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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.40 Oeiras sep. 2002

 

IDENTIDADES EM REDE

Construção identitária e movimento associativo

Inês Pereira*


Resumo O presente artigo debruça-se sobre o processo de construção identitária, sendo a identidade aqui concebida como algo de dinâmico e não essencialista, produto de uma multiplicidade de factores, dos quais se pretende dar conta através do conceito de identidade em rede. A análise centra-se no movimento associativo e nas redes de sociabilidade, baseando-se numa pesquisa etnográfica realizada na Xuventude de Galícia e na interacção entre descendentes de galegos e portugueses que é levada a cabo no seu seio.

Palavras-chave Identidade, movimento associativo, redes de sociabilidade.


Abstract In this article the author takes a close look at the process of constructing identities. She sees identity as dynamic and not essentialist — as something that results from a whole range of factors, which she seeks to outline using the concept of networked identities. Her analysis is centred on the associative movement and sociability networks and is based on ethnographic research at the Xuventude de Galícia (Galician Youth) Association and the interaction between the descendants of Galician and Portuguese families that takes place there.

Keywords Identity, associative movement, sociability networks.

 

Résumé Cet article se penche sur le processus de construction identitaire, l’identité étant ici conçue comme une chose dynamique et non figée, produit d’une multitude de facteurs, dont l’article cherche à rendre compte grâce au concept d’identité en réseau. L’analyse est axée sur le mouvement associatif et sur les réseaux de sociabilité, et basée sur une recherche éthnographique réalisée au sein de la “Xuventude de Galícia” et sur l’interaction entre descendants galiciens et portugais qui s’y est établie.

Mots-clés Identité, mouvement associatif, réseaux de sociabilité.

 

Resúmene Este artículo trata del proceso de construcción identitária, concibiendo la identidad como algo dinámico y no esencial, producto de múltiples factores, definiéndoles mediante el concepto de identidad en red. El análisis se centra en el movimiento asociativo y en las redes de sociabilidad, basado en la encuesta etnográfica realizada con la asociación Xuventude de Galícia y en la interacción entre los descendientes de gallegos y portugueses.

Palabras-clave Identidad, movimiento asociativo, redes de sociabilidad.



Uma questão de identidade


A construção da identidade — esses complexos processos que levam o homem a ser aquilo que é, a agir, apresentar-se e autopercepcionar-se de determinada forma — tem-se tornado um dos principais temas de debate e de análise psicológica, antropológica e sociológica. Do mesmo modo, é questão recorrente no discurso a nível do senso comum e naquele que é difundido pelos meios de comunicação social. Todavia, entre propostas que visam a existência de identidades básicas, essencialistas e pré-determinadas, e as suas oponentes, que propõem um ser fragmentado, fluido e alheio à dimensão temporal, parece sobrar espaço para análises intermédias que, de resto, têm sido avançadas por vários cientistas sociais. É neste quadro que a presente pesquisa começou a ser delineada, procurando-se construir modelos analíticos que permitissem estudar o processo de construção identitária, de acordo com a postura teórica adoptada, procurando-se debater modelos de construção identitária e elaborar propostas que se afastem tanto do essencialismo como da fragmentação.1

A concepção essencialista da identidade sugere a existência de uma identidade básica, uma verdade mais autêntica e mais profunda que torna o indivíduo naquilo que ele é, com alguma imutabilidade, independentemente do seu percurso vivencial. A ideia de que, apesar das diferenças introduzidas pela vivência, existe uma identidade essencial, no facto de um indivíduo nascer no seio de determinado credo religioso, nação ou grupo étnico, é algo que se pretende ver posto de lado logo à partida, por mais do que um motivo.

Em primeiro lugar, a maior parte das categorias que recebem o estatuto de essências identitárias — geralmente a raça, a religião ou a nacionalidade — são, elas próprias, construídas reflexiva ou auto-reflexivamente e, como tal, produtos contextuais. Por outro lado, e por muita importância que determinada categoria apresente, um indivíduo está sempre inserido em mais do que uma categoria. Impreterivelmente, é de um determinado sexo, poderá ter uma determinada religião, terá alguma pertença natal, quer essa tenha a forma de pátria quer não, e será lícito considerar ainda a pertença a outras categorias: profissionais, familiares, de determinada comunidade de interesses em que se encontre inserido… Com tal panóplia de pertenças, a identidade do indivíduo acabará por ser multicomposta, e seria irrealista procurar encontrar uma pertença mais verdadeira do que as demais, ainda que em muitos casos esta demanda se apresente como socialmente expectável. Este dilema encontra-se particularmente bem ilustrado no ensaio As Identidades Assassinas de Amin Maalouf, onde o autor retrata a sua experiência como libanês habitante em França:

… quando acabo de explicar, com mil detalhes, as razões exactas que me levam a reivindicar plenamente a totalidade das minhas pertenças, alguém se aproxima de mim para murmurar, poisando a mão no meu ombro: “tem toda a razão em falar desse modo, mas lá bem no fundo de si mesmo, o que é que se sente?” (Maalouf, 1999: 99).

Finalmente, a identidade não é totalmente determinada à nascença, por factores exógenos, é (re)construída ao longo da vida, como resultado de múltiplos processos temporais, de inserção e interacção, e como tal deve ser vista como uma reconstrução permanente, flexível e dinâmica, e não como uma pré-construção essencialista.

Neste sentido, considera-se que a identidade de cada um de nós pode ser eventualmente (e apenas analiticamente) segmentada em fracções relevantes, por exemplo, a identidade étnica, nacional, regional, de classe, profissional ou familiar, para citar alguns dos exemplos mais comuns, mas também é proveniente dos grupos de sociabilidade em que se encontra inserido, do bairro que se habita, ou da comunidade de interesses a que se encontra associado. Em cada um de nós coexistem diferentes traços que, unidos, vão dar lugar a um ser humano único.

Integrando-se, assim, e de certo modo, na discussão sobre a fragmentação do self na (pós?) modernidade, a presente pesquisa passa pela simultânea necessidade de conceber o indivíduo como ponto de encontro de diversas influências e como actuante em diversos contextos, integrando e reivindicando diversas pertenças (e por conseguinte conjugando-se e (re)inventando-se em diversos papéis), sem com isso se pretender considerar que o indivíduo se encontra condenado à fragmentação.

Esta ideia da fragmentação do self advém de uma crítica tecida em relação ao self modernista, uno, estável e transparente, herdeiro de uma tradição iluminista de dar primazia epistemológica ao ser, tomado como tal. A este ser, considerado como essencialista, certos teóricos opõem a ideia de um ser fragmentado, pela intersecção de diversas categorias, totalmente fluido, dependente do contexto: “nós não nascemos com um self, somos antes compostos por um turbilhão de selves parciais, às vezes contraditórios ou mesmo antitéticos” (Powell, 1998).

No fundo, o problema da fragmentação advém da diversidade de contextos de interacção característica da sociedade actual, da necessidade de assumir diversos papéis, frequentar diversos contextos, tomando contacto com uma realidade múltipla, opcional e diversificada, reconhecendo-se em cada ser diversas influências, práticas e representações que se apresentam como contraditórias: “… os indivíduos vivem múltiplos papéis, em função dos diferentes planos em que se movem, que podem parecer incompatíveis sob o ponto de vista de uma ética linear” (Velho, 1994: 26).

Este estudo procurou analisar de que modo cada projecto individual concerta as suas múltiplas influências, abandonando simultaneamente a concepção essencialista da identidade e a necessidade de desdobramento do self em identidades paralelas, sendo mesmo possível considerar-se esta como uma persecução da ideia anterior; já que no fundo trata-se de dividir o ser em várias identidades, todas de um mesmo tipo essencialista. O que se pretende afirmar é que, se é necessário pôr totalmente de parte as concepções do ser como votado a um essencialismo, negando-lhe toda uma diversidade de papéis que são desempenhados e a multifiliação em diversos contextos, também não se pode considerar que isto signifique que cada pessoa é composta de muitos compartimentos estanques. Por outro lado, e paradoxalmente, esta diversidade pode mesmo ser encarada como unificadora, como propõe Anthony Giddens:

(…) não seria correcto ver a diversidade contextual como promovendo simples e inevitavelmente a fragmentação do self, muito menos a sua desintegração em múltiplos selves, pois pode igualmente, pelo menos em muitas circunstâncias, promover uma integração do self (…) uma pessoa pode usar a diversidade de modo a criar uma auto-identidade distinta que incorpora positivamente elementos de diferentes cenários numa narrativa integrada (Giddens, 1997: 175).

A partir das noções apresentadas nas últimas páginas, pode-se concluir que faz parte das competências de qualquer indivíduo o transitar entre diversos mundos, assumindo diferentes papéis, seguindo diferentes códigos e interagindo no seio de contextos distintos. Deste facto resulta a construção de identidades multifacetadas, marcadas por aquilo a que Gilberto Velho chama potencial de metamorfose.

Faz parte da competência normal de um agente social mover-se entre as províncias de significado (…) mas as fronteiras entre essas províncias podem ser mais ténues ou singelas e os trânsitos menos solenes e pomposos. Essa permanente latência implica o que poderíamos chamar de potencial de metamorfose, distribuído desigualmente por toda a sociedade… (Velho, 1994: 29).

Por metamorfose designa-se a capacidade de inserção e desinserção plena em diversos contextos; todavia, também não se deve confundir este termo com o de fragmentação.

(…) a noção de metamorfose deve ser usada com o devido cuidado, pois os indivíduos, mesmo nas passagens e trânsitos entre domínios e experiências mais diferenciadas, mantêm (…) uma identidade vinculada a grupos de referência e implementada através de mecanismos sociais básicos (idem).

Mais ainda, cada indivíduo acaba por compor a sua identidade a partir desta multiplicidade de pertenças e inserções, constituindo-se como ser uno, ainda que multifacetado, actuando de modo algo diverso de acordo com o contexto.

Movimento associativo e construção identitária

As questões abordadas na primeira parte deste artigo puderam ser analisadas e debatidas no decorrer do projecto de investigação aqui apresentado. Ao procurar contextos específicos de análise empírica, ou seja, lugares estratégicos de investigação, particularmente exemplificativos dos processos que se pretendiam estudar, surgiu uma hipótese, a de efectuar a pesquisa no seio do movimento associativo, não só em virtude das diversas possibilidades de trabalho de campo que esta ideia comporta, mas também, e principalmente, devido a um interesse de ordem teórica em abordar as associações sob uma perspectiva que não é a mais comum. Com efeito, análises sobre o movimento associativo, não existem muitas, e a maioria incide sobre o impacto que este tem na sociedade em geral, enquanto veículo para a participação e motor da transformação social. Neste caso, porém, o que interessava era analisar o impacto que a pertença a uma associação tem para os seus próprios membros e, especificamente, o pendor identitário que apresenta, observando-se a pertença como expressão de uma identidade individual e a própria actividade associativa como celebração e promoção de uma identidade colectiva.

Esta ideia parte também do reconhecimento do movimento associativo como forma de sociabilidade particularmente emblemática do modo como as pessoas se relacionam em condições de modernidade e no seio das grandes cidades. A compressão espácio-temporal, associada aos mecanismos de descontextualização (tal como concebidos por Anthony Giddens) pôs fim à hegemonia do local, e abriu caminho para a construção e manutenção de redes sociais para além da família, dos co-trabalhadores e vizinhos, permitindo a criação de relações interpessoais compensadoras de uma forma dispersa no espaço, marcada pelo voluntarismo.2

Esta relação entre associação e identidade, ao invés de forçada, acaba por se apresentar como coerente, enquadrando-se nas dimensões-chave consideradas: a importância dos grupos de pertença, das redes de sociabilidade (entre as quais as associações e as actividades de tempos livres apresentam uma grande preponderância) e do projecto pessoal do self (em termos de opções de vida) na construção da identidade. Finalmente, e porque a interacção, por definição intrínseca, é algo de recíproco, a associação, enquanto grupo mais ou menos delimitado, acaba por se constituir como um laboratório de análise interaccional, em que os indivíduos se influenciam reciprocamente e em que não só a pertença à associação acaba por influenciar a identidade dos indivíduos, como a própria identidade da associação é profundamente marcada pelos seus membros. Os resultados desta pesquisa, levada a cabo no seio de uma associação específica: a Xuventude de Galícia — Centro Galego de Lisboa, a seguir apresentados, permitem reflectir sobre estes pontos.3


Comemoração étnica e celebração

A Xuventude de Galícia é uma associação de cariz fechado, com destinatários muito definidos, e com fins também precisos: a celebração da identidade galega e a promoção do contacto entre os galegos imigrados em Portugal. Neste sentido, enquadra-se num contexto de defesa e promoção de uma comunidade étnica, definindo-se esta como uma comunidade proprietária de:

um nome próprio comum; um mito de ancestralidade comum, memórias históricas partilhadas, um ou mais elementos diferenciadores próprios de uma cultura comum; uma associação com uma terra natal específica; um sentimento de solidariedade para sectores significativos da população… (Smith, 1991: 21).

Para atingir os seus propósitos, a associação apresenta um espaço onde os sócios se podem encontrar e interagir, inclusivamente no bar, onde a gastronomia galega é uma constante, a par com pratos genericamente espanhóis e com alguns tradicionais portugueses.

A própria sede pretende ser uma reconstrução da Galiza, por exemplo, a nível arquitectónico, com o cruzeiro na entrada, as imagens de Santiago, ou o busto de um conhecido galego, benfeitor da associação.4 Por outro lado, se a língua é um dos principais bastiões da identidade nacional, a galega surge recorrentemente, nas inscrições várias que se podem ler no espaço, e é também falada por parte dos sócios e, vulgarmente, no bar. Finalmente, encontram-se presentes outros símbolos da identidade nacional ou regional: bandeiras, estandartes ou as cores da Galiza, em vários locais estratégicos da associação.

Para além da existência de um espaço comum, adequado à interacção, à promoção de sociabilidades e ao simples “estar”, aproveitado semanalmente por muitos dos sócios mais velhos, a associação promove actividades que permitem aos membros interagir, aproveitando simultaneamente a faceta mais recreativa da associação, nalguns casos através de actividades directamente relacionadas com a origem galega, como a gaita-de-foles, o baile galego e o canto e instrumentos típicos galegos (embora também existam aulas de outro género, como as sevilhanas, a salsa ou o ioga). O trabalho de campo realizado incidiu mais directamente sobre estas últimas actividades, os gaiteiros, por um lado, e pelo outro, os bailarinos e as cantadeiras e tocadores de instrumentos. Estes são encorajados a participar conjuntamente no grupo folclórico da associação, o qual acaba por se constituir como o principal meio de expressão da tradição galega. O próprio nome do grupo reivindica este papel: tem o nome de Anaquiños da Terra, ou seja, os bocadinhos da terra. Trata-se, portanto, de um grupo que pretende constituir-se como meio de apresentar uns pedacitos, culturais e expressivos, da cultura original da terra, ou seja, da Galiza. O próprio nome é, assim, indicativo no modo como reflexivamente o grupo se percepciona, algo posteriormente reforçado com a leitura de documentos produzidos pelo grupo, apresentando-se inicialmente como:

um grupo do jovens “que cantavam com alegria e saudade os cantares da sua terra e da dos seus pais (ao qual posteriormente se juntou) também a dança, expressão máxima do folclore galego, que com a sua vivacidade e alegria nos transporta à essência da cultura da Galiza (Anaquiños da Terra: Pequeno Historial do Grupo, não publicado).

Estas actividades, para além de serem ensinadas aos membros que nelas queiram participar, são apresentadas perante o público em actuações, não só na própria Xuventude, como meio de celebrar em conjunto uma identidade de origem étnica através de algo que é considerado pelos próprios como um dos expoentes máximos da sua cultura — as expressões artísticas mais enraizadas —, mas também noutras colectividades e em espectáculos abertos, demonstrando perante o público as tradições culturais regionais, segundo um sentimento de pertença de cariz identitário. Neste sentido, enquadra-se dentro das chamadas associações de expressão, em que a necessidade de expressar o gosto por determinada prática cultural se encontra associada ao desejo de evidenciar a pertença a uma cultura de origem, reivindicada através de sentimentos obviamente fundamentados no tempo, que surge aqui como uma dimensão analítica fundamental.

Neste caso temos consciência de uma ligação expressiva a um outro tempo: indivíduos que nasceram já em Portugal, ou que cá vivem há bastantes anos, mantêm um sentimento identitário em relação a uma cultura de referência, baseada numa origem histórica e numa herança vertical directa, procurando celebrá-la através de comemorações específicas, algo que reenvia directamente para a importância da memória colectiva e do papel das associações na preservação-(re)construção e celebração desta, através daquilo a que Paul Connerton chama cerimónias comemorativas — performances repetidas e ritualizadas, através das quais “…uma comunidade é recordada da sua identidade, representando-a e contando-a numa metanarrativa” (Connerton, 1999). Neste sentido, a celebração da identidade surge como uma representação construída (reflexivamente), mais do que como algo de espontâneo.

No intuito de encontrar meios de celebrar a sua pertença, os membros da associação escolhem determinados processos, considerados particularmente adequados à celebração. Neste caso, são seleccionados como particularmente exemplificativos os cantares, essencialmente femininos, e os instrumentos, entre os quais a pandeireta ocupa um lugar de destaque, mas sendo complementada por instrumentos como as conchas (vieiras), iguais às utilizadas pelos peregrinos no caminho de Santiago, as pinhas, o tambor, o bombo, o pandeiro e a sanfona (instrumento de cordas medieval). As canções escolhidas, cantadas em galego, são de raiz popular, algumas de expressão brejeira, outras reenviando para a questão da imigração e da distância em relação à terra de origem.

Por outro lado, os espectáculos são complementados com o grupo de baile, que ensaia separadamente executando algumas das danças tradicionais da Galiza, principalmente a xota, a muiñeira e a pandeirada, características dos bailes tradicionais, mas também algumas danças associadas a eventos específicos, como por exemplo a dança do maio, a dança dos paus ou a dança da regueifa (típica dos casamentos), e ainda danças mais recentes, produto de interacções com outras tradições, geralmente trazidas pelos imigrantes galegos, como a polca, a valsa galega, a mazurca. Como tantas outras expressões culturais, a própria dança surge como um exemplo da miscegenação. Sendo a história da Galiza marcada pela imigração, as suas danças surgem como influenciadas por tradições culturais de outras paragens, coexistindo com versões galegas de danças celebrizadas noutros lados. De um modo geral, as versões galegas, por exemplo, da valsa ou da polca, caracterizam-se por serem mais “saltitantes”… Para além da música e da dança, o grupo veste-se com trajes típicos da Galiza, de várias regiões e com diversas aplicações (traje domingueiro, traje de trabalho, etc.), fazendo-se acompanhar por estandartes e outra simbologia própria, e a apresentação ao público, nas actuações, é feita em galego.



A abertura para o exterior e a presença portuguesa

Para além do destaque dado às formas culturais directamente herdeiras da tradição galega, e da panóplia de artefactos que representam a associação e o seu próprio espaço como marcadamente galegos, institucionalmente, a associação era, até há pouco tempo, de facto, destinada exclusivamente a galegos ou descendentes de galegos. Na inscrição era necessário apresentar a “prova de sangue galego”, e eram raros os membros que não tinham de facto esta origem, e que entravam por via de conhecimento com algum sócio. Neste caso, são, ainda agora, considerados como sócios simpatizantes, sem direito de voto na assembleia associativa. Esta situação acabava por conduzir a um processo de reprodução no interior da associação, frequentada em conjunto por famílias (em larga medida de estatuto social elevado), em que pais e filhos participam conjuntamente, sendo a participação destes últimos encorajada desde a infância.

O decurso do tempo quis, todavia, que esta situação não se prolongasse. A quantidade de membros activos de origem galega começou a diminuir, de um modo que foi descrito, pelos “sobreviventes”, como devido a um desinteresse dos jovens, a partir do momento em que entraram para a faculdade, casaram ou começaram a namorar ou, nalguns casos, regressaram a Espanha. Como resultado deste afastamento, a associação começou a perder membros, e decidiu abrir-se para o exterior, alargando a entrada a não galegos, como sócios simpatizantes, fazendo inclusive publicidade nas universidades. Este processo, levado a cabo no decorrer do ano 2000, permitiu a entrada e a coexistência no mesmo espaço de indivíduos com um perfil social distinto, sem qualquer relação prévia com a Galiza, mais novos e maioritariamente frequentando a universidade em Lisboa, que revelaram interesse e abertura para a participação no seio desta associação. O grupo dos Anaquiños da Terra, não obstante o seu papel de destaque como guardião da identidade galega, foi um dos grupos que mais protagonizou esta abertura, nomeadamente através de um novo curso de dança para principiantes, dado por uma professora de origem galega, e que abriu no início do ano lectivo em que foi levada a cabo a pesquisa.

Entre os novos membros, muitos acabaram por integrar o grupo folclórico e frequentar também os ensaios quinzenais com um ensaiador vindo de Santiago de Compostela, percurso que foi também por nós efectuado como parte do trabalho de observação participante. Como resultado, a Xuventude de Galícia, e não obstante a sua referida vertente de reivindicação identitária étnica, agrupava sob o seu estandarte, à altura, uma grande quantidade de jovens portugueses e ainda, por uma razão ou por outra, pessoas de outras nacionalidades, um belga, uma francesa, um espanhol das Baleares, diversos membros oriundos dos PALOP…

Esta composição conduz a situações particularmente engraçadas, como, por exemplo, no decorrer de uma actuação em que o organizador gabava os bailarinos, referindo-se a “esta juventude, que, apesar de provavelmente mais portuguesa que galega, continuava a dançar as danças da sua terra”, comentário que deixou perdidos de riso os quatro bailarinos: uma única jovem de origem galega, duas portuguesas (entre as quais a investigadora) e um jovem belga, que disse que, ao menos ele, era tão galego como português, o que provocou o riso entre o grupo.

Não deixa todavia de ser interessante verificar como o dinamismo de uma associação de cariz étnico é mantido por uma quantidade muito significativa de elementos que não reivindicam nenhuma relação com a pertença étnica associada ao grupo e que, todavia, se revestem de todos os elementos e artefactos associados à defesa étnica para actuarem, praticando intensivamente actividades apresentadas como expressões máximas da cultura tradicional galega.

O facto de grande parte dos associados não terem origem galega não implica que a sua pertença à associação seja menos importante, nem elimina a possibilidade de se abordar a questão identitária. De resto, os não galegos reinvindicam a sua pertença à associação e ao grupo de sociabilidade que se desenvolve no seu seio, tal como os galegos, embora o sentimento de pertença assuma formas distintas. Por exemplo, no caso dos galegos a identificação com o nome da associação é maior enquanto no caso dos não galegos se destacam os sentimentos de pertença em relação à actividade desenvolvida e ao grupo de sociabilidade. Uns e outros encontram-se envolvidos com a associação, prolongando a sua participação para além da execução de actividades, organizando saídas em grupo, sugerindo novas actividades, frequentando em conjunto workshops e cursos como extensão das actividades praticadas. Para além disto, existe o hábito de jantar na associação todas as quartas-feiras, ao que geralmente se segue uma saída nocturna, para os membros mais jovens do grupo. Todos estes processos permitem caracterizar este grupo como de sociabilidade e encontrar processos identitários e de pertença associados.

A inexpectabilidade que se encontra entre os associados pode tornar-se particularmente digna de análise, reenviando para uma determinada visão da identidade, considerada como aquilo que os indivíduos efectivamente fazem, sentem ou reivindicam como seu através dos seus sentimentos de pertença. Neste sentido, são postos de lado os discursos sobre a autenticidade e a procura de identidades “autênticas”, tradicionais ou afins, sendo considerado, neste trabalho, que autêntico só pode ser aquilo que efectivamente se passa, ou aquilo que é sentido (acabando por ser também algo que acontece, ainda que a um nível subjectivo de opinião, representação ou sentimento). Eventualmente, o que é sentido pode não ser o mais expectável ou habitual, mas nem por isso perde, antes pelo contrário, o seu valor analítico e o seu estatuto de fenómeno observável. Neste caso, uma reconstrução da cultura, música e dança galegas tradicionais surge como parte da identidade de jovens portugueses, alguns dos quais nunca puseram o pé na Galiza. Entre outras coisas, a pertença dos não galegos à associação relaciona-se particularmente com a noção de projecto pessoal do self. Para além de indivíduos que frequentam a associação, incentivados pelo meio de origem, pela ideia de pertenças culturais básicas ou pelo hábito enraizado no seu grupo familiar ou de sociabilidade, encontram-se jovens cuja participação numa associação deste tipo não se encontra associada à pertença étnica, enquadrando-se antes no seu estilo de vida, reflexivamente construído.5

Uma primeira explicação para presença dos portugueses reenvia para um contacto inicial mais ou menos fortuito. Analise-se, por exemplo, o caso de um dos bailarinos, estudante universitário deslocado em Lisboa, que partilha o apartamento com outra rapariga nas mesmas condições, e decidiu entrar para as aulas de dança. Ao convite desta última, o jovem decidiu vir experimentar, e a partir daí tornou-se membro assíduo. Não existia qualquer relação pré-estabelecida entre o jovem e a cultura galega, nem com a dança tradicional ou folclórica, mas, não obstante, gerou-se um sentimento de pertença entre este e a Xuventude, apesar de o próprio considerar que foi absolutamente por acaso que aí entrou. Um dos factores mais significativos para o sucesso do movimento associativo é que as pessoas sentem necessidade de participar, de se integrarem no seio de movimentos, de praticarem actividades várias. Isto assume posteriormente aspectos muito importantes para a sua identidade, mas não é necessário existir qualquer relação prévia com a actividade em causa.



Um movimento cultural emergente

Todavia, por vezes, a participação em determinada associação ou actividade enquadra-se mais directamente num padrão pré-existente na vida dos grupos ou dos indivíduos. Isto pode acontecer dentro de parâmetros mais óbvios, como é o caso dos galegos. Todavia, também pode ocorrer em outros contextos, como é o caso de diversos dos elementos portugueses da Xuventude.

No decorrer do trabalho de campo, a surpresa em relação à composição dos membros da Xuventude foi seguida da descoberta de um determinado meio cultural, no qual se enquadra uma parte significativa dos associados, e que justifica, até certo ponto, a pertença a este tipo de associação. Este é um meio associado ao gosto e à prática de músicas e danças consideradas tradicionais, marcado pelos seus ícones e formas culturais próprias, e que encontra âncoras num conjunto localizável de espaços e eventos. Em primeiro lugar, em duas associações culturais, que promovem as actividades favoritas, a Fala-só, que assume um papel particularmente importante pela abertura do seu bar, local privilegiado para a criação de sociabilidades, marcadas pelo sentimento de comunidade e de inter-reconhecimento, e a Pé de Xumbo, cuja principal distinção é a organização de festivais de música e dança tradicionais, que constituíram portal de entrada, neste contexto, para a maior parte dos elementos dos Anaquiños, sendo um dos elementos mais caracterizadores do movimento cultural que se pretende descrever, por promoverem de forma particular as preferências culturais, em termos de dança e música.6 Mais do que tudo o resto, estes festivais são um alvo privilegiado dos sentimentos de pertença, sendo frequentados pela quase totalidade dos jovens bailarinos de origem portuguesa da Xuventude.

No que diz respeito à música, esta é de cariz tradicionalista, utilizando instrumentos “típicos”. Não se trata, todavia, de música herdeira da tradição portuguesa ou, pelo menos, não só, nem particularmente. Trata-se antes de apreciar as músicas tradicionais de variadas culturas, principalmente as de origem europeia, nomeadamente espanholas, galegas, irlandesas e escocesas, mas também africanas, ou de outros pontos do mundo. Quanto à dança, que apresenta uma ainda maior relevância neste festivais, é também de cariz tradicionalista, englobando diversos tipos de danças, unidas sobre o epíteto de “danças europeias”. Tal como o termo “danças de salão”, o nome “danças europeias” é uma metonímia, em que sob o termo genérico que diz respeito ao todo (a totalidade das danças europeias) se agrupa um conjunto mais ou menos pré-definido e restrito de danças, reconstruídas e estilizadas, que são as efectivamente praticadas sob este epíteto. Estas danças europeias, praticadas nos vários espaços determinantes para este grupo (Fala-só, festivais, workshops, etc.), constituem uma pedra-de-toque do meio que se pretende caracterizar, e são particularmente distintivas de processos identitários marcados pela procura de filões tradicionais de origens diversas, de uma forma ecuménica, com alguma tendência para o sincretismo. Novamente, é a noção de reivindicação de um outro tempo, de um certo passado, que marca, mas desta feita sob moldes diversos, existindo uma prática simultânea de tradições de diversos países, com os quais não existe uma relação baseada na origem histórica.

As danças galegas propriamente ditas não estariam inseridas neste conjunto, e não são ensinadas na maioria dos workshops de dança. Todavia, e tendo em conta a exiguidade do meio, existem diversos pontos de contacto. Como já foi referido, grande parte dos membros de origem portuguesa da Xuventude já se encontravam enquadrados neste meio cultural, e foi assim que, através de um qualquer processo inicial, tomaram conhecimento da existência das danças galegas, que acabaram por ser progressivamente enquadradas no movimento como umas das danças europeias. Neste sentido, gera-se um processo invertido: em vez de uma pertença inicial conduzir à prática das danças galegas, é a prática de danças similares que conduz à descoberta da Galiza e à inserção no meio galego.


A reconfiguração das identidades nacionais

Da união entre portugueses, residentes no seu país, mas membros de uma associação da Galiza, e de galegos inseridos nessa mesma associação, mas imigrados em Portugal, nascem também complexos processos identitários em termos de identidade nacional. Por um lado, entre os galegos, encontram-se alguns dos clássicos dilemas do imigrante, nomeadamente no que diz respeito ao modo como se manejam as duas principais influências identitárias, provenientes das duas nações de referência, dualidade de referências que tanto pode criar um pouco a sensação de que não se pertence a parte alguma, como também pode servir para a constituição de uma identidade mais individual, por resultar da ligação pessoal de influências culturais e nacionais consideradas distintas.

Por outro lado, para a maior parte dos portugueses, a ideia de uma identidade galega surge como imediatamente associada a um movimento regionalista, ou mesmo nacionalista, em que existiria uma divisão marcada em relação a Espanha, quer esta identidade seja acompanhada de uma aproximação com o Norte de Portugal, quer não. Não se pretende negar a importância da pertença galega para grande parte dos seus habitantes, mas a verdade é que, para muitos dos membros da associação, a obsessão em não serem confundidos com espanhóis não parecia dominá-los. As cores e a simbologia de Espanha encontram-se igualmente presentes na associação. A referência ao Instituto Espanhol é constante, e diversos elementos estudam nessa escola desde a infância. E se isto pode demonstrar uma especificidade marcada em relação a Portugal, por outro lado abstém-se de marcar uma diferença em relação a Espanha, inclusivamente a nível linguístico.

Esta identificação com Espanha ou, pelo menos, esta falta de militância no afastamento em relação a Castela, é, pelo contrário, muito mal recebida por parte de diversos membros do grupo, de origem portuguesa, que fazem questão de marcar esse afastamento, identificando sempre o nome das regiões como Galiza, Catalunha, etc., defendendo a independência destas, a sua especificidade linguística e, inclusive, segundo o testemunho de uma jovem galega, entrando em divergência quando esta se afirma como espanhola e se refere ao facto de estudar no Instituto Espanhol, coisas que para alguns elementos portugueses se revestem de um carácter extremamente incorrecto.

A construção de identidades em rede

Se ao longo deste artigo já ressaltaram, de forma patente, duas importantes dimensões para a construção identitária — a continuidade temporal, mais ou menos reformulada e (re)criada pelo próprio sujeito, e o projecto reflexivo do self, mais ou menos constrangido socialmente pelo campo de possibilidades dos indivíduos —, há uma terceira dimensão que tem estado latente e que é a da interacção, enquanto veículo privilegiado para a troca de experiências, valores e, por conseguinte, para a transmissão identitária.

Da análise efectuada nas páginas anteriores, pode verificar-se como uma associação, enquanto ponto de referência para determinado grupo de sociabilidade, acaba por se constituir como ponto de encontro entre elementos dispersos, marcados por diferentes origens, hábitos, práticas e representações, lugares sociais e correntes culturais, surgindo como um ponto de encontro entre vários vectores identitários, que se entrecruzam no seu seio, como se de uma complexa rede se tratasse, rede em que se encontram tecidas linhas identitárias, correntes culturais. É precisamente esta sua constituição que lhe dá o seu carácter único e distintivo, a identidade própria da Xuventude de Galícia. Isto porque, tal como já foi sugerido anteriormente, as influências entre a associação e respectivos membros são recíprocas, ou seja, nestas linhas identitárias a transmissão (de informações, práticas, representações, estilos de vida…) é sempre nos dois sentidos, existindo uma troca constante entre os dois vectores aqui referidos.

Concretamente, na Xuventude verifica-se a existência de transmissão de informação entre a linha proveniente dos galegos, herdeira de conceitos, hábitos e preferências culturais próprias, e os elementos mais directamente enquadrados no movimento cultural de que se tem vindo a falar nas últimas páginas. No caso destes últimos, a cultura e a dança galega foram, como já foi referido, enquadradas dentro das suas práticas culturais e, neste sentido, adoptadas como parte do movimento. A sua execução no seio de uma associação de galegos, todavia, comporta uma relação ainda maior com a Galiza, através da absorção de alguns elementos particularmente distintivos, não existindo uma igual absorção da cultura de outros países de que também conhecem as danças, praticadas nos festivais e ateliers. Entre outras coisas, existe uma absorção da língua que, como já foi referido, é utilizada nos ensaios; de elementos da cultura galega, como as próprias roupas, utilizadas nas actuações; de diversos termos específicos do universo da dança galega. Por outro lado, começam também a ser frequentadas extensões das actividades praticadas na associação, como foi o caso dos workshops e, muito particularmente, dos cursos de dança galega na Páscoa, em Lugo, em que vários bailarinos se inscreveram, e que uma delas frequentou durante uma semana. A relação com a terra galega começa, assim, a ser uma constante (inclusivamente houve convites de alguns dos galegos para férias em suas casas). Mas longe de ser uma surpresa, este facto acaba por se constituir como expectável, já que, ao penetrar num determinado meio, que é apreciado, é comum iniciar-se um processo de socialização no seu seio, comportando a absorção de diversos elementos.

Por outro lado, a mais recente enchente de jovens portugueses introduziu igualmente um acréscimo de variabilidade no interior da Xuventude, patente em diversos acontecimentos, por exemplo, a frequência de concertos, espaços e bailes mais abrangentes do que especificamente os de origem galega. Deste modo, a identidade da Xuventude da Galícia prima pela intersecção entre unidade e diversidade, entre sentimentos únicos e comuns, produto das interligações entre os seus membros, e divergências profundas que acabam por se manter.7

Deste modo, se a inserção em contextos específicos influencia os indivíduos, estes não são completamente definidos por ela, não só em virtude de estarem simultaneamente inseridos em mais contextos, mas também devido à própria prática de interacção, que pressupõe reciprocidade. Se a pertença à Xuventude influencia os seus membros, também esta associação é resultado dos contributos dos indivíduos que a compõem, das referências que trazem consigo e da interacção entre os dois principais vectores já referidos, como duas linhas identitárias que no interior da associação se vão combinar numa rede identitária, a qual torna a Xuventude naquilo que ela é. Esta ideia de rede identitária, com a qual se terminará o artigo, pretende, assim, ser uma forma esquemática de dar conta da panóplia de influências que rodeiam uma determinada unidade em análise, contribuindo em conjunto para a construção dinâmica e multifacetada da sua identidade.

A oscilação feita neste trabalho entre identidade individual e colectiva permite também conceber cada indivíduo como um ponto de intersecção único de uma miríade de linhas que se cruzam. Ao procurar um lugar entre o essencialismo e a fragmentação, que dê conta de uma identidade única e una, multifacetada e dinâmica, começa assim a surgir um modelo de análise que, ao considerar a diversidade de influências, cujo único ponto de intersecção é a própria unidade em análise, se vai estruturar em torno de uma ideia de rede.

Tomando, por exemplo, um indivíduo, verifica-se que este constitui um ponto de intersecção único de um conjunto de linhas que se entrecruzam. Uma herança significativa poderá vir-lhe da família — uma linha, ou campo, que desemboca nele. Mas esse indivíduo também tem uma profissão — outro vector relevante. E, provavelmente, pratica algum desporto, colecciona qualquer objecto, aprecia particularmente a cultura e a culinária de certo país, é simpatizante dum partido político; tudo pequenas linhas, que o atravessam (continuando depois o seu percurso), que se cruzam a cada momento na sua vida, e que juntas constituem uma rede relativamente extensa, em torno do indivíduo, como influências díspares que o transformam naquilo que ele é. Particularidade dessas redes identitárias é o facto de a informação que contêm passar sempre nos dois sentidos. O indivíduo não é um sujeito passivo, que apenas recebe a informação. É obrigado, por um lado, a processá-la, a dar-lhe forma e sentido, superando as hipóteses de fragmentação ao dar unidade pessoal ao conjunto. Noutras palavras, elabora o seu próprio percurso sobre as redes em que se encontra, escolhe-as, integra-as, abandona-as. Por outro lado, o próprio indivíduo é um emissor de informação, que reenvia para as redes que o constituem, efectuando trocas.

O que se passa no interior da Xuventude de Galícia acaba por ser um bom exemplo destes processos, resultando a identidade única desta associação da interacção entre os seus membros e entre os dois grandes vectores identitários que interagem no seu interior.



Notas

1 A conceptualização de identidade que foi feita neste trabalho, aqui apresentada de forma muito resumida, é baseada no trabalho de diversos autores, sendo de atribuir um particular destaque aos trabalhos de António Firmino da Costa (1999), Gilberto Velho (1981, 1994), Anthony Giddens (1997) e Amin Maalouf (1999).

2 Para além de Giddens (1996, 1997) há que destacar os contributos para este trabalho da obra de Claude Fisher (1982) e Barry Wellman (1999), sobre sociabilidades em rede.

3 Esta pesquisa foi realizada em 2000/2001, tendo sido utilizada uma metodologia qualitativa de trabalho de campo etnográfico, entre Fevereiro e Junho de 2001, pelo que os resultados apresentados dizem respeito a aspectos da associação nesse determinado período.

4 A Xuventude de Galícia fica situada num palacete muito próximo do Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa.

5 Estes conceitos de identidade reflexiva e de projecto pessoal do self baseiam-se nos trabalhos de Anthony Giddens (1997) e Gilberto Velho (1981, 1994) sobre o tema.

6 A Fala-só fica sediada próxima do Bairro Alto, um dos bairros lisboetas mais famosos pela sua animação nocturna, e para além do bar, onde decorrem semanalmente concertos e bailes, promove diversos workshops; a Pé de Xumbo, para além dos festivais, apoia e organiza diversas actividades ligadas à dança, principalmente cursos e workshops, inclusivamente na sua Escola de Artes, em Évora, e tem ainda um site e uma mailing list de divulgação (http://www.pedexumbo.com).

7 A discussão levada a cabo sobre uma perca de importância da identidade dita étnica dos membros da Xuventude, face a uma identidade forjada nas redes de sociabilidade e dependente da trajectória dos indivíduos acaba por se confirmar em posteriores contactos esporádicos com os Anaquiños da Terra. Entre estes, é possível denotar uma certa dinâmica de rotatividade, assistindo-se, num primeiro momento, ao retorno de alguns antigos membros de origem galega, acompanhado de alguma desistência por parte dos jovens portugueses. Num segundo momento, ainda mais recente, assiste-se a uma nova procura por parte de jovens que não têm qualquer relação com a Galiza. Sem se contrapor à análise apresentada, esta movimentação acaba por demonstrar a dinâmica presente nas sociabilidades e na própria construção identitária.



Referências bibliográficas

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*Inês Pereira, socióloga, investigadora do CIES. E-mail: ines.pereira@iscte.pt

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