SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número60Las políticas de Open Access: res pública científica o auto-gestión?La perspectiva de género en las relaciones laborales portuguesas índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.60 Oeiras mayo 2009

 

No meio da trama

A antropologia urbana e os desafios da cidade contemporânea

José Guilherme Cantor Magnani *

 

Resumo

Este artigo, tendo em vista o recente e intenso contato entre pesquisadores da área da antropologia urbana do Brasil e de Portugal, propõe-se discutir alguns pontos de interesse comum: para tanto, mostra os inícios desse campo de conhecimento e pesquisa principalmente em São Paulo, desde os anos 1930, sob a influência da Escola de Chicago. Dos pioneiros “estudos de comunidade”, passando pela pesquisa das periferias urbanas, o espectro dos recortes, contudo, diversificou-se: lazer, religiosidade, práticas culturais juvenis, apropriações do espaço urbano, entre outros temas, constituem novos objetos de estudo no contexto da cidade contemporânea. Permanece, no entanto, a ênfase no método de pesquisa, centrado na etnografia. Assim, alguns exemplos de campo são apresentados com o propósito não só de ilustrar a discussão desenvolvida, mas de mostrar a aplicação de categorias de análise.

Palavras-chave cidade, antropologia urbana, etnografia, Escola de Chicago, estudos urbanos em Brasil e Portugal.

 

In the thick of it: urban anthropology and the challenges of the contemporary city

Abstract

After recent, intensive contact between researchers of urban anthropology from Brazil and Portugal, this article discusses some points of common interest. It shows the beginnings of this field of knowledge and research, mainly in São Paulo, from the 1930s under the influence of the Chicago School. It addresses the groundbreaking “community studies”, research into urban peripheries. However, the spectrum of subjects was diversified. Leisure, religion, youth cultural practices, appropriations of urban spaces, among others, are new subjects for study in the context of the contemporary city. The emphasis still remains on the research method, which focuses on ethnography. Some field examples are given with a view not only to illustrate the discussion but also to show the application of analysis categories.

Key-words city, urban anthropology, ethnography, Chicago School, urban studies in Brazil and Portugal.

 

Au centre de la trame: l’anthropologie urbaine et les défis de la ville contemporaine

Résumé

Étant donné le contact récent et intense entre chercheurs du milieu de l’anthropologie urbaine du Brésil et du Portugal, cet article propose d’aborder certains points ayant un intérêt commun. Pour cela, il montre les débuts de ce champ de connaissance et de recherche, principalement à São Paulo, depuis les années 1930, sous l’influence de l’Ecole de Chicago. Des “études de communauté” pionnières, en passant par la recherche des banlieues urbaines, le spectre des découpages s’est toutefois diversifié: loisirs, religiosité, pratiques culturelles juvéniles, appropriations de l’espace urbain, entre autres thèmes, sont devenus de nouveaux objets d’étude dans le contexte de la ville contemporaine. Cependant, reste à mettre l’accent sur la méthode de recherche, centrée sur l’ethnographie. Quelques exemples de ce champ sont ainsi présentés afin d’illustrer le débat mené, mais aussi de démontrer l’application des catégories d’analyse.

Mots-clé ville, anthropologie urbaine, ethnographie, Ecole de Chicago, études urbaines au Brésil et au Portugal.

 

En medio de la trama: la antropología urbana y los desafíos de la ciudad contemporánea

Resumen

Este artículo, tomando en cuenta el reciente y intenso contacto entre investigadores del área de la antropología urbana de Brasil y de Portugal, se propone discutir algunos puntos de interés en común: para lo cual, se muestran los inicios de ese campo de conocimiento y de búsqueda principalmente en Sao Paulo, desde los años 1930, sobre la influencia de la Escuela de Chicago. Desde los pioneros “estudios de comunidad”, pasando por el estudio de las periferias urbanas, el espectro de los recortes, con todo, se diversificó: tiempos libres, religiosidad, prácticas culturales juveniles, apropiaciones del espacio urbano, entre otros temas constituyen nuevos objetos de estudio en el contexto de la ciudad contemporánea. Permanece, sin embargo, el énfasis en el método de la búsqueda, centrado en la etnografía. Así, algunos ejemplos de campo son presentados con el propósito no sólo de ilustrar la discusión desarrollada sino de mostrar la aplicación de categorías de análisis.

Palabras-llave ciudad, antropología urbana, etnografía, Escuela de Chicago, estudios urbanos en Brasil y Portugal.

 

Introdução

O recente desenvolvimento da antropologia urbana em Portugal tem-se caracterizado não apenas por uma certa abertura disciplinar no interior dos designados “estudos urbanos”, como também por uma crescente aproximação à antropologia urbana brasileira, através de um trânsito cada vez mais regular de professores, pesquisadores e estudantes nos últimos anos.

Com efeito, a realização da Primeira Conferência Internacional de Jovens Pesquisadores Urbanos (FICYurb)1 em Lisboa, no ano de 2007, e o interesse que despertou — haja em vista a quantidade e qualidade dos papers inscritos — constituem um inequívoco sinal da vitalidade deste campo de estudos. Não é desconhecido o fato de que, em termos cronológicos, pesquisas urbanas de visada etnográfica, como as realizadas pela Escola de Chicago, são contemporâneas àquelas das pioneiras idas a campo, seja na tradição inaugurada por Bronislaw Malinowski seja na de Franz Boas. Os trabalhos dos “etnógrafos de Chicago”, como apropriadamente os caracterizou Ulf Hannerz (1986), estabeleceram uma linha de investigação sobre questões urbanas que rendeu muitos frutos.

No Brasil, sentimos essa influência desde os anos 30, principalmente através da Escola Livre de Sociologia e Política, fundada na cidade de São Paulo em 1933. Esta instituição não apenas seguiu a orientação inovadora da Escola de Chicago, como ademais trouxe dela e de outras instituições norte-americanas profissionais como Donald Pierson, Horace Davis, Samuel Lowrie, além de, para citar outras linhagens e procedências, Emilio Willems, Herbert Baldus e até E. E. Radcliffe-Brown. Cientistas sociais importantes na cena brasileira e até no exterior, como Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Oracy Nogueira, entre outros, iniciaram seus cursos de pós-graduação nesta instituição pioneira.

É interessante notar que a primeira pesquisa sobre padrão de vida e nível de consumo da classe trabalhadora urbana no Brasil foi coordenada, entre os anos 1934 e 1937, por dois pesquisadores da escola, tendo resultado no livro As Condições de Vida dos Funcionários da Limpeza Pública de São Paulo.2 Uma importante conseqüência desse estudo foi a adoção de um patamar básico de remuneração conhecido como “salário mínimo”, conquista que até hoje constitui bandeira de luta dos trabalhadores brasileiros. Mas o que terminou caracterizando as pesquisas e deu o tom à escola foi a dos “estudos de comunidade”, na esteira principalmente da linha de investigação de Robert Redfield, e cujo trabalho mais conhecido é Os Parceiros do Rio Bonito: Estudo sobre o Caipira Paulista e a Transformação de Seus Meios de Vida (1977 [1964]), de Antônio Cândido, resultado de uma pesquisa iniciada em 1947 e defendida como tese de doutoramento na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP em 1954.

Foi esta faculdade, aliás, que, na sequência, terminou assumindo as tarefas de formação de novos cientistas sociais de forma mais institucional e sistemática. Diga-se de passagem que a Faculdade de Filosofia também contou em seus inícios com a colaboração de professores estrangeiros, desta feita principalmente da França. Os nomes mais conhecidos da chamada Missão Francesa são Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss — Tristes Trópicos tem páginas sobre a cidade de São Paulo que poderiam ser consideradas como antropologia urbana. Mas é na década de 1970 que esta disciplina adquire maior visibilidade no Brasil, sempre tomando como referência o cenário do estado e principalmente da cidade de São Paulo. Esta foi a época dos chamados “movimentos sociais urbanos”: o foco tanto da atuação política como do interesse acadêmico passou do militante ao morador; do partido e do sindicato para a cidade e nesta, para a periferia, sua porção mais carente e desassistida, em comparação com as áreas centrais. Cabe ressaltar o papel das mulheres nesse processo, de início ofuscado pelas lutas que se desenrolavam tendo como cenário o pátio e os portões da fábrica; seu espaço era o cotidiano do bairro, e lá começaram a fazer abaixo-assinados em demanda por melhorias e equipamentos urbanos, tais como creches, iluminação pública, transporte coletivo, etc. Em suma, o que reivindicavam era o “direito à cidade”, para usar a célebre expressão de Henri Levebvre.

Não cabe aqui, contudo, historiar o desenvolvimento desse ramo da antropologia no Brasil, que deveria incluir, por certo, centros de pesquisa situados no Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre, entre outros. Nesse sentido não posso deixar de mencionar a presença de Anthony e Elisabeth Leeds no Rio de Janeiro que, além dos autores da Escola de Chicago, principalmente vinculados ao interacionismo simbólico, marcaram as pesquisas de Gilberto Velho e seus alunos, no Museu Nacional. Já em São Paulo, Ruth Cardoso (minha orientadora no doutorado) e Eunice Durham incorporaram também a discussão de Richard Hoggart, do Centro Contemporâneo de Estudos Culturais da Universidade de Birminghan.

Atualidade

De lá a esta parte, muita coisa mudou e atualmente a oposição centro versus periferia já não é operativa; ademais, nem sempre se aplicou a todas as metrópoles brasileiras, como é notório no caso do Rio de Janeiro, com outro padrão de desenvolvimento territorial. O processo acelerado de urbanização produziu outros cenários, o que implicou ajuste nas formas de análise. No entanto, é sintomático e significativo que este congresso em Lisboa, a Primeira Conferência Internacional de Jovens Pesquisadores Urbanos (FICYurb), tenha incluído uma reflexão com base em experiência de um país do terceiro mundo, muitas vezes visto e identificado principalmente na chave de processos desordenados de urbanização, altos níveis de desemprego, desigualdades sociais, violência.

Com base nesse quadro, até seria previsível imaginar qual a contribuição esperada: apresentação de situações-limite, experimentos como que de laboratório, estudos de caso extremados que serviriam, então, de contraponto, de contraste para pôr em evidência conjunturas de certa forma análogas em outros países e contextos. Enfim, seria a repetição de um estereótipo, já veiculado pela mídia, mas agora revestido com números, casos exemplares, relatos e outros dados de campo.

Não é isso, contudo, que pretendo apresentar neste texto, para interlocutores certamente bem informados e vacinados contra clichês. Meu propósito é desenvolver uma reflexão que leve à busca de pontos em comum, para que se possa melhor compartilhar a multiplicidade de experiências em diferentes contextos. Assim, o que principalmente vincula e reúne pesquisadores interessados em questões urbanas contemporâneas não é um tema em particular, pois eles são variados; não são os recortes regionais ou locais, pois cada qual tem lá suas idiossincrasias; não é uma bibliografia específica, pois se pode beber de várias fontes. O que pode constituir um ponto de interesse comum é o olhar, o olhar etnográfico. Buscar sua especificidade, fazer dele um diferencial, algo que se possa eleger como eixo para valorizar as inevitáveis diferenças.

Em outro momento (Magnani, 2002) afirmei que não é preciso muitos malabarismos pós-modernos para aplicar com proveito a etnografia a questões próprias do mundo contemporâneo e da cidade, em particular: desde as primeiras incursões em campo, a antropologia vem desenvolvendo e colocando em prática uma série de estratégias, conceitos e modelos que, não obstante as inúmeras revisões, críticas e releituras (quem sabe até mesmo graças a esse continuado acompanhamento exigido pela especificidade de cada pesquisa), constituem um repertório capaz de inspirar e fundamentar abordagens sobre novos objetos e questões atuais.

A etnografia

Tendo, pois, feito esta escolha, impõe-se qualificá-la. Não se trata de etnografia em geral, mas de etnografia no contexto urbano, contemporâneo e de metrópoles. Certamente já não se pode fazer como Evans-Pritchard, que escreveu, a propósito de sua estada entre os Nuer: “da porta de minha barraca podia ver o que acontecia no acampamento ou aldeia e todo o tempo era gasto na companhia dos Nuer” (1978 [1940]: 20). Mas não é o caso, aqui, de repassar a história da pesquisa etnográfica; talvez valha a pena tomar como ponto de partida algumas situações típicas vividas em campo. Vou tentar essa empreitada a partir de três experiências, bem diversas, de meu próprio repertório e de alguns pesquisadores que comigo trabalharam. Antes, porém, convém assinalar alguns supostos básicos a respeito da etnografia.

Inicialmente, vale a pena repassar o que ela não é, e, nesse plano, não são poucos os mal-entendidos por parte do senso comum: às vezes, é confundida com o detalhismo, com a busca obsessiva dos pormenores na descrição das situações de campo; em outras, é identificada com a atitude de vestir a camisa ou ser o porta-voz da população estudada, principalmente quando esta é caracterizada como grupo excluído ou uma minoria; em algumas ocasiões, é identificada com a reprodução do discurso nativo, através da transcrição de trechos de entrevistas nos quais, para melhor efeito de verossimilhança, são cuidadosamente preservados alguns erros de concordância, sintaxe ou regência.

Finalmente, para citar mais alguns desvios, o método etnográfico é também visto como um esforço em transmitir o ponto de vista do nativo em sua pretensa autenticidade, não contaminada com visões externas, ou ainda é identificado com as técnicas do chamado método qualitativo. Para estabelecer um contraponto a essas visões e construir um argumento em tom assertivo, cabe uma citação de Lévi-Strauss:

É por uma razão muito profunda, que se prende à própria natureza da disciplina e ao caráter distintivo de seu objeto, que o antropólogo necessita da experiência do campo. Para ele, ela não é nem um objetivo de sua profissão, nem um remate de sua cultura, nem uma aprendizagem técnica. Representa um momento crucial de sua educação, antes do qual ele poderá possuir conhecimentos descontínuos que jamais formarão um todo, e após o qual, somente, estes conhecimentos se “prenderão” num conjunto orgânico e adquirirão um sentido que lhes faltava anteriormente (1991: 415-416).

Todos os antropólogos, nas introduções de seus relatórios, teses e dissertações, procuram descrever o momento crucial em que os dados de campo se prendem nesse “conjunto mais orgânico”. Merleau-Ponty, no texto “De Mauss a Claude Lévi-Strauss” (1984), chega a dizer que, após essa experiência, o antropólogo como que adquire um novo “órgão de conhecimento”. Na realidade, para descrever esse momento às vezes fugidio, mas de capital importância, muitas vezes lança-se mão de metáforas, de aproximações, como tentativas de cercar a especificidade da etnografia. A revisão de algumas dessas tentativas pode ser reveladora.

Marisa Peirano, autora do livro A Favor da Etnografia (1995), por exemplo, fala em “resíduos” — certos fatos que resistem às explicações habituais e só vêm à luz em virtude do confronto entre a teoria do pesquisador e as idéias nativas; Márcio Goldman, no artigo “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia” (2003), refere-se à “possibilidade de buscar, através de uma espécie de ‘desvio etnográfico’, um ponto de vista descentrado”; há que lembrar ainda os anthropological blues de Roberto Da Matta (1974) e a expressão experience-near versus experience-distant usada por Geertz (1983).

À sua maneira — com ênfases diferentes — cada uma dessas paráfrases, entre outras, deixam entrever alguns núcleos de significado recorrentes: o primeiro deles é uma atitude de estranhamento e/ou exterioridade por parte do pesquisador em relação ao objeto, a qual provém da presença de sua cultura de origem e dos esquemas conceituais de que está armado e que não são descartados pelo fato de estar em contato com outra cultura e outras explicações, as chamadas “teorias nativas”. Na verdade, essa co-presença, a atenção em ambas é que acaba provocando a possibilidade de uma solução não prevista, um olhar descentrado, uma saída inesperada.

Por outro lado, essa experiência tem efeitos no pesquisador: ela o “afeta” (Favret-Saada, 1990); o “transforma” (Merleay-Ponty, 1984), produz-se “nele” e, no limite, o “converte” (Peirano, 1995). O pesquisador não apenas se depara com o significado do arranjo do nativo, mas ao perceber esse significado e conseguir descrevê-lo, agora nos seus termos (dele, analista), é capaz de apreender sua lógica e incorporá-la de acordo com os padrões de seu próprio aparato intelectual e até mesmo de seu sistema de valores.

Com base nas observações desses autores e de muitos outros antropólogos que sempre refletiram sobre seu trabalho de campo, é possível concluir, de uma maneira mais sintética, que a etnografia é uma forma especial de operar, em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para atestar a lógica de sua visão de mundo, mas para segui-los até onde seja possível e, numa relação de troca, comparar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente.

Esse é um insight, uma forma de aproximação própria da abordagem etnográfica, que produz um conhecimento diferente do obtido por intermédio da aplicação de outras técnicas. Trata-se de um empreendimento que supõe outro tipo de investimento, um trabalho paciente e continuado ao cabo do qual e em algum momento, como mostrou Lévi-Strauss, os fragmentos se ordenam, perfazendo um significado até mesmo inesperado.

Nesse sentido vale lembrar também a advertência de Clifford Geertz (1978: 15) de que, diferentemente do que ensinam os manuais, praticar a etnografia não se resume a selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias. Mais do que um conjunto de técnicas, o que a define é um tipo de esforço intelectual em busca de uma “descrição densa”. E já que estamos no campo das metáforas, aproximações e paráfrases, mesmo correndo o risco de ser acusado de enveredar por um lado meio místico, não resisto a fazer mais uma comparação, desta vez buscando ajuda na sabedoria oriental com um exemplo do amplo repertório das anedotas zen-budistas.

A literatura sobre a experiência do satori — estado de iluminação da mente que desperta e que adquire uma nova forma de percepção — traz muitas histórias que mostram as particularidades dessa vivência. Uma delas relata a experiência de Kyogen, um praticante que, após muitos anos de meditação e estudo, chega à iluminação, ao satori, quando, ao varrer, pela enésima vez, o pátio do mosteiro, percebe o barulho produzido por um pedregulho que, ao ser projetado pela vassoura, bateu contra a haste de um bambu. Aquele som foi o fator casual e externo que fez sua mente despertar para a resolução do koan (espécie de enigma, proposição paradoxal) proposto por seu mestre e, em consequência, para um novo entendimento da natureza das coisas, até então percebidas de acordo com o padrão habitual. Não foi, porém, um acontecimento mágico: nem o bambu nem a pedra tinham qualquer qualidade intrínseca e misteriosa para provocar o súbito insight; este foi produzido em virtude de uma predisposição, de um estado anterior de atenção viva e contínua (voltada, dia e noite, para o deciframento do koan), de forma que o incidente trivial e inesperado funcionou como gatilho que detonou a ruptura, a quebra e o consequente reordenamento da mente, capaz agora de ver as coisas sob uma nova perspectiva.3

Também o insight na pesquisa etnográfica, quando ocorre — em virtude de algum acontecimento, trivial ou não — só se produz porque precedido e preparado por uma presença continuada em campo e uma atitude de atenção viva. Não é a obsessão pelo acúmulo de detalhes que caracteriza a etnografia, mas a atenção que se lhes dá: em algum momento os fragmentos podem arranjar-se num todo que oferece a pista para um novo entendimento, voltando à citação de Lévi-Strauss.

Os casos

Com o propósito de tornar mais concreta e palpável essa perspectiva, vou trazer alguns exemplos; não serão os achados dos grandes mestres, nos textos clássicos, já sobejamente conhecidos; ficarei num âmbito mais doméstico de algumas pesquisas feitas no Núcleo de Antropologia Urbana da USP.

Quando comecei uma investigação sobre modalidades de lazer, cultura popular e entretenimento na periferia de São Paulo, a pergunta com a qual fui a campo estava fundamentada nas relações entre ideologia e cultura. No contexto dos estudos sobre os movimentos sociais urbanos e a emergência de novos atores sociais, questionava-se se a cultura popular era fator de libertação ou se era mero reflexo da ideologia dominante. Assim, com base nessa discussão, saí a campo para realizar a pesquisa etnográfica e, sem entrar em maiores detalhes, posso dizer que fui com uma determinada pergunta ou hipótese e a resposta que obtive dos moradores, surpreendente, apontou para outra direção.4

Em poucas palavras, a resposta foi a seguinte: não é o conteúdo da cultura popular, do entretenimento ou do lazer o que importa, mas os lugares onde são desfrutados, as relações que instauram, os contatos que propiciam. Mais do que a suposta capacidade de liberação da cultura popular ou o poder da ideologia dominante sobre tradições populares, surgia uma questão nova: a da própria existência de uma rica rede de lazer e entretenimento — e suas modalidades de fruição — na periferia urbana da cidade de São Paulo, paisagem habitualmente descrita como uma realidade cinzenta, indiferenciada (hoje se diria o território da exclusão, que é uma outra forma de reduzir as diferenças a um denominador comum, a um fator de homogeneização).

Na verdade, o olhar paciente do etnógrafo terminou apreendendo que há, sim, classificações, regras, diferenciações. Assim, foi possível descobrir que, naquele universo aparentemente monótono, havia uma extensa rede de lazer e diferenciações na forma de, por exemplo, praticá-lo: havia lazer de homens solteiros e casados, de mulheres e moças, de crianças e adultos; e também modalidades desfrutadas em casa e fora de casa, e neste último caso ainda era possível distinguir “fora de casa, mas no pedaço”.

Foi então que surgiu essa noção de pedaço (vertida como turf numa tradução para o inglês), uma idéia nativa mas que terminou se transformando numa categoria mais geral, na medida em que permitiu discutir e se integrar em outros esquemas conceituais. Em diálogo com a conhecida dicotomia “rua versus casa” de Roberto Da Matta (1979), revelou um outro domínio de relações: enquanto a casa é o domínio dos parentes e a rua o dos estranhos, o pedaço evidencia outro plano, o dos “chegados” que, entre a casa e a rua, instaura um espaço de sociabilidade de outra ordem. Assim se desvelou um campo de interação em que as pessoas se encontram, criam novos laços, tratam das diferenças, alimentam, em suma, redes de sociabilidade e negociam conflitos numa paisagem aparentemente desprovida de sentido ou lida apenas na chave da pobreza ou exclusão.

Foi realmente um achado, não previsto pelas hipóteses do projeto original da pesquisa, pois surgiu no contato com os pesquisados, foi sugerido por eles, e só se transformou numa categoria de alcance mais geral quando contrastado com outro esquema conceitual e, aplicado em novos contextos, diferentes daquele em que fora encontrado, deu origem a outras categorias.

Outro exemplo vem da experiência de campo de um ex-aluno, hoje professor de antropologia na Universidade Federal de São Carlos, no interior do estado de São Paulo. Como ocorria com vários estudantes de graduação, na disciplina “A pesquisa de campo em antropologia”, Luiz Henrique escolheu um botequim, para seu exercício etnográfico — sempre está presente a possibilidade de aproveitar ao máximo todas as possibilidades abertas pela observação participante… O tema era sobre o tempo livre e era preciso descobrir as concepções que os usuários tinham sobre lazer. A resposta obtida foi: “não, isto aqui não é lazer”. Mas, como? O pesquisador estava todo preparado com as teorias do lazer e do tempo livre e o informante diz que aqueles momentos passados no botequim, entre cervejas e snooker, no final da tarde, não constituíam lazer. Que eram, então? “Higiene mental”, foi a inesperada resposta.

Tal perspectiva não cabia, não se encaixava nas hipóteses; no entanto, ofereceu uma pista: aqueles momentos passados no botequim, em companhia de colegas após a jornada de trabalho, antes de voltar para casa, eram vividos como uma passagem entre o mundo do trabalho e o mundo doméstico. Então fazia sentido falar em higiene mental: aquelas pessoas eram trabalhadores que ainda traziam na roupa, no corpo, no cheiro, nos temas das conversas, as marcas dessa condição; a passagem pelo botequim era encarada como uma espécie de “descontaminação” antes da volta ao convívio com a família.

Tudo bem, mas afinal o que eles consideravam lazer? “Lazer é quando eu me arrumo e vou com minha mulher a um barzinho ou, no fim-de-semana, quando vou passear na área verde do campus da USP”. De certa maneira, o entrevistado, ao mostrar de que forma usava seu tempo livre, deu uma pista para pensar as diferenças no modo de entendimento do lazer. Não se tratava de optar por uma visão supostamente mais autêntica ou verdadeira, mas de estar atento para nuanças, modulações, princípios de classificação diferentes, a partir dos arranjos dos próprios atores. Essas pistas podem ser seguidas, aprofundadas e permitem enriquecer, no caso, uma compreensão mais ampla do que seja o lazer.

Uma terceira situação pode ser ilustrada com a pesquisa de Bruna Mantese sobre os straight edgers. Analisado em sua dissertação de mestrado, esse movimento se insere na cena hardcore e, contrariamente a uma certa visão do senso comum, que os vê como um grupo exótico, isolado e confinado a algum gueto, eles têm presença visível no cenário urbano e participação ativa em sua dinâmica.5

Claro, seu comportamento é bastante distintivo: na medida em que constituem uma variante do movimento punk, compartilham o estilo musical e algo do visual “agressivo” — uso de piercings, tatuagens e outras modalidades de modificações corporais; apresentam, porém, diferenças significativas: contrários ao consumo de drogas e álcool, e avessos à permissividade sexual e à homofobia, têm como traço mais acentuado a adesão ao vegetarianismo e, em alguns casos, a uma versão mais radical, o veganismo.

Essa variante proíbe não apenas a ingestão de carne, mas o consumo de todo e qualquer produto de origem animal ou que esteja vinculado, em seu processo de fabricação e pesquisa, a algum tipo de utilização de animais domésticos ou silvestres. Coerentes com esse princípio, as festas do grupo são denominadas verduradas — em contraposição às costumeiras churrascadas ou cervejadas. É justamente essa adesão que explica o vínculo aparentemente paradoxal que os straight edgers mantêm nada mais nada menos que com os Hare Krishna, muitas vezes encarregados da comida que é servida em suas festas.

Os jovens identificados com esse movimento constituem um bom exemplo de trocas e encontros surpreendentes: além do contato com os Hare Krishna, freqüentam espaços vinculados ao movimento anarquista e ambientalista, devido a uma opção política. Para as festas, os encontros e até mesmo as opções de moradia, têm seus pontos de preferência na cidade, conhecidos por todos e difundidos em contatos diretos e nas listas de discussão pela internet. A pesquisa de campo realizada por Bruna mostra a existência de um extenso circuito freqüentado pelo grupo, formado por restaurantes vegetarianos, determinadas sorveterias, lojas de disco, de produtos naturais e orgânicos, casas de show, espaços culturais anarquistas, etc.

Dentre os vários aspectos a considerar com relação aos straight edgers, cabe ressaltar duas formas de relação com espaços e equipamentos da cidade com os quais estabelecem vínculos e onde melhor expressam as particularidades de seu estilo de vida. A primeira delas mostra a ocupação de um espaço institucional já existente — no caso, a Associação de Grupamento de Resgate Civil, cuja sede, alugada para as verduradas, passava a ser regida, durante o evento, pelas normas e pelos valores do grupo: só se consumia comida vegan, nada de bebidas alcoólicas, drogas ou cigarro; não se contratavam seguranças; os CD, livros e objetos de consumo à venda estavam claramente identificados com os valores do grupo.

A outra forma de relação, que permitiu um interessante acompanhamento etnográfico, mostra a transformação de um estabelecimento comercial, inicialmente sem nenhum vínculo com os ideais do grupo, num ponto de referência para o movimento. Trata-se de uma sorveteria comum, na rua Augusta, região próxima ao centro de São Paulo que, com a freqüência dos straight edgers, começou a fornecer sorvetes sem os ingredientes interditos — principalmente o leite de vaca, que foi substituído por leite de soja — e terminou constituindo um point para os membros do grupo não apenas da capital paulistana, mas de todos os lugares, incluindo do exterior.

A rua Augusta, onde está situada a sorveteria, acabou se tornando uma região de referência para os straight edgers, em parte pelo preço relativamente baixo do aluguel dos apartamentos, em parte pela própria localização, que permite fácil e rápido acesso a duas centralidades urbanas de interesse para os jovens do movimento: o centro da cidade propriamente dito (com sua oferta de restaurantes vegetarianos, produtos específicos da “Galeria do Rock”, os preços populares de muitos artigos de consumo) e a avenida Paulista, palco de manifestações políticas.

Pode-se concluir que, diferentemente do que uma certa visão veicula, os straight edgers não constituem um bando indiferenciado e exótico à deriva na cidade. Ao contrário, circulam por trajetos bem delimitados, estabelecem links com outros circuitos e seus freqüentadores, e, com essa movimentação, marcam sua presença e seu estilo de vida de forma pública e visível na paisagem da metrópole.

Poderia citar ainda a pesquisa de Priscila Mata sobre os índios pankararus, moradores da favela Real Parque, incrustada no bairro paulistano de classe alta do Morumbi. Como mostra a pesquisadora, já não se consideram pobres favelados ou índios desaculturados, pois, ao retomar contato com seus parentes do estado de Pernambuco, na região Nordeste do país, de uns tempos para cá começaram a estabelecer um vínculo mais estreito entre a aldeia e a metrópole. E, ao longo desse eixo, sustentam um fluxo constante de trocas, daí surgindo novas experiências, novos arranjos; atualmente formaram até uma ONG, para preservar e divulgar suas tradições.

E os exemplos poderiam multiplicar-se: pichadores e grafiteiros, hip-hop, as bandas gospel, as baladas black (para ficar apenas no circuito dos jovens) e, muito recentemente, uma etnografia levada a cabo por alunos meus do primeiro ano de ciências sociais sobre um movimento que culminou com a ocupação do prédio central da reitoria da USP, por parte dos estudantes, em maio de 2007. A propósito, uma delas me disse, após as primeiras idas a campo — “Professor, agora não consigo mais ir à ocupação sem ficar reparando o tempo todo nos atores, no cenário e nas regras!” — “Pois é”, respondi-lhe, “você perdeu a inocência…” Neste caso, inocência quer dizer o filtro do senso comum ou de uma perspectiva parcial, seja a do militante favorável à ocupação, seja daquele que é visceralmente contra: aquela aluna, ao contrário, estava mais atenta ao que todos os atores envolvidos diziam e faziam, às redes que teciam e desfaziam, aos trajetos que percorriam.

Eram mais de trinta, experimentando pela primeira vez esse, por vezes, estranho lugar do etnógrafo e vendo as coisas através de um novo olhar: inicialmente de “perto e de dentro” (Magnani, 2002), mas que vai precisar adotar também uma perspectiva distanciada, na hora de juntar todos os dados. O trabalho está sendo realizado no âmbito do Núcleo de Antropologia Urbana, cujos membros estão acostumados a uma prática etnográfica que não descarta o trabalho em comum, as trocas de experiências, o levar a sério todos os atores.

Este e outros experimentos etnográficos evidenciam que esse nosso tema e recorte, a cidade, é tão complexo, sua trama é tecida por tantos fios que a todo momento é preciso resistir não apenas ao que já denominei de “a tentação da aldeia” (Magnani, 2000): isto é, considerar cada objeto de estudo como um mundo fechado e auto-significante, como resistir também à recusa de se abrir a outros pontos de vista, que podem revelar ângulos inesperados.

 

Referências bibliográficas

Cândido, Antônio (1977 [1964]), Os Parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o Caipira Paulista e a Transformação de Seus Meios de Vida, 4.ª ed., São Paulo, Duas Cidades.

Da Matta, Roberto (1974), “O ofício do etnólogo, ou como ter ‘anthropological blues’”, Cadernos do PPGAS, Rio de Janeiro, Museu Nacional.

Da Matta, Roberto (1979), Carnavais, Malandros e Heróis, Rio de Janeiro, Zahar.

Evans-Pritchard, E. E. (1978 [1940]), Os Nuer, São Paulo, Perspectiva.

Favret-Saada, Jeanne (1990), “Être affecté”, Gradhiva, 8, pp. 3-10.         [ Links ]

Geertz, Clifford (1978), A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Zahar.

Geertz, Clifford (1983), Local Knowledge, Nova Iorque, Basic Books.

Goldman, Márcio (2003), “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos: etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia”, Revista de Antropologia, 46 (2), pp. 446-476

Hannerz, Ulf (1986), Exploración de la Ciudad, México, Fondo de Cultura Económico.

Kantor, Iris, Débora Maciel, e Júlio Simões (orgs.) (2001), A Escola Livre de Sociologia e Política, São Paulo, Ed. Escuta/FAPESP.

Lévi-Strauss, Claude, (1991), Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

Magnani, J. Guilherme (1998 [1984]), Festa no Pedaço: Cultura Popular e Lazer na Cidade, (1.ª ed., São Paulo, Brasiliense), Hucitec.

Magnani, J. Guilherme, e Lilian Torres (2000), Na Metrópole: Textos de Antropologia Urbana, São Paulo, Edusp/Fapesp.

Magnani, J. Guilherme C. (2002), “De perto e de dentro: notas para uma antropologia urbana”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, 17 (49), pp. 11-31.

Magnani, J. Guilherme C., e Bruna Mantese (orgs.) (2007), Jovens na Metrópole: Etnografias de Lazer, Encontro e Sociabilidade, São Paulo, Ed. Terceiro Nome.

Merleau-Ponty, Maurice (1984), “De Mauss a Claude Lévi-Strauss”, Textos Selecionados, São Paulo, Editora Abril Cultural (coleção Os Pensadores).

Peirano, Mariza (1995), A Favor da Etnografia, Rio de Janeiro, Relume-Dumará.

Santos, Carlos Nelson, e Arno Vogel (orgs.) (1985), Quando a Rua Vira Casa: Rio de Janeiro, Ibam/Finep, Projeto.

Suzuki, D. T. (1993 [1969]), Introdução ao Zen Budismo, São Paulo. Ed. Pensamento.

 

1 Este texto tem como base a conferência de abertura que proferi no FICYurb—First International Conference of Young Urban Reseachers a convite do CIES-ISCTE em junho de 2007 em Lisboa.

2 Kantor, Maciel e Simões, (2001).

3 Suzuki, (1993 [1969]: 116).

4 O resultado da pesquisa encontra-se em Magnani (1998).

5 Publicada, em parte, na coletânea Jovens na Metrópole (Magnani e Mantese, 2007).

 

* é coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU — http://www.n-a-u.org) e professor de antropologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Brasil (USP). E-mail: jmagnani@usp.br

Creative Commons License Todo el contenido de esta revista, excepto dónde está identificado, está bajo una Licencia Creative Commons