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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.39 Oeiras ago. 2002

 

REDUÇÃO DE RISCOS, ESTILOS DE VIDA JUNKIE E CONTROLO SOCIAL

Luís Fernandes* e Catarina Ribeiro**


Resumo Neste artigo propomos uma leitura do significado das estratégias de redução de riscos, à luz das exigências de normalização em torno do estilo de vida junkie. Partindo dos consensos convencionais na comunidade científica sobre a definição, as origens e as características da redução de riscos, reproblematizamo-los com base no que a caracterização etnográfica do mundo junkie nos autoriza a dizer. Concluímos com uma chamada de atenção acerca das contradições e paradoxos que encerram as práticas heterogéneas da redução de riscos, o que não as impede de funcionar como ponto de convergência de protagonistas múltiplos da intervenção nas drogas e de actores variados dos mundos urbanos desviantes.

Palavras-chave Redução de riscos, drug policy, controlo social.

 

Abstract In this article we propose to interpret the significance of risk-reduction strategies in the light of demands to impose social control on the junkie lifestyle. Taking the scientific community’s conventional consensuses on the definition, origins and characteristics of risk reduction as our starting point, we re-problematize them as far as is possible on the basis of the elements provided by an ethnographic characterisation of the junkie world. We conclude by calling attention to the contradictions and paradoxes to which heterogeneous risk-reduction practises are subject, but which do not prevent those practises from functioning as a point of convergence for both a whole range of protagonists in the drugs field and a variety of players from urban deviant milieus.

Keywords Risk reduction, drug policy, social control.

 

Résumé Cet article propose une lecture de la signification des stratégies de réduction des risques à la lumière des exigences de normalisation autour du style de vie junkie. En partant des consensus conventionnels de la communauté scientifique sur la définition, les origines et les caractéristiques de la réduction des risques, l’article les problématise sur la base autorisée par la caractérisation ethnographique du monde junkie. Il conclut en attirant l’attention sur les contradictions et les paradoxes des pratiques hétérogènes de la réduction des risques, ce qui ne les empêche pas de fonctionner comme point de convergence de multiples acteurs de l’intervention dans le domaine des drogues mais aussi dans les mondes urbains déviants.

Mots-clés Réduction des risques, drug policy, contrôle social.

 

Resúmene En este artículo proponemos una lectura del significado de las estrategias de reducción de riesgos a la luz de las exigencias de normalización en torno del estilo de vida junkie. Partiendo de los consensos convencionales de la comunidad científica sobre la definición, los orígenes y las características de la reducción de riesgos, analizamos nuevamente la problemática basándonos en la caracterización etnográfica del mundo junkie. Terminamos con una llamada de atención sobre las contradicciones y paradojas que encierran las prácticas heterogéneas de la reducción de riesgos, lo que no las impide funcionar como punto de convergencia de múltiples protagonistas, de la intervención en las drogas y de actores variados de los mundos urbanos desviantes.

Palabras-clave Reducción de riesgos, drug policy, control social.


A passagem dum fenómeno natural — a procura voluntária de estados alternativos de humor, de percepção, de consciência e de comportamento — ao estado de objecto de práticas discursivas e interventivas tem-se revelado um processo historico-social longo e carregado de contradições. Bastariam exercícios simples, como, por exemplo, o de definir droga, o de distinguir as legais das ilegais ou o de estabelecer os critérios de um consumo problemático, para dar conta da dificuldade dos consensos, num campo repleto de infiltrações ideológicas, de intervenções políticas e de interesses corporativos. É por isso que, quando um especialista é chamado a falar de drogas para um público alargado, começa geralmente o seu discurso com uma frase que é um misto de tique verbal e de pedido de desculpa: “Estamos perante um fenómeno muito difícil, multifactorial e complexo”.

Perante este estado difuso de consciência científica em que nos coloca a série heterogénea de fenómenos a que chamamos “a droga” surpreende a clareza com que os discursos da redução de riscos definem esta política interventiva, o modo aparentemente consensual com que lhe traçam as justificações e as origens, o tom pragmático com que descrevem programas de acção. É como se uma súbita clareza de espírito tivesse enfim condições para se estabelecer, depois da desorientação técnico-interventiva provocada pelos anos loucos da acid trip, que nos tinham feito confundir droga com loucura, depois ainda dos anos cannabicos, que associaram juventude a perigosidade e a uma aparência de ruína da ordem escolar, depois finalmente, dos anos da heroína, que colocaram as drogas no epicentro de todas as problemáticas ameaçadoras da ordem social. Com efeito, uma ortopedia moral do apelo urgente à intervenção conviveu mal com a necessidade de pensar em razão o fenómeno da psicoactividade — e a redução de riscos parece a primeira política interventiva que aceita um convívio com a sua lógica profunda.

Neste artigo abordaremos, de início, a definição e a justificação da redução de riscos, situar-lhe-emos a origem e a chegada a Portugal, para em seguida desconfirmarmos a clareza conceptual e interventiva trazida pela redução de riscos ao debate sobre o objecto droga. Procuraremos demonstrar o seu carácter de disciplina normalizadora das desordens sanitária e securitária e o conjunto de contradições em que se movimenta — não fugindo, deste modo, ao carácter impensado de todas as práticas sociais, cujo labor profundo age à revelia da sua racionalidade discursiva.

Redução de riscos: definição e condições de possibilidade

A redução de riscos é uma política social que visa diminuir, atenuar ou controlar os efeitos negativos do consumo de drogas, que se traduzem em problemas na esfera social ou na perspectiva individual do consumidor (Newcombe, 1995; O’Hare, 1995). As principais características de um programa de redução de riscos têm a ver com o fácil acesso para a população consumidora (daí a criação de unidades de apoio móveis), e com a operacionalização de estratégias que contribuam para a melhoria das condições de vida dos toxicodependentes.

O conceito de redução de riscos começou a adquirir alguma visibilidade no final da década de 80, no entanto, a sua difusão e implementação foi bastante progressiva, assumindo diferentes contornos nos vários países. Basta um breve olhar pela literatura para se tornar saliente um forte consenso relativamente às principais razões apontadas para justificar o aparecimento deste tipo de estratégias: por um lado, a questão sanitária, devido à crescente propagação de hepatites víricas e da sida; por outro, a constatação do fracasso das terapias tradicionais (Petisco, 2001; Marlatt, 1998; Newcombe, 1995; O’Hare, 1995). Os primeiros programas formais de redução de riscos desenvolvem-se na Holanda e no Reino Unido. Nestes países este tipo de medidas encontrou um contexto histórico, político e cultural favorável à sua implementação, inclusivamente algumas estratégias faziam já parte do sistema assistencial — por exemplo, a prescrição médica de heroína em Liverpool data de 1920.

Na Holanda, este movimento foi muito estimulado pelos próprios consumidores (logo no início dos anos 80) e apoiado pelo governo. A distribuição de seringas, por exemplo, hoje uma das principais medidas (senão mesmo a principal) para reduzir o contágio por HIV, foi impulsionada por uma organização de consumidores — a Junkiebond. Em Portugal, a expressão que este tipo de programas adquiriu, no seio das estratégias de intervenção na toxicodependência, constituiu um processo lento, feito de avanços e recuos, polémicas e múltiplas resoluções de conselho de ministros. Só muito recentemente as políticas de redução de riscos foram aceites e oficializadas.

Até meados dos anos 90 a sua visibilidade era praticamente nula (Maia Costa, 2001b), em virtude do carácter fragmentário, quase clandestino que caracterizou a implementação no terreno de medidas como a distribuição de seringas, ou os programas de substituição por metadona.1 Aceitá-las implicava questionar a ideologia “sociedade livre de drogas” e, mais concretamente todo o Plano Nacional de Luta contra a Droga, até aí em vigor. Contudo, esta resistência política altera-se, pelo menos aparentemente, de tal forma que se passa de uma situação de quase inexistência deste tipo de programas (ao contrário do que se verificava, como vimos, noutros países), para um quadro em que aparecem quase sob a forma de boom.

O dec.-lei 183/2001 de Junho (que aprova o regime geral das políticas de redução de danos) é bem demonstrativo da multiplicação de propostas e estratégias e do “refinamento” das mesmas, sob a égide do pragmatismo e do humanitarismo. Neste documento estão presentes estes dois princípios orientadores: “do que se trata é de, em certas situações limite, prescindir da abstinência como objectivo imediato e necessário, por forma a assegurar uma intervenção quando o consumo de drogas se apresenta como um dado incontornável. E se essa intervenção é inspirada por uma atitude eminentemente pragmática, não é menos verdade que responde também à preocupação ética de respeitar e promover os direitos dos toxicodependentes. ”

Contudo, minimizar danos ou reduzir riscos parece-nos entrar em contradição com as políticas proibicionistas. A própria lei, que no campo das drogas não se tem mostrado muito sensível às contradições entre as suas prescrições e o desenrolar dos factos, parece desta vez ter sido sensível ao paradoxo, propondo a descriminalização do consumo.2 As sucessivas adaptações que os mercados das drogas foram fazendo, como resposta às políticas criminais fortemente repressivas, conduziram à criação de condições de apresentação e circulação dos produtos e a técnicas de consumo que são, no seu conjunto, muito mais portadoras de risco para os utilizadores do que a substância psicotrópica em si (Blanken e outros, 2000; Fernandes, 1998; Dorn, 1995). O desenvolvimento de políticas de redução de riscos é, deste modo, inseparável do estatuto de ilegalidade que relegou as drogas para as margens do sistema sociocultural, fazendo-as retornar ao seu centro como um problema: de marginalidade, de estigmatização, de perigosidade. A redução de riscos é, pois, uma política cujo plano profundo se liga, como veremos a partir de agora, às condições do estilo de vida junkie.

O junkie: falência dos auto e dos heterocontrolos

A redução de riscos nasceu quando uma figura das drogas — o junkie — introduziu uma novidade na sucessão das figuras que até aí tinham protagonizado o fenómeno droga: é ele o primeiro a não conseguir ter estratégias espontâneas de controlo de riscos e danos. É, também, o primeiro a demonstrar o falhanço das terapias tradicionais. Falência, pois, a propósito da figura do junkie, dos auto e dos hetero- controlos.

Como pode o conjunto dos nossos trabalhos etnográficos caracterizar a figura do junkie, de modo a tornar inteligível o nosso argumento de que foi a sua radical forma de estar, tanto com as drogas duras, como com as instituições terapêuticas, que criou condições para a mudança que hoje é interpretada pela redução de riscos?

O junkie “caracteriza-se por organizar toda a sua vida em função da sequência compra-chuta-curte-ressaca-compra. Quando compra só pensa em chutar, quando regressa do chuto só pensa em chutar, para isso tem de comprar e quando consegue comprar só pensa em chutar. Tudo o que faz é em função disso, todas as suas interacções também. O seu dia-a-dia, quando não fica em casa com o sofrimento da abstinência ou com a aquietação de ”estar bem” (quando tem pó), é uma sucessão de encontros, pequenas viagens (às zonas quentes), táxis, seringas, “chinesas”… As suas relações sociais são normalmente fragmentárias, são instrumentais: ocorrem por causa do pó. Fora do pó, a vida é um longo momento em que se desmultiplicam estratégias (interactivas e económicas) para arranjar pó. Fora do pó só há pó. Com o pó também — eis o desígnio junkie, dimensão refinada da toxicodependência. (…) O junkie é, pois, aquele cujo acto foi invadido pelo pó, passando de sujeito que dispunha de si a indivíduo determinado rigidamente pelo químico” (Fernandes, 1998). Uma das particularidades que nos parece central nesta figura é a sua já longa estabilidade, que contrasta com a fugacidade de outros tipos de relacionamentos com drogas anteriores a si.

Falência dos autocontrolos

A falência dos autocontrolos, fazendo do junkie uma figura com o destino à mercê de circunstâncias que tenta agarrar e sempre lhe fogem, não radica no interior do seu espaço psicológico, não é, portanto, redutível a uma psicopatologia da adição, contada a partir dos estados borderline, das alexitimias, ou doutras entidades clínicas que lhe explicassem o agir. A falência dos autocontrolos é, tão-somente, o corolário do labor construtivo do “problema da droga” que, estigmatizando os estados psicoactivos alcançados através de substâncias arbitrariamente definidas como ilegais, relegou os seus utilizadores para um limbo social onde se amalgamam a doença, a delinquência e a perigosidade. A falência do autocontrolo é a consequência natural de trajectórias de vida em que tudo o que toca às drogas é ditado de fora, através das representações hegemónicas e da actuação dos poderes de esconjuração da droga.

O junkie não consegue gerir o limite. Nem sequer parece conhecê-lo bem: enquanto há dinheiro, consome. Daí que o único limitador seja o factor económico. E atribui sempre a estímulos externos tanto o consumir como o conseguir deixar a droga. São típicas as frases “Não fui eu, foi a droga”, “Quando dei por mim…”. Enquanto, parece-nos, nas outras figuras das drogas havia um controlo interno da relação psicotrópica que permitia gerir os consumos. A redução de riscos como dispositivo assistencial só se torna necessária quando tal gestão deixa de estar internalizada.

O junkie tem grande dificuldade em reconhecer que está a ficar dependente; identifica mal os primeiros sinais de abstinência: pensa que está e não está, pensa que não está e já está… O junkie não gosta de drogas que proporcionem experiências psiconáuticas. A cabeça “foge-lhe” e ele está mais interessado na ligação do efeito ao seu registo corporal — daí o risco e o dano serem sobretudo vividos ao nível do corpo.

O junkie: sozinho com a sua seringa, já afastado, por degradação relacional, dos locais onde antes consumia, tem como habitat para o chuto a cidade em declínio — lugares em ruína, como pavilhões industriais abandonados, casas devolutas ou em construção e terrenos ocos. As condições de consumo são duras, desconfortáveis e marcadas pelo receio tanto da insalubridade dos locais e dos companheiros de destino, como pelo receio da polícia. Noutro trabalho verificáramos já que também a população, ao ter receio do drogado, o tem em primeiro lugar por razões sanitárias — ele contribui para a degradação ecológica do bairro, cujo ícone mais forte são as seringas espalhadas ao acaso (Fernandes e Neves, 1997 e 1999).

Na evolução das figuras que têm protagonizado a história natural do fenómeno droga, o junkie, tal como o temos caracterizado, é a primeira que se acha incapaz de regular os seus consumos ou de minimizar os efeitos de possíveis ciclos pessoais de dependência.3 Logo, é algo que tem de lhe vir de fora: aceitou-se já que talvez nunca deixe de ser junkie e ao mesmo tempo oferece-se-lhe um conjunto de serviços para aquilo que é incapaz de fazer sozinho: reduzir riscos.

À sensação de incapacidade de controlar os consumos (o limitador é apenas a quantidade de dinheiro), acresce o facto de ser o primeiro a assimilar à sua auto-percepção o discurso oficial da insuportabilidade do síndrome de abstinência, da inexorabilidade da trajectória toxicodependente ou da incapacidade de sair sozinho (Romaní, Pallarés e Díaz, 2001; Fernandes, 1998). E isto faz dele o primeiro cliente drug que adere à proposta do sistema sanitário ao longo da história das dependências — conquanto este não lhe proponha, simplesmente, o drug-free, como o não propõe a redução de riscos.

Falência dos heterocontrolos

A evolução legislativa em Portugal, desde o 420/70 ao recente dec. lei de Junho de 2001, que regulamenta a redução de riscos e despenaliza o consumo, é bem demonstrativa da ambivalência moral na concepção do toxicodependente, ora submetendo-o ao determinismo da delinquência, ora ao da doença (Maia Costa, 2001a).4 Se a ganza ou o ácido das culturas juvenis foram fugazes, se a cannabis das escolas secundárias nunca tomou proporções alarmantes, não sendo mais do que o terreno da intervenção soft dos técnicos da prevenção e da moralização das comissões de pais, já a escalada da heroína e as novas associações produzidas pelo junkie (delinquência urbana, insegurança, arrumadores, errância, mercados em bairros, saturação prisional, sem-abrigo, infectocontagiosas, novas formas de pobreza…) põem radicalmente em causa um dispositivo assistencial exclusivamente montado sobre a ideia clínica. Mesmo esta, resistindo muito tempo a ser avaliada, não conseguia conviver eficazmente com os seus clientes, raramente abstinentes em terapias que exigiam o drug-free, faltosos, drop-outers e sempre a recair. Os especialistas, independentes do sistema assistencial, foram, entretanto, chamando a atenção para a fraca capacidade de atracção das estruturas de tratamento face a junkies com estilos de vida muito longe da lógica institucional que lhes é proposta.

Se o drogado fosse um delinquente, como queria certa filosofia legislativa, o que a prisão conseguiu fazer com ele demonstra bem o fracasso deste tipo de heterocontrolo. Quanto ao que ele conseguiu fazer da prisão, eis algo que importa contar um dia em pormenor e que daria, se Foucault fosse vivo, um Vigiar e Punir II — só que em vez de ser sobre a constituição da prisão seria sobre a sua desagregação…

Se o drogado fosse um doente, como quer certo articulado legislativo — e é o caso do mais recente que agora torna oficial a redução de riscos — estaríamos também perante a falência dum heterocontrolo montado em torno de concepções psicopatológicas e clínicas. Cândido da Agra demonstrou-o já há bastante tempo na sua análise genealoógico-arqueológica do dispositivo da droga, estávamos ainda em Portugal em plena expansão optimista dos centros de tratamento (Agra, 1986). Eis um doente que exige outro tipo de assistência — e enquanto ninguém sabe bem qual é, porque não se sabe que doença é, a quem tem trocam-se-lhe as seringas, dá-se-lhe um canto para chutar, substitui-se-lhe uma droga por outra, substitui-se-lhe uma droga pela mesma, mas tomada noutro sítio e noutra dosagem e mais limpa, reconhece-se-lhe o direito ao grupo de auto-ajuda, ao sindicato junkie, vai-se ter com ele, já que ele não vem ter connosco, despe-se a bata e anda-se de carrinha por becos e subúrbios, rastreia-se e encaminha-se, recomenda-se à polícia que não reprima e seja de proximidade. É tudo isto a redução de danos. E muito mais do que isto é tudo o que se fizer que caiba dentro dos princípios do pragmatismo e do humanitarismo.

A redução de riscos é, pois, uma macro-estratégia feita duma multiplicidade de micro-estratégias que visam uma nova regulamentação, simultaneamente, sanitária e securitária. Philippe Bourgois demonstrou num trabalho recente o papel desempenhado pela metadona enquanto estratégia de biopoder, no actual diagrama disciplinar de controlo das desordens (Bourgois, 2000). E nós próprios (Fernandes, 1999) referimos já o papel de pacificador social do programa de distribuição de heroína na Suíça, cujo impacto na redução da criminalidade e do sentimento de insegurança está solidamente documentado pelo Departamento de Criminologia da Universidade de Lausane.

Em síntese, o conjunto das características com que é socialmente percepcionado o junkie associa-o à perigosidade, tanto sanitária como securitária. Figura à solta num urbano em crise das convivências colectivas, acossaria a cidade e tornaria o risco mais presente do que nunca — o junkie é a figura que reactualiza hoje essa velha categoria da “classe perigosa”. Se até agora se tratava de criminalizar a pobreza, de que a repressão dos mercados das drogas nos bairros sociais é bem exemplificativa, trata-se, com a redução de riscos, de normalizar as classes perigosas dando-lhes tudo o que é necessário para superar o seu estatuto de excluídos sociais — eis o que está latente no dec.-lei 183/2001. O não-dito da redução de riscos dirige-se, precisamente, a este lado: trata-se de reduzir a ameaça da sua presença, fazendo-o a partir duma estratégia que, no seu lado visível e manifesto, visa convencer o indivíduo da necessidade de gerir o seu risco pessoal. O efeito macroscópico desta estratégia é a pacificação do todo social — a domesticação do risco.

A passagem moral (Young, 1971) de delinquente a doente, operada laboriosamente pelo dispositivo assistencial, traduz-se agora finalmente no dispositivo jurídico: o drug deixa de ser perseguido criminalmente, mas é ainda censurado socialmente, entrando na categoria das contra-ordenações… Agra tinha-o já dito no início dos anos 80: o toxicodependente era um mutante bio-psico-social, e os corpos drogados verdadeiros laboratórios experimentais, tanto farmacológica como psicológica e socialmente. Ora, eis que um vírus fugiu deste laboratório, espalhando o contágio e o perigo (a seringa infectada como arma na delinquência urbana ou no estabelecimento prisional).

A redução de riscos é a estratégia que vem adaptar-se a esta nova perigosidade do drogado — ela é, em primeiro lugar, um expediente de saúde pública. Mas a sua força actual resulta também do fracasso das terapias drug-free, que cavaram a sua própria desautorização. Neste cenário de derrocada do tratamento médico ou psicoterapêutico tradicionais, os técnicos que sempre tiveram uma posição crítica face a eles ganham novo alento — e o dispositivo atribui-lhes hoje papéis reforçados. É bem o caso da actual aceitação do espírito interdisciplinar nas equipas de intervenção, da nova centralidade de papéis até agora secundários (o enfermeiro) ou mesmo inexistentes (o animador sociocultural, o interventor em equipas de rua).

Paradoxos da redução de riscos

Como toda e qualquer estratégia disciplinar, também a redução de riscos encerra paradoxos: se por um lado procura transformar profundamente a presença e o estatuto dos indivíduos dependentes de drogas, por outro lado assenta numa espécie de resignação perante o seu destino. Esta nova política corresponde a uma pacificação que os interventores das drogas realizam: uma espécie de trégua que propõem ao drug, deixando de lhe exigir abstinência (no tratamento), deixando de lhe pregar moral (na prevenção). O comportamento drug passa a ser uma coisa-assim-mesmo, naturalizada, aceite e evidente, de tão difundida.

Mas, à força de aceitarmos um comportamento, naturalizando o que até aí era transgressão e problema, podemos também desmobilizar os esforços da sua compreensão profunda. Explicar então o quê? O que fica ainda para o trabalho de desocultação dos contornos do fenómeno psicoactivo? Assim como as benzodiazepinas, os neurolépticos e os antidepressivos calaram a necessidade de explicar em profundidade o sofrimento mental — porque a química o silenciou, embora não o expulsasse5 — também a metadona e as instituições de baixo limiar silenciaram o drug: convivem com o seu destino como algo que precisa de banho, roupa lavada e ateliês de ocupação de tantos e tão longos dias de desocupação — mas… e o que moveu tais trajectórias? Para onde vão tais destinos? Eis ao que a redução de riscos não responde. Qual é a sua vontade de articulação com a vontade de saber científica? Estamos perante novo paradoxo: se por um lado, naturalizando o comportamento drug, o banaliza, produzindo-lhe um silêncio feito da sua omnipresença, por outro, cria excelentes condições para o reforço de saberes que, até agora, têm tido um estatuto pouco mais do que marginal no campo das drogas. Com efeito, o contacto directo com os contextos de expressão do fenómeno através, por exemplo, de equipas de rua, promove o acesso às práticas sociais e às cosmovisões locais dos actores.

Está, deste modo, aberto um canal de comunicação entre uma antropologia e uma etnografia das drogas e as práticas interventivas, que requisitam àquelas um saber-fazer de terreno e uma compreensão dos sistemas de vida nos quais querem inscrever o seu acto de ajuda.

A redução de riscos, ponto de convergência

A redução de riscos é o ponto onde convergem dois sectores até aí divergentes no interior do dispositivo da droga: o sector tradicional e o sector dos interventores adeptos da mudança. Converge também para ela um novo protagonismo do toxicodependente, que consegue impor a sua adição mais como um estilo de vida do que como uma doença.

O sector tradicional

Este sector tinha como protagonistas os gestores do tratamento (direcções clínicas, médicos e psicólogos), com equipas fortemente hierarquizadas em torno da cúpula médica, com uma concepção da intervenção inflexível e paralisada em torno do drug free. Podemos detectar uma variedade de sinais particulares desta postura em Portugal: a desvalorização sistemática de modalidades alternativas de abordagem do problema, a secundarização da prevenção, a inexistência prática de reinserção, a intervenção concebida como técnica de gabinete, no confronto entre o terapeuta e o toxicodependente, ou a resistência — mesmo a crítica feroz — às terapias de substituição por metadona, quase residuais em Portugal até aos anos 90.

Interventores adeptos da mudança

À escala de cada país, a mudança reflecte-se nas políticas de gestão do “problema da droga”, mas a sua base profunda é a mudança de concepções sobre a toxicodependência, bem como a mudança no olhar sobre as responsabilidades e direitos do toxicodependente. Há vários factores precipitantes desta mudança: a diversificação do tipo de técnicos a intervir na toxicodependência, o que obriga o sector médico-psicológico tradicional a negociar as suas concepções hegemónicas; o falhanço generalizado das terapias drug-free e a pouca capacidade de atracção do dispositivo em relação a uma série de toxicodependentes; as doenças infectocontagiosas relacionadas com as drogas.

Sobretudo este último factor obrigou a um olhar sobre o fenómeno que fosse capaz de ir para além da terapia de gabinete, ao encontro dos estilos e das práticas drug que estavam na base do problema epidémico. Isto cria, como já vimos atrás, condições de reflexão para os olhares socioantropológico, da saúde pública e dos próprios toxicodependentes, o que tem como exemplo extremo a formação de colectivos de utilizadores que se reclamam de poder negocial na definição das políticas.

Toxicodependência como estilo de vida

A diversificação das respostas que têm vindo a ser desenvolvidas testemunha uma deslocação do toxicodependente do seu estatuto de doente para o de actor dum estilo de vida. Grupos de auto-ajuda, centros de dia, casas de acolhimento temporário, casas de injecção assistida, ou pontos de troca de seringas, distribuição de metadona e mesmo de heroína, não põem já em causa a toxicodependência enquanto sintoma ou estado psicopatológico, mas encaram-na como “um elemento dum conjunto de hábitos adquiridos por sujeitos dum grupo social a partir das suas condições materiais e ideológicas de existência” (Romani, Pallarés e Díaz, 2001). Nas trajectórias típicas do estilo de vida junkie, aparece como etapa central a vivência da adição como insustentável e as múltiplas tentativas para deixar a substância. Converte-se, assim, de objecto de cura em protagonista dum direito na sociedade do politicamente correcto respeito pelas minorias: lésbicas, gays, minorias étnicas, “agarrados”… Enfim, numa sociedade que consagra o direito ao consumo e estimula à assunção das individualidades mais radicais, consagra-se o direito do toxicodependente à sua peculiar forma de vida e ao consumo do que mais gosta.

A redução de riscos é, pois, o lugar da convergência destes três sectores. O primeiro chega lá por resignação: tal como os polícias perdem na luta contra o tráfico, também os terapeutas perdem na luta contra esta “doença” tão peculiar… Os outros dois chegam lá por conquista: duma concepção da toxicodependência e do toxicodependente, duma concepção de ajuda e do direito a um estilo de vida.

Nota final


Procurámos tornar claro, ao longo deste texto, o papel normalizador da redução de riscos, inscrevendo-a deste modo no conjunto das estratégias de controlo social característico das sociedades do capitalismo avançado.

Tem sido salientada por muitos analistas da cultura contemporânea, a perda de eficácia das estratégias de controlo social clássicas numa sociedade em profunda transformação, que não responde já aos mecanismos disciplinares que a modernidade laboriosamente desenvolvera. Ora, a redução de riscos vem instalar-se precisamente num dos terrenos onde essa crise disciplinar se vem manifestando: o clínico. Pondo em causa a grelha da psicopatologia convencional que situava o adicto nas classificações nosográficas, dirige-se aos seus estilos de vida para, de encontro a essas formas de estar, produzir uma refinada rede de controlos.

A redução de riscos pode servir-nos, pois, de analisador das modificações da tecnologia de controlo social, num tempo em que retorna o discurso da anomia e da desagregação dos equilíbrios colectivos antigos que alimenta a angústia do vazio das normatividades e da ineficácia dos sistemas de regulação da desviância.

Notas

1 Em Portugal há um programa de administração de metadona a heroinodependentes desde o final dos anos 70, no então Centro de Estudos de Profilaxia da Droga do Norte, hoje CAT da Boavista. Constituía, porém, uma experiência isolada e fortemente criticada pelo mainstream dos meios terapêuticos. Cumpre aqui registar essa experiência, tanto pelo seu pioneirismo como pelo sui generis de defender o programa de substituição opiácea através dum sofisticado racional psicanalítico.

2 Continua a deixar por resolver, porém, o como adquirir o produto sem cometer um ilícito, bem como a possibilidade da distinção entre posse para consumo e posse para tráfico que, se medida apenas em gramas, conduz a erros de julgamento grosseiros, responsáveis por prender consumidores que detinham doses tecnicamente para tráfico e deixam em liberdade traficantes que detinham doses aparentemente para consumo…

3 Numa recente revisão do adquirido por variados trabalhos etnográficos, Romani, Pallarés e Díaz (2001) salientam as seguintes características do comportamento do heroinómano, a partir do momento em que reconhece a sua dependência: a dose , a frequência de consumo assim como a pureza da substância são muito baixas, pelo que a componente farmacológica não é o elemento determinante do comportamento; o tempo que decorre desde o início do consumo de heroína até ao momento em que se reconhece a dependência apresenta uma grande variabilidade, constatando-se que para os que se iniciaram na década de 70 este período oscila entre um ano e dois anos. Para os que se iniciaram nos anos 80 este período reduz-se para cerca de quatro meses, apesar da menor dosagem e pureza da heroína consumida; os junkies dos anos 80 têm tendência a auto-reconhecer-se como dependentes logo nos primeiros consumos; o síndrome de abstinência, relatado pela maioria dos consumidores, é relativizado com o passar do tempo, não respondendo à sintomatologia da dependência física, tem uma alta componente psicológica relacionada com as expectativas e imagens interiorizadas a propósito do tal síndrome; a administração endovenosa reforça o comportamento de dependência e constitui um reforço psicológico na relação com a heroína.

4 Em 1970, com Marcelo Caetano, ele é ameaçador, anti-social e a sociedade tem de defender-se: racionalidade da defesa social; em 1976, na fase revolucionária, reconhece-se que é doente e, a par da repressão ao tráfico, cria-se o dispositivo preventivo e de tratamento; em 1983, retorna a perigosidade e o controlo duro, secundarizando-se o plano terapêutico, que inclui a possibilidade de tratamento compulsivo: “Se não te tratas, tratamos nós de ti” (Maia Costa, 2001a).

5 Tomámos esta ideia de Cândido da Agra, escutado por nós repetidamente em várias comunicações públicas.

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* Luís Fernandes. Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. E-mail: fpce@psi.up.pt

** Catarina Ribeiro. Psicóloga do Gabinete de Estudos e Atendimento a Vítimas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
E-mail: cribeiro@psi.up.pt

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