, entre elas as de combate, a par de determinadas graduações hierárquicas, continuar a ocorrer diferenciadamente.

Esta obra, olhada em detalhe, assenta numa problemática tripartida. Pretende-se, primeiramente, o conhecimento dos factores que subjazem à diferença de papéis das mulheres nas Forças Armadas; em segundo lugar, conhecer as razões pelas quais alguns países elaboraram e aplicaram medidas específicas de integração femininas nesta estrutura organizacional, ao passo que outros lhes destinam um lugar residual e simbólico; e, por último, o conhecimento dos factores que pela interacção das esferas socioeconómica, cultural, politica e militar, tendem a explicar esses diferentes padrões de incorporação.

Questionamentos centrais repartidos, por seu turno, ao longo de três vectores. Um primeiro, centrado na articulação de diferentes teorias científicas, compreendidas entre as relações de género (teoria de género, relações de género nas organizações, forças armadas como estrutura organizacional de género); as teorias centradas nas dicotomias sociopolíticas relativas ao serviço militar feminino (articulação trabalho/família, expectativas femininas, mulheres e o uso da força); e as teorias relacionadas com as concepções de mudança social e de defesa (alterações estratégicas organizacionais e profissionais, e integração de género). Um segundo, assente em hipóteses exploratórias obtidas a partir da exclusividade dos dados empíricos apurados. E, um terceiro e último, orientado para a criação de um enfoque metodológico, construção pilar desta investigação, projectado ao longo dos níveis analíticos: macro, meso e micro.

Lógica de actuação, que, em sinopse, impele Helena Carreiras a pesquisar distintos tipos de informação, susceptíveis de articular três dimensões de análise. Desta sistematização destacam-se, consequentemente, os dados de tipo político-institucional — centrados comparativamente nas políticas estatais em termos de participação social e política das mulheres no contexto das teorias da democratização. Em segundo lugar, os dados de tipo sócio-organizacional — focalizados no conhecimento da existência de distintos modelos no campo da sociologia militar, da estrutura organizativa e profissional das instituições militares dos países ocidentais. E, em terceiro, os dados de tipo ideológico-cultural, focados na componente normativa do processo, ou seja, na produção e reprodução de valores e identidades de género.

Note-se, ainda, que cabe à hipótese central do estudo a estruturação do trabalho empírico comparativo (pesquisa empírica que tem início no quinto capítulo desta obra). Hipótese que considera que, quanto mais significativos os níveis de participação e representação social das mulheres, menos conflitual a decisão de recrutamento, e mais fácil a eliminação de barreiras formais e informais no acesso a determinadas posições e funções militares. Na base da sua construção, encontra-se a pioneira reelaboração do Segal model -Factors Affecting Women’s Military Participation, verdadeira performance analítica, ilustrativa de um conjunto de factores (organizacionais, socioestruturais, culturais e políticos), que afectam a participação militar feminina. Modelo que aliás serviu de ponto de partida, para a formulação de variáveis independentes, dependentes e as respectivas hipóteses a testar.3 Posicionamento analítico, estruturado como mix metodológico, concebido para dar conta, quer do grau de diversidade motivado pelo elevado número de países envolvidos, quer da especificidade dos casos estudados.

Assim sendo, a hipótese central é testada de acordo com uma estratégia metodológica que operacionaliza três dimensões de análise divergentes. Por conseguinte, a dimensão macro4 — presente no quinto capítulo, possibilitou a utilização de dados agregados relativos à situação feminina em cada um dos países da NATO, tanto no interior das fileiras como na estrutura social, permitindo equacionar comparativamente a questão de uma forma abrangente. Note-se que, do tratamento estatístico aqui operado, resultou a criação pioneira do IWMI, Index of women’s military integration in NATO (2000), assente nas variáveis: representação global, integração ocupacional, integração hierárquica, segregação de treinos, e políticas sociais. Ferramenta que pode vir a ser manuseada em qualquer estudo de carácter multicultural, dedicado às questões da integração de género nas instituições militares ocidentais. Já a dimensão meso,5 reflecte o processo de integração organizacional, pelo confronto de processos internos no seio das Forças Armadas com processos sócio-políticos externos, assentes numa comparação internacional. E, por fim, a dimensão micro,6 ilustra os casos de Portugal e da Holanda, ambos ricamente exemplificativos de uma dada realidade, a sul e a norte da Europa. Dimensão última, qualitativamente analisada no capítulo sete, e que procurou aliás apurar se, por um lado, a estrutura condiciona valores e atitudes individuais, i.e., se as relações interpessoais reproduzem, reinterpretam ou, antes, subvertem os modelos de género culturalmente dominantes. E, por outro, se os valores e escolhas individuais limitam, subvertem ou reproduzem politicas organizacionais. Visou-se consequentemente, com a estratégia multicasos adoptada, e ao abrigo de uma perspectiva de triangulação, não meros objectivos de generalização das inferências teóricas geradas, mas, antes, aprofundar a análise de processos de integração, ampliando as possibilidades de confronto e de comparação entre eles, potenciando a validade dos padrões de relações, entretanto gerados e analisados (Yin, 1989). Em suma, para além das regularidades existentes entre os casos, puderam ser evidenciados as diferenciações e as singularidades entre ambos, através de uma análise aprofundada do “como” e do “porquê”. Pressupostos que por conseguinte, permitiram elaborar e validar uma tipologia profícua — A Typology of Women’s Integration Strategies.

Em jeito de conclusão, estamos em nossa opinião, perante uma obra que inova o conhecimento sociológico pelo recurso à triangulação técnico-metodológica, e pela consequente oscilação entre o paradigma de análise quantitativo e interpretativo. Na verdade, a combinação de uma large N analysis, com uma small nanalysis, permite uma articulação macro-meso-micro que viabiliza o conhecimento do objecto em toda a sua plenitude. Posicionamento científico, que permite epistemologicamente ultrapassar, oposições metodológico-conceptuais que classicamente caracterizam as ciências sociais, tais como, macro/micro, individual/colectivo, individualismo/holismo. Dicotomias redutoras da realidade e falsificadoras da sua complexidade, evitadas neste estudo ao ter-se presente o campo político-institucional e sócio-organizacional, entendido como o contexto macro e meso estrutural. Logo seguido de um conjunto de problemáticas, referentes ao nível dos sujeitos e das suas trajectórias, que, todavia, não deixam de estar condicionadas pela lógica organizacional, tal como postulam as teorias da estruturação. Com efeito, actores institucionais, sujeitos e estruturas sociais, influenciam e determinam-se mutuamente, numa relação permanente. Perspectiva que antevê as propriedades estruturais simultaneamente, como parte integrante da sociedade e dos sujeitos, e, como elementos estruturadores e resultado das práticas dos sujeitos (Giddens, 1984). Processo ancorado ainda, em preceitos éticos na prossecução dos passos essenciais, capaz de permitir a compreensão, recognição e reflexividade dos dados, e que ao manter olhos, ouvidos e mente alerta, não se esquece de cumprir com o principio da serendipidade: learning from the research process itself in ways that can feedback to your previous choices and lead you to introduce improvements in them before “path dependence”, has completely taken over (Schmitter, 2008: 25). Principio que seguramente norteia a obra que inspirou esta recensão.

 

Bibliografia

Giddens, Anthony (1984), The Constitution of Society. Outline of the Theory of Structuration, Cambridge, Polity.         [ Links ]

Schmitter, Philippe C. (2008), “The design of social & political research”, em Donatella Della Porta e Michael Keating (orgs.), Approaches and Methodologies in the Social Sciences a Pluralist Perspective, Cambridge, Cambridge University Press, pp. 1-59.

Stuart, Gilda (2003), Robert K. Merton, Sociólogo versátil e criador do grupo Focal, falecido aos 92 Anos”, Revista Enfoques, 2 (1), Julho cit inNew York Times (24. 02. 03), disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Serendipidade [Data de acesso: 20 de Maio de 2008].

Yin, Robert K. (1989), Case Study Research. Design and Methods, USA, Sage Publications Inc.

 

Notas

1 Termo empregue originariamente pelo escritor inglês HoraceWalpole (1717-1797), para designar o dom da descoberta de algo não procurado. Serendipity surge numa carta deWalpole a propósito deumconto de fadas persa—Os três príncipes de Serendip. Lenda que narra as peripécias de três príncipes que por acaso ou sageza descobriam coisas que não procuravam (in http://www.Wikipedia.org).

2 No âmbito da sociologia o tema da serendipidade surge ligado a Robert K. Merton (1910-2003), pela referência à “serendipity pattern” na Social Theory and Social Structure (1949), e pela publicação da obra The Travels and Adventures of Serendipity (2003) (cit in Stuart, 2003).

3 Aanálise do estado da arte aliado ao modelo teórico concebido—Factors AffectingWomen´s Participation in the Military.A“Refocused” Model, alicerça inclusive as questões colocadas, quer as do survey comparativo (questões/respostas estruturadas), quer as referentes às entrevistas semi- directivas das unidades de análise (de carácter aberto/fechado e mais informais, com a investigadora a seguir preferencialmente o guião).

4 Campo analítico, onde as técnicas de recolha da informação, além de documental (documentos administrativos, textos e discursos relativos à participação das mulheres nas forças armadas, legislação e fontes estatísticas), recorrem a um organizational survey como forma de conhecer os 19 países da NATO. Large-scale survey que possibilitou a criação do IGI, Index of Gender Inclusiveness. Construção científica, dificultada tanto pela formalidade das respectivas estruturas militares e da própria NATO, como pelo tempo que os inquiridos demoraram a responder ao survey enviado.

5 Conciliam-se aqui fontes documentais (ex.: legislação) e entrevistas a actores sociais de relevo dentro do aparelho militar.

6 Âmbito de análise qualitativa, onde foram operadas entrevistas semi-directivas a mulheres e homens oficiais, implicados nos estudos de caso seleccionados. Processo posterior, ao de uma cuidada análise dos dados macrossociais, que revelou os índices de moderateede advanced/extensive inclusiveness respectivamente para Portugal e Holanda.

 

*Isabel Farinha. Bolseira de Doutoramento FCT, Fundação para a Ciência e Tecnologia e docente na UNIDCOM/IADE, Escola Superior de Marketing e Publicidade. isabelbpfarinha@sapo.pt

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