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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.60 Oeiras mayo 2009

 

Esquerda e direita na política europeia

Portugal, Espanha e Grécia em Perspectiva Comparada,

[André Freire, 2006, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais]

Diogo Moreira*

 

Esquerda e direita. Não deverão existir palavras mais conhecidas do discurso político do que estas duas. São estes os gritos de batalha que percorrem o combate político em toda a sua amplitude. Exclusivos por definição, permitem com clareza demarcar as linhas do combate ideológico na sua essência. São estes os mitos fundamentais (porventura únicos) donde jorra a esmagadora maioria do pensamento político, pelo menos na Europa e na América Latina. Se a política fosse uma religião, estas seriam as divindades em confronto.

Como todos os mitos, quase toda a gente ouviu falar de esquerda e direita, mas muito poucos sabem dizer o que tais conceitos significam. Daí advém a importância do tópico que este livro de André Freire procura trazer ao panorama académico nacional. Não irei tecer referências ao autor, que é sobejamente conhecido por todos nós, e em especial pelos leitores desta revista. Direi apenas que se Portugal começa a ter ciência política, no sentido académico do termo, a ele deve muito. Também sobre a notoriedade do livro, bastará apenas referir que está entre os dez livros mais vendidos da Imprensa de Ciências Sociais (dados referentes a Fevereiro de 2007), 1 e quem quiser consultar essa tabela rapidamente se aperceberá dos livros de ciência política dessa editora que não constam dos dez mais vendidos, o que ainda reforça mais a notoriedade deste livro.

O objectivo central deste livro é o de “aferir em que medida a aprendizagem política, definida em termos de longevidade do regime democrático, determina o reconhecimento, o uso e o grau de estruturação das categorias esquerda e direita entre os eleitores dos diferentes países” (p. 24). Para esse efeito são efectuadas análises empíricas de três tipos: 1) é analisada a relação entre o posicionamento ideológico dos eleitores e as suas atitudes perante os principais temas de conflito das sociedades contemporâneas; 2) são estudadas quais as relações entre a identificação partidária e a ideologia; e finalmente 3) são estudadas as bases sociais do posicionamento na escala esquerda-direita.

No primeiro capítulo procura-se definir o que se quer dizer com a diferenciação entre esquerda e direita, ao mesmo tempo que se relata o método de pesquisa e as fontes empíricas utilizadas. Apesar de descrever uma perspectiva histórica sobre os conceitos clássicos de esquerda vs direita que remontam à Revolução Francesa, a par de perspectivas filosóficas e de teoria política sobre o que significa ser de esquerda e ser de direita, é exclusivamente sobre as definições de esquerda e de direita na ciência política que este livro se ocupa. Assim, a diferenciação no autoposicionamento na escala esquerda-direita por parte de um indivíduo é resultado de três tipos de factores: as clivagens sociais, os sistemas de valores, e as identificações partidárias.

Em termos de dados empíricos, o livro baseia-se numa análise comparativa de dados secundários, fundamentalmente provenientes de inquéritos de opinião por amostragem, realizados entre 1976 e 2002. A análise é transnacional, procurando não só comparar o comportamento dos cidadãos de treze democracias — Portugal, Espanha, Grécia, França, Grã-Bretanha, Alemanha, Áustria, Itália, Holanda, Dinamarca, Bélgica, Suécia e Irlanda — mas também explicar as diferenças entre os vários países. A selecção de casos obedeceu ao critério de tentar responder à questão principal do livro, ou seja, em que medida a longevidade do regime democrático afecta a ideologia dos indivíduos. Para isso era necessário contrastar novas democracias (Portugal, Espanha e Grécia) com democracias europeias consolidadas (os restantes casos). A ausência dos países da Europa de Leste prende-se sobretudo com o diferente tipo de transição pela qual passaram (uma dupla transição política e económica) e com o facto de fazerem transições do comunismo para a democracia, enquanto as jovens democracias da Europa do Sul fizeram transições do autoritarismo de direita. A junção dos casos da Europa de Leste poderia pôr em causa o método comparativo dos casos mais similares, utilizado neste livro, e que advoga a utilização de casos o mais similares possível, para que as variáveis que sejam diferentes possam fazer parte da explicação. Assim sendo, a escolha dos treze casos parece-nos equilibrada e conceptualmente sólida.

No segundo capítulo “analisou-se o impacto de três sistemas de valores (socioeconómicos, religiosos e ‘nova política’), associados a três tipos de clivagem fundamentais da política de massas (Capital — Trabalho; Estado — Igreja; ‘nova política’), para estruturar a divisão entre esquerda e direita no pensamento dos eleitorados” (p. 163). Como já tinha sido antecipado, aquando da descrição do método de selecção de casos deste estudo, esperava-se que houvesse um menor grau de estruturação ideológica nas novas democracias da Europa do Sul, por oposição aos restantes países da Europa Ocidental, tendo em vista o menor período de vigência do regime democrático. Tal veio a verificar-se como não tendo validade empírica, sendo as diferenças de sofisticação ideológica do eleitorado entre as antigas e as novas democracias inferiores às próprias diferenças entre os países dentro das duas categorias.

De uma forma geral, verificou-se que, em termos de valores socioeconómicos, os indivíduos que consideram mais importante combater a desigualdade e que o estado tenha um papel mais activo na sociedade e na economia tendem a posicionar-se à esquerda, enquanto os valores inversos são de direita. Em termos de valores religiosos, são os indivíduos que dão maior importância ao papel da religião ou que tem posições contrárias à liberalização do aborto que se colocam à direita, e vice-versa para as pessoas de esquerda. Em termos da “nova política”, a tolerância face aos emigrantes e a igualdade de género parecem ser temas de esquerda, enquanto que os seus opositores estão no campo oposto.

Desta parte do estudo retira-se uma das conclusões mais badaladas de todo o livro: um dos principais factores que explica o papel da ideologia como factor explicativo do voto do eleitorado prende-se com o grau de polarização ideológica dos partidos. Quanto maior for a diferenciação ideológica entre os diferentes partidos em disputa, em especial entre os maiores partidos, maior será o poder explicativo dos valores na orientação esquerda-direita, sendo maior assim a sofisticação ideológica do eleitorado. Resta afirmar que em Portugal, devido à fraca distinção ideológica entre PS e PSD, a sofisticação ideológica do eleitorado português é muito fraca.

No terceiro capítulo procura-se comparar a evolução da identificação ideológica do eleitorado ao longo do tempo com a sua identificação partidária (p. 234). A primeira constatação que se retira é que a identificação esquerda-direita continua a ser bastante mais forte do que a respectiva identificação partidária, tanto nas velhas como nas novas democracias.

Em termos de erosão por efeitos temporais, foi concluído que a identificação ideológica sofreu menor decréscimo do que as atitudes em relação aos partidos, fazendo com que a teoria do desalinhamento partidário pareça ter alguma força. Pelo contrário, as teses sobre o fim da História, entendido como o fim das diferenças ideológicas, e como o primar do neoliberalismo como ideologia dominante, parecem não ter acolhimento em termos de atitudes do eleitorado, apesar de dominantes no discurso público.

Quando nos concentramos nas diferenças entre as democracias consolidadas e as novas democracias da Europa do Sul, não se encontra nestes últimos casos nenhum efeito de erosão da identificação ideológica, algo que também é partilhado por algumas das antigas democracias. Mais uma vez parece aqui ter algum efeito o nível de polarização ideológica dos partidos, sendo que quanto mais polarizados menor será o grau comparativo de erosão da identidade partidária. Tal como antecipado, existem claras diferenças em termos temporais entre as antigas e as novas democracias, com estas últimas a demonstrarem das décadas de 1970-80 menores níveis de identificação, tanto ideológica como partidária, do que as suas congéneres democráticas consolidadas. Aqui a Grécia parece ter um comportamento distinto de Portugal e Espanha, tendo enunciado uma aproximação aos padrões comportamentais dos países da Europa Ocidental muito mais célere do que os restantes membros das novas democracias da Europa do Sul. Tal poderá ser explicado pela sua transição democrática mais precoce e por um maior período de aprendizagem política (em democracia) da sua população.

O quarto capítulo procura estudar o enraizamento social da divisão entre esquerda e direita, de forma a determinar se são factores sociais os que mais determinam o alinhamento ideológico. O primeiro dado a retirar é que “a ancoragem das orientações esquerda-direita nas estruturas sociais é bastante baixa na esmagadora maioria dos países europeus analisados” (p. 286).

Contudo, quando considerados nas várias dimensões sociais, por exemplo, confiança dos indivíduos nos grupos de interesse ou instituições relacionadas com as clivagens Capital-Trabalho (tais como corporações vs sindicatos) ou Estado-Igreja (religiões de culto), a determinação social da ideologia cresce consideravelmente. É assim afirmado que o tradicional declínio das posições de estrutura social (classe, rendimento, prática religiosa), vulgarmente designadas como factores sociais estruturais, parecem ter perdido força como elemento determinativo do posicionamento ideológico das gerações mais novas, vendo o seu papel substituído pela pertença a associações e grupos de interesses, fenómenos relacionados com a “nova política”, e com o seu crescimento assistimos, nas palavras do autor, “a uma política cada vez mais estruturada a partir dos valores e identidades sociais dos indivíduos e relativamente independente das suas posições na estrutura social e cultural” (p. 287).

Também neste tópico se encontram diferenças entre os países analisados, que ultrapassam a clivagem entre velhas e novas democracias, nomeadamente o grau de influência dos factores sociais, dos valores e da lealdade partidária no posicionamento esquerda-direita. Alguns países, entre os quais Portugal, parecem auferir de um menor grau de dependência da ideologia nos factores acima mencionados. A outros países, como Espanha, acontece-lhes exactamente o contrário, sendo muito forte o impacto dos factores sociais e da orientação partidária sobre o posicionamento ideológico. Mais uma vez, o nível de polarização ideológica dos partidos, em particular dos maiores, parece ser responsável por esta diferença, com a indefinição ideológica dos partidos a proporcionar um maior desalinhamento social e partidário sobre o posicionamento esquerda-direita. Finalmente, parece também haver um efeito pós-modernização em alguns países, parecendo que a maior influência dos valores e orientações partidárias sobre a ideologia vis-à-vis os factores estruturais é maior, quanto mais educada e com maior acesso à imprensa for uma população.

Em conclusão, o livro defende as seguintes teses: 1) que nas três novas democracias mediterrâneas, as populações têm demonstrado um menor grau de posicionamento na escala ideológica do que as suas contrapartes nas democracias consolidadas; 2) que entre 1976 e 2002 esta diferença de reconhecimento ideológico entre antigas e novas democracias se tem vindo a esbater; 3) que existe maior volatilidade, isto é, são mais permeáveis a factores conjunturais, no reconhecimento ideológico nas três novas democracias, por oposição aos restantes países; 4) que tanto num grupo como noutro não existe suporte empírico para a tese do “fim da ideologia”, havendo na maioria dos casos um aumento ou estabilização do reconhecimento ideológico entre o eleitorado; 5) que se confirma que o posicionamento ideológico do indivíduo depende dos valores políticos, das simpatias partidárias e do posicionamento na estrutura sociocultural, não estando relacionado com a longevidade do regime democrático.

Como afirmado acima, o ponto mais saliente de todo o livro é a importância da polarização ideológica dos partidos, em especial dos dois maiores, para a estruturação ideológica das escolhas dos eleitores. Quanto mais claras forem as escolhas ideológicas, ou seja, o posicionamento dos próprios partidos diferenciando-se uns dos outros, maior relevância adquire a ideologia na escolha dos cidadãos. Em suma, “o fim da ideologia” e outras banalidades do género, que tanto têm contribuído para o denegrir da política, dos políticos e da imagem dos próprios partidos, parecem ser culpa... das próprias elites políticas. Que numa corrida cega para adquirir o maior número de votos, parecem estar a alienar e a volatilizar a sua própria base eleitoral, dando origem ao “centrão”, uma entidade tão difusa como inconsequente, que dificilmente tem uma real raiz ideológica. O maior benefício deste livro de André Freire parece ser o de demonstrar que a ideologia está viva e recomenda-se. Pena que o mesmo não possa ser dito da nossa elite política.

 

1 Tabela consultada em http://www.ics.ul.pt/imprensa/top10.asp.

 

* Doutorando em Ciência Política no ICS-UL. E-mailDiogo.Moreira@ics.ul.pt

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