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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.59 Oeiras ene. 2009

 

Um olhar sobre a pobreza

Vulnerabilidade e exclusão social no Portugal contemporâneo

[Alfredo Bruto da Costa (coord.), Isabel Baptista, Pedro Perista e Paula Carrilho, 2008, Lisboa, Gradiva]

 

Renato Miguel do Carmo*

 

Este livro representa um contributo importante para o estudo da pobreza e da exclusão social em Portugal. A sua publicação é mais que oportuna, pois, para além de vir preencher uma lacuna na produção de trabalhos científicos recentes sobre a temática, esta surge num contexto económico e social particularmente problemático, quer a nível mundial, com a generalização de uma série de crises associadas (financeira, energética, alimentar), quer à escala nacional, onde a questão das desigualdades sociais parece continuar a persistir com uma acutilância deveras preocupante. Aliás, uma das questões centrais que actualmente emergem não só no debate científico mas, sobretudo, no debate público mais alargado, é saber até que ponto existe uma relação interdependente entre a composição das situações mais recursivas de pobreza e a manutenção ou o incremento do nível das desigualdades na sociedade portuguesa. As ciências sociais deverão contribuir em parte para o esclarecimento deste debate que, por vezes, enviesa por discussões assentes em pré-noções construídas a partir de elementos marcadamente contingenciais e episódicos.

Em termos de estrutura formal, o livro organiza-se em duas partes distintas. A primeira corresponde a dois capítulos que desenvolvem um enquadramento teórico em torno das problemáticas da pobreza e da exclusão social. A segunda parte é composta por três capítulos empíricos, nos quais se analisam um conjunto de dados oriundos de diferentes fontes e inquéritos. No final, os autores apresentam um capítulo conclusivo que, para além de sistematizar os pontos essenciais da análise, avança com uma perspectiva crítica sobre os paradoxos da pobreza na sociedade portuguesa.

Os capítulos teóricos percorrem os conceitos fundamentais que habitualmente se abordam neste tipo de estudos. No primeiro, focam-se os conceitos de pobreza a partir de diversas concepções: o conceito absoluto de pobreza, o conceito relativo, a definição subjectiva, a pobreza persistente ou temporária, etc. Acaba-se por optar por uma noção de pobreza medida como uma situação de privação por falta de recursos. Apesar de relacionadas, estas duas dimensões (privação e falta de recursos) são distintas, quer na sua natureza quer na forma como poderão ser resolvidas. A privação pode ser solucionada, por exemplo, por intermédio de apoio monetário (subsídios, transferências sociais, etc.), mas esta via é considerada insuficiente para resolver a questão da falta de recursos, designadamente recursos que possibilitem alguma auto-suficiência.

De entre os diversos pontos abordados neste capítulo, destaca-se o último, no qual se discorre sobre a distinção entre os conceitos de pobreza e de desigualdades sociais. Como é sublinhado, embora em muitos casos possa estabelecer-se uma associação entre estes, nem sempre o cenário de maior desigualdade significa uma situação generalizada de pobreza: “do ponto de vista teórico, podem existir situações de altos níveis de desigualdade sem pobreza, bem como altas taxas de pobreza praticamente sem desigualdade” (p. 54). Em nosso entender, e na linha do que foi referido no parágrafo introdutório desta recensão, teria sido interessante o aprofundamento desta questão, não só em termos teóricos, mas ao nível da análise empírica sobre a realidade portuguesa. Será que em Portugal existe (ou não) uma estreita relação entre pobreza e desigualdade? Esta pergunta ficou, de certa forma, por responder neste estudo, apesar de não ter sido este o objectivo central que esteve na base da sua elaboração. Contudo, como iremos ver mais adiante, os dados apontam para uma inegável relação.

O segundo capítulo teórico incide na desmontagem do conceito de exclusão social. Também neste existe uma certa distinção (difícil de destrinçar, por vezes) relativamente à concepção de pobreza: “a pobreza representa uma forma de exclusão social, ou seja, que não existe pobreza sem exclusão social. O contrário, porém, não é válido. Com efeito, existem formas de exclusão social que não implicam pobreza” (p. 63). O exemplo mais clássico sobre esta distinção revela-se no caso do isolamento social a que os idosos são confrontados na maior parte das sociedades ocidentais capitalistas. Este isolamento não resulta necessariamente da pobreza, mas da estrutura organizativa deste tipo de sociedades, que desvalorizam o estatuto e o papel social da pessoa idosa. No final deste capítulo é apresentada uma grelha de indicadores para medir a exclusão social, organizados a partir de um conjunto de domínios: social, económico, institucional, espacial e simbólico.

A parte empírica abre com a estipulação de uma série de notas metodológicas esclarecedoras sobre a proveniência dos dados utilizados. Estes resultam de três fontes e instrumentos estatísticos aplicados em diferentes períodos temporais: o Painel dos Agregados Domésticos Privados, coordenado pelo Eurostat (abarcando o período de 1995-2000); o Inquérito às Condições de Vida (Icor), que a partir de 2004 veio substituir o anterior (os dados analisados correspondem somente a este ano); um inquérito solicitado pelos investigadores deste estudo ao INE, incidindo sobre a população trabalhadora pobre (working poor).

É importante compreender como se identifica a situação de pobreza. No entender dos autores os critérios estatísticos usados nos indicadores mais badalados pelas organizações internacionais, nomeadamente o Eurostat, estipulam para o efeito uma linha diferenciadora: 60% do rendimento mediano (nacional) por adulto equivalente. Quem está abaixo desta linha é considerado pobre. No entanto, os autores realçam que dentro desta população, que se encontra em risco de pobreza, deparam-se situações muito díspares no que respeita à severidade da pobreza, ou seja, não é de todo (muito longe disso) um grupo populacional homogéneo.

O primeiro capítulo empírico, no qual se analisam os dados do painel referenciado, inicia-se com a apresentação de um número impressionante: durante o período considerado (1995-2000) 46% das pessoas e 47% dos agregados passaram pela pobreza, em, pelo menos, um dos seis anos. Seguindo-se um segundo número não menos expressivo: destes cerca de 15% permaneceram na pobreza durante todo o período contemplado. Ao definirem a situação de pobre a partir de uma série temporal de seis anos, os autores encaram a pobreza “ […] não como um fenómeno estático, que se mede num único ano, mas como um processo melhor captado pela análise dinâmica” (p. 105). É assim calculada uma taxa de pobreza em sentido lato, que contempla precisamente esse carácter dinâmico.

Estes valores percentuais esmagadores, que apontam para praticamente metade da população portuguesa, resultam, em parte, da opção avançada pelos autores ao considerarem como pobre quem esteve pelo menos um dos dois anos abaixo do limiar definido. Contudo, tendo em conta o período temporal, não é fornecida qualquer indicação sobre as diversas trajectórias individuais ou familiares no que diz respeito à incidência de pobreza. Ou seja, não se depreende qual a evolução verificada ao longo desses seis anos: os pobres aumentaram ou diminuíram entre 1995 e 2000? Em qual dos anos se registou o valor mais elevado? Relativamente aos que estiveram em situação de pobreza apenas um ano, a sua situação melhorou significativamente ou, pelo contrário, continuam perto do limiar estipulado? Quando se identifica os casos de pobreza em mais de um ano (desde de dois anos até aos de cinco), estamos a falar de anos sequentes ou em situações de pobreza intermitente? Teria sido importante focar este e outros dados, de modo a entender-se as reais dinâmicas da pobreza. De uma certa maneira, apesar de contemplarem uma perspectiva diacrónica do fenómeno, os autores acabam por abordar o período em causa de forma um tanto estanque, na medida em que o utilizam como se se tratasse de uma unidade temporal quase homogénea.

Face a estas considerações, torna-se difícil compreender a consistência da ordem de medida avançada: “taxa de pobreza em sentido lato será obtida multiplicando a percentagem das pessoas que passaram pela pobreza em um ou mais anos do período em estudo pelo coeficiente que representa a proporção dos que estiveram na pobreza em dois ou mais anos” (p. 105). Esta opção metodológica contempla alguns riscos, primeiro, porque não é fácil destrinçar os seus pressupostos analíticos e, segundo, porque dificulta a comparação com outros estudos que utilizam, para o efeito, taxas e indicadores cujos cálculos têm sido testados por diversas instituições e em diversos contextos nacionais. Não se perderia a perspectiva diacrónica defendida pelos autores se, simultaneamente, se tivesse contemplado a evolução anual.

Tendo por base a metodologia definida, o estudo faz uma caracterização dos perfis mais determinantes da pobreza, iniciando-se uma descrição pormenorizada sobre um conjunto de variáveis de caracterização. Assim, a composição espacial surge ainda como um elemento fortemente diferenciador, pelo facto de se observar “ […] que a incidência da pobreza diminui à medida que a densidade populacional aumenta” (p. 109). No meio rural a incidência de pobreza é consideravelmente maior relativamente às áreas mais urbanizadas, factor que se deve em parte ao elevado grau de envelhecimento populacional de algumas zonas de baixa densidade.

Na verdade, como demonstram os resultados, é na população mais idosa que se identifica o maior nível de pobreza. Todavia, o segundo grupo etário onde se denota maior incidência desta é precisamente o dos mais jovens (com idades inferiores a 17 anos). Esta polarização etária implica um dos traços mais marcantes da pobreza em Portugal, sobretudo no que concerne a este último grupo: “é particularmente preocupante que mais de metade (54%) dos jovens e crianças tenha experimentado a pobreza em pelo menos um dos seis anos do estudo” (p. 111). Repare-se que o valor médio para a população geral ronda os 46%.

Existe uma correspondência entre pobreza e o tipo de agregado familiar, e também aqui os dados apontam para uma polarização: “de um modo geral, identifica-se maior vulnerabilidade dos agregados isolados (uma pessoa) e dos agregados de maior dimensão” (p. 114). Sendo que na primeira situação o problema é particularmente grave no caso dos idosos isolados e, na segunda, em famílias que detenham três ou mais filhos. Para além destas, saliente-se a situação das famílias monoparentais.

Um dos aspectos mais interessantes deste estudo tem a ver com o modo como se cruza e se conjuga a pobreza com as diferentes condições e situações perante o trabalho. De facto, é até um pouco surpreendente quando se verifica uma elevada percentagem de pobres que trabalham por conta de outrem (representado quase um 1/3 dos pobres), mas mais surpreendente ainda é o dado que nos indica que mais de metade dos agregados pobres tem como principal fonte o rendimento do trabalho. Por seu turno, cerca de 71% dos representantes dos agregados pobres (entre 1995 e 2000) eram trabalhadores por conta de outrem e tinham (sublinhe-se) contrato permanente. Muitos destes trabalhadores pobres começaram a trabalhar bastante cedo, facto que se reflecte num generalizado baixo nível de escolarização, ao qual não será alheio o precoce abandono da trajectória escolar.

A parte final deste capítulo é dedicada à análise da pobreza persistente, isto é, nos agregados que se declararam “sempre pobres” ao longo dos seis anos considerados. Como seria de esperar, em todas as variáveis os “sempre pobres” estão sistematicamente em desvantagem em relação aos “nunca pobres”. Embora se depreenda em alguns indicadores uma situação generalizada de privação. Por exemplo, nas condições de habitabilidade a realidade dos “sempre pobres” é particularmente dramática em relação a infra-estruturas de saneamento, mas noutros itens esta desvantagem não é tão acentuada face aos “não pobres”, designadamente, na posse de aquecimento adequado da casa (que é genericamente insuficiente). “Esta circunstância parece indicar que as privações assinaladas não têm a ver apenas com a pobreza, mas configuram deficiências estruturais da sociedade portuguesa” (p. 131).

O terceiro capítulo da segunda parte pretende fazer uma actualização dos dados inventariados anteriormente para o ano de 2004 (utilizando para o efeito o Icor) e, num segundo momento, a apresentação dos resultados sobre um inquérito realizado os trabalhadores pobres. No que diz respeito à primeira parte, verifica-se que, de uma maneira geral, as tendências descritas para o período anterior se mantêm. Já os números relativos aos working poors, apresentam algumas novidades. Assim, para além da relação anteriormente identificada entre baixos salários e saída precoce do sistema de ensino, aponta-se uma forte reprodução geracional dos baixos níveis de escolaridade. Particularmente interessante e reveladora é também a informação sobre a percepção subjectiva da pobreza e, principalmente, este dado sintomático: “ […] em um em cada três casos persiste uma perspectiva culpabilizante da própria população pobre, associada essa condição à preguiça/falta de força de vontade das pessoas” (p. 177).

Finalmente, no capítulo conclusivo, é delineada uma perspectiva crítica sobre o estado e a persistência da pobreza em Portugal. Segundo esta, o fenómeno não se resolve apenas com medidas redistributivas. “O problema reside, além do mais, na repartição primária do rendimento, da propriedade e do poder. Quando se realça o papel da repartição primária do rendimento, quer-se dizer que, antes de ser problema de políticas sociais, a pobreza é um problema de política económica” (p. 197). Conclui-se, assim, que o grande problema da pobreza resulta dos baixíssimos salários e não tanto da questão da precariedade contratual (nem na situação de desemprego). Perante este cenário os autores são peremptórios em referir que a via das políticas sociais é claramente insuficiente, urge então pensar-se em políticas económicas que, em paralelo com as políticas redistributivas, possam quebrar o ciclo persistente da vulnerabilidade e da exclusão social.

Tendo como referência as diferentes componentes da pobreza, analisadas ao longo deste importante e pertinente livro, e, sobretudo, a sua extensão, que atinge uma margem significativa da população (como é sublinhado nas considerações finais), parece relativamente evidente que em Portugal existe uma forte relação entre desigualdades sociais e pobreza. A ênfase no capítulo final, atribuída à questão económica e às correspondentes disparidades na distribuição da riqueza, conduz necessariamente à problemática das desigualdades sociais e para a orgânica do sistema de estratificação social da sociedade portuguesa. Aliás, os próprios autores referem: “a redistribuição poderá, quando muito, atenuar as desigualdades da repartição primária. Jamais poderá eliminá-las.” (p. 197) A este respeito, pensamos que o estudo ganharia se tivesse enquadrado de modo mais operativo outro tipo de conceitos e de variáveis, nomeadamente de carácter posicional e estrutural, como é o caso da classe social. Ao fazê-lo, não temos dúvidas que seu contributo para o debate público teria sido ainda mais profícuo e esclarecedor.

 

* Renato Miguel do Carmo. CIES, ISCTE-IUL.

E-mail: renato.carmo@iscte.pt.

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