SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue39Para uma clarificação das políticas económica, financeira e social: um observatório sobre as práticas da gestão públicaModelos do comportamento eleitoral: uma breve introdução crítica author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Sociologia, Problemas e Práticas

Print version ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.39 Oeiras Aug. 2002

 

MUDANÇA ELEITORAL EM PORTUGAL

Clivagens, economia e voto em eleições legislativas 1983-1999

[André Freire (2001), Oeiras, Celta Editora, ISBN 972-774-106-1]

 

António Teixeira Fernandes *

O livro que André Freire acaba de oferecer à comunidade científica e aos leitores em geral introduz uma ruptura em relação ao que geralmente vem sendo, entre nós, produzido. Para além de escassas em si mesmas, as abordagens têm ainda enfermado de um enfoque estatístico depurado de enquadramento teórico que lhes dê perspectiva e aprofundamento de sentido, limitadas na sua capacidade explicativa. O presente estudo, centrado sobre as eleições legislativas ocorridas entre 1983 e 1999, tendo em conta o património científico nacional e internacional existente neste domínio, não se limita a apontar uma simples e potencialmente enganadora geografia eleitoral, nem fica enleado nos limites do método ecológico que privilegia, mas procura analisar a estrutura e a evolução do campo político-eleitoral, considerando os comportamentos eleitorais e o grau de adesão da população ao sistema político. Ao longo dos seus três capítulos, sujeita a um tratamento sistemático os dados disponíveis referentes a tais eleições, abrindo o caminho, através do texto, para análises complementares que contemplem as motivações e os valores dos eleitores, assim como a reestruturação do campo das ofertas, sem deixar de estabelecer a comparação possível com diferentes países, onde os comportamentos eleitorais têm sido objecto de cuidada análise. Mais do que entregar-se ao jogo de aleatórias previsões ou do que conter-se em um puro nível empirista, procura testar modelos explicativos de conduta eleitoral.

Considerando o comportamento eleitoral, indicando os objectivos, metodologia e hipóteses de trabalho, e individuando as clivagens, economia e votos dos portugueses, o autor estuda a participação política, contrastando-a com as retóricas partidárias. Revelador dos dinamismos explícitos ou implícitos em tais condutas, o estudo torna-se desocultador da realidade, entrando no emaranhado dos próprios sistemas democráticos, dando-se, deste modo, um contributo importante à sua problematização teórica, ainda que esse não seja o seu objectivo expresso. Tenta-se perceber como se estrutura a adesão dos cidadãos ao sistema democrático, em termos de ligação aos partidos, manifestada na expressão do voto.

O período em análise aparece marcado por elevada abstenção, crescente volatilidade e acentuada tendência para a bipartidarização. Intervém, neste fenómeno, um declínio da política das clivagens estruturais, com a consequente subvalorização dos factores sociológicos. É testada a evolução do impacte da estrutura de clivagens tradicionais, como as que se exprimem sob a forma de centro-periferia, religiosidade-secularização, urbano-rural, capital-trabalho. A este objectivo junta-se a análise da influência da conjuntura económica. É ainda sua finalidade ver como se processa a evolução da base eleitoral dos partidos políticos portugueses, em ordem à detecção do realinhamento ou desalinhamento eleitorais. Servem-lhe de base os dados agregados a nível dos concelhos, constituídos em unidade de análise, tida como unidade política, com a utilização da metodologia ecológica.

Parte-se de uma bateria de hipóteses explicativas, construídas, desde logo, à volta de relações estabelecidas pelas clivagens sociais tradicionais, verificando-se o aumento da abstenção técnica, com maior incidência nos distritos rurais, a tendência para a bipartidarização eleitoral no sistema partidário português, e o forte crescimento da volatilidade total e da volatilidade de bloco. Os níveis da abstenção são comparados com os de outras democracias, relacionando-se Portugal com 23 países de referência.

O autor considera as diversas clivagens — com influência a longo prazo —, tentando medir o impacto de cada uma delas. Algumas, como centro-periferia e urbano-rural, tendem a perder a sua capacidade explicativa. As clivagens com maior incidência na conduta eleitoral são as referentes à religião e à classe social. A volatilidade eleitoral parece-lhe indiciar o declínio da coesão política dos grupos eleitorais.

O voto económico aparece igualmente com um impacte nas opções dos eleitores, embora tal impacte tenha uma importância relativamente limitada. Considerando os partidos com representação parlamentar, constata-se, de facto, que, em qualquer dos casos, a conjuntura económica aparece com um poder reduzido de explicação, quando comparada com as clivagens. O impacto da conjuntura económica — com efeitos a curto prazo — sobre a participação e a abstenção eleitorais nem sequer aparece sempre muito claro na situação portuguesa, podendo variar de sentido. O meio urbano revela uma maior sensibilidade a esta conjuntura, mas o impacto económico não deixa de ser bastante fraco. A modernização socioeconómica parece estar na base da bipartidarização e da volatilidade, embora muitas das explicações deste tipo não possam ser mais do que inferidas da evolução dos próprios resultados eleitorais.

O autor conclui que, no que concerne a abstenção eleitoral, Portugal ocupa uma posição intermédia no conjunto das democracias europeias sem voto obrigatório, sendo, todavia, o que apresenta a maior dispersão dessa mesma abstenção à volta do valor médio. A volatilidade tem sido bastante elevada. Ter-se-á vindo a assistir a um aumento da abstenção política, enquanto factor determinante das opções estratégicas dos eleitores em relação às conjunturas políticas. Esta abstenção é apresentada como mais penalizante para os partidos de esquerda. Mas a mobilização política, em alguns actos eleitorais, consegue captar anteriores abstencionistas. Na medida em que isso acontece, a evolução da abstenção não penaliza somente a esquerda, tende mesmo a beneficiá-la. A abstenção política é dotada de um carácter conjuntural. Unicamente em três das eleições consideradas, se verifica uma forte baixa da determinação sociológica da abstenção, com a intervenção decisiva da abstenção política.

O estudo revela-se pertinente para a análise da evolução da determinação sociológica, económica e política da participação e da abstenção eleitoral entre 1983 e 1999. Há um declínio das clivagens sociais tradicionais, um acréscimo da volatilidade, com a acentuação da tendência para a bipartidarização do sistema político. O declínio do impacte das clivagens estruturais terá afectado mais os pequenos partidos (CDS e PCP) do que os maiores (PSD e PS). Os resultados da análise dão fundamento à afirmação de que, em virtude dessa volatilidade, se operou um realinhamento eleitoral mais no seio de cada um dos blocos ideológicos do que entre os blocos. Aqueles pequenos partidos terão visto esbaterem-se as características sociológicas da sua base eleitoral. Os alinhamentos eleitorais parecem dar pertinência à clivagem esquerda-direita.

Assumindo-se opções metodológicas precisas, no tratamento da informação disponível sobre a participação eleitoral, está sempre presente, no decorrer do estudo, uma problematização de natureza epistemológica. O autor não se satisfaz com as explicações do tipo post hoc, ergo propter hoc, recorrentemente em uso em tais análises. Articulando-se em permanência os dados empíricos com a teoria e explorando-se a pesquisa até onde os procedimentos teórico-metodológicos o permitem, o trabalho oferece um controlo contínuo da análise e do seu alcance. A interrogação sociológica segue de perto o tratamento dos dados, numa imbricação em que se revela não só método de abordagem como ainda consciência do método. Perpassa toda a análise uma perspectiva epistemológica, mediante a crítica sistemática a que sujeita o tratamento dos dados. Do rigor conceptual e da permanente atenção ao método resulta o claro discernimento das diversas opções e operações. As reflexões metodológicas adquirem, na verdade, um alcance epistemológico. Isso verifica-se logo na escolha das estratégicas que possam ser mais adequadas ao cálculo. O recurso a procedimentos alternativos permite o conhecimento mais controlado dos resultados.

O autor não fecha, consequentemente, a análise. Explora os recursos que lhe são dados através de uma metodologia, dizendo o que é possível conhecer com ela e o que lhe está vedado. O conhecimento não fica encerrado em “sistema”. Denunciando a “falácia ecológica”, ao chamar a atenção para a dificuldade de extrapolação das correlações ecológicas para o nível individual, não deixa, de igual modo, de advertir para o perigo da “falácia individualista”. Se o tratamento científico mediante dados agregados é meramente aproximativo, do mesmo modo o será a abordagem que trabalha com dados individuais, embora reconheça que, neste último caso, possa haver maior rigor. Sublinha a necessidade de se completar a sua análise com inquéritos por amostragem, usando-se dados individuais, numa perspectiva diacrónica.

Não se opera igualmente a extrapolação para a análise do sistema político, nem esse era o seu objectivo. Poderá perguntar-se, no entanto, se o modelo da racionalidade subjacente ao estudo contempla suficientemente a situação portuguesa. Reconhece-se que tal modelo é o mais adequado ao tipo de análise que se desenvolve. Parte-se do suposto de que a transição para a democracia faz entrar a política na era da competitividade de massas. Mas, mergulhada como está ainda a sociedade portuguesa numa situação de défice acentuado de desenvolvimento, com certa distância em relação aos países da Europa com os quais se possa estabelecer comparação, muitas das condutas políticas, nomeadamente eleitorais, poderão encontrar explicação especialmente em modelos de “irracionalidade”. O autor admite, aliás, que o voto económico aparece com maior peso do que as clivagens e os posicionamentos ideológicos na Inglaterra, o mesmo acontecendo na Alemanha e na França, dando a entender que estes tipos de sociedade se revelam mais consentâneos com o modelo da “racionalidade”.

O estudo não deixa de apontar para dimensões que escapam aos procedimentos na análise adoptados. Advertindo para o facto de que se constituem como base e balizas os dados disponíveis capazes de tratamento mediante o método ecológico, chama a atenção para as novas clivagens como outro factor explicativo das condutas. Poder-se-á, também, questionar a aplicabilidade da teoria da “revolução silenciosa” ao contexto português. As novas clivagens, assim como o modelo da racionalidade, precisam de ser reexaminados na sua aplicação a alguns contextos, atendendo ao seu nível de desenvolvimento social, ainda que o autor da teoria afirme o seu alcance universal.

A abordagem da conjuntura de maior ou menor ideologização da política e da vida social portuguesas em que se realiza cada acto eleitoral, factor que pode ser fortemente condicionante, assim como a consideração dos próprios programas eleitorais e da sua influência junto da população, medida pela percepção por parte desta das diferenças existentes entre eles, são aspectos que merecem ser considerados. Estes factores são indiciados através da análise da abstenção política. Como se usam dados agregados, não é obviamente possível controlar os posicionamentos ideológicos dos eleitores. Um dos “efeitos” do método é ainda o de se supor que a base eleitoral, na sua constituição sociológica, nomeadamente de classe e de cultura, se mantém constante, o que poderá não ser verdade. Além do sistema político e da conjuntura em que se realizam as eleições, a consideração da própria lei eleitoral, variável que é isolada, porque não é susceptível de tratamento mediante o método utilizado e objectivo da pesquisa, poderá oferecer contributos explicativos.

Mudança Eleitoral em Portugal, de André Freire, constitui um trabalho que introduz uma mudança qualitativa no estudo da participação política e, em especial, da conduta eleitoral em Portugal. Há produção teórica na abordagem da realidade portuguesa e, nessa produção, existe conhecimento científico elaborado, enquanto conhecimento controlado. O estudo vale pelo que demonstra e vale pelas janelas que, aqui e além, deixa abertas, e pelas vias que traça para novos estudos, em que dados ecológicos e investigação por inquérito possam ser combinados. Nisso está a sua riqueza e o seu mérito. Trata-se de um rico e precioso contributo prestado à comunidade científica no domínio da sociologia.

 

* António Teixeira Fernandes é professor catedrático do Departamento
de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto /
/ Via Panorâmica, s/n / 4150-564 Porto / Portugal.
E-mail: atfernandes@letras.up.pt

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License