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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.58 Oeiras sep. 2008

 

Os ofícios de marcar o corpo

A realização profissional de um projecto identitário

Vítor Sérgio Ferreira*

 

Resumo

Com a recente liberalização, valorização e exposição social do corpo nas sociedades ocidentais, o conjunto das actividades associadas à produção de design corporal tornou-se num negócio rentável. Também Portugal viu expandir e diversificar largamente, nas últimas duas décadas, a sua indústria de produção e comercialização de design corporal. Entre os múltiplos produtos e serviços disponíveis, as práticas de tatuagem e/ou de body piercing tiveram uma difusão sem precedentes. Tal aconteceu não só com o alargamento do espectro social dos seus consumidores, mas também com a proliferação de estúdios onde essas intervenções são praticadas. Neste contexto, os ofícios de marcar o corpo passaram a constituir não apenas uma possibilidade imagética no espaço da estilização corporal de cada vez mais jovens, mas também uma possibilidade concreta no horizonte de expectativas laborais de alguns deles.

Palavras-chave jovens, trabalho, tatuagem e body piercing, trajectórias.

 

Abstract

Body-marking employment: the occupational realisation of an identity project

With the recent liberalisation, higher evaluation and social exposure of the body in Western societies, the group of activities associated with producing body designs has become a profitable business. In the last two decades, Portugal has also seen its body-design production and marketing industry widely diversify and expand. Among the many products and services available, the practices of tattooing and/or body piercing have spread to an unprecedented degree. This has not only happened with the broadening of the social spectrum of its consumers but also with the proliferation of studios where they are carried out. In this context, body-marking jobs have not only become an image option in the body stylisation space of more and more young people, but also a real possibility for some of them on the job expectations horizon.

Key-words young people, work, tattoos and body piercing, trajectories.

 

Résumé

Les métiers qui marquent le corps: la réalisation professionnelle d’un projet identitaire

La libéralisation, la mise en valeur et l’exposition sociale du corps dans les sociétés occidentales ont fait des activités associées à la production du design corporel une affaire rentable. Au Portugal aussi, la production et la commercialisation du design corporel se sont amplement développées et diversifiées au cours des vingt dernières années. Parmi les nombreux produits et services disponibles, le tatouage et/ou le piercing ont connu une diffusion sans précédent. Ce développement s’est traduit non seulement par l’élargissement du spectre social des consommateurs, mais aussi par la prolifération des studios qui pratiquent ces interventions. Dans ce contexte, les métiers “qui marquent le corps” sont devenus non seulement une possibilité imagétique dans l’espace de la stylisation corporelle de plus en plus de jeunes, mais aussi une possibilité concrète de satisfaire les attentes professionnelles de certains d’entre eux.

Mots-clés jeunes, travail, tatouage et piercing, trajectoires.

 

Resumen

Los oficios de marcar el cuerpo: la realización profesional de un proyecto de identidad.

Con la reciente liberalización, valoración y exposición social del cuerpo en las sociedades occidentales, el conjunto de actividades asociadas a la producción de diseño corporal se volvió un negocio rentable. También Portugal vio expandirse y diversificarse ampliamente, en las últimas dos décadas, su industria de producción y comercialización de diseño corporal. Entre los múltiples productos y servicios disponibles, la practica del tatuage y/o el body piercing tuvieron una difusión sin precedentes. Lo mismo sucedió no solo con la ampliación del espectro social de sus consumidores, sino que también con la proliferación de estudios donde son practicadas esas actividades. En este contexto, los oficios de marcar el cuerpo pasaron a constituir no solo una posibilidad de imagen en el espacio de la estilización corporal de cada vez más jóvenes, sino también una posibilidad concreta en el horizonte de espectativas laborales de algunos de ellos.

Palabras-llave jóvenes, trabajo, tatuages y body piercing, trayectorias.

 

Introdução

Na segunda metade do século XIX, sujeitos extensivamente tatuados marcavam presença regular em freak shows de circos e feiras itinerantes,1 ao lado de anões, gigantes, gémeos siameses, mulheres barbadas e outras bizarrias corporais e curiosidades animais. Com o surgimento da máquina eléctrica em 1881, pela mão de Samuel O’Reilly, a execução da tatuagem torna-se tecnicamente mais fácil e menos dolorosa, favorecendo a sua relativa popularização em contextos sociais restritos, não apenas em termos de clientelas, mas também enquanto meio de vida para alguns.

Uma prática que era sobretudo itinerante e amadora começa então, na viragem para o século XX, a sedentarizar-se, a profissionalizar-se e a difundir-se comercialmente num “meio de becos e de facadas” (Rio, s/d: 18), bairros pouco reputados onde os estúdios de tatuagens se fixavam emparedados com prostíbulos. Aí se recrutava maioritariamente a sua clientela, constituída por figuras sociais associadas à boémia e à marginalidade: marinheiros, estivadores, prostitutas, ex-reclusos, membros de gangs e máfias, a par de outro tipo de malandros (Atkinson, 2003: 39; Fisher, 2002: 93; Peixoto, 1990). De estatuto social homólogo ao do seu público, a tatuagem começa por ser profissionalmente dispensada por rufiões tipicamente oriundos de meios operários e populares, sem qualquer tipo de vocação e/ou socialização artística.

Hoje, as marcas corporais voluntárias saíram da economia marginal e informal onde estavam acantonadas, passando a integrar o mundo altamente competitivo da indústria de design corporal. Praticamente inexistentes há duas décadas atrás em Portugal, os estúdios de tatuagem e body piercing proliferaram na paisagem urbana do país a partir da década de 1990, instituindo uma oferta cada vez mais numerosa e profissionalizada, alimentada por uma procura maior e cada vez mais socialmente diversificada (Fortuna, 2002; Ferreira, 2004a). Se no início dos anos 90 apenas duas casas de tatuagem dividiam a clientela lisboeta (“Bad Bonnes Tatoo” e “El Diablo”), hoje são dezenas os estúdios de tatuagem e body piercing abertos em Portugal, já não apenas concentrados em Lisboa, mas também dispersos pelos seus arredores, bem como no restante território português.

Este fenómeno sucede a par do crescimento de outras actividades de produção e manutenção da imagem corporal integradas nas “novas economias urbanas” (Ball, Maguire e Macrae, 2000: 281), também descritas como “economias hedonistas” — ou seja, economias fundadas na exploração da aparência e da experiência corporal, sob a forma de produção, comercialização e consumo de bens e actividades ao serviços do lazer e prazer de “corpos de sonho”, no seu todo ou nas suas mais ínfimas partes (Sharp, 2000; Seale, Cavers e Dixon-Woods, 2006; Sheper-Hughes, 2001).2 Tendo por referência dominante o ideal mediatizado de “corpo jovem”, estas “novas” economias são, em larga medida, juvenilizadas. E são-no não apenas na medida em que privilegiam como consumidores-alvo segmentos sociais que pretendem aceder ou manter a imagem corporal de uma condição juvenil,3 mas também porque nos seus dispositivos de produção e comercialização são geradas possibilidades de profissionalização e de integração de mão-de-obra juvenil.

Trata-se de novas formas ocupacionais surgidas em sectores do mercado de trabalho concernentes à mercantilização do corpo, à construção do estilo e à estimulação dos sentidos, que oferecem aos mais jovens novas e atraentes expectativas de emprego. Os perfuradores do corpo, na sua versão de tatuador ou body piercer, integraram as fileiras destes “novos trabalhadores do estilo” (Ball, Maguire e Macrae, 2000: 282), a par de outros profissionais da indústria do design corporal. Neste cenário, as práticas de marcação corporal vêm instituir-se não apenas como possibilidades imagéticas no espaço da estilização corporal de muitos jovens (Ferreira, 2004b), mas também como possibilidades concretas e sedutoras no horizonte de expectativas laborais de alguns deles (Ferreira, 2006).

O significado do trabalho nos ofícios de marcar o corpo

O alargamento de uma vasta indústria de consumos culturais especificamente dirigida a jovens e consumida pelos mesmos (ou por quem pretende aparentar-se como tal) veio propiciar o alargamento homólogo das possibilidades de determinados tipos de consumo/lazer se tornarem, potencial ou efectivamente, formas de trabalho ou lugares de emprego sedutores, sonhados como tal no horizonte de expectativas laborais de muitos e cada vez mais jovens. É o caso das práticas musicais ou das práticas de produção do corpo, nomeadamente a tatuagem e o body piercing (Pais e Blass, 2004). A envolvência juvenil nestas práticas começa com frequência por ser meramente lúdica, com o simples objectivo de preencher tempos livres ou de exprimir um visual pessoal, podendo, com o tempo, começar a ser ponderada como possibilidade concreta de profissionalização, seja sob a forma de biscate4(temporário) ou de carreira (de futuro), garantindo a realização integral de uma política de vida marcada pela divergência da normatividade (Ferreira, 2007).5

Há muita gente a querer fazer tatuagens, há muita gente a querer fazer piercings, só naquela de “não quero ter um trabalho das nove às cinco!” (…) Montes de vezes, os miúdos quererem levar uma vida alternativa, muita louca, e ganhar dinheiro! [Aparece cá malta a querer aprender? Muita?] Muita, muita, muita, muita. (…) Vêm cá muitas vezes. [Profissional de body piercing, estudante universitária, 27 anos]

Iniciados como consumidores rituais de marcas corporais e terminando a marcar o corpo dos outros como meio de vida, estes jovens acabam por obter na sua actividade profissional uma peculiar fusão entre identidade e trabalho, entre o projecto de vida que construíram a partir da esfera do lazer e do consumo e o meio de vida necessário para a sua manutenção. Essa simbiose é tanto mais interessante quanto, entre estes jovens, o mundo do trabalho tende a ser percepcionado (por quem ainda não o integra) e vivido (por quem o integra fora da zona de gosto que partilha) como um domínio social habitualmente prescritivo e constrangedor da assunção dos projectos de marcação corporal, expressão privilegiada da autenticidade e singularidade dos seus portadores.

Daí as atitudes perante o trabalho destes jovens surgirem eminentemente clivadas em função de já trabalharem, ou perspectivarem vir a trabalhar, dentro ou fora da “cena” com a qual se identificam. Para os que trabalham ou pensam vir a trabalhar fora dela, o trabalho tende a ser a esfera da vida social onde mais profundamente sentem (ou prevêem sentir) a descoincidência entre o self que projectam e desejam para si próprios e o papel estatutário que lhes é exigido no desempenho laboral. A distância de papel entre o self representado no espaço de trabalho e o self projectado na vida privada é grande. No desempenho do papel laboral, tendem a assumir um habitus defensivo, adoptando estratégias de gestão social da visibilidade do projecto corporal e de determinados atributos e gostos inerentes à sua identidade, estratégias essas que impregnam as relações laborais de dissimulação ou falta de confiança. Nesta dimensão da vida, esses jovens sentem que a sua autenticidade dificilmente será assumida na íntegra, com sinceridade,6 ou que, se tal acontecer, correm o risco de sobre si recaírem os efeitos estigmáticos resultantes dos tradicionais preconceitos e estereótipos associado às figuras sociais extensivamente marcadas.

Entre os jovens que trabalham out scene, as relações laborais tendem a ser entendidas, portanto, como um obstáculo ao reconhecimento e à expressão de uma subjectividade livre e autêntica. O trabalho que exercem ou que perspectivam vir a exercer é por eles valorizado, sobretudo, em termos instrumentais ou extrínsecos, no sentido que Herzberg (1978) dá aos termos: embora grande parte do tempo quotidiano desses jovens seja dedicado à actividade laboral ou à sua preparação no futuro, o trabalho é por eles entendido, em grande medida, como um instrumento para retirar o rendimento necessário ao posterior financiamento de bens e serviços de consumo, esses sim, propiciadores de realização pessoal e social. Em contraposição, o tempo de lazer é representado como um tempo de liberdade, evasão e realização pessoal, sendo largamente investido de um ponto de vista expressivo e convivial.

Os depositários desta postura são, sobretudo, jovens oriundos de famílias materialmente mais desfavorecidas, com trajectórias escolares muitas vezes caracterizadas pelo abandono desqualificado,7 e coincidente integração no mercado de trabalho, com o objectivo inicial de obter algum dinheiro de bolso para realizar os seus consumos expressivos. São geralmente absorvidos por um segmento do mercado de trabalho que não oferece mais do que lugares contratualmente precários e pouco exigentes do ponto de vista qualificacional, entre os quais saltitam em regime de intensa rotatividade. Mas mesmo entre os jovens com trajectórias pautadas pelo sucesso escolar, designadamente consagradas através da entrada na universidade, esta opção é perspectivada de um ponto de vista instrumental: a universidade serve-lhes como meio para a obtenção de um diploma que os credencie para o exercício de uma profissão e facilite o seu acesso a um meio de vida melhor remunerado.

Até uma certa idade, até começar a trabalhar, não tinha muitas posses, a minha mãe é que me sustentava os estudos. Não quis saber dos estudos, tenho até ao sétimo ano unificado. (…) Não quis saber dos estudos porque comecei a trabalhar cedo [15 anos], nunca tive muitas posses. (…) Eu, se quisesse ter uns ténis de marca, já podia ter uns ténis de marca, porque até então nunca tinha tido nada de marca. (…) O primeiro trabalho foi numa fábrica de alumínios. (…) Depois da fábrica de alumínios trabalhei numa surf shop… (…) Depois de trabalhar aí fui trabalhar nesses seis, sete meses, para uma fábrica de envelopes. (…) Fiquei nessa fábrica um ano mais ou menos. Saí dessa fábrica (…) e comecei a minha vida de estafeta. (…) Depois corri vários trabalhos como estafeta, mas estive um mês em cada sítio. (…) Agora estou nesta editora, numa editora de livros… Estou a tratar do armazém e da reposição de livros. (…) Houve trabalhos que eu não referi porque não valia a pena, foram tipo três semanas, duas semanas. (…) Depois, nos tempos livres, temos que nos sentir bem seja a fazer aquilo que for, seja a limpar a minha casa de banho, seja a fazer música, tenho que me sentir bem, tem que me apetecer fazer (…), independentemente se dão futuro ou não. (…) Vou sempre tentar jogar até conseguir chegar aonde eu quero, que é a música. (…) Vai ser difícil, mas vou chegar lá, tenho muita esperança nisso. Não tenciono trabalhar em armazéns e coisas do género para o resto da minha vida. E trabalhar para os outros muito menos. Se não conseguir a música, hei-de trabalhar por conta própria. [Fiel de armazém, 7.º ano de escolaridade, sexo masculino, 23 anos]

Mais ou menos favorecidos, o sonho profissional destes jovens seria aceder a formas de trabalho criativo, autónomo e expressivo, de maneira a obter uma vivência integral dos valores inscritos no seu próprio projecto identitário. Seria obter uma ocupação ou um emprego que lhes permitisse conciliar, ou melhor, entrosar a vida profissional com a imagem, atitudes e práticas sociais que adoptaram na sua esfera privada, por forma a conseguir realizar uma simbiose total entre as esferas da produção e do consumo/lazer, e chegar à realização plena dos respectivos projectos de identidade e de estilo de vida. Daí o elevado valor que atribuem a actividades profissionais onde as suas marcas corporais possam ser publicamente assumidas, apreciadas e reconhecidas, como as actividades desenvolvidas no campo da música, por exemplo, ou da produção da imagem com a qual se identificam.

Na cena profissional, embora me mantenha numa firma há oito anos, na boa, ‘tás a ver, pá, não me considero em nada realizado. (…) Eh pá, eu gostava mesmo de fazer era que a música me desse dinheiro. Outra coisa, olha, não me importava de tatuar, ‘tás a ver. Não me importava…, ou não me importava de fazer piercings. (…) Pá, curtia ter uma cena dentro do meu estilo, se pudesse ganhar a vida com os meus gostos. Eh pá, foda-se! Isso é o sonho de qualquer um! [Electricista na construção civil, 8.º ano de escolaridade, 28 anos]

Como refere Helena Abramo, está-se longe do universo “da marginalidade da juventude dos anos 70, que havia buscado um rompimento com a mediocridade por meio de diversas fugas (para fora da família, para fora do sistema produtivo, para fora da cidade, para fora da racionalidade), e que havia dirigido seus movimentos para a natureza e para os céus, os nirvanas de vários tipos”. Hoje, os jovens adeptos de grupos de estilo com vivências e aparências mais extravagante “continuam trabalhando, ou procurando emprego, vivendo e estudando como antes” (Abramo, 1994: 146-147). No entanto, ao contrário do que a autora pressupõe, ainda que muitas vezes o desenvolvimento e a performance estilística desses jovens se mantenha na esfera do lazer e do consumo, as suas expectativas laborais passam, em grande medida, pela permanência no sistema produtivo e institucional através de actividades que permitam a articulação com a sua zona de gosto e necessidades expressivas.

Entre aqueles que conseguiram fazer da sua paixão pelas tatuagens e body piercing uma actividade profissional, o facto de cultivarem um estilo de vida celebratório, assente numa ética hedonista e convivial, não compromete a existência de uma forte ética de dedicação ao trabalho, concretizada num largo investimento de tempo e energia na actividade laboral. Trata-se de um investimento muito positivamente valorizado, na medida em que conseguiram transformar essa esfera da vida num pólo de realização e expressão pessoal, aí prolongando práticas, valores e atitudes habitualmente restritos à esfera do lazer e do consumo.

É notória a dedicação destes jovens à actividade laboral in scene, um trabalho que lhes absorve grande parte do tempo e lhes exige disciplina, empenhamento, brio, muitas vezes até sacrifício ou abnegação (ao exigir o trabalho aos sábados, por exemplo). Mas também, em compensação, um trabalho que lhes faculta um amplo sentimento de gratificação identitária e satisfação material, permitindo-lhes a conservação a tempo inteiro de um sentido de autenticidade e singularidade, a manutenção de um elevado padrão de consumo, bem como o prazer da expressão criativa e pessoal, desfrutado e reconhecido no âmbito de uma intensa rede de convivialidade. Ou seja, acabam por conjugar na sua actividade valores tradicionais da esfera do trabalho, com as expectativas expressivas e pessoais que ambicionavam realizar.

Fico aqui sábados, domingos, feriados, percebes? (…) Porque isto realmente me dá muito gozo, percebes? O dinheiro é uma coisa que vem depois. Primeiro o gozo, percebes? [Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]

Isto é tão complicado, esta onda da tatuagem e do piercing! As pessoas, às vezes, até podem pensar que isto é uma vida alternativa muito louca, mas não é! Isto é tatuagens das zero horas à meia-noite, aos fins-de-semana, percebes? [Profissional de body piercing, estudante universitária, 27 anos]

Está-se perante a assunção de uma ética que não desvaloriza o trabalho, mas que relativiza o seu valor e reactualiza o seu significado, onde as características extrínsecas e as funções instrumentais do trabalho (como o rendimento, a estabilidade ou a segurança, por exemplo), sem serem denegadas, tendem a ser preteridas em relação às suas características intrínsecas e funções expressivas. O que acontece é uma ressemantização do conceito de trabalho, levando muitos jovens a sonhar com o prolongamento à esfera laboral da vivência e celebração dos valores que partilham na sua esfera privada e lúdica da vida: a expressão, a criatividade, a autenticidade, o prazer, a realização pessoal que proporciona.

Vidas de artífice da marcação corporal: motivações, circunstâncias e trajectórias

Fazer das marcas corporais um métier representa uma forma de concretizar em pleno um estilo de vida pautado pelos valores da liberdade, tolerância, autonomia, prazer, autenticidade e singularidade, possibilitando um meio de subsistência lucrativo que não compromete a distintividade individual e a expressão imagética do self. O mercado é florescente e, apesar de rejeitarem o materialismo que identificam na cultura de consumo, a rentabilidade é uma das motivações para enveredarem por este caminho profissional, que consideram lucrativo. A onerosidade das marcas corporais é um facto constantemente relembrado pelos entrevistados, quer profissionais, quer apenas consumidores.8

Isto paga-se, as tatuagens pagam-se caras, os piercings nem tanto, não é? Mas as tatuagens pagam-se bastante caras. [Professora no ensino secundário, licenciatura, 32 anos]

Sendo um trabalho disponível aos excessos imagéticos cometidos pelos seus praticantes, serve os propósitos de realização integral de uma subjectividade que se conhece e se pretende reconhecida na sua distintividade perante o “banal” e o “estereótipo” dos visuais dominantes, e que, por isso mesmo, vê na dimensão profissional um entrave à sua plena assunção e reconhecimento social. Constitui, portanto, um meio de vida que permite aos seus protagonistas fugir das coações sociais que confinam as imagens corporais associadas ao exercício de actividades profissionais mais tradicionais, possibilitando-lhes a assunção e a manutenção de uma identidade coerente, estável e durável na esfera laboral, sem ter que sair de si durante uma fase da vida ou uma parte do dia.

Eu, talvez porque tenho uma profissão que me deixe ser eu, posso dar mais azo a isso tudo e me modificar. [Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]

Eu sou um bocadinho um exagero. Também me é mais fácil fazer estas coisas. E as outras pessoas também têm aquelas condicionantes de trabalhos, que eu não tenho, não é? [Profissional de body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 34 anos]

É na perspectiva da capacidade de assunção social da imagem associada a determinado projecto identitário e estilo de vida, que actividades profissionais que permitem a manutenção ou a exploração dos limites das imagens corporais, como é o caso da prática de tatuar e de perfurar o corpo alheio, são hoje altamente valorizadas e expressivamente investidas por quem as adopta enquanto recursos na construção de um self distintivo. Aliás, um dos aspectos chave das “novas economias urbanas” identificado e analisado por Ball, Maguire e Macrae (2000) é justamente o papel particular das competências e atributos de aparência e apresentação habitualmente exigidas aos seus trabalhadores efectivos ou potenciais, o que remete nitidamente para a valorização e operacionalização do suporte corporal enquanto capital específico, capital físico (Shilling, 1991), neste caso, mais na sua natureza imagética que cinética.

O corpo extensivamente marcado destes jovens não só não fica sujeito a viver na penumbra da sua actividade laboral, como, pelo contrário, passa a ser altamente valorizado e susceptível de ser profissionalmente capitalizado como catálogo de trabalho, espécie de obrigação do produtor face à expectativa esperada no consumidor. Apesar de afirmar socialmente uma estética divergente da norma da estética corporal dominante, também o corpo marcado dos jovens tatuadores e body piercers acaba por estar sujeito a uma disciplina na imagem publicamente apresentada enquanto cartão de visita da actividade profissional. Ainda que de aparência indisciplinada, o corpo do profissional da marcação corporal está comprometido com uma determinada ordem imagética, orientada por critérios estéticos de não conformidade com as normas dominantes.

Desta forma, o jovem extensivamente marcado não apenas tem a possibilidade de prolongar na sua vida social a respectiva identidade imagética, como até dela consegue retirar dividendos simbólicos e financeiros: por um lado, fá-la operar como facilitadora de cumplicidades estéticas e éticas com as suas clientelas mais rituais, potenciando uma relação de fidelização; por outro, com ela sugere expertise e dá confiança ontológica aos consumidores ainda não iniciados.

No meu trabalho, é sempre importante eu mostrar certo tipo de visual. (…) A primeira impressão conta muito. (…) A impressão que a pessoa tem que dar a outra que entra na loja, é que é uma pessoa que está dentro do assunto. (…) Tenho a obrigação de mostrar pelo menos qualquer coisa para dar confiança às pessoas. [Profissional de body piercing, 8.º ano de escolaridade, sexo masculino, 23 anos]

Para este género de actividade convém uma pessoa servir de mostruário para a própria actividade em si. Provavelmente as pessoas confiarão ou estarão mais à vontade com alguém que os tem, porque serve de exemplo. E serve também como forma de deixar a pessoa mais à vontade. [Profissional de body piercing, frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]

A sua opção por este tipo de ofícios não decorre, todavia, de uma escolha previamente preparada e pré-determinada no seu horizonte de expectativas laborais. Não se sonhou, desde cedo, ser tatuador ou body piercer, ao contrário das mais clássicas profissões de natureza artística, onde muito cedo se “descobrem” e “encaminham” as vocações.9 Raramente o jovem tem, a priori, como objectivo de vida, tornar-se tatuador ou body piercer profissional. Perante a perspectiva ou a vivência efectiva de trajectórias laborais marcadas por experiências de intensa rotatividade, precariedade, risco de discriminação e insatisfação pessoal, a hipótese de vir a tornar a sua paixão de consumo numa fonte de rendimento regular e proveitosa começa a vislumbrar-se, a dado momento das vidas destes jovens, como uma alternativa viável à instabilidade laboral, ao desemprego e ao emprego desconsolador.

Mesmo para os potenciais ou efectivos portadores de formação artística, a tatuagem constitui uma opção de carreira sedutora perante as dificuldades de integração sentidas em outros campos da produção cultural, onde as oportunidades de trabalho simultaneamente criativo e lucrativo são muito limitadas (como a pintura ou a escultura, por exemplo, ou até mesmo a música, área cujos canais de difusão e de profissionalização são igualmente difíceis de aceder). Daí muitas vezes esses jovens acabarem por renunciar à sua prévia carreira formativa, beneficiando, ainda assim, de todo um capital de formação visual e técnica gráfica importantes no métier de tatuador.

Eu trabalhei quinze anos com moda, e nunca na minha vida tinha pensado nisto, percebes? E é engraçado, porque começou da gente se conhecer [ela e o actual companheiro, na altura designer gráfico], e por começarmos a estar os dois, e acabou por ser uma coisa a dois. (…) Juntámos às tatuagens umas roupas… Eu tinha uma sócia, ele tinha um sócio. (…) Pronto, [ele] tirou o curso de aerógrafo, montes de coisas, trabalhava num ateliê de design e publicidade, e foi muito mais fácil de chegar à tatuagem. Quando começou a tatuar, claro, começou durante uns bons tempos em casa. Tem uma vivenda e tal, tatuava em casa. Até que surgiu a ideia: “ah, vamos abrir uma loja. [Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]

Por outro lado, é quase sempre acidentalmente que a perfuração corporal, na sua versão tatuagem ou body piercing, é encontrada como alternativa ocupacional viável. A entrada profissional neste circuito é relativamente casuística e impelida por uma série de contingências situacionais. Mais do que a obsessão, são as circunstâncias (Melo, 1988)10 que, a dada altura das respectivas trajectórias de vida, impelem jovens já extensivamente marcados a “descobrir” a sua inclinação para este tipo de práticas, bem como os talentos particulares que as envolvem, levando-os a equacionar a sua possibilidade enquanto forma de subsistência, possibilidade laboral vantajosa, meio de manutenção e de celebração de um estilo de vida.

Eu gostava muito de tatuagens, como tu sabes. (…) E tinha uma tatuagem que não gostava, uma dessas feitas em Londres, que queria tapar. E fui então à B. B. Comecei a dar-me bem com eles, porque comecei a querer mais coisas e mais projectos e não sei quê. (…) E então demo-nos imediatamente bem. E, de repente, houve necessidade de alguém para fazer body piercing, e eu nessa altura não estava a fazer nada. Só tocava, mas já estava a ficar um pouco farta também. E surgiu essa oportunidade… Era preciso alguém. E em conversa de café, que foi mesmo conversa de café, eu disse “eh pá, olha, eu acho que se calhar isso até eu gostava de fazer!”, mas mesmo sem segundo sentido nenhum. E eles apanharam a frase e disseram-me “Então é mesmo assim, vais para casa, pensas…”, foi quase isto. E em quinze dias eu estava em Londres, estava a aprender, e depois comecei logo a trabalhar. Portanto, foi mesmo assim, não foi nada, nada, nada pensado. [Profissional de body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 34 anos]

Ainda que, num primeiro momento, as trajectórias de vida destes indivíduos possam revelar alguma dessocialização relativamente ao mundo do trabalho, orientada por uma forte ética convivialista e hedonista que os leva a diferir a inserção profissional e a prolongar o mais possível a sua condição juvenil, num segundo momento a trajectória profissional desenvolve-se segundo um modelo de busca autónoma (Pais, 2001: 411), onde se descobrem vocações e se potenciam capitais vários, acumulados sobretudo (mas não exclusivamente) em socializações “de rua”, mais intersticiais que institucionais.

Capitais culturais que integram competências técnicas e estéticas adquiridas por osmose através da convivência com o circuito da perfuração corporal enquanto consumidor, através de experiências profissionais anteriores, ou ainda através da frequência de cursos e/ou disciplinas artísticas ou para-artísticas no sistema formal de ensino. Mas também capitais sociais que integram toda uma rede de relações acumuladas no âmbito das sociabilidades microgrupais de que estes jovens foram participando, capital esse que vai servir de espaço social de publicitação e recrutamento de clientelas. É no cruzamento da vivência desses contextos particulares de vida, caracterizados pela proximidade de mundos “alternativos” e socialmente circunscritos a espaços microculturais, que estes jovens começam por delinear as suas estratégias de inserção profissional, induzindo atitudes específicas perante o trabalho.

Os tatuadores e body piercers da nossa praça, sobretudo aqueles que estiveram na génese deste movimento em Portugal, nos idos anos 80 e 90, são indivíduos que, efectivamente, desde a sua adolescência, seguiram rotas de ruptura, de desvios múltiplos, itinerários de vida que habitualmente não são encarados como os caminhos “mais apropriados”. Tais itinerários abrangem três tipos relativamente distintos de trajectórias sociais: um primeiro tipo corresponde a uma trajectória de exclusão social, efectiva ou iminente, a qual implica o abandono precoce e desqualificado da escola por parte do jovem, decorrente de uma trajectória educativa relativamente mal sucedida, com o objectivo de vir a ganhar algum “dinheiro de bolso” que lhe permita aceder a pequenos sonhos de consumo e se autonomizar perante uma família de origem dotada de poucos recursos materiais e culturais, frequentemente pouco estruturada do ponto de vista afectivo, ou já decomposta do ponto de vista social.

No decorrer deste tipo de trajectória, estes jovens defrontaram-se com uma intensa rotatividade entre trabalhos pouco qualificados e precários, alternando com períodos de desemprego, muitas vezes aproximando-se tangencialmente ou chegando mesmo a mergulhar em várias formas de delinquência, não só como modo de celebrar a vida, mas também de ganhá-la. Para os jovens que já tinham enveredado por trajectórias de exclusão, a opção laboral pelos ofícios de marcar o corpo acaba por funcionar como forma de se reconciliarem socialmente, de se (re)adequarem ao sistema de que tanto se demarcam, aproveitando, contudo, as brechas que nele abrem para a produção de modos de vida escapatórios.

Vim para cá [para Portugal] com 9 anos e estive em casa da minha madrasta, no Bairro Alto. (…) O meu pai foi no 25 de Abril. (…) Ele teve que fugir para a África do Sul, ou seja, estive 18 anos sem o ver. (…) A minha mãe ficou em Moçambique, ela já não sai. (…) Nunca tive esse contacto directo com os familiares, prontos, mas tive com outras pessoas e que para mim foram os meus familiares. Mas, claro, eles não eram ninguém para se oporem a nada daquilo que eu ia fazer. (…) Mais tarde, realmente já estava mesmo a precisar, já estava com dois anos seguidos a dormir na rua, dois Invernos que eu passei e que não desejo a ninguém, e eu… Tive mesmo que me pirar para casa dos meus tios. (…) Estudar, estudei só até ao 8.º e marimbei-me. Marimbei-me da escola. Ao fim ao cabo, comecei muito cedo a trabalhar, e depois comecei a ter aquela coisa de dinheiro no bolso, ninguém me agarra! (…) E depois comecei a entrar em… em ondas também assim um bocado… um tanto ou quanto… que não me levavam mesmo já a querer estudar. E então borrifei-me para escola. Prontos, comecei naquelas ondas das ganzas e, prontos. (…) [Em termos profissionais] Posso dizer que sou o homem dos sete ofícios… (…) Eu comecei a trabalhar para uma marcenaria aos 12 anos… (…) Depois passei por estucador, estive numa casa de alumínios, e depois da casa de alumínios voltei novamente para marcenaria, não a mesma, mas outra. Saí daí e fui para uma anodização, depois saí da anodização, voltei outra vez para uma casa de alumínios. (…) E depois, mais tarde, fui trabalhar para uma fábrica de material eléctrico. E depois saí, porque aquilo, entretanto, fechou… E fui trabalhar para uma fábrica de tectos falsos. (…) E depois assim que saí dessa casa voltei novamente para uma marcenaria. E depois… saí daí, e estive bastante tempo parado, estive para aí coisa de dois, três meses parado e… e comecei a pensar “Não, vou montar qualquer coisa, porque eu já estou farto de estar a trabalhar para os outros! Então, mas eu tenho muita coisa na minha cabeça que eu sei fazer, porque é que eu não hei-de fazer alguma coisa que tenha a ver comigo?!…” Ou seja, depois fui trabalhar para as obras e… consegui orientar uns dinheiros a mais, comparado com aquilo que era o ordenado mínimo. Então foi daí que me lancei. Lancei-me e comecei mesmo a fazer tatuagens. [Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]

Outro tipo de itinerário de vida encontrado remete para uma trajectória de desajustamento social, a qual implica uma deriva, um saltitar constante do jovem entre várias áreas vocacionais, cursos e/ou empregos, sempre sentidos como pouco estimulantes, muitas vezes comprometedores da sua ética de vida e incompatíveis com o seu projecto corporal, identitário e de estilo de vida. A escola, no início da adolescência, é vivida como uma instituição prescritiva, que entra em confronto com uma ética de vida que valoriza a liberdade de acção, o prazer e o gosto pessoal. Mesmo quando é oriundo de famílias altamente escolarizadas, a escola tem pouca relevância, no que respeita aos seus aspectos formais e curriculares, no mundo social “real” dos jovens com este tipo de trajectória. Por consequência, o desinteresse pelas matérias e o absentismo escolar, embora sem redundar inevitavelmente em insucesso e abandono, passa a fazer parte dessa trajectória. A vivência escolar é feita, sobretudo, nos interstícios da instituição, ou seja, nos espaços de convivialidade e de experimentação que proporciona, os quais frequentemente se prolongam para fora dos limites físicos da escola.

Neste contexto, com a cooperação tácita ou negociada por parte de uma família economicamente estável e que deposita expectativas no futuro do jovem, este não abandona a escola e procura sucessivamente encontrar uma opção escolar e/ou laboral que satisfaça as expectativas dos pais e, simultaneamente, os seus próprios anseios de realização expressiva. Tentando supri-los pelo lado do consumo, o jovem entrega-se a alguns “biscates” de forma instrumental, de forma a ganhar algum dinheiro de bolso, entre os quais a perfuração do corpo. Até equacionar esta possibilidade enquanto carreira profissional viável, relativamente estável e durável, prazerosa e lucrativa, conciliando um projecto laboral e de vida.

Até ao 10.º ano era um aluno excelente. Depois, começaram a surgir outros interesses e deixei de ser o aluno excelente e passei a ser um aluno medíocre, que quase não ia às aulas, que chegava aos pontos e descarregava aquilo que sabia, tirava umas notas relativamente altas em relação ao resto da turma, mas todos os professores diziam que podia fazer melhor se me empenhasse. Depois, quando cheguei à universidade, meteram-se as drogas à mistura, meteram-se as mulheres à mistura e descambou completamente… (…) Lá está, o estudo, não é só o gosto pelo saber, é também o ter de saber certas e determinadas coisas que nos são impostas, e é com isso que me dou mal. (…) [… foste para a faculdade…] Fui, mas fui por imposição do estereótipo, lá está! O primeiro [curso] — porque eu sou o chamado pára-quedista universitário — foi estudos europeus na Universidade Moderna. Não tinha absolutamente nada a ver comigo, mas como uma das disciplinas que eles pediam era inglês e era das que eu tinha, lá fui. Arrependi-me. (…) Depois estive dois anos em Castelo Branco na área de tradução e relações internacionais, com uma componente de tradução bastante mais forte do que de relações internacionais. E depois fartei-me de Castelo Branco e fui parar ao ISLA, também num curso de tradução… (…) Tenho o primeiro ano, não tenho canudo nenhum… (…) Mas não é nada que eu não tenha em mente um dia mais tarde vir acabar, este ou aquele ou aqueloutro curso. Mas não é prioridade neste momento. (…) Já fiz tudo, desde obras, já trabalhei como pintor, já trabalhei como servente de pedreiro, já descarreguei camiões, ou seja, já estive na estiva, já lavei pratos, já andei a distribuir publicidade nas caixas do correio, já fiz tradução, já passei trabalhos a computador, já fiz uma série de coisas… (…) [Sempre expedientes para arranjar algum dinheiro…] Pois, exacto, claro… Cá em Portugal e lá fora no estrangeiro. Em Inglaterra. (…) Aí mesmo por necessidade, senão passava fome e acabava na rua. Caso contrário, em casa dos meus papás há comida na mesa e roupa lavada… [Profissional de body piercing, frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]

Por fim, encontramos ainda um itinerário de vida que envolve um forte compromisso por parte do jovem com uma trajectória de formação artística, frequentemente na área das artes visuais, que pode girar em torno da frequência de cursos profissionais, médios e/ou superiores de pintura, design gráfico ou fotografia, por exemplo, valência formativa que tende a ser mais encontrada entre os tatuadores, mas que não lhes é exclusiva. Continua a ser uma trajectória que, apesar de centrada no âmbito artístico e da produção cultural, não deixa de ser marcada pela rebeldia perante as prescrições da instituição escolar e a vivência hedonista e convivial dos seus interstícios, bem como a intermitência entre a frequência da escola e de actividades laborais precárias.

O ofício de tatuador e/ou de body piercer pode surgir, no âmbito destas trajectórias, quer sob a forma de carreira futura (situação que se destaca no caso da tatuagem), enquanto forma de capitalizar competências artísticas adquiridas formalmente numa área criativa ainda pouco explorada, quer sob a forma de “biscate” temporário para “desenrascar” uma conjuntura, ou seja, para obter algum rendimento enquanto a formação artística não é finalizada e não se está em condições de iniciar o trajecto profissional nesta área (mais frequente no caso do body piercing).

Eu nunca gostei de estudar, lá está! (…) Estava nos Olivais, sim! [depois mudei para a António Arroio…] Porque eu depois também tinha que mudar para algum sítio. E porque era a única escola que tinha as áreas que eu queria. Hoje em dia já há muitas, mas dantes, na minha época, havia pessoal que vinha do Algarve e do Porto e não sei quê para estudar ali. Eu, de facto, fui para cinema e fotografia, e era o único sítio. Depois também me revoltei com a escola e tudo também, por causa da matemática e da físico-química, e dessas coisas todas. Porque eu estava ali e tinha aqueles ideais todos artísticos, não é? E achava incrível ter de estudar aquelas disciplinas muito chatas, que eu achava que não me iriam servir nunca de nada. E depois também acabei por… só fiz o 10.º ano, depois deixei de estudar. E foi quando então fui para Londres e não sei quê. (…) Toda a minha juventude fui bailarina, bailarina clássica, não cheguei a profissional, estava no pré-profissional. (…) E depois comecei a não me identificar muito com aquilo, comecei a fumar charros e a beber copos e a ter uns amigos um bocado diferentes, e aquilo era muito, muito, muito, muito rígido, não era? Muito, muito, muito, muito rígido. E de vez em quando ia para lá assim meio estranha e distraidíssima e não sei quê, e desisti. (…) Fazia fotografia, e fui para o Ar.Co à minha conta, porque aquilo já era caro naquela altura, e ele [o pai] sempre achou que não, porque não tinha futuro! Não tinha futuro, a fotografia não tinha futuro. (…) Depois desisti, porque não tinha dinheiro. (…) De resto, a nível de profissões, eu tenho feito tudo, estou sempre a dar grandes reviravoltas. (…) Depois ia e vinha para Londres, ia e vinha para Paris, depois então… [Em Paris fizeste o quê?] Nada, gatunagem pura e simples, vida de rua, do mais… Posso mesmo dizer que os meus amigos eram todos delinquentes de primeira. Foi uma experiência muito engraçada, que não deixava para trás de modo algum. Nunca fiz nada. Andava por lá e divertia-me bastante. E depois vim… (…) E quando vim arranjei um emprego… (…) Foi um emprego muita giro, que eu aprendi muito e adorei, em que trabalhei — ainda foram uns bons quatro anos — numa galeria de arte. (…) Depois retomei o trabalho no E. D., e passados uns meses a B. B. Ainda coincidiu durante uns tempos, durante um bom tempo. Só quando isto começou a tomar as proporções que tu sabes, é que então não dava para as duas coisas, e como é óbvio, desisti, estava ali empregada de balcão, não é? [Profissional de body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 34 anos]

Apesar de bastante diversificadas, as circunstâncias que enformam as trajectórias destes jovens têm em comum uma vivência “de rua”, implicada numa ou em várias cenas ou ondas juvenis, onde os jovens começam por experimentar neles próprios e, por vezes, nos seus pares algumas versões mais exacerbadas de corporeidade, fora das tradicionais convenções físicas e simbólicas que regulam e disciplinam socialmente os corpos. É nesses contextos sociabilísticos que o “gosto” pelo consumo de marcas começa a desenvolver-se, transformando-se em projecto de corpo e de identidade. Em alguns casos, o gosto pelo consumo vai mais longe e transforma-se em gosto pela produção, quando o jovem intenta processos de aprendizagem e estratégias de profissionalização.

Aquilo que era apenas uma prática de consumo passa a ser encarado como uma “carreira profissional alternativa” (Craine, 1997), uma opção escapatória quer às carreiras desviantes (Becker, 1963) ou carreiras de lazer (MacDonald e Shildrick, 2007) que se abriam como possibilidade de modo de vida no âmbito de trajectórias marcadas por sucessivos fenómenos de exclusão social da sociedade institucional (da família, da escola, do trabalho) e de concomitante inclusão em redes e circuitos sociais alternativos e subterrâneos; quer às encruzilhadas profissionais vividas no âmbito de trajectórias caracterizadas por desajustamentos sociais sucessivos ou por formações artísticas sem grandes perspectivas laborais.

Lá está, foi uma luz que me acendeu assim. Ao princípio eu perguntava sempre… “Eh pá, porra, deixa-te de merdas! E o que é que eu vou ser?… E o que é que eu vou ser? Porra!! Eu ando sempre na rua, ando sempre bêbado, ando sempre maluco, grupos para aqui e para ali, curto!! Mas o que é que eu vou ser? O que é que eu quero ser?” E, ao fim ao cabo, sabia de muitas coisas que eu podia ser, e tinha dinheiro para me poder meter em qualquer negócio que eu quisesse, só que nunca me deu, porque não me dizia nada directamente. Era daquelas coisas que eu, eh pá… E a tatuagem foi daquelas coisas que eu disse, assim que eu comecei a tatuar… (…) Acho que é aquilo que tem a ver comigo e com o que eu me identifico mais. (…) Porque eu posso trabalhar e fazer aquilo que eu quero, tenho o meu aspecto e não, prontos, é… (…) é esta a imagem que eu quero ser. (…) Já estava com aquilo na cabeça: “não vou mais trabalhar para os outros!” Ou seja, se eu me vou mutilar todo e se vou fazer isto assim e assado, é porque eu estou a escolher um modo de vida. (…) Só quero fazer aquilo que me está a apetecer, aquilo de que eu gosto! (…) É o meu vício, é tatuar. É daquelas coisas que eu gosto mesmo muito, e tenho prazer! [Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]

Às portas de um mercado de trabalho saturado, lotado, e que os discrimina, patologiza e receia, tatuadores e body piercers crêem que, ao optar por este rumo de vida, seja na forma de carreira ou de “biscate” improvisado, deixam de ter grandes possibilidades de reversibilidade na trajectória. O compromisso com a divergência corporal e com a dissidência social que advém dessa escolha é por eles percebido como uma viragem sem retorno na política e no estilo de vida. Ora, se tal situação, à partida, poderia ser percepcionada pelos próprios como um facto limitativo do seu futuro, acaba por ser extremamente valorizada.

Na medida em que percepcionam as convencionais estruturas do mercado de trabalho como espartilhos institucionais da sua forma de ser, de se apresentar e de se representar socialmente, a opção laboral pela perfuração corporal representa o compromisso integral com uma estética e uma ética de vida, uma escolha que garante uma coerência, estabilidade e durabilidade identitária pouco provável de conseguir através de empregos out scene. Daí que o momento da tomada de decisão por essa opção corresponda, frequentemente, a uma etapa do projecto corporal desses jovens em que muitas das tatuagens e outras marcas já previstas começam a exceder os limites corporais potencialmente disfarçáveis com o uso de indumentária.

Na altura, quando eu pensei em fazer esta tatuagem [na cabeça], foi exactamente porque me tinha apercebido que iria conseguir, nos anos futuros, conciliar a minha vida de eterno adolescente, se assim quiseres, com o aspecto profissional do piercing. Ou seja, o facto de poder estar a fazer algo de que eu gostava realmente, e que me permitia levar a minha vida sem problemas. Ou seja, eu conseguiria conciliar as duas coisas: o útil e o agradável. Então aí, a minha máscara, esta, que é a minha máscara, ia ter razão de ser. (…) Nesta altura já eu me começava a sentir dono de mim mesmo, não tinha que receber pressões externas, não tinha que me preocupar com “o que é que vai ser de mim daqui a uns anos quando eu precisar de arranjar emprego?!…” (…) E não me enganei! Não me enganei de forma alguma. Está provado que, se eu quiser, posso viver perfeitamente com aquilo que o piercing dá. (…) O facto de eu ter descoberto o body piercing permitiu-me, permite-me ainda, praticar aquilo que gosto, fazer aquilo que gosto em termos daquilo que é o invólucro ou a apresentação do visual. Agora, é verdade que algures ao longo da linha, comprometemo-nos de tal maneira que já não podemos voltar atrás. [Profissional de body piercing, frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]

Neste cenário, a passagem destes jovens pelas ditas ondas ou cenas juvenis, enquanto fase de “descarrilamento” juvenil que acaba, mais tarde ou mais cedo, por voltar a entrar nos eixos, acaba por não ser tão fugaz, esporádica ou fortuita quanto se poderia à partida prever. Ao contrário do que Maffesoli pressupõe, o ingresso precoce em universos neotribalistas, no caso dos jovens profissionais entrevistados, acabou por resultar em progresso ao longo das suas trajectórias de vida (2004: 149), onde um compromisso cada vez mais empenhado com uma política de vida dissidente e um estilo de vida celebratório se foi forjando e expressando corporalmente.

As artes dos ofícios de marcar o corpo: talentos, aprendizagens e disciplinas

O reconhecimento social dos artífices do corpo enquanto artistas e profissionais no circuito da marcação corporal, implica a avaliação da qualidade da performance da inscrição no corpo de outrem na sua dupla dimensão de exercício estético e de conduta de risco. Essas dimensões envolvem a posse de conhecimentos específicos ou, na acepção de Giddens (1995 [1990]), de sistemas periciais associados a cânones técnicos e artísticos, bem como a saberes e disciplinas de natureza clínica e sanitária. A dimensão de exercício estético é particularmente valorizada no caso da tatuagem, forma cultural sobre a qual decorre, a partir do circuito onde é produzida e comercializada, um processo de dignificação e legitimação simbólica enquanto forma artística.

Trabalhando com um procedimento expressivo ainda, em grande medida, sujeito aos cânones do sistema de classificação simbólica e de judicação estética próprios do paradigma da arte “clássica”, espera-se de um “bom tatuador”, em termos estéticos, que consiga transpor para a epiderme a ideia conceptualizada pelo cliente. O tatuador é o concretizador do imaginário do cliente, da sua originalidade conceptual, funcionando o rigor no pormenor e o realismo como características estéticas mais valorizadas no reconhecimento da artisticidade da obra (em contraposição ao que reconhecem como alguns excessos abstraccionistas ou conceptuais). Tal como os clássicos do naturalismo, quanto mais próximo da realidade conseguir ser o trabalho do tatuador, mais considerado será no interior do circuito profissional. E se for “à vista”, isto é, se demonstrar capacidade de concretização imediata, de improvisação, sem passar previamente por um molde em papel, mais talento lhe é atribuído.

Os principais requisitos periciais para vir a ser um bom tatuador decorrem directamente dos próprios critérios de legitimidade artística da tatuagem, exigindo-se ao profissional, fundamentalmente, que tenha uma mão firme e domine as técnicas do desenho. Tal como no sistema da arte “clássica”, o talento é visto como um dom, sendo conotado com o “jeito para o desenho”. Esse talento reveste-se de uma precisão de relojoeiro na reprodução epidérmica do desenho projectado, tanto mais quanto os seus traços são encarados como definitivos.

Qualquer um de nós podia fazer piercings, mas nenhum de nós pode fazer tatuagens se não tiver um perfil de desenho muito forte. (…) Oh pá, porque a arte é aquilo que tu vês, que tu transpões de um papel para a pele e que fica igual. (…) Preocupam-se com aquelas esculturas horríveis, eu acho, uma pedra sobre pedra, “que lindo! É Escultura!”. Mandam-me duas latas de tinta para a parede — “Arte! Tão giro!” E porque é que olhas para aquilo? Eu não vejo nada! Eu fazia aquilo, qualquer um de nós aqui fazia aquilo! “É arte!” (…) Por exemplo, tu viste aquela perna, é de um realismo muito forte. Há pessoas que não fazem aquilo, não é? (…) Pronto, pessoas que chegam aqui com sonhos que não sabem explicar, eles [os tatuadores] transpõem para o papel, pá, a ideia das pessoas: “é mesmo isto, só que eu não encontrava em lado nenhum!” [Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]

As competências dos tatuadores, contudo, não estão confinadas à sua perícia figurativa com agulhas de pistola. A esta competência estética, acrescem competências de ordem técnico-expressiva — relativas à definição dos contornos e sombreados, à solidez e brilho das cores utilizadas, à adequação do desenho, na sua dimensão e características particulares, à anatomia específica do corpo do cliente —, bem como ainda competências colaterais ao exercício estético da actividade, como sejam as de ordem sanitária, comunicacional e empresarial.

Um artista na tatuagem é assim, logo que expresse o tipo de trabalho que tu à partida idealizas, para mim é um bom tatuador. (…) Agora, a maneira como o fazem, a higiene que têm, todo o tipo de cuidado que têm com o trabalho, a maneira como deixam o cliente à vontade, isso também é importante. Todo esse tipo de qualidades elege qualquer um como bom tatuador. [Cozinheiro, frequência universitária, 28 anos]

A estas competências, adquiridas em contextos de socialização e formação múltiplos, há ainda que juntar a capacidade criadora do tatuador, ancorado nas idiossincrasias pessoais que o indivíduo mobiliza e faz jogar no seu trabalho de criação, processo de personalização expressiva que, em última instância, irá definir um estilo pessoal. Como no maneirismo seiscentista, a tatuagem pode ser identificada como sendo executada à maneira de. É justamente na perspectiva do respeito pela dimensão autoral patente em cada estilo pessoal que, no universo dos tatuadores, existe tacitamente instalada uma regra fundadora da sua deontologia profissional: a de nunca acabar os trabalhos iniciados por outros tatuadores, de forma a respeitar o estilo dessoutros e, sobretudo, não comprometer a singularidade já reconhecida ao seu próprio estilo. Nestes casos, a hipótese artisticamente mais séria será cobrir a anterior tatuagem com uma inteiramente nova.

Todos os tatuadores têm o seu estilo, não é? Mesmo uma pessoa a desenhar não é igual, não há pessoas que desenhem da mesma maneira. E com os tatuadores é exactamente a mesma coisa. Todos eles têm o seu estilo. (…) Então é preferível uma pessoa ter uma certa continuação. (…) Às vezes chega-me aqui uma pessoa e diz-me “eu fiz um trabalho, mas não foi feito aqui, e agora queria acabá-lo.” Nós não acabamos esse trabalho. Podemos fazer outro trabalho diferente, mas não acabamos esse trabalho, porque isso é um trabalho feito por outra pessoa. Nós não temos o direito de estragar um trabalho que está feito por outra pessoa. E é uma certa norma que as casas têm tendência a cumprir. É daquelas coisas que não é preciso estar escrito em lado nenhum, não é lei nenhuma, não é, mas que é uma norma que as pessoas cumprem. [Profissional de body piercing, 8.º ano de escolaridade, sexo masculino, 23 anos]

Mais artífice do que artista, do body piercer são esperadas, fundamentalmente, competências periciais de natureza técnica que incluem, sobretudo, conhecimentos teóricos de anatomia e conhecimentos práticos sobre procedimentos de pequena cirurgia, higiene hospitalar e primeiros socorros, ficando a dimensão estética em grande medida reduzida à apreciação da conformidade entre as características do objecto incorporado (no seu volume, forma e cor) e as características da zona corporal a incorporar.

Se houver uma pessoa que chegue aqui e me perguntar qual é o piercing que lhe fica melhor no umbigo, eu posso dar-lhe a minha opinião. (…) Às vezes as pessoas não têm muito bem a noção dos piercings que escolhem. (…) Mas o piercing não é só a parte do furo, é tudo o que envolve o material todo, desde material que é preciso esterilizar, a material que não vale a pena esterilizar, que é logo deitado fora — que é o caso das agulhas que te furam, que são deitadas fora para uma embalagem para depois levar para uma farmácia. (…) Uma pessoa nunca sabe quem é que vem fazer o piercing, nunca sabe se tem doenças contagiosas, se não tem doenças contagiosas. Portanto, há sempre o máximo de segurança, e há normas de segurança que as pessoas têm sempre que cumprir. [Profissional de body piercing, 8.º ano de escolaridade, sexo masculino, 23 anos]

Na medida em que são práticas corporalmente invasivas, a tatuagem e o body piercing não são inócuas de riscos se não forem praticadas mediante rigorosas regras de assépsia. Os profissionais da marcação corporal lidam frequentemente com sangue e outros fluidos de desconhecidos, pelo que, sem meticulosas precauções de higiene e esterilização, determinadas doenças podem ser transmitidas de um cliente a outro ou ao próprio profissional por negligência deste último (Greif, Hewitt e Armstrong, 1999; Millner e Eichold, 2001).

É nesta perspectiva que se denota no discurso social produzido e reproduzido a propósito da tatuagem e body piercing uma forte ênfase na sua dimensão de conduta de risco e, consequentemente, na necessidade de competências e disciplinas profissionais que acautelem a higiene e saúde pública nos estúdios onde são exercidas. Programas, reportagens e discursos quotidianos (incluindo os dos próprios profissionais, bem como os sítios dedicados a este tipo de práticas na Internet), são em grande medida focalizados na questão dos riscos de saúde que a incorporação deste tipo de marcas implica, destacando o perigo de contrair doenças infecto-contagiosas, de contrair infecções, ou de ter reacções aos materiais ou tintas introduzidos na epiderme.

O recente “renascimento” da tatuagem e body piercing, com a sua integração nas indústrias de design corporal, consequente profissionalização dos seus praticantes e alargamento social das respectivas clientelas, veio nessa medida integrar um aparatoso processo de higienização (Costa, 2004) e medicalização (Albuquerque de Braz, 2006; Siorat, 2006) dessas práticas. Tais processos traduzem-se quer na preocupação dos produtores com a construção de uma imagem de assépsia sobre os seus estúdios, equipamentos e procedimentos, quer na utilização e prescrição de produtos medicinais utilizados durante e após a intervenção,11 uma mais-valia simbólica na legitimação social da sua actividade e respectivos resultados estéticos.

O estúdio deve espelhar as regras básicas de assépsia, o que faz com que, em muitos deles, os seus responsáveis tenham o cuidado de, aos clássicos elementos de uma estética neobarroca habitualmente dominantes na sua decoração, juntar outros elementos que remetem para um cenário medicalizado e moderno: um cenário que transpareça higiene, assépsia e vigilância clínicas, por forma a combater a imagem da actividade como “trabalho sujo”, a credibilizar a reputação do estúdio e dos respectivos profissionais, e a conceder um maior nível de confiança ontológica às novas clientelas levadas pelo recente renascimento das marcas corporais. É nesta medida que muitas vezes se encontra o body piercer ou, por vezes, até o tatuador, dotado de toda uma parafernália paramédica, desde a maca ou a marquesa à bata branca, das luvas às máscaras cirúrgicas, evocando a respeitabilidade e a credibilidade social conferida às práticas invasivas efectuadas pela medicina convencional.

Hoje, numa área onde não há qualquer tipo de legislação que regule este tipo de práticas,12 é relativamente fácil um qualquer iniciado encomendar o material necessário para tatuar ou perfurar a pele, e instalar-se por conta própria. Situados num circuito altamente competitivo, muitos profissionais destacam a questão da desregulação da sua actividade, e insurgem-se contra esse vazio legislativo em Portugal, onde qualquer um pode exercer práticas de marcação corporal sem o mínimo de competências e condições sanitárias. Os ofícios da perfuração corporal continuam a carregar com uma reputação negativa, e essa situação contribuiu para a reprodução social do estigma historicamente enraizado que persegue os seus praticantes.

Eu acho que em Portugal está tudo um bocado errado porque não há legislação da parte da saúde que exija aos estúdios seja o que for, ‘tás a ver? Isto é tudo uma balda, cada um faz aquilo que quer, se a gente quisesse não tínhamos sequer uma desinfecção nenhuma aqui no estúdio, ou quem diz aqui diz noutro lado. Não somos obrigados a nada! Fazemos porque evidentemente achamos que é necessário, mas há pessoas que não acham que seja necessário. [Profissional de body piercing, estudante universitária, 27 anos]

As condições sanitárias e de assépsia em que as actividades são exercidas constituem, assim, um importante motivo de combate para inúmeros profissionais, preocupados com a má imagem veiculada por certos amadores (os scratchers), aparentemente mais ciosos dos lucros que da integridade física dos seus clientes, a trabalhar em condições de higiene muito duvidosas, com equipamento suspeito, etc., situação que acaba por conotar negativamente a própria actividade. A reputação do estúdio e dos profissionais que nele trabalham também é construída a partir da minimização do risco implicado na prática profissional, e não é do interesse de nenhuma das partes, produtores e consumidores, que haja razões para que se estabeleça qualquer espécie de desconfiança. Daí a urgência destes artífices na institucionalização de uma ética profissional, nomeadamente sob a forma de legislação, reguladora de competências e disciplinas técnicas e sanitárias, sujeitas a vigilâncias apertadas e sanções jurídicas.

Ainda que não institucionalizado, existe um conjunto de disciplinas implicitamente aceites entre os profissionais mais reputados no circuito da marcação corporal em Portugal, que vem a consubstanciar-lhes, tacitamente, um código de ética profissional. Inclui, sobretudo, regras do foro higiénico e sanitário, quer relativas aos equipamentos e procedimentos com que lidam quotidianamente nos estúdios, quer relativas aos direitos e deveres que enformam a relação do profissional com o cliente. A obrigação de passar ao cliente a informação necessária acerca das precauções e procedimentos a ter com a sua nova marca, nomeadamente nos primeiros tempos, em que o processo de cicatrização se desenrola, no sentido de prevenir eventuais focos de infecção e ter a melhor cicatrização possível, são pontos de honra na sua prática profissional.

Para além desta regra básica que concerne a pós-intervenção, o profissional tenta ele próprio definir e gerir a situação de interacção à partida, de forma a evitar eventuais problemas no desempenho da sua actividade. Fá-lo mediante a clara imposição de algumas disciplinas sobre o comportamento do cliente, normalmente expostas nas salas de espera dos estúdios, como a definição etária para ser intervencionado sem a prévia autorização parental (presencial ou por escrito), a recusa de intervencionar indivíduos que demonstrem estar sob o efeito de substâncias alcoólicas e/ou psicotrópicas, o direito que se reservam de recusar fazer determinados trabalhos estética ou ideologicamente contra os seus próprios valores, a recusa em continuar trabalhos começados por outros tatuadores (que preferem tapar e fazer um novo trabalho), ou ainda a recusa ou, pelo menos, a chamada de atenção para os riscos sociais que advêm de tatuar definitivamente zonas do corpo normalmente descobertas, como as mãos ou a face, o que pode ser interpretado como uma irresponsabilidade do próprio tatuador, evitando assim uma imagem pública negativa que pode comprometer a sua reputação enquanto profissional.

Perante este cenário, pode-se tomar a tatuagem e o body piercing como práticas de modificação corporal in-disciplinadas: in-disciplinadas no sentido em que, quando utilizadas extensivamente no corpo, tendem a integrar projectos que propõem um modelo de corporeidade dissidente perante os modelos legítimos de corporeidade; in-disciplinadas porque excorporam um modelo de corporeidade que, embora dissidente, converge nos códigos simbólicos que o produzem como nomos alternativo entre os seus usuários, não deixando de ser um modelo de corporeidade também sujeito a convenções e regras operativas que o regulam socialmente, quer na esfera do consumo, quer da própria produção, disciplinas essas que funcionam como importante pólo de avaliação do desempenho profissional e artístico dos profissionais entre pares.

O reconhecimento profissional do tatuador ou do body piercer não passa necessariamente pela obtenção de qualquer tipo de formação certificada, situação, aliás, praticamente inexistente no circuito. Embora a prática do body piercing já demonstre algum grau de institucionalização a este nível, com a oferta, no estrangeiro, de cursos de curta duração vocacionados para a transmissão de conhecimentos básicos em anatomia, técnicas de execução e regras de assépsia em pequenas intervenções corporais, os profissionais entrevistados que os frequentaram tendem a desvalorizar esta modalidade formal de aprendizagem relativamente às aprendizagens decorrentes das suas experiências concretas. Desses cursos valorizam, fundamentalmente, o certificado que ratifica a sua frequência, o qual é habitualmente exposto numa parede visível do estúdio onde trabalham, como forma de credenciação junto do cliente, concedendo uma aparência de legitimidade formal e institucional da prática que pode tranquilizar este último.

Quando comecei a fazer, fui autodidacta. Tive formação depois, quando fui a Inglaterra, mas já foi por auto-sugestão, ou seja, porque havia, e porque há muita gente a entrar nos estúdios e a perguntar onde é que aprendeste, como é que fizeste, e tal. E não há profissionais, ou não há mais profissionais, em Portugal, que tenham diplomas. Do meu conhecimento, creio que não há. Talvez porque é mais um ponto de valorização em relação aos outros. [Profissional de body piercing, frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]

Isto é uma arte liberal, isto é uma arte que não tem… Não temos nenhuma ajuda, lá ‘tá, não temos nenhuma escola que fundasse isto e que desse a conhecer a quem quisesse aprender, para depois podermos usufruir daquilo que aprendemos ali. Não temos essa coisa cá, isto ainda anda assim um bocado abandalhado. (…) Ou seja, se não souber fazer e não tiver ninguém que lhe ensine, tem que ir lá para fora, aprende e vem para cá, e vai fazer aquilo que aprendeu. Ou então tem que estar ao pé de alguém, ou ter jeito para aquilo e desenrascar-se conforme sabe. [Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]

A aprendizagem é tendencialmente realizada segundo um modelo autodidacta, não um autodidactismo heróico tradicionalmente celebrado nos circuitos artísticos de visão mais romântica, que aspira à total autodeterminação e autonomia na aquisição de conhecimentos, resistindo e recusando as formas de aquisição de conhecimento, mas um autodidactismo de busca autónoma, característico dos mundos artesãos, onde as formas tradicionais de aquisição e reprodução de competências nunca foram institucionalizadas, ou seja, controladas e reproduzidas por instituições socialmente reconhecidas e legitimadas para tal (Bézille, 2003). No circuito da perfuração corporal, as competências começam por se adquirir no terreno, pela frequência do circuito, na observação directa, in loco, de profissionais na sua prática concreta. É relativamente frequente, no caso dos body piercers, estes procurarem vários estúdios e profissionais deste ofício no sentido de experimentarem em si mesmos várias técnicas de abordagem e de interacção com o cliente, de execução da perfuração, de tipos de material utilizado, etc. Aprende-se em interacção com quem sabe, olhando, para depois tentar reproduzir e aperfeiçoar na prática concreta.

Para que tal aconteça, os jovens com intenção de se instalar profissionalmente procuram ser ajudantes ou aprendizes de quem já está instalado ou, situação mais frequente, autopropõem os seus serviços sobre “voluntários” que recrutam entre as suas redes de sociabilidade amical, gratuitamente ou fazendo-se pagar substancialmente menos que nos estúdios. O acesso relativamente facilitado aos materiais e equipamentos necessários, e o facto de a intervenção profissional ser dispendiosa para o bolso de muitos jovens, deixa uma larga margem de manobra aos exercícios de experimentação autodidacta, nos ensaios sobre si próprio, sobre couro de animais e/ou, sobretudo, entre amigos. Muitos tatuadores e body piercers começam, assim, nos corredores das suas escolas ou nas ruas dos seus bairros a perfurar o corpo dos companheiros que o permitem, relação que oferece vantagens recíprocas: o objectivo de oferecer a alguns leigos mais próximos um serviço que, de outro modo, seria bastante mais dispendioso, permite ao próprio usufruir de uma boa ocasião para treinar e tentar melhorar gradualmente a sua técnica.

Comecei primeiro a frequentar as casas dos outros. Depois veio o gosto pela aprendizagem, quis aprender a fazer. E então aí tive obrigatoriamente que participar daquele círculo, porque era ali que eu ia aprender e era ali que iam surgir as oportunidades e que eu ia começar a aperceber-me como era o mercado e como é que funcionava tudo isto. (…) E também porque poderia estar a ver o que é que se estava a fazer, deitado, a olhar, a ver o que é que se estava a passar. (…) Queria ver também como é que elas trabalhavam, qual é que era a sua ordem de trabalhar, os instrumentos que utilizavam… Então, fui correndo os vários profissionais do mercado da altura, também para aprender o que é que se devia e o que é que não se devia fazer. (…) [Depois] Fui ensinado por uma pessoa que eu conhecia já de há uns anos e que também estava a desenvolver esta actividade. Tinha estado em Londres a aprender, veio para cá, e instalou-se numa casa de tatuagens. E eu, também aí, com ele, comecei a arranjar os meus próprios clientes, que se dispunham a ser as minhas “cobaias”, entre aspas. Eu fazia-lhes o furo com a orientação desta pessoa, que estava ao meu lado e que possuía o material para que eu pudesse fazer as coisas, e as pessoas que serviam de minhas cobaias pagavam por isso um preço muito mais reduzido. (…) Foi assim até ter o meu próprio espaço e até ter o meu próprio material e começar a fazer os meus próprios piercings. [Profissional de body piercing, frequência universitária, sexo masculino, 25 anos]

A aprendizagem através da interacção continuada com um profissional mais experiente e reputado, mediante a instituição de uma relação mestre-iniciado, é uma situação privilegiada no processo de socialização no papel de perfurador do corpo, especialmente no caso da tatuagem. A proximidade com o mestre na sua actividade providencia ao jovem iniciado todo um conjunto de conhecimentos sobre as oportunidades financeiras e criativas oferecidas pelas actividades de perfuração que, de outro modo, seria bastante mais difícil de obter, não só nos seus aspectos mais técnicos, como nos aspectos mais logísticos (contactos com fornecedores, carteira de futuros clientes, etc.). No entanto, ainda que muitos jovens se esforcem por tentar obter uma aprendizagem junto de alguém que tenha já um estúdio e reputação, a aceitação por parte deste segmento é muito difícil. Formar iniciados é uma tarefa incómoda para quem já tem uma reputação consolidada, na medida em que a procura de marcas é, actualmente, crescente, mas as clientelas não se permitem facilmente oferecer a um debutante.

Por outro lado, a reticência da elite dos tatuadores em formar os mais jovens é ainda fundamentada no facto de, num meio altamente competitivo como é o da marcação corporal em Portugal, estarem a formar potenciais focos de concorrência. Na medida em que a formação de um aprendiz se faz a partir de uma forte conivência com o profissional, trata-se de uma relação que implica partilhar técnicas e segredos de estilo através do trabalho em conjunto, num domínio onde a arte e a técnica se combinam subtilmente, e onde o profissional é cioso da autoria do seu traço, da sua forma de desenhar, ou de perfurar. Implica ainda partilhar uma carteira de clientes, já que o acolhimento do noviço na equipa do estúdio é feito, geralmente, na condição de ser pago à comissão sobre o trabalho dos clientes menos fiéis à casa, com projectos técnica e esteticamente menos exigentes. Daí que os tatuadores mais velhos e reputados, mais experimentados e conhecidos não estejam pelos ajustes em partilhar os seus segredos técnicos e artísticos, bem como os seus capitais simbólico e social com alguém que, mais tarde ou mais cedo, se pode autonomizar e constituir num pólo de forte concorrência.

[Comecei a aprender] com pessoas que eu conhecia e que na altura eram militares (…) Eu fui observando, e assim que eu consegui captar tudo aquilo que eu observei, fui fazer. (…) Já tinha feito umas quantas tatuagens a uns amigos meus, e então foi aquela coisa de… decidi mesmo: “Não, eu vou montar [o meu negócio], vou ter que aprender!” E tive depois também a chance de conhecer o H., que foi uma pessoa excepcional comigo, e que me ensinou bastante dentro daquilo que eu já sabia, e o que faltava desenvolver… e ensinou-me. Depois do que ele me ensinou e aquilo que eu tenho estado fazer… estou muita bem! (…) Aquilo que ele me ensinou tem bastante valor para mim. São segredos que… prontos, lá está, de tatuadores para tatuadores todos escondem, todos escondem os seus segredos, não é? (…) Cá a maior parte dos tatuadores andam na onda do… “eu sou eu, e isto daqui não sai nada!” É mesmo assim! (…) Também temos que estar a trabalhar e exercitar o trabalho. (…) Nós, para aprender a tatuar, picamos em peles, em couratos… Nós começamos primeiro a trabalhar em couratos e depois daí… Eu, pessoalmente, posso dizer que não passei por essa fase, porque passei logo directamente para a pele [humana]. [Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]

Está-se, efectivamente, diante de um mundo exíguo, com estratégias de fechamento que se pretendem estreitas, e onde se sente a forte presença de lógicas de competição, concorrência e rivalidade entre pares pela disputa das novas e pela manutenção das “velhas” clientelas, as quais, apesar de em alargamento, continuam a ser parcas. Este contexto possibilita compreender que a camaradagem e a cumplicidade não seja um pólo estruturante da cultura profissional destes artífices.

Ainda que, por norma, até devido à exiguidade do universo da marcação corporal em Portugal, os seus profissionais se conheçam pessoalmente de (con)vivências anteriores, enquanto frequentadores de determinados circuitos nocturnos ou de eventos (como concertos de determinados estilos de música),13 raramente partilham, contudo, relações de amizade, desenvolvendo uma interacção mínima entre si. É uma actividade que tende, portanto, a ser bastante individualista e secretista. Suspeitando que outros tatuadores possam ter acesso aos segredos que definem o seu sistema pericial e fundamentam a singularidade do seu estilo próprio, o profissional reputado tende a enveredar por uma estratégia de gestão dos potenciais recursos humanos no seu estúdio, bem como de fidelização da clientela que cai nas suas mãos.

Legitimação artística do ofício de tatuador e relação com a clientela

Apesar de continuar a ser privilegiada a aprendizagem com os tatuadores mais experientes e mais reputados, a forma como os novos tatuadores hoje entram na carreira profissional também se alterou com os tempos. Uma das dinâmicas subjacentes ao renascimento da tatuagem tem sido, justamente, a emergência da luta simbólica pela sua dignificação, legitimação e reconhecimento enquanto forma de arte, processo esse protagonizado, em grande medida, por acção dos novos actores deste circuito profissional.

Do lado do consumo, indivíduos oriundos de uma posição socioeconómica mais elevada que os tradicionais clientes, dispondo de maior prestígio social, de uma mais elevada capacidade financeira e de, ao valorizar a função estética da tatuagem sobre a sua dimensão afiliativa ou grupal, partilhar o interesse do tatuador em criar desenhos únicos e inovadores, ganhando assim a legitimidade cultural de uma classe média urbana e qualificada, seguindo o padrão de outras formas culturais como o jazz, o cinema, a fotografia, os designs ou mesmo o graffiti.

Do lado da produção, até pelo tipo de trajectória social que alguns dos recém- tatuadores apresentam — pontuada, como vimos, por experiências de formação em várias áreas artísticas —, estes novos protagonistas vieram introduzir uma diversidade muito considerável de possibilidades estilísticas na tatuagem, elevando o grau de exigência estética da iconografia marcada, e enfatizando nas avaliações de qualidade deste meio de expressão não apenas a competência técnica, mas também a inovação do conteúdo do design. Concomitantemente, vieram também reivindicar cada vez mais a institucionalização social da sua área de actuação enquanto disciplina técnica e meio de expressão artística, nomeadamente dentro do sistema de ensino.14

De facto, como se teve oportunidade de ver, hoje não chegam às profissões da marcação corporal apenas jovens com trajectórias de exclusão ou desajustamento social, situação típica no passado. Tal como já tem sido recorrentemente notado noutros estudos sobre este universo (Atkinson, 2003; DeMello, 2000; Sanders, 1988; 1989), muitos dos profissionais que actuam agora em Portugal são jovens que, a dada altura da sua trajectória escolar, enveredaram por formações artísticas várias, frequentadores de escolas e universidades de Belas-Artes ou Design. Insatisfeitos com as limitações expressivas das tradicionais artes eruditas, bem como com as limitações impostas pelo campo artístico ao desenvolvimento das suas carreiras, por um lado, e na posse de um largo capital social subcultural acumulado desde a adolescência em contextos microgrupais, por outro, alguns destes “jovens artistas” resolvem explorar o seu gosto pela tatuagem como meio de vida e de produção criativa, um recurso que, largamente, já haviam mobilizado para si próprios, enquanto consumidores.

Encontram na tatuagem uma forma de expressão gráfica original e pouco explorada, disponível para caminhos mais iconoclastas, quer de um ponto de vista estético, quer de um ponto de vista ético. Simultaneamente, uma actividade suficientemente rentável e autónoma para permitir a realização de um projecto de identidade e de vida enquanto “artistas” ou “criadores”. A tentativa de realocamento cultural da tatuagem do lugar desvalorizado de “artesanato” ou “arte menor” para nova forma de “arte maior” em busca de legitimação sucede, portanto, paralela à tentativa de realocamento social dos seus protagonistas, cada vez menos provenientes das margens sociais relativamente aos mundos das artes.

Na base da decisão do jovem para enveredar pela tatuagem como meio de vida começa por estar, efectivamente, a autopercepção de que possui uma forma de talento artístico — consubstanciado na clássica capacidade figurativa de transposição do desenho para a pele com rigor e pormenor realista —, reforçado e legitimado no interior das suas redes de sociabilidade, entre amigos, professores, clientes e, sobretudo, entre os seus pares no circuito institucionalizado da marcação do corpo. Afastando-se das representações negativas do tatuador como figura socialmente desviante e marginal, os novos tatuadores tendem assim a reivindicar para si próprios o estatuto de “artistas” e a apresentar (algum do) seu produto sob o título honorífico de “obra de arte”, processo de legitimação sustentado por um sistema de acção colectiva que integra vários agentes individuais e institucionais interessados (e crentes) na compra e venda destes recursos enquanto objectos artísticos e, portanto, orientados para a legitimação e caução cultural das suas respectivas convenções.

Considero-me e consideram-me [um artista]! E eu, quer dizer, acredito mais naqueles que me consideram a mim, no que naquilo que eu digo. Porque é aquilo que os outros vêem e acham. “Porra, tu realmente és um artista!”, e aí sim, distingue-se… Isto é assim, só eu é que poderei reconhecer esse ponto. Ou eu, ou qualquer tatuador. Porque não é… apesar da pessoa estar de fora e saber apreciar o desenho, depois nós temos as nossas contas, nós temos as nossas contas… [Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]

É neste contexto que se começam a tentar organizar espaços de partilha, afirmação e legitimação cultural dentro do circuito da marcação corporal profissional, como é o caso de espaços de interacção como associações ou convenções nacionais e internacionais;15 ou espaços de mediação discursiva, como as múltiplas revistas da especialidade, ou os inúmeros sítios virtuais, entre motores de busca, páginas pessoais ou blogs dedicados ao tema. Os primeiros, correspondem a espaços onde os saberes-fazer (as pragmáticas que resultam dos saberes) de cada tatuador têm oportunidade de se dar a ver e de serem socialmente reconhecidos e artisticamente legitimados pelos pares,16 podendo constituir acontecimentos potencialmente transformáveis em ocasiões (Certeau, 1980), ou seja, momentos oportunos para produzir ruptura numa dada trajectória, ou mudança no status quo do próprio circuito. Os segundos, correspondem a espaços onde os saberes têm oportunidade de se articular em discursos, uma caução teórica que faculta uma “maioridade” cultural às práticas que têm por referência.

Neste processo de redefinição e deslocação estatutária da tatuagem na hierarquia da legitimidade cultural, os seus profissionais contam ainda com a cumplicidade social e simbólica de algumas instâncias pertencentes ao próprio sistema artístico instalado, com principal incidência entre críticos e outros mediadores discursivos responsáveis pela caução simbólica não apenas do produto, mas também do próprio meio de expressão. Um sistema artístico que, a propósito das fronteiras entre formas artísticas, tem sido recentemente confrontado com a partilha de um amplo princípio inclusivo ou de banda larga entre as suas mais novas gerações, o que implica uma larga aceitação por defeito de formas expressivas potencialmente artísticas.17

Sob a operatividade deste princípio, se bem que com resultados muito diversificados, tem-se assistido a alguma porosidade no campo artístico, no sentido da disseminação e multiplicação das expressões culturais na esfera (ou na mira) da sua legitimidade, bem como da tentativa de equiparação das diversas linguagens expressivas, consideradas mais em relações de complementaridade e interpenetrabilidade do que numa configuração autonómica e hierarquizada. Já estudos anteriores tinham detectado o pendor dos mais jovens artistas portugueses para pensar arte como um universo sem grandes fronteiras ou rígidas demarcações (Pais, Ferreira e Ferreira, 1995: 69), revalorizando uma reciclagem universal das significações e objectos menores, perfilando novos horizontes e territórios estéticos para a produção artística, e colaborando assim no colapso das clássicas distinções que a polarizavam, como “cultura cultivada” versus “cultura popular”, “cultura de elite” versus “cultura de massas”, “artes maiores” versus “artes menores”, etc.

As preocupações de ordem estética e criativa têm-se estendido a várias dimensões triviais da vida quotidiana, dilatando e deselitizando significativamente o campo artístico, que tende a integrar, hoje, um sem-número de actividades outrora impensáveis de considerar como arte. Tal porosidade na entrada da banalidade na arte não acontece, contudo, sem tensões e polémicas internas ao campo de produção cultural, devendo por isso ser pensada em termos processuais e não em termos de situação instalada. O sistema da arte não perdeu a sua natureza hierarquizante e hierarquizada e, não aceitando consensualmente a atribuição do epíteto artístico a muitos procedimentos expressivos outrora dominados, remete-os a uma espécie de limbo cultural, uma zona de incerteza a que Bourdieu (1965) chamou  esfera do legitimável (por contraposição às esferas da produção cultural legítima e arbitrária), onde posições e postos estão mal definidos.

Neste contexto de reciprocidade entre dinâmicas de porosidade artística e estetização do quotidiano, o sistema das artes, enquanto sistema segmentado e hierarquizado de acção colectiva que integra vários agentes e instituições com papéis diferenciados desempenhados em esferas elas próprias diferenciadas (Melo, 1994) começa, subtil e lentamente, a partir de alguns segmentos mais iconoclastas e menos comprometidos institucionalmente, a reconhecer a legitimidade de algumas artes de fronteira, nomeadamente de procedimentos expressivos que jogam com as fachadas corporais (Pais, Ferreira e Ferreira, 1995: 73).

Tal vem acontecendo com o reconhecimento da tatuagem enquanto potencial meio de expressão artística, hoje sujeito a um discurso de caução simbólica de ordem estética sob a forma de discussões críticas e académicas, com direito a visibilidade institucional em revistas da especialidade ou através da exposição em museus e galerias, ou ainda à exploração da sua riqueza expressiva em outras formas de arte, como o vídeo, a fotografia ou a performance (com a apropriação deste tipo de recursos por parte da body art, por exemplo), quer sob a perspectiva da revalorização do “exótico”, quer do regresso à tradição e da recuperação da autenticidade das práticas da cultura popular (patente na visibilidade dada, por exemplo, às tatuagem maori ou às old tattoos, muito usadas no Ocidente em meados do século XX).

Ainda que, neste cenário, quem as execute tenda a fazer reconhecer-se como artista, nem toda a tatuagem é, necessariamente, reconhecida como “obra de arte” dentro do próprio circuito de produção. Se o procedimento pode ser considerado uma técnica artisticamente utilizável, tal qualificativo não é imediatamente transferível a todo e qualquer produto iconográfico fabricado mediante a sua utilização. Como a pintura a óleo, desde o Renascimento é considerada um procedimento artisticamente utilizável, o que não implica que toda e qualquer pintura a óleo seja ou tenha sido socialmente codificada como obra de arte.

Um dos requisitos indispensáveis para aferir da artisticidade da obra é a originalidade que lhe é reconhecida, a inovação que o seu criador nela investe. Daí que o processo de legitimação artística da tatuagem não entronque apenas no realocamento dos seus novos protagonistas a partir da esfera artística, enquanto detentores de formações gráficas especializadas e culturalmente consagradas, mas também na tentativa de apresentá-la como meio de expressão estética potencialmente inovadora, produtora de desenhos originais e criativos, e não apenas como reprodutora de exemplares iconográficos previamente instituídos, de valor estético limitado.

Quando se fala de tatuagem artística, já não se está na dimensão da mera imagem padronizada, dos tradicionais flashes literalmente evocativos de valores ou momentos patriotas, de compromissos amorosos, familiares ou militares. Estes ficam a cargo dos iniciados ou dos que não têm outro interesse na tatuagem que não o financeiro. Para os mais novos tatuadores abriu-se a era da ilustração bio-gráfica autoral. Ao contrário dos velhos tatuadores, os mais novos tendem a enfatizar os valores criativos sobre os económicos, tentando investir o seu talento artístico sobretudo em desenhos não padronizados, originais ou, pelo menos, pessoalizados em função da anatomia e do projecto iconográfico do cliente. O processo de produção da tatuagem artística passa a ser apresentado como um trabalho singular e original, em vez de se limitar à mera reprodução da massa de réplicas de catálogo, dotadas de um reduzido valor estético e económico.

O grande desafio hoje subjacente à carreira de um tatuador com ambições artísticas é, assim, conseguir desenvolver um estilo pessoal que ganhe visibilidade, estatuto, reconhecimento e reputação dentro do circuito, sobretudo no circuito internacional,18 enquanto forma autoral. O facto de ser um trabalho único e executado por um profissional já reconhecido pela singularidade do seu estilo, mesmo que habitualmente não assinado (ainda que alguns já cheguem a fazê-lo), concede uma aura singular, uma mais-valia artística ao corpo que o transporta, facilmente transubstanciado pelo seu portador em valor de diferença, de idiossincrasia pessoal. Possuir no corpo uma obra de determinado tatuador é, no dizer de Sanders, “equivalente à posse de um Picasso noutra esfera artística” (1989: 177).

A dimensão autoral da tatuagem, enquanto procedimento expressivo com pretensões à obtenção de uma legitimidade artística, vê-se contudo comprometida pelo lugar que a acção do cliente adquire sobre o respectivo processo de produção. O laboratório de fantasias em que se converte o corpo marcado não está subordinado apenas à mão e à criatividade do tatuador. O ritual da marcação corporal não é solitário e autónomo, mas implica um trabalho de intersubjectividade entre o agente tatuador e o agente tatuado, não só a fonte de receitas do primeiro, mas também a sua tela. O facto de a tatuagem depender de um suporte vivo do qual o agente perfurador não é o proprietário, concede ao cliente um lugar central, enquanto inevitável participante em todo o processo que subjaz à sua produção, desde o acto da respectiva encomenda, à sua conceptualização projectual, nos motivos iconográficos, cores, dimensões e zona corporal a inscrever, configurando uma especificidade desse meio de expressão gráfica.

Ora, a representação socialmente mais enraizada e difundida de “arte” pressupõe a criatividade e originalidade do autor, bem como o total controlo sobre o processo de produção da respectiva obra, o que implica, por sua vez, na senda da tradição cultural romântica, a denegação da dimensão económica que lhe está subjacente e cujos interesses poderiam comprometer a concretização daqueles valores. Ainda que a rentabilidade da actividade não seja narrada como sendo a principal motivação para se dedicar profissionalmente à perfuração corporal, os jovens profissionais ou com aspirações de profissionalização não escapam à expectativa de rentabilidade do seu negócio.

O facto de procurarem a dignificação e legitimação da tatuagem enquanto forma de arte, processo muitas vezes associado a um certo discurso de denegação do económico próprio do mundo das artes mais tradicional (Bourdieu, 1977), não implica, por parte dos tatuadores, o não reconhecimento da sua actividade enquanto prestação de serviços que, inevitavelmente, envolve um jogo de oferta e procura que resulta numa transacção comercial com uma vantajosa mais-valia, nomeadamente no contexto actual, onde encontram entre as suas novas clientelas zonas de gosto esteticamente sofisticadas e com suficientes rendimentos para trabalhos extensivos.

Felizmente, o nosso cliente não é assim, o nosso cliente vem, paga. (…) Ele sabe o que é que pagou, e portanto para ele não foi o dinheiro. Ele pagou para uma coisa que vai ficar no corpo dele, e que ele olha para aquilo e acha que é arte. (…) Repara, o preço do nosso trabalho, não é só o trabalho, é o teu prestígio, o prestígio que tu tens, e é tudo! Porque aqui as pessoas não correm riscos de infecções, nem nada disso. E as pessoas vêem: saem dali de dentro, é tudo partido, deitado fora na frente delas, tudo, tudo, tudo, como é posto tudo de novo na frente delas. [Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]

Nesta perspectiva, a especificidade conferida do lugar social destacado que a acção do cliente detém no processo de produção da obra vem fundamentar algumas resistências provenientes do “velho” mundo das artes consagradas19 ao reconhecimento consensual da tatuagem enquanto procedimento expressivo legitimamente artístico. Isto, claro está, para além de a sua expressão socialmente mais visível recobrir os formatos mais comerciais, padronizados, os tradicionais flashes, sujeitos a um sistema de produção em série, de tipo artesanal e comercialmente orientado, onde o desejo de maximizar o lucro requer da parte do tatuador uma considerável cedência no controlo sobre o seu trabalho, submetido à procura das suas clientelas mais recentes, de gostos mais convencionais e menos heterodoxos.

Porque é assim: eu tenho que me limitar pelas ideias dos outros. E há alguns traços que não têm nada a ver com aquilo que me vai na cabeça. Mas prontos, de qualquer das maneiras, não é por aí que nós vamos estar a fazer porcaria! [Tatuador, 8.º ano de escolaridade, 24 anos]

Com efeito, os jovens tatuadores entrevistados não têm pejo em reconhecer que, na grande maioria das vezes, o desempenho rotineiro da sua actividade se resume à prestação de um serviço comercial, um trabalho estético solicitado sob a forma de encomenda que é, em grande medida, executada sob a orientação da zona de gosto do cliente. Neste sentido, a actividade do tatuador não será muito diferente da de outros produtores de fachadas, como qualquer cabeleireiro ou maquilhador. O estrangulamento estrutural a que o tatuador com pretensões artísticas está sujeito pelo facto de não existir em Portugal um verdadeiro campo ou artworld específico da tatuagem,20 com a grandeza e um grau de estruturação suficientemente estável, duradouro e apelativo para suscitar um mais fácil escoamento de veleidades autorais, mas apenas um circuito que é, em grande medida, comercial, acarreta, efectivamente, uma larga margem de soberaneidade e controlo do cliente no processo de produção da obra que é inscrita sobre o corpo de que é proprietário.

A fricção entre a lógica económica e a lógica propriamente cultural, entre o velho imperativo da denegação do económico e da genuinidade do trabalho artístico — fricção interiorizada e mimetizada a partir do velho mundo das artes consagra- das —, é tanto mais sentida pelos tatuadores quanto mais estes se sentem à mercê do actual cliente típico dos estúdios de tatuagem e body piercing, aquele que, em grande medida, alimenta a procura deste circuito profissional: indivíduos que têm uma familiaridade mínima com os processos de produção da tatuagem e as suas novas possibilidades estilísticas, e que, até por uma série de receios que se prendem com a permanência deste meio de expressão, se apropriam das marcas corporais segundo uma lógica de ordem experimental, reduzida, mimética, consumista e padronizada.

Sob o risco de ficar na periferia do mundo comercial da tatuagem, mesmo os tatuadores portugueses mais reputados acabam por sentir alguma tensão entre os papéis de artista criativo e de artista executor, sujeito ao gosto e expectativas implícitas na encomenda do cliente. Daí que tentem gerir um compromisso entre ambos os papéis. A relação com o cliente é necessariamente pautada por um estilo interactivo e de permanente negociação (Irwing, 2000), por um esforço de colaboração onde se sucedem inúmeros compromissos entre a criatividade e a técnica do tatuador, e os desejos do cliente, muitas vezes ainda relativamente difusos em termos de desenho e localização. Neste processo abrem-se muitas possibilidades à intervenção do tatuador, sob a forma de conselhos e sugestões, a nível técnico, da adequação do desenho ao local do corpo que se quer preencher, da coerência do projecto em função de outros desenhos que já existam, etc. Mesmo o trabalho proveniente de catálogos costuma exigir algum grau de colaboração entre o artista e o cliente.

Da situação de intersubjectividade construída entre tatuador e tatuado resulta uma espécie de artisticidade mútua (Sanders, 1989), de co-autoria, onde o tatuador tenta adaptar a ideia gráfica do cliente às técnicas e materiais disponíveis, à sua fisiologia própria, utilizando os contornos “naturais” do corpo para potenciar a dinâmica pictórica da tatuagem, bem como, em última instância, ao seu estilo próprio, quando este já se encontra consolidado ou em vias de o ser. Todo esse trabalho de background não é necessariamente entendido como sendo negativo por parte do tatuador, potenciando um certo gozo em todo o processo de preparação e reflexividade que a decisão de tatuar um desenho exige.

Tu tens uma ideia que às vezes não consegues transmitir directamente, a não ser que faças tu próprio o esboço da tatuagem que queres fazer. A ideia é sempre: “isto fica melhor nesta posição, isto ficará melhor naquela, isto mais subido, isto mais descido…” Mas serão no caso dele… ele nunca disse não a um tema que eu lhe tivesse dado. A única coisa que ele me deu foi uma sugestão para poder ficar melhor ou pior, naturalmente sempre na tentativa do melhor. [Cozinheiro, frequência universitária, 28 anos]

Apesar de ser sempre uma forma de expressão comprometida, ou melhor, compartilhada com o cliente, o nível de intervenção deste vê-se limitado na razão inversa do nível de reputação artística do tatuador a cujas mãos entrega o seu corpo. Com efeito, à medida que adquirem a expertise necessária e vêem associada, no circuito da marcação corporal, a ressonância pública do seu nome a um estilo pessoal, os tatuadores tomam um papel mais activo na selecção e socialização dos seus clientes e respectivas propostas, permitindo-lhes ser mais exigentes e interventivos sobre os requisitos estéticos de alguns clientes. A partir do momento em que há uma reputação artística a defender, e considerando que grande parte da reputação e publicidade do profissional é construída no “boca-a-boca” difundido num círculo restrito de relações, não se aceitam incondicionalmente todos os trabalhos.

A possibilidade de seleccionar, segundo os seus próprios cânones de gosto estético e de complexidade técnica, o tipo de trabalhos e de projectos a que quer ver o seu nome associado, permite ao tatuador mais reputado, logo à partida, evitar uma eventual frustrada compatibilização do seu trabalho por conciliação com as exigências do cliente, sem comprometer mutuamente as suas expectativas autorais e as expectativas conceptuais do consumidor. Poder arbitrariamente executar esse privilégio corresponde, portanto, a uma inflexão na tendência do circuito, da costumeira situação de heterodeterminação profissional para o estatuto profissionalmente mais almejado e favorecido de endodeterminação.

Os pedidos menores e esteticamente menos interessantes tendem a ser rejeitados ou distribuídos pelos noviços, tatuadores ainda iniciantes no estúdio, quando os há, estratégia que permite compatibilizar, a partir do mesmo espaço social e económico que é o estúdio, o registo artístico de personalização mantido pelo responsável que lhe dá o nome, e o registo profissional, mas de diluição autoral, mantido pelos seus colaboradores. Há uma (suposta) denegação do económico em nome do profissionalismo de registo autoral e da consequente artisticidade das obras, denegação essa, porém, compensada pelo facto de a reputação social do tatuador lhe trazer ganhos acrescidos sobre a remuneração cobrada.

Há trabalhos que nós não aceitamos. Eh pá, há trabalhos muito horríveis que nós não aceitamos. (…) Só que há pessoas que pensam que nós temos que fazer! Pá, e não é, porque nós aqui não estamos a vender tatuagens, nós estamos a fazer uma prestação de serviços, a qual é arte! A arte não tem preço, não é? (…) Por exemplo, uma vez um senhor queria um A daquele tipo, dois pauzinhos e outro assim… Discutiu comigo durante três dias, porque é que… “Desculpe, mas você tem imensos vãos de escada que tatuam, e que lhe fazem isso! E aqui nós não lhe fazemos, porque isso não é trabalho para nós! Porque isso não tem expressão nenhuma!” (…) A pessoa que percebe e sabe o que é desenho e sabe o que é arte, não vai fazer isso porque isso não lhe dá gozo nenhum, e não vai receber dinheiro por isso porque o dinheiro aqui, neste momento, é o que menos importa, não é? (…) Há pessoas que às vezes querem desenhos deles, têm a mania que são artistas. Depois aquilo não se pode transpor para a pele de forma nenhuma, porque é horrível! (…) Não te vou dizer que os tatuadores, aqui, muitas vezes, não ficam chateados de fazer golfinhos, porque não lhes apetece… Pá, mas é lógico que eles fazem um golfinho com o mesmo empenho que fazem um trabalho que eles gostam. Porque é assim, eles têm duas responsabilidades: é o trabalho deles e é o corpo das pessoas. Porque a pessoa sai daqui e vai mostrar a milhentas pessoas, portanto, é o trabalho. E é o corpo, porque a pessoa pagou não foi para levar uma porcaria, foi para levar uma boa tatuagem, ‘tás a perceber? E muitas vezes há pessoas que confundem isso: “eu pago, eh pá, faço o que eu quero!” Não é bem assim! Faz o que quer, se calhar! Há ai montes de estúdios que, se calhar, ‘tão a precisar de trabalho e até precisam desse tipo de coisas, eh pá, e não se importam. [Gerente de estúdio de tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos]

O processo de negociação intersubjectiva entre tatuado e tatuador tende a ser cada vez mais facilitado, à medida que entre estes dois protagonistas vai sendo construída uma relação de fidelidade, caracterizada pela procura continuada do mesmo profissional por parte do cliente em cada trabalho pretendido, enquanto a marcação do corpo vai tomando a forma projectual de consumo ritual. A construção de uma relação dessa ordem, para além de potenciar um maior grau de coerência estética no projecto de marcação corporal, garantido à partida pelo estilo próprio do tatuador, também faculta as condições intersubjectivas necessárias para um encontro mais fácil entre esse estilo de tatuar e o gosto estético do cliente.

As minhas tatuagens, de momento, são todas feitas pelo F. (…) Conhecendo a pessoa e a pessoa conhecendo-te um bocado a ti, normalmente é meio caminho andado para que o trabalho fique o que tu queres. Acho eu. Porque se vai dizendo e porque há aquele conhecimento. O F. sabe exactamente aquilo que eu gosto e aquilo que eu não gosto. E é preciso perder muito menos tempo, não é, do que com uma pessoa que tu não conheces de lado nenhum. [Profissional de body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 34 anos]

Quando decide experimentar fazer uma tatuagem, a maioria dos jovens entrevistados acaba por escolher o tatuador na posse de pouca informação sobre o respectivo estilo. A pouca familiaridade com as competências estéticas e técnicas que a actividade envolve por parte da grande maioria dos consumidores de marcas não lhes permite avaliar, à partida, os méritos e a qualidade do talento do tatuador. Na fase experimental, a escolha deste é mais ponderada em função de razões exteriores ao próprio projecto, relativas à reputação, à facilidade de acesso, aos preços praticados e às garantias sanitárias e de assépsia oferecidas pelo estúdio, informações colectadas entre os membros da rede de interacção do cliente. É à medida que a marcação do corpo toma uma forma extensiva, ritual e projectual, que o profissional passa a ser escolhido, fundamentalmente, em função das competências técnicas e do talento estético que enforma o respectivo estilo pessoal, que se pretende em consonância com a ideia estética que o cliente tem para o futuro do seu projecto corporal.

Conclusão

Num determinado momento da vida, quando se começa a ter que tomar decisões sobre o que fazer no futuro, ou quando se está insatisfeito com a eterna rotatividade, precariedade, má remuneração e desagrado em termos laborais, alguns jovens encontram nas actividades de marcação do corpo uma forma de rentabilizar um gosto pessoal (normalmente já se é consumidor ritual), de capitalizar recursos materiais (poupanças), relações sociais (potenciais clientes e mestres) e talentos vários (para desenhar, criar, comunicar, negociar, etc.). Mais do que uma forma aliciante de ganhar a vida, o métier da perfuração corporal, para quem o exerce, configura uma oportunidade estratégica de realização plena de um sonho identitário, onde o corpo marcado, enquanto suporte expressivo de uma estética da divergência e de uma ética da dissidência, assume um lugar central como recurso simbólico de identificação pessoal e demarcação social.

A perspectiva, ou sonho longínquo, de não só viver para a cena mas também viver da cena — ou seja, obter um lugar de trabalho no circuito social de que participam enquanto consumidores — surge, assim, como cenário ideal para a construção do estilo de vida dos jovens extensivamente marcados. Essa situação, na sua óptica, faculta-lhes a possibilidade de enveredar por um projecto profissional potenciador da reconciliação entre trabalho e lazer, instrumentalidade e expressividade, dever e prazer, dinheiro e gozo, vislumbrando-se como uma oportunidade de investimento num meio de vida que não só lhes permitiria subsidiar financeiramente consumos associados ao seu projecto identitário, como colaboraria activamente no reforço e confirmação social dos seus sentidos de distintividade e autenticidade individual.

Neste cenário, a intensa vivência de uma ética de celebração do consumo e do estilo de vida por parte destes jovens não faz sucumbir, inevitavelmente, uma determinada ética do trabalho. A desvalorização da ética do trabalho como dever não conduz inevitavelmente à derrocada social das motivações para o trabalho e dos desejos de implicação profissional destes jovens. Como formula Lipovetsky, “a civilização do pós-dever desvitaliza as grandes prédicas ao trabalho, mas reconstitui o valor do trabalho e da consciência profissional, a partir de bases utilitaristas, pós-religiosas, pós-moralistas. (…) A qualidade total constitui o ideal último do indivíduo que se toma a si próprio como fim, preocupado em nada sacrificar, em afirmar a sua identidade integral, em exprimir-se em todas as coisas, cultura, corpo, sexo, família e, hoje em dia, trabalho. A rejeição do princípio de renúncia a si próprio e a exigência de realização pessoal conduziram, após uma fase de desafeição, à revalorização da própria actividade profissional: agora, é a vida no seu conjunto e não apenas a vida privada que deve participar da ”perfeição". A nova fronteira do individualismo é a qualidade intrínseca do trabalho, o reconhecimento do mérito individual, a estimulação de si próprio até aos limites" (1994 [1992]: 208).

Estética, ética, identidade e trabalho conjugam-se assim, harmoniosamente, nos ofícios de marcação corporal, assegurando aos profissionais que os exercem uma margem de liberdade na construção, exploração e manutenção da sua identidade pessoal, do seu estilo de vida e do projecto corporal que o espelha, difícil de obter no exercício de outra actividade fora da “cena” que representa a sua zona de gosto. Configurando uma forma de auto-emprego ou de trabalho independente (Leadbetter e Oakley, 1999) com um horizonte temporal mais longo (com expectativas de carreira) ou temporário (como biscate accionado para superar uma determinada situação conjuntural), a opção pela prática profissional da tatuagem ou do body piercing expressa a capacidade de estes jovens gerarem meios de vida potencializando e/ou capitalizando capitais subculturais (estéticos, técnicos, sociais e simbólicos) acumulados no decorrer da sua trajectória em espaços sociais de margem, sem ter necessariamente de os abandonar.

Concomitantes e sucessivas, o tempo das vivências “tribais” tende a ter uma relativa perdurabilidade na vida destes jovens, não apenas através da memória que as marcas infligidas no seus corpos tornam constantemente presente, mas também através do encontro com a possibilidade de um meio de vida, uma actividade profissional que permite a concretização de uma política de vida que se pretende escapatória aos caminhos socialmente normatizados, permitindo o prolongamento à esfera da produção de um estilo de vida que se estrutura em torno da esfera do consumo. Projecto corporal, projecto de vida e projecto profissional fundem-se assim numa unidade individual de sentido subjectivo, como se tudo o que o jovem viveu no passado faça sentido no presente e se projecte no futuro.

 

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1 Como nativos capturados ou marinheiros aposentados que encontravam nestes contextos o seu ganha-pão, contando histórias acerca das suas aventuras junto de “selvagens” perigosos e pagãos (ironicamente, os Maori ganhavam as honras enquanto protagonistas das narrativas) por quem haviam sido raptados. Mais tarde, a partir do início do século XX, de forma a concederum maior sentido de exotismo e de erotismo a esses espectáculos, mulheres extensivamente tatuadas, frequentemente as esposas e namoradas dos donos dos circos, começaram a ser o seu grande pólo de atracção. A este propósito, ver Atkinson (2002; 2003: 33-36); DeMello (2000: 53-59); Mifflin (1997). Sobre o modo de produção, promoção e apropriação deste tipo de espectáculos “do exótico”, ver Bogdan (1994); Gil (1994); Oettermann (2000); Tucherman (1999).

2 Aliás, a tatuagem e o body piercing foram actividades crescentemente acolhidas em salões de beleza e estética, o que veio propiciar a diversificação dos seus contextos de produção para além dos seus tradicionais estúdios e, por consequência, a emergência de novas clientelas.Ofacto de alguma das potenciais novas clientelas das marcas corporais não se identificar com o cenário de clandestinidade (mais simbólica que social) que tenta ser mantido pelos estúdios convencionais — construído no sentido de restituir ao cliente o simbolismo dissidente que configura a aura desses objectos—fez, efectivamente, extrapolar a comercialização desses bens e a prestação do serviço da sua colocação além do seu universo tradicional, integrando as rotinas produtivas de muitos institutos de beleza, onde passam a ser transaccionados como maisumproduto e serviço cosmético entre tantos outros.

3 Comercializando bens e serviços simbolicamente construídos enquanto signos identitários juvenis, como a moda e a música, por exemplo, mercadorias privilegiadas numa economia da juventude (Ball, Maguire e Macrae, 2000: 281).

4 Pais faz corresponder a noção de biscate à de “trabalhos precários, para desenrascar a vida, nas bermas do que se poderia considerar uma carreira profissional” (2001: 147).

5 Este artigo corresponde à versão abreviada e revista do último capítulo da tese de doutoramento do autor. Em termos metodológicos, a informação empírica aqui apresentada e analisada conta com relatos obtidos em situação de entrevista, semiestruturada na sua preparação, e semidirectiva na sua aplicação. Foram efectuadas quinze entrevistas individuais em profundidade, de natureza biográfica, a portadores de corpos extensivamente marcados, multitatuados e multiperfurados, profissionais ou apenas consumidores de tatuagem e/ou body piercing. Os entrevistados foram recrutados em estúdios de tatuagem e body piercing de Lisboa e arredores. Para maior detalhe sobre as opções metodológicas do autor, ver Ferreira (2006, pp. 167-203).

6 Sobre a diferença entre autenticidade e sinceridade, ver Trilling (1994 [1971]).

7 Entende-se por abandono desqualificado a saída do sistema de ensino antes de concluído o ensino básico obrigatório, actualmente definido em nove anos de escolaridade.

8 O preço das intervenções é dispendioso, dependendo sobretudo, no caso da tatuagem, da dimensão e pormenor do desenho a inscrever sobre a pele: a elaboração de um retrato, por exemplo, só está ao alcance de alguns eleitos. No caso do piercing o preço depende, sobretudo, do grau de sofisticação e perigosidade da intervenção.

9 Ver, por exemplo, Pais, Ferreira e Ferreira (1995); e Santos e outros (2003).

10 Ao contrário do que tende a ser narrado por jovens artistas a trabalhar em áreas culturais socialmente legitimadas.

11 Como, por exemplo, medicamentos anestésicos, anti-inflamatórios e cicatrizantes, etc.

12 Foi recentemente apresentado à Assembleia da República um projecto-lei pelo grupo parlamentar do Partido Socialista neste sentido, propondo-se colmatar “a total falta de regulamentação num sector onde as más práticas podem pôr em causa a saúde pública”, conforme justificou ao Público o deputado Renato Sampaio, autor do referido documento (Público, 15-3-2008).

13 Mesmo quando não se conhecem pessoalmente, sabem pelo menos reconhecer-se, caracterizar e criticar o respectivo estilo de trabalho, pelo menos os que exercem a sua profissão nos limites da cidade de Lisboa.

14 Declarava Fontinha, um dos mais reputados tatuadores de Lisboa, à revista Homem Magazine, ter “muitos jovens, alguns deles de grafittis, que vêm ter comigo mostrar os seus desenhos. Fico muito contente mas quando dou formação a alguém é para vir trabalhar connosco. Se existem cursos de pintura e escultura, devia-se pensar também na tatuagem como disciplina, porque cada vez tem mais procura” (Medeiro, 2000: 86).

15 Em Portugal já foi tentada a constituição de uma Associação dos Tatuadores e Body Piercers de Portugal, em 2001, embora hoje em dia não goze de qualquer efectividade. Portugal também vem sendo lugar de convenções internacionais em várias cidades, embora ainda sem o carácter regular que um espaço central de protagonismo e caução simbólica exige, como o é o caso dos EUA, da Alemanha ou da Holanda, por exemplo.

16 Nas palavras de Fontinha à Homem Magazine, “gosto de chegar a uma convenção, ver bons tatuadores e estar ao lado deles. É uma forma de reconhecimento. Foi saindo para o estrangeiro que as pessoas conheceram o nosso trabalho e nos contactaram para trabalhar connosco” (Medeiro, 2000: 84).

17 “Diz-se aceitação por defeito porque, sendo certo nunca se ter verificado que a inclusão deste ou daquele domínio de criação constituísse crítica (mais ou menos veemente), rejeição, celeuma ou despique, (…) não é menos verdade que essa aceitação é acompanhada da dispensa de qualquer legitimação de teor explicativo” (Nunes, em Santos e outros, 2003: 212).

18 Em convenções internacionais ou em revistas da especialidade, cujo acesso é muito difícil e selectivo.

19 Utiliza-se aqui o epíteto “velho” na medida em que, no circuito actual da(s) arte(s) contemporânea( s), o princípio conhecido como denegação do económico, fundamento da emergência da figura romântica (e romantizada) do artista desinteressado, bem como dos mitos, também eles românticos e romantizados, da arte pura ou da arte pela arte (Bourdieu, 1989: 281-298), tem entrado em perda enquanto mecanismo de valorização da obra de arte.Coma penetração do capital na esfera da produção cultural, nem a “arte” nem os “artistas” vieram a ser isentos das exigências de rentabilidade e produtividade induzidas pelo intenso processo de mercantilização cultural. Neste contexto, o estatuto de artista tende a transformar-se em profissional qualificado, bem como o de obra de arte em mercadoria, o que não quer dizer que a arte e o respectivo produtor estejam inevitavelmente sujeitos à “lógica dos lucros fáceis”. Para uma discussão mais aprofundada, e empiricamente informada, sobre estas dinâmicas, ver Freidson (1986); Moulin (1983); Melo (1994); Santos (1994); Singly (1986).

20 Ver Bourdieu (1989) sobre o conceito de campo artístico e suas propriedades, e Becker (1982) sobre o conceito de mundo da arte.

 

*Bolseiro de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E-mailvitor.ferreira@ics.ul.pt

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