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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.39 Oeiras ago. 2002

 

BARRANCOS NA RIBALTA, OU A METÁFORA DE UM PAÍS EM MUDANÇA

 

Luís Capucha*

Resumo Em Barrancos, pequena vila fronteiriça do sul de Portugal, nas festas de Agosto são sacrificados toiros em honra de Nossa Senhora da Conceição, apesar de existir uma lei que proíbe espectáculos com toiros de morte. As festas de Barrancos constituíam motivo pontual de estudos antropológicos, e delas não havia notícia para mais do que um pequeno grupo que as frequentava ano após ano. Subitamente tornaram-se objecto político e mediático central do verão português. A história recente de Barrancos constitui um exemplo paradigmático de como, no mundo moderno, uma festa de uma pequena povoação, dotada de carga simbólica forte, pode ser ampliada e converter-se num fenómeno nacional, relativo às relações de poder simbólico, à dominação cultural e aos direitos culturais.

Palavras-chave Direitos culturais, festa de toiros, caso de Barrancos.

 

Abstract During the autumn festivals in Barrancos, a small border town in the south of Portugal, bulls are sacrificed in honour of Our Lady of the Conception despite the existence of a law that prohibits bullfights in which the animals are killed. In the past the Barrancos festivals had been the object of occasional anthropological studies, but little was ever heard about them other than that a small group of people attended them year after year. Suddenly, one summer they became the central focus of both political and media attention. The recent history of Barrancos is a paradigmatic example of the way that in the modern world a small township’s local festival charged with a strong symbolism can be blown up and turned into a national phenomenon that touches on issues of symbolic power, cultural domination and cultural rights.

Keywords Cultural rights, bullfight, the Barrancos case.

 

Résumé A Barrancos, petite ville frontalière du sud du Portugal, à l’occasion des fêtes du mois d’août, des taureaux sont sacrifiés en l’honneur de Notre Dame de l’Immaculée Conception, bien qu’il existe une loi qui interdit les spectacles avec mise à mort de taureaux. Les fêtes de Barrancos faisaient l’objet d’études anthropologiques ponctuelles et elles n’étaient guère connues que par les quelques personnes qui s’y rendaient chaque année. Tout à coup, ces fêtes deviennent le thème de débats politiques et le sujet médiatique central de l’été portugais. L’histoire récente de Barrancos constitue un exemple paradigmatique de la manière dont, dans le monde moderne, une fête de village, dotée d’une forte charge symbolique, peut être montée en épingle et devenir un phénomène national, qui renvoie aux relations de pouvoir symbolique, à la domination culturelle et aux droits culturels.

Mots-clés Droits culturels, course de taureaux, fêtes de Barrancos.

Resúmene En Barrancos, pequeño pueblo fronterizo del sur de Portugal, en las fiestas de agosto se sacrifican toros en honor de Nuestra Señora de la Concepción, a pesar de existir una ley que prohíbe espectáculos con toros de muerte. Las fiestas de Barrancos constituían motivo puntual de estudios antropológicos, y no había noticias de ellas nada más que para un pequeño grupo que las frecuentaba año tras año. De repente se volvieron objeto político y mediático central del verano portugués. La historia reciente de Barrancos constituye un ejemplo paradigmático de como, en el mundo moderno, una fiesta de un pequeño pueblo, con una fuerte carga simbólica, puede ser ampliada y convertirse en un fenómeno nacional, relativo a las relaciones del poder simbólico, la dominación cultural y a los derechos culturales.

Palabras-clave Derechos culturales, fiesta de toros, caso de barrancos.


De caso antropológico a fenómeno nacional

Barrancos é uma pequena povoação com cerca de 2000 habitantes, situada numa região de “ruralidade profunda”, poisada na crista de um monte numa ponta de Alentejo cercada de Andaluzia por quase todos os lados. Distinta de todas as outras terras portuguesas, constituía um caso notável de estudo antropológico, por causa do seu dialecto e porque, nas festas de Agosto, toureiros vestidos de luzes matam toiros a estoque.1

Apesar da lei publicada em 1928, que proibiu a morte de toiros em espectáculos públicos, as festas de Barrancos era toleradas pelos poderes instituídos — que delas tinham notícia — mas desconhecidas dos portugueses em geral. Apenas uns escassos milhares de “peregrinos” tinham por hábito anual rumar a essa autêntica Meca portuguesa dos toiros de morte.

Todos os anos a Comissão de Festas ia ao Tribunal, para regressar ilibada por falta de provas: no momento da presumível morte dos toiros nenhuma autoridade se encontrava na praça e não havia testemunhos embaraçosos. Nos últimos anos, porém, muita coisa mudou.

Em 1996 um canal de televisão privado filmou e transmitiu uma reportagem sobre as touradas de Barrancos e tudo se precipitou, num efeito em “bola de neve”. Para a população local o facto foi recebido com a euforia de quem via, finalmente, reconhecida e divulgada a sua singularidade. Mas logo no ano seguinte se verificou que a notoriedade tinha um preço: a sustentação de uma batalha política, simbólica e judicial cujas proporções não se poderiam prever de início.

Em 1997, uma associação de protecção dos animais interpôs uma providência cautelar subscrita por um juiz de Lisboa no sentido de impedir a realização das touradas.2 Se a televisão ia a Barrancos pelo pitoresco da situação, após a providência cautelar, o motivo mudou e tornou-se muito mais interessante do ponto de vista mediático.3 Mobilizaram-se então todas as televisões, rádios, jornais, para verificar se o governo mandaria ou não forças de polícia em número suficiente para assegurar o cumprimento da ordem do juiz ou se a população resistiria ou não até às últimas consequências, como se previa. As questões foram-se multiplicando, desde a divisão de poderes entre tribunais e governo até às formas da resistência da população e aos mais diversos temas de interesse nacional e local.

Em 1997 a presença de Barrancos nos media atingiu níveis impressionantes, crescendo em 1998 e, principalmente, em 1999 e 2000. Em 2001 verificou-se apenas uma ligeira redução. As festas passaram a ser notícia de abertura e prato forte dos telejornais e principal notícia em todos os periódicos e nas rádios, durante dias a fio. Só o caso de Timor e, mais recentemente, os atentados terroristas de 11 de Setembro, ocuparam tanto espaço mediático.

A título de exemplo, entre os meses de Maio e Dezembro de 2000, os dois principais jornais diários de referência publicados em Lisboa, o Público e o Diário de Notícias, incluíram 77 notícias — com chamadas na primeira e última páginas muitas delas —, 18 artigos de opinião subscritos pelos opinion makers oficiais e 13 artigos de opinião de outras pessoas, 16 cartas de leitores, 11 cartoons, 7 citações de artigos publicados noutros jornais, 10 reportagens, 1 página de fotos e, até, 3 editoriais, cujo tema foi Barrancos ou em que Barrancos aparecia referido pelas mais diversas razões. Foram, apenas nesse período, 156 registos que dariam para encher 59 páginas sem publicidade, distribuídos por Maio (7 referências), Junho (8), Julho (4), Agosto (81), Setembro (44), Outubro (4), Novembro (5) e Dezembro (3). É esse material que constitui o principal objecto do presente artigo.4

Naturalmente que uma tal profusão de informação permitiu criar um autêntico fórum em Portugal, para o qual se mobilizaram muito mais do que “aficionados” e “defensores dos animais”. Um conjunto de temas com óbvio interesse estratégico emergiu de todo o debate, tornando Barrancos numa metáfora de muitos tópicos relevantes na agenda social, cultural e política do país.

Creio que estamos perante a evidência de como um fenómeno de identidade cultural de base local, participando num sistema cultural compreensivo como é a cultura tauromáquica, pode fornecer a linguagem para uma leitura abrangente dos fenómenos do mundo moderno e da respectiva dinâmica.

Como salientou António Firmino da Costa num dos artigos de opinião publicados,5 Barrancos tornou-se um fenómeno social total.6 Para além da própria festa e dos problemas da terra, serviu de pretexto para discutir o poder, a lei e as fontes do direito, a relação entre o campo e a cidade, os animais e as relações das pessoas com eles, a cultura erudita e a dominação das culturas populares, a organização do estado e a relação dos portugueses com ele, os mecanismos da política e da comunicação social, a idiossincrasia dos portugueses, entre muitos outros assuntos, incluindo naturalmente a festa de toiros. Vejamos então alguns dos principais temas abordados.

A lei


A lei foi um desses temas. A questão foi abordada a dois níveis. Por um lado, o “caso” de Barrancos foi utilizado como metáfora da relação dos portugueses com a lei. Depois, a própria lei que regula o espectáculo de toiros em Portugal esteve em equação.

Frequentemente Barrancos era apresentada como símbolo de um suposto traço de carácter profundo dos portugueses: a sua tendência para o incumprimento das leis. Não se trataria nem de um sentido de cidadania contra as leis injustas, nem de um espírito anarquista apelando à auto-regulação, mas de uma endémica propensão para aceitar (quando não venerar) a autoridade, nalguns casos de forma selectiva, e simultaneamente evitá-la. Segundo essa opinião, os portugueses não gostam de enfrentar os problemas, pois preferem torneá-los. Assim como não se cumprem as regras de trânsito e depois logo se vê se há multa e se ela tem mesmo de ser paga, ou como não se pagam impostos na esperança de que a fiscalização não se exerça ou que um contabilista habilidoso dê uma volta nas contas, primeiro matar-se-iam os toiros, contra a proibição, e depois logo se pagaria a multa resultante da lei.

Curiosamente, este tópico aparece tanto para defender (“para quê persegui-los se não fazem mais do que tantos outros cidadãos, às vezes em situações bem mais gravosas e igualmente impunes”) como para atacar Barrancos, investida na categoria de exemplo paradigmático de laxismo, da “cultura da impunidade” e da falta de autoridade do estado.

O argumento é, naturalmente, como quase sempre acontece com estas imagens generalizadoras, duplamente falacioso: nem é seguro que o suposto traço profundo da idiossincrasia portuguesa seja mais do que uma representação estereotipada da realidade (aliás, talvez interessada precisamente na descredibilização do estado), como prova, de resto, para não sair do campo taurino, o conformismo com que o nosso regulamento tauromáquico é geralmente aplicado; e é certamente falso acerca do que se passa em Barrancos, onde as leis são geralmente respeitadas e onde a questão da multa aparece como uma ameaça externa e não como uma opção e onde não se percebe, consequentemente, o argumento do desrespeito da lei.

Em segundo lugar, como seria de esperar, um outro tópico dos mais debatidos foi a lei que regula o espectáculo tauromáquico em Portugal. Em 1928 foi publicado um decreto governamental que proibiu a morte dos toiros em público. As várias revisões do regulamento taurino efectuadas desde então, nunca colocaram em causa tal norma, nem sequer motivaram qualquer debate relevante a esse respeito. Chegou-se, no máximo, a discutir a regulamentação de corridas picadas, durante um pequeno período da década de 90 em que várias delas foram autorizadas. Temos, pois, neste campo, uma das poucas leis do Estado Novo a chegar incólumes aos nossos dias.

Para além de Barrancos, cuja prática foi sempre tolerada, apenas em raras ocasiões a lei foi desrespeitada, quase sempre por iniciativa individual, isolada e simbólica de matadores portugueses. Após o 25 de Abril criou-se um movimento que deu origem a algumas corridas de toiros de morte na raia alentejana e, principalmente, em Vila Franca de Xira, onde se matou num festival em 1996 e numa corrida de toiros Palha em 1997. Uma violentíssima carga policial sobre a população que protestava contra a prisão dos toureiros, seguida de autêntica batalha campal nas ruas da vila (agora cidade), remeteu o problema novamente para círculos mais ou menos restritos de aficionados. A vetusta e autoritária lei lá se foi mantendo.

Quando as festas de Barrancos deixaram de ser uma vaga notícia de uma prática distante com que quase ninguém verdadeiramente se preocupava, para além dos habitantes locais, de grupos de jovens atraídos pela intensidade da festa e dos aficionados que faziam de Barrancos um local de culto e peregrinação transgressora, a lei entrou para o centro da agenda política.

As campanhas de propaganda lançadas pelas associações zoófilas exigindo a aplicação da lei, a todo o custo e a qualquer preço, tiveram eco político, com o PSD e o CDS/PP criticando a alegada falta de autoridade do estado e a demonstração de fraqueza do governo do PS. Este contra-argumentava com a recusa da utilização de meios de repressão que seriam claramente excessivos e passíveis de criar sérios problemas face à mais que certa resistência popular.

Se nos primeiros anos se debateu o princípio da separação de poderes entre o governo e os tribunais, a propósito da imposição pela polícia das providências cautelares, como reclamaram os opositores a Barrancos, em anos mais recentes foi a própria lei que esteve no centro da polémica.

Manifestou-se também a opinião de que o debate era e é absurdo, dado que o costume é uma das fontes da ordem jurídica e do direito. Do ponto de vista técnico, “sempre que estejamos perante uma prática reiterada com longa duração, acompanhada pela convicção de que se trata de comportamento lícito ou devido, convicção partilhada pelos autores da prática e pelas autoridades encarregadas de aplicar o direito”,7 o costume é produtor de normas jurídicas que valem como as leis. As decisões judiciais não podem ignorar este direito consuetudinário, que vigora até aparecer outra norma de âmbito local contrária.

Por outras palavras, não compete ao estado impor-se pela força, em nome de leis geradas na assembleia ou no governo, a normas igualmente legítimas, geradas no seio de comunidades que as aceitam e praticam, sem prejuízo de outros direitos fundamentais de terceiros ou dos próprios membros dessas comunidades.

Segundo este argumento, o que acontece em Barrancos é uma festa popular. Não é um espectáculo oficial. A regulamentação legal que existe em Portugal sobre as touradas aplica-se aos espectáculos formais. Só por excesso pode o estado aplicar aqui a mesma norma.

O debate seguiu porém outra orientação e foram sendo apresentadas sucessivas iniciativas parlamentares de deputados socialistas e comunistas8 com vista a mudar a lei, chumbadas devido à divisão de votos entre os primeiros. Uma dessas iniciativas mantinha tudo na mesma, incluindo o preâmbulo antitaurino da velha lei, criando apenas uma excepção para Barrancos, dada a “prática ininterrupta” dos toiros de morte.9 Uma outra não se referia de todo à lei de 1928 e ficava-se pela excepção. Até que Fernando Gomes, novo ministro do interior chegado ao governo após as eleições de 1999 com promessas de que com ele a lei se aplicaria sem dúvidas ou equívocos, elevando ainda mais, desse modo, a carga política do problema e a sua própria exposição, viu aceite uma nova iniciativa legislativa.10

A nova lei, que revogou a de 1928, descriminaliza a morte do toiro, que continua proibida e se tornou uma contravenção punível com coima.11 Passou a ser punido não apenas matar, mas também autorizar, organizar, promover e dirigir os espectáculos. A morte do toiro passou a ser punível com multa de 99.759,58 a 249.398,95 euros ou 149.639,4 a 399.038,31 euros (20 a 50 mil ou de 30 a 80 mil contos), caso se trate respectivamente de pessoas singulares ou colectivas. As multas são cumulativas (toureiro, organização da tourada, ganadeiro). Estipulam-se sanções acessórias, como a perda de objectos (incluindo receita obtida), equipamentos ou dispositivos usados para a prática ilícita; interdição temporária (dois anos) da actividade e do fornecimento de reses; encerramento do recinto. No entanto prevê-se que, “no caso do espectáculo constituir uma prática ancestral e ininterrupta, decorrente de uma tradição local”, as multas vão de 4.988 a 24.939,9 Euros ou 7.481,96 a 39.903,83 Euros (1.000 a 5 mil e 1.500 a 8 mil contos). E neste caso não se aplicam as sanções acessórias. A fiscalização compete às forças de segurança e a aplicação das multas ao governador civil.

Pronunciaram-se no debate os partidos, deputados isolados, o bastonário da Ordem dos Advogados,12 associações zoófilas13 e a Câmara de Barrancos,14 entre um vasto conjunto de outras entidades.

Mas estava à vista que o problema não era estritamente jurídico. Ou antes, as indecisões quanto à norma a aplicar, ao sentido e alcance da modificação da lei, à relação entre governo e tribunais, ao recurso à força repressiva para impor uma norma jurídica ou à tolerância da transgressão, traduzem o facto de por detrás da polémica de Barrancos estar um campo de forças em luta ainda aberta quanto ao desfecho.

Poder e direitos culturais

Contra Barrancos, impor a lei

O “caso de Barrancos” tem menos a ver com a festa em si mesma do que com a forma como ela extravasou para os palcos políticos, os meios de comunicação social e os tribunais. O que se discutiu nos jornais, nas rádios e nas televisões, na Assembleia da República ou entre os juízes, não foi tanto o ritual taurino de Barrancos, semelhante ao que secularmente existe, mas a lei, os direitos e o direito, a sensibilidade em relação aos animais, os contrastes culturais e, até, a autoridade do estado.

Dizem os que se opuseram às festas que não se cumprindo a lei que proíbe os toiros de morte é o estado de direito que fica em causa. As associações zoófilas mobilizaram-se em torno deste argumento. Mesmo contra a evidência evocada pelo governo de que a alternativa era entre “uma tradição de 200 anos ou um banho de sangue”, avançaram com sucessivos processos nos tribunais e convocaram manifestações em Lisboa, no Porto e até em Barrancos.15 Foram criticando também as garraiadas, as largadas, as festas espanholas, a farra do boi no Brasil, a transmissão de corridas de toiros na TV Cabo ou o fornecimento de dinheiro público para a construção de uma praça de toiros na Ilha de S. Jorge. Passaram ainda, com cobertura televisiva, a manifestar-se em pequenos grupos protegidos pela polícia, junto a praças de toiros, como foi o caso de Cascais e Póvoa de Varzim. Não pouparam críticas a associações de solidariedade que beneficiaram das receitas de corridas realizadas em praças desmontáveis para as suas obras sociais e envolveram a própria hierarquia da Igreja, quando perto de Fátima se organizou, com casa esgotada, uma tourada devidamente autorizada.

Protestaram contra os deputados de esquerda, por terem introduzido os toiros de morte em Portugal com a nova lei, vaticinando que correrá “sangue a jorros na praça…” e que “as novas gerações vão trocar a droga pelo sangue…”.16 E tudo porque o ministro teria cedido a Barrancos, “urdindo um plano maquiavélico”, consistente em propor coimas elevadas inicialmente, para depois as baixar a ponto que não pesassem na organização das corridas.

Por Barrancos, contra o medo e pelos direitos culturais

Na comunicação social, independentemente dos factos e da teoria do direito, passou a imagem de que em Barrancos se transgride a lei e se desafia o estado. Também algumas pessoas de Barrancos se convenceram que vencem mesmo as autoridades ao resistirem com a sua prática festiva.

Porém, não é conhecida nenhuma particular propensão dos barranquenhos para não cumprirem a generalidade das leis da nação ou para violarem correntemente as regras dominantes da moral e da ética. Trata-se de uma comunidade “normal” e socialmente integrada. Com a sua especificidade cultural, como todas as outras. Por que razão, então, a “desobediência” se concentra, diríamos que obsessivamente, num pequeno ponto? Porque, como veremos, nesse ponto se focalizam valores e referências centrais para a comunidade. São esses valores e referências que verdadeiramente estão em causa.

A lei é mero pretexto para impor uma visão do mundo, não apenas em Barrancos, mas no país. Se assim não fosse, porque não se utilizava a mesma energia no combate a tantas e tão mais proeminentes desobediências, como as que se verificam na evasão fiscal, no incumprimento das regras de trânsito, na aplicação das leis do trabalho, no tráfico de droga, entre tantas outras matérias mais urgentes? O debate estava assim colocado muito acima da resposta padrão “quem quer vai, quem não quer não vai” dada pelos “taurinos” nas polémicas tradicionais com os “anti-taurinos”.

Evocou-se que se tratava da cultura do Norte do país a querer impor-se à do Sul, numa nova cruzada contra os “mouros” infiéis às leis do estado. Noutros casos tomou-se como referência as “vontades niveladoras de grupos urbanos que apenas se regem pelos modelos do politicamente correcto americano”, à qual os barranquenhos se limitavam a oferecer resistência. E chegou a sugerir-se que a perseguição expressa uma atitude fascista,17 visando a imposição totalitária e ditatorial da mentalidade dominante, transformando a norma de uma maioria circunstancial, baseada no pensamento “moderno”, “jovem” e “civilizado” de uma elite urbana e convencida arrogantemente da sua superioridade civilizacional, num código de conduta universal.

O problema não será, pois, jurídico, mas de poder, ou seja, de imposição de uma opinião pessoal ou de grupo, ao arrepio do que deveria ser a justiça numa sociedade democrática.

António Firmino da Costa (op. cit.) propôs uma tipificação mais fina das oposições a Barrancos. Uma delas é mais conservadora e crê que não há pertinência para as culturas identitárias de populações específicas e que todos os gostos e sensibilidades devem obedecer a um padrão único, o dela própria, que os seus aderentes têm por missão impor, se possível por via da lei (o que é um detalhe, já que se ela não existisse exigiam-na).18 Uma outra, de tipo modernista, sente-se agredida com o que à luz da sua própria matriz cultural e da sensibilidade urbana que possui em relação aos animais, surge como espectáculo de violência bárbara e gratuita. Ataca então Barrancos em nome de novos direitos. Convergem ambos os tipos de oposição na condenação dos barranquenhos. Estes, no quadro do seu contexto rural, têm “…um misto de familiaridade prática, utilitária, com os animais e de respeito pela alteridade irredutível, em alguns deles não domesticável”.

Vale a pena determo-nos neste contributo, que introduziu aquele que será, talvez, o tópico central de toda a controvérsia. O tratamento mediático do caso de Barrancos fez dele um fenómeno diferente do que era na origem: desinseriu o costume local do seu quadro de existência habitual, seleccionou aspectos que sublinhou ou omitiu, construiu uma realidade mais vasta e abrangente. Essa nova realidade colocou num novo plano a atitude etnocêntrica presente muitas vezes na relação entre meios culturais diversos. O desconhecimento dos valores e dos sentidos das culturas alheias leva à rejeição de certos costumes. Isso acontece muito com práticas alimentares ou lúdicas, formas de falar e vestir, rituais ou cerimónias. Por outro lado, paradoxalmente, é comum valorizar-se o que é diverso e exótico. Mas num caso e noutro opera um princípio de separação que evita o confronto. Ora, na “modernidade contemporânea”, torna-se inoperante o princípio da separação, por via da “proximidade” em relação aos factos “produzidos” pela comunicação social. Evidencia-se assim a coexistência, a mescla e o cruzamento de sensibilidades e gostos diversos e às vezes até opostos. O respeito pela diversidade passa a implicar uma ética do reconhecimento da dignidade das diferenças e da universalidade de direitos, de que só são de excluir as culturas e as práticas que procurem impedi-lo. Essa nova ética está por trás de uma quarta geração de direitos, os direitos culturais.

A questão não é, então, se a “tradição” deve ou não ser cumprida. Não houve um “problema” com as festas de Barrancos enquanto experiência vivida, em si mesma, como sempre o foi. Passou a havê-lo quando essa experiência foi pretexto para uma luta, a nível nacional, pelo reconhecimento do direito universal de indivíduos e comunidades desenvolverem práticas culturais específicas. Como as posições são muito assimétricas, Barrancos pode estar a ser vítima do desejo de hegemonia de certas elites urbanas, conservadoras ou modernistas, agora no novo campo do direito à identidade cultural local.19

Podemos então, a esta nova luz, reequacionar o problema do estado de direito e da sua actuação em Barrancos. A autoridade do estado resulta da sua legitimidade, sem o que resvala para o autoritarismo. Numa sociedade democrática, plural, tolerante e moderna, a legitimidade da lei assenta, antes do mais, na sua instrumentalidade com vista a assegurar os direitos dos cidadãos. Ora, os direitos são hoje também direitos culturais. Eles afirmam-se em Barrancos contra uma atitude arrogante e autoritária que pretende impedir a esta comunidade a afirmação da sua identidade, impondo visões do mundo uniformizadas e exclusivistas. É, pois, contra o autoritarismo e não contra a autoridade do estado que se luta em Barrancos.

Barrancos: a festa em estado puro

À superfície, a espuma dos factos

As festas de Barrancos ganharam, como vimos, uma dimensão inesperada, tornando-se um caso nacional e total. Terá isso acontecido por acaso? Talvez não. Elas possuem uma “densidade simbólica” que justifica a sua capacidade de resistência e de atracção.

As notícias descrevem os detalhes da festa. Mesmo sem se ir lá, lendo os jornais, ouvindo a rádio e vendo a televisão fica a saber-se muita coisa do que lá se passa. Vejamos alguns dos factos descritos.

Barrancos “veste-se” para a festa, com as casas caiadas, as colchas nas janelas, e as tascas, os cafés e restaurantes, bem como pequenos pontos de venda de bebidas e comidas improvisados, tomam medidas especiais para a invasão de clientes sequiosos.

No dia 28 de Agosto começa a festa com a procissão. As mulheres, que são a esmagadora maioria, estreiam indumentária cuidada.20 À frente do cortejo vão-se lançando foguetes e atrás toca a banda. Ainda mais atrás os homens, sempre em número reduzido, vão entrando e saindo. As excepções são aqueles — como os festeiros, os bombeiros, os membros das confrarias encarregues de levar os pendões e andores — cujo estatuto os obriga a integrar o núcleo central.

Durante a procissão o frenesim festivo começa a soltar-se. E logo após o seu termo, e depois todas as noites durante as festas, bebe-se “tinto de verano” ou cerveja nos bares, dançam-se sevilhanas, canta-se, tocam-se os corpos, num ambiente que nos transporta para as páginas de “Fiesta”, onde Ernest Hemingway recria o ambiente caótico, convulsivo, efusivo, dramático, de embriaguez colectiva e alegre dos “Sanfermines” de Pamplona.

Aos jornalistas impressiona o “palmoteo” e “cachondeo” durante toda a noite, noite após noite, sem quebra de ritmo, com copos e mais copos, sempre ao som de música espanhola ou de cantares típicos andaluzes, alentejanos e barranquenhos.

Na manhã de cada dia de festa chega o encerro dos toiros. Logo cedo, toda a população21 e visitantes acorrem à praça, onde a Câmara montou os tabuados,22 estrutura de madeira que transforma o largo num recinto onde se podem lidar os toiros e assistir à festa. Soam os foguetes e o primeiro toiro irrompe na “arena” improvisada vindo de uma calçada íngreme que desemboca no largo, por entre as fugas aparentemente desordenadas, os tropeções e os sustos dos homens e rapazes mais afoitos ou temerários. Mãos hábeis laçam o animal com uma corda e depois fecham-no no curro, construído debaixo dos tabuados. Depois virá outro toiro. Uma vez encerrado também esse, os mais velhos dirigem-se a uma das sociedades23 ou a uma taberna para beber umas “copitas” com amigos até ao almoço, enquanto os mais novos vão dormir uma pequena sesta.

O principal “furo” jornalístico vem mais tarde, com a notícia de que “a tradição” se cumpriu, com a morte dos toiros. A meio da tarde, os jovens, semi-refeitos com a sesta, e os adultos, já de almoço comido, todos convergem para a praça. Os homens mais novos e os rapazes aguardam no meio do recinto o início da tourada, altura em se colocam na parte interior dos tabuados, em posição que lhes permite subir e furtar-se à investida do toiro. Outros homens, geralmente mais idosos, verão a tourada a partir das “sociedades” ou da parte exterior dos tabuados, por baixo das bancadas, onde também se colocam algumas mulheres com crianças que não conseguem lugar em cima. A maior parte das mulheres e das moças, se não possuírem um bilhete previamente comprado, desde muito cedo procuram um lugar disponível nas bancadas.

O aspecto do público é de grande alegria. As pessoas conversam, bebem, cantam. O recinto é regado pelos bombeiros, e grupos de rapazes molham-se uns aos outros. Depois a banda entra na praça e ocupa um lugar reservado nas bancadas, junto ao local onde se situam os convidados da Câmara Municipal. Sempre com algum atraso em relação à hora marcada, a Comissão de Festas faz o “passeio”,24 apresentando os toureiros, vestidos de luzes.

Salta o primeiro toiro à praça, e é lidado com a arte e o engenho possíveis. Em função do mérito da lide e da estocada com que é morto (as notícias descrevem-nas boas ou más) assim o toureiro será saudado e brindado com apêndices do animal (as orelhas e o rabo) ou fortemente “abroncado”. Depois vem o segundo toiro, terminando a corrida com o respectivo arraste pelas mulas, por entre a multidão que entretanto invade o recinto. Assim se passa nos dias 29 e 30 de Agosto. No dia 31 há uma diferença: na tourada são lidados um novilho e uma vaca, que deverá ser pegada e, na sequência de uma das pegas, levada ao interior da “sociedade dos ricos”. Regressa ao recinto rodeada pelos homens que a agarram e cercam até que cai fulminada por “choupa” certeira.25

Seguem-se a cada tourada mais bebidas, mais conversas e mais cantigas. Petisca-se (a partir do segundo dia, haverá carne de toiro com tomate) em casa, nos restaurantes ou nas tabernas, e depois ruma-se uma vez mais ao largo (alguns jovens permanecem em grupos nas tabernas e bares) para assistir a um espectáculo musical, quase sempre com música flamenca ou sevilhanas. Findo o espectáculo, os casados vão para o baile, os mais novos para os bares e mais tarde também para o baile. Na madrugada seguinte comem uma açorda de alho e farão outro encerro.

Para além destes rituais mais tradicionais, outros factos, de carácter anedótico, emergem com um relevo que apenas o tratamento mediático lhes confere. Por exemplo, os repórteres contam que todos os toureiros foram devidamente identificados pelas autoridades, em cumprimento da ordem, a qual não terá sido perturbada por ter havido ameaça de bomba.26 Protestam contra os populares que tapam as câmaras de televisão no momento da execução da “sorte de matar”, seguindo uma “tradição” iniciada no ano de 1998, quando impedir a identificação dos toureiros era decisivo para a batalha jurídica. E salientam o acto isolado de um jovem forasteiro que, iludindo as normas locais, unge o rosto com sangue do toiro acabado de estoquear. Noticiam também a actividade da polícia, satisfazendo a curiosidade nacional de saber se o governo consegue ou não impedir a morte dos toiros ou se vai ou não haver repressão. Tudo, o importante e o acessório, o nuclear e o lateral, o normal e o episódico, o real e o ilusório, é tratado com o mesmo tom de acontecimento notável.

Pelo meio os jornalistas vão deixando cair notas desencontradas sobre a vida da vila e sobre o que dela os locais lhes querem contar. Por exemplo, histórias do contrabando, de casamentos entre espanhóis e portugueses, da actual degradação da Herdade da Coitadinha e de como nela se fez campo de concentração durante a guerra civil espanhola. Dizem que Barrancos não progride e que os jovens partem para encontrar emprego enquanto a maior parte das pessoas da vila só fica com a parte má da fama e com o processo jurídico para resolver. No mesmo tom e sem curiosidade para resolver o paradoxo, falam da construção de um novo hotel de três estrelas e da abertura de novos restaurantes.

Poucas vezes se descrevem outras datas festivas do calendário barranquenho, embora ocorra uma ou outra referência isolada, principalmente quando os locais as mencionam por contraste com a feira de Agosto.

Por exemplo, no Natal, a Câmara Municipal e alguns jovens transportam para o largo central — a praça da Liberdade, em frente à igreja, onde no Verão se realizam as touradas — lenha que será acesa numa enorme fogueira na noite da consoada. Depois do jantar em família, as pessoas dirigem-se para o largo, assam catalães27 para comer, cantam e, no caso dos jovens, tocam as zambombas28 pelas ruas da vila. A festa da família, a data preferida para baptizar as crianças, é também a data em que toda a comunidade se reúne no espaço público, mas de um modo mais virado para o interior, sem a “confusão” dos visitantes e, logo, classificada como mais “genuína”.

No Carnaval, os rapazes dizem versos à porta das moças e os jovens, em conjunto, com quadras críticas, acertam contas entre os vizinhos. Nos “quintos” os mancebos despedem-se da comunidade antes de irem “a sortes” para a tropa.29 Na Pascoela a população vai “a flores” para os campos da vizinha Encinasola (cuja população faz o mesmo), comer, beber, dançar e cantar, namorar e conviver. No dia 8 de Dezembro a comissão feminina — homóloga da masculina, que organiza a festa de Agosto — organiza outra procissão em honra de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Barrancos.

Em cada um destes dias, e ainda noutros quando a oportunidade se oferece, a Comissão de Festas organiza um baile, com um bom conjunto espanhol. Para além disso, se quisermos ponderar adequadamente a “taxa hedonística” de Barrancos,30 teríamos de acrescentar realizações várias ao longo do ano, como tentas, capeias e vacadas,31 passeios a cavalo, caçadas e batidas ao javali, realização de peças de teatro, exposições de arte e os animadíssimos bares e discotecas locais.

O sentido da festa

No conjunto, inegavelmente, por entre as ocultações, as saliências e os exageros, a imprensa transmite a imagem de uma festa intensamente vivida. Mas o que as notícias não podem explicar é o sentido dos acontecimentos e rituais que descrevem. Nesse ponto intervieram nos debates sociólogos e antropólogos, com artigos de opinião que chegaram a um auditório de fazer inveja ao mais reputado dos cientistas sociais.

Explicou-se, por exemplo, por que razão começa a festa com a procissão. Trata-se, obviamente, de prestar tributo à devoção pela padroeira, segundo padrões coreográficos que traduzem bem uma religiosidade pouco submetida às normas mais ortodoxas da igreja-instituição. Mas trata-se também de traçar uma fronteira entre o dia-a-dia e a festa.32

O quotidiano é o tempo da rotina, da ordem social, das regras, do trabalho, da vida familiar, das hierarquias e da segmentação dos papéis desempenhados por cada um na comunidade. A festa é o outro lado da vida, a diversão, a suspensão das regras que marcam o quotidiano, a inversão de estatutos, a excepção, o excesso, a transgressão. Mas as festas e os seus rituais resultam das mesmas substâncias que organizam os padrões de comportamento da vida corrente, representando-as de modo diverso do normal.33

Por exemplo, as relações entre homens e mulheres numa comunidade como a barranquenha caracterizam-se por uma forte segmentação de papéis sociais e familiares, geralmente em desfavor das mulheres e principalmente a partir do casamento. Essa assimetria traduz-se de múltiplas formas no quotidiano, desde a divisão do trabalho doméstico até à frequência de espaços públicos. A festa realça essa assimetria. São as mulheres (e não os homens) que desfilam na procissão; é a Comissão Feminina que organiza a procissão de 8 de Dezembro, enquanto a masculina organiza a feira; as mulheres colocam-se nas bancadas, e não no interior do recinto, para assistir às touradas; as mulheres, mesmo na feira, não bebem e não cantam nos bares nem nas sociedades, entre uma infinidade de outras marcas simbólicas de diferenciação.34 Mas ao mesmo tempo, durante as festas as mulheres saem, vão ao baile, jantam fora de casa, encontram o espaço e um tempo de excepção para escaparem à rotina. A festa cumpre desse modo um papel ambivalente de representação simbólica da desigualdade de género e de alívio de algumas das tensões resultantes dessa desigualdade.

Tomemos um segundo exemplo: os sistemas de regras. Vigoram no dia-a-dia de Barrancos as regras consagradas no ordenamento jurídico e institucional do país. Há leis, normas, burocracias e instituições, como a igreja, as autarquias, o centro de saúde, as escolas, a GNR, a conservatória do registo predial e civil, os correios, os bancos, os partidos políticos, entre outras, que as aplicam e corporizam. Há também valores, representações, crenças, ideologias, que os barranquenhos partilham com os outros alentejanos e com os portugueses, espanhóis, americanos, franceses, timorenses, etc. Há, porém, igualmente regras de relacionamento e de conduta, redes de relações, crenças, costumes, referências culturais, interpretações das ideologias e dos valores, que são próprios da comunidade local e que foram sendo construídos ao longo da sua história. É este último conjunto, que poderemos designar por identidade cultural local, que as festas de Barrancos, em primeiro lugar, salientam e reforçam.35

Vejamos a procissão.36 Não é ainda o ritual disruptivo e tumultuoso que caracteriza outros momentos da festa. Mas, ao combinar uma ordem definida pela posição de cada um no desfile com o tom simultaneamente sagrado e alegre com que, percorrendo as ruas da vila, as pessoas se apresentam umas às outras já preparadas para a feira, só por isso já quebrando a rotina, a procissão processa a passagem para o que aí vem de momento excepcional de inversão das normas e regras correntes. Diz-se que os pais, antes de irem para a procissão, se despedem da família até ao fim da festa, acto simbólico que marca a suspensão das autoridades e das formas correntes da organização social, incluindo as da vida familiar. As regras globais ficam suspensas, tal como as respectivas autoridades, para se afirmarem as regras da festa e da desordem organizada segundo critérios locais que elas instauram.

A distinção entre o Natal, mais virado para a comunidade, e a feira de Agosto, mais aberta aos visitantes, traduz bem aquela diferença entre normas gerais e identidade local. É a ela que também reenviam as opiniões expressas por muitos barranquenhos, queixando-se de que, por causa da propaganda que passaram a ter, o número de visitantes aumentou de tal modo que muitas vezes as coisas já não podem ser feitas como era tradição. Por exemplo, o comportamento do público que se coloca no interior da praça de toiros, a maneira como as pessoas bebem colectivamente, entre muitos outros aspectos, salientam a distinção.

À descoincidência entre as normas locais e as regras nacionais tem ainda de ser atribuído um dos temas mais focados na imprensa: a diversidade dos modos segundo os quais a comunidade local se organiza para “evitar” a aplicação das providências cautelares e as consequências para os organizadores das festas. Todas elas implicam a cumplicidade da comunidade — incluindo os representantes locais da ordem nacional — no desenvolvimento de “soluções” como as que permitiram escapar ao controlo policial para fazer os toiros chegar à vila, até às que passaram pela demissão formal de todos os elementos da Comissão de Festas antes destas começarem, tornando-se a própria comunidade — conceito inexistente para fins de aplicação de coimas — responsável pelos acontecimentos.

Outro sinal inequívoco de que a festa traduz a especificidade social local é o modo como funciona a Comissão de Festas. Esta é composta por cinco rapazes, convidados cada um deles por um dos membros da Comissão anterior, sem concertação prévia.37 Eles tratarão de quase todo o programa oficial,38 incluindo a recolha de fundos através de peditórios e de um leilão de objectos oferecidos, a organização de bailes ao longo do ano e na feira, a contratação dos toureiros e dos conjuntos musicais, a aquisição dos toiros, a cobrança de bilhetes nos bailes e nas touradas, a colocação da ordem mínima indispensável aos encerros e touradas, entre um conjunto das mais diversas tarefas. Eles tornam-se, no fundo, responsáveis pela matéria mais importante para Barrancos. Fazem assim uma experiência de participação e cidadania que os tornará agentes activos da vida local. Por sua vez, a comunidade reconhece esse papel, anunciando a sua composição numa missa com pompa e circunstância e saudando-os depois numa volta à vila com a banda de música por companhia. A autoridade da Comissão é acatada sem discussão. Assim, uma autoridade que mais civil não poderia ser, assume o papel de maior relevo entre as instituições sociais.

Ainda um terceiro exemplo. Referimo-nos neste caso à estrutura das desigualdades sociais. Barrancos situa-se numa região cujo modelo económico e social dominante até há pouco tempo era o latifúndio. Os latifundiários detinham o poder económico ao qual se subordinavam, no quadro da divisão do trabalho de dominação, o poder político e administrativo local e o próprio poder religioso.39 Dominados por estas elites, os assalariados rurais, que eram a maioria da população, viam-se envolvidos numa teia de tutelas e clientelas que determinavam as oportunidades de vida e até de revolta. O modo como os tabuados eram construídos traduz esta realidade. Eram os senhores da terra que encarregavam os seus assalariados de construir os tabuados, para onde convidavam os amigos e onde se podiam sentar, também a convite, os familiares dos trabalhadores, que entretanto ficavam, assim compensados, por baixo das bancadas.

O sistema latifundiário é um sistema de fortes contrastes sociais. Entre os assalariados a pobreza marca o quotidiano. Esta situação cria fortes tensões sociais, que são aliás uma das marcas simbólicas do Alentejo desses tempos. Todos os sistemas sociais criam válvulas de escape dessas tensões, sendo a festa uma das mais importantes. A festa, como dissemos, suspende a ordem das desigualdades quotidianas, recriando um mundo tumultuoso e caótico em que todos voltam a ser mais iguais, compensando com consumos excessivos e normalmente proibidos as penúrias do dia-a-dia. Assim se “compensam” as carências e, ao mesmo tempo, se demonstra como a vida seria impossível na desordem da festa. O momento do excesso e da excepção dá saída às tensões acumuladas e a comunidade reinstala a organização normal da vida social, incluindo as desigualdades da “vida real”. Os ditos de Carnaval são outra dessas “válvulas de escape”: o que não se diria em situação normal diz-se porque a festa cria o local e o tempo previamente deslocados do contexto em que as tensões emergem e se recalcam.

A tourada em Barrancos releva do mesmo princípio de inversão da ordem normal das coisas.40 Instaura o tempo e o espaço para fazer o que noutras circunstâncias seria tabu. Primeiro sinal, já referido: as mulheres ocupam o espaço público, no centro da vila, de que geralmente estão arredadas.

Segundo sinal: ao irromper na vila, o toiro, que não distingue papéis e estatutos sociais, cria um turbilhão de homens, tornados todos iguais, fugindo perante o risco de uma colhida que não escolherá classes.41 É, pois, uma comunidade provisória e simbolicamente mais homogénea — volto a repetir que a Comissão de Festas é investida do poder mais determinante — que enfrenta o toiro, força bruta da natureza. A mesma natureza (animal) de que são feitos os homens. Mas estes são, também, dotados de uma cultura, colectivamente construída. Ao vencer o toiro, a cultura humana afirma a sua superioridade sobre a natureza animal que lhe está na base. E fá-lo afirmando o carácter colectivo dessa vitória. Um colectivo que, por sua vez, tem uma organização, traduzida, entre outros aspectos, no papel diferenciado dos toureiros, em quem é delegada a função, quase sacerdotal, de lidar e dar morte aos toiros. A festa não é apenas ambivalente, por simultaneamente dar sentido à igualdade e à desigualdade, mas multivalente, por combinar as mais diversas polaridades, como as que resultam da relação contraditória entre a natureza e a cultura.

Terceiro e mais importante sinal: de onde vem o toiro? E porque é ele sacrificado? As ganadarias bravas eram, e são ainda em parte,42 o símbolo da força e do poder dos ganadeiros, isto é, dos latifundiários que produziam toiros como emblema do seu poder e “raça”.43 Mas paradoxalmente, ele é enviado pelo ganadeiro para a derrota certa: será sacrificado pela comunidade,44 para ser comido. Este aspecto é decisivo. A carne de bovino era um bem raro no Alentejo (como de resto em toda a Andaluzia). Não estaria acessível ao comum das pessoas a não ser quando, por exemplo, nas festas do Espírito Santo, um toiro era oferecido pelas elites locais, para um bodo aos pobres.45 É essa, muito provavelmente, a origem da tourada barranquenha. Esse bodo constituía uma espécie de obrigação ou tributo pago pelos mais ricos, como penitência religiosa e, principalmente, como instrumento de reconstrução dos laços que unem toda a comunidade. Do lado da comunidade, naturalmente, o consumo de um bem tão raro, um verdadeiro luxo, quase um desperdício de animal tão importante como o toiro — veremos à frente porque deve ser um toiro e, além disso, um toiro bravo —, não se pode concretizar sem a devida comemoração, isto é, sem um ritual que assinale de forma clara o carácter excepcional da prática. Que é organizada em torno dos valores da partilha, da comunhão festiva, da igualdade e da solidariedade, mas também do dever de protecção e da distribuição desigual do prestígio e do poder. Lembremos Marcel Mauss (1950) para salientar a função social da dádiva, neste caso, de um toiro. No fundo, trata-se dos mesmos valores presentes noutros rituais em que animais — como o peru de Natal, o porco da matança, as sardinhas do Santo António lisboeta ou do São João do Porto ou as lagostas cozidas vivas — são comidos de modo ritual num bodo familiar, numa festa urbana ou num jantar de negócios.46

Naturalmente, o sistema social do latifúndio modificou-se. Fica a memória, que o ritual perpetua. Mas, até quando é que um ritual, ou uma tradição, pode lutar para perdurar, ainda por cima em contexto tão hostil como o que aqui tratamos? Ora, a festa barranquenha só se mantém activa porque continua a ser significativa no modo como traduz simbolicamente as estruturas sociais e económicas da vida local.47

Na verdade, o regime latifundista sofreu um grande recuo. O regime fundiário mantém o peso da grande propriedade, mas cresceram as pequenas explorações, apareceu a cooperativa agrícola, as explorações extensivas perderam grande parte da sua prosperidade económica e, principalmente, o emprego de assalariados decresceu drasticamente. Os contrastes sociais mantêm-se, mas são mais esbatidos ou menos visíveis. E recompuseram-se. O principal empregador concelhio é hoje, de longe, a Câmara Municipal, seguida dos diversos organismos públicos. O comércio, duas pequenas unidades agro-industriais de transformação de carne de porco preto — tornado marca de região demarcada —, pequenas explorações agrícolas e poucos outros empreendimentos, fornecem os empregos disponíveis. Os assalariados agrícolas são hoje uma pequena minoria da população. As pensões asseguram algum rendimento autónomo aos mais idosos e dependentes. Uma boa parte dos jovens prolonga os estudos.

Este processo de mudança socioeconómica implicou uma profunda alteração nas estruturas do poder. A autarquia, livremente eleita, exerce agora o poder com base na autoridade democrática. Dela dependem não apenas os empregos, mas também múltiplos aspectos da vida local, que vão das infra-estruturas — de saneamento, abastecimento de água, de desporto e lazer, de cultura, etc. — até à organização da festa. É ela quem acarreta a lenha para a fogueira de Natal, constrói os tabuados, organiza o espaço da festa e assegura a respectiva logística, convida as personalidades para assistir à tourada no espaço reservado, serve de apoio decisivo e sistemático à Comissão de Festas. Os toiros também já não são oferecidos. São comprados pela comunidade.

Numa palavra, a festa, como a sociedade, democratizou-se e adaptou-se ao mercado.

Outro aspecto relevante da vida barranquenha, atravessando de um lado e do outro da fronteira as mudanças na economia e na sociedade, é a relação com a vizinha Espanha. De Espanha não vieram maus ventos nem maus casamentos. Vieram, num processo histórico continuado, sucessivas vagas de imigração e associações familiares. Nem de lá vieram apenas invasões, já que essas provinham de ambos os quadrantes, oriente e ocidente, conforme os jogos de poder entre os senhores dos dois lados. Das guerras de outrora apenas restam gravados sinais no castelo de Noudar e a memória de massacres perpetrados por castelhanos e portugueses.48

As relações com a vizinha Espanha vão muito para além das raízes familiares, ou da própria localização. São também as cumplicidades construídas quando se escondiam pessoas perseguidas na guerra civil de Espanha; são as trocas económicas do tempo do contrabando e, depois, das compras num lado e noutro; são o intercâmbio de serviços, de Espanha recebendo Barrancos apoio em pessoal médico, fornecendo em troca o serviço dos bombeiros e água, que a terra faz questão de exibir em abundância.49

A nacionalidade portuguesa, estrategicamente afirmada no modo como a população inteira, espontaneamente, começou a entoar o hino nacional antes das touradas precisamente a partir do momento em que o estado português ameaçou pôr-lhes fim, combina-se com a referência à vizinha Espanha, formando uma espécie de identidade bipolar. O anedotário local regista este fenómeno, na forma de uma resposta à perguntam que sempre é colocada aos barranquenhos sobre a sua identidade, “portuguesa ou espanhola”. “Sou barranquenho, coño!” responderão eles. Isto é, não os obriguem a decidir porque a sua identidade é dual. Portugueses são sem dúvida, mas isso não representa serem “não-espanhóis” e, ainda menos, “anti-espanhóis”.

Poderíamos dizer de Barrancos que, no espaço osmótico de uma fronteira que não separa, mas funde, o tempo sedimentou uma estrutura cultural, social e económica cujo quadro de vida e cuja memória se repartem por duas sociedades de referência.

Naturalmente, a melhor expressão desta bipolaridade (factor de abertura e permeabilidade à novidade e à mudança, o que nem sempre acontece em comunidades rurais “distantes”) encontra-se no dialecto barranquenho, em que todos continuam a saber exprimir-se. Mas também se encontra em múltiplos aspectos da festa: a adesão ao flamenco, a contratação de conjuntos e toureiros espanhóis e, principalmente, a morte dos toiros a estoque. Nenhuma destas realidades colide, antes se combina, com as canções alentejanas cantadas nas tabernas, com a celebração dos quintos e com o exercício de pegar as vacas de caras.

É esta combinatória, em que todos os elementos são decisivos, que faz, perante o ataque externo, o chamado “orgulho barranquenho”. Uma comunidade esquecida, preterida no plano dos investimentos realizados pelo seu governo, pobre, que mantém porém uma especificidade que a torna diferente das demais, mas frustrada pela perseguição de que tem sido vítima quando pensava que tinha sido valorizada pelo reconhecimento dos media. O “orgulho barranquenho” constitui uma ilustração de um mecanismo social do qual Simmel nos falou, consistente no reforço da coesão interna e da identificação com os símbolos de uma comunidade ameaçada pelo exterior, com o interesse adicional de ela própria jogar com a devolução por esse “inimigo” externo de uma imagem de identidade apropriada como símbolo identitário.50

Novos actores no “caso” de Barrancos

Não podemos concluir esta abordagem aos sentidos profundos que se escondem para além dos factos relatáveis, sem abordar o tema das continuidades e das descontinuidades da “tradição” barranquenha. Na expressão dos habitantes e no modo como a questão dos toiros de morte foi tratada pelos media, tem estado em causa a manutenção de uma tradição local, tal como ela sempre se praticou. A tradição, porém, não é mais do que o modo que foi encontrado pelos actores para se referirem a rituais que expressam, duradouramente, a identidade cultural local. A realidade é que, mantendo-se o sentido profundo desses rituais, muita coisa mudou, a um ritmo particularmente acelerado nos últimos anos. A mediatização dos acontecimentos está longe de ser estranha a esse processo.

Barrancos oferece a oportunidade de observar um fenómeno extremamente interessante. Na teoria sociológica e antropológica, a festa tende a ser vista em função do seu lugar no quadro das estruturas, dos processos, das práticas e das representações das comunidades que a produzem. Ela exalta ou denega, salienta ou diminui os vários mecanismos subjacentes à organização dessas comunidades e aos seus valores profundos. Curioso, porém, é que, pelo menos no caso das festas populares (e provavelmente também nas outras), os que as produzem tendem a medir o seu sucesso não através desses critérios “internos”, mas pela participação de visitantes exteriores. É como se a comunidade se servisse do espelho dos estranhos para valorizar a sua própria identidade e as suas manifestações mais expressivas. Os visitantes, mesmo que deles se diga que adulteram as normas festivas, porque as desconhecem ou não compreendem os “verdadeiros” sentidos, desempenham assim um papel intrínseco fundamental. Os valores só valem se forem valorizados, e o orgulho só se afirma perante o exterior.

A questão relevante, no caso de Barrancos, é saber o que acontece quando os “de fora” são um país inteiro.

A identidade local, projectada para o exterior como preservação da tradição, produziu na verdade muitas mudanças. Vejamos apenas três exemplos: (i) a abertura de um hotel e alguns restaurantes para acolhimento dos visitantes, cujo número cresceu exponencialmente; (ii) a estampagem de “T-shirts” como motivos alegóricos da festa e da luta do povo de Barrancos emergiu como novo ritual/negócio que passou a fazer parte da própria festa; (iii) a população, outrora tão pacata, passou a mobilizar-se para manifestações, umas em Lisboa e Beja ligadas à luta pela sobrevivência da festa, e outras para apoiar o Zé Maria, vencedor da primeira série do Big Brother, investido na qualidade de representante da simplicidade e bonomia do povo de Barrancos e da inspiração criativa dos seus jovens.

Além disso, entre os agentes activos da festa, passou a contar-se com os jornalistas, dos quais os das televisões são os mais notados. Abrir as televisões à hora das notícias para ver o que se diz da terra, dar entrevistas, afirmar a vontade do povo, impedir as câmaras de filmarem a estocada, passaram a ser elementos novos na festa. Num primeiro período, tal acontecia com verdadeira euforia. Quando se começou a verificar que a notoriedade trazia consigo problemas novos, associados a novas formas de ataque à comunidade, os jornalistas passaram a registar também novas formas de relacionamento com os habitantes, que iam da relativa agressividade ao puro evitamento, colectivamente concertado, passando pela uniformização das respostas, geralmente evasivas, sempre que em causa estavam matérias que implicavam decisões relevantes, como por exemplo eleições, modo de lidar com as providências cautelares ou com eventuais ataques policiais.

Enfim, não foi só o país que descobriu Barrancos.51 Barrancos também mudou a sua opinião sobre o país e construiu por isso um discurso sobre si própria para consumo nacional, cuja referência não é já apenas a terra em si mesma, mas também aquilo que ela tem consciência de ser a sua imagem e que inclui o seu contributo para o que Barrancos sabe estar em jogo. O modo como os dirigentes locais abandonaram o discurso sobre a tradição e adoptaram, perante o país inteiro, o da luta pelo direito à identidade, espelha bem esta mudança.

Os “detractores da festa”

Barrancos teria de se afirmar, de facto, contrária à imagem que dela quiseram dar as associações zoófilas. Essa imagem foi a de uma povoação atrasada, subdesenvolvida, parada no tempo, fechada sobre tradições anacrónicas e sem desfrutar da luz do progresso e da verdadeira felicidade. A manifestação pró-zoófila que se dirigiu a Barrancos reivindicava para a terra coisas como escolas, teatro, computadores, hospital e tantas outras, que a terra já possuía ou de que, por excessivas, não carece.

Naturalmente, não era Barrancos que se visava. Visava-se passar a mensagem de que a tauromaquia constitui prática retrógrada. Aliás, ao mesmo tempo que se reivindicava a passagem da “inocente e ignorante” Barrancos das trevas para a luz, acusava-se a sua luta de ser movida por interesses ocultos de empresários sem escrúpulos que, vendo definhar o espectáculo taurino em Portugal, apenas visariam reanimá-lo, ou colonizá-lo (no caso dos espanhóis), com os toiros de morte.

Os argumentos usados são conhecidos, alguns deles, desde o séc. XVI.52 Assim, um conjunto de associações zoófilas recém-criadas dirigiu um abaixo-assinado aos deputados contra as touradas de morte enquanto “prática cruel, desumana, medieval e imprópria do nosso tempo”, que poderia ser subscrito por qualquer higienista do século passado. Os promotores dizem-se jovens sem vícios de dinheiro ou poder, que não percebem como o Parlamento cede a uma povoação com 50 anos de atraso. Querem deputados “inteligentes, humanos e evolucionistas”.53

Os aficionados são vistos ora como “sanguinários sádicos que se comprazem com o espectáculo violento do sofrimento dos animais”, ora como vítimas do obscurantismo e do atraso civilizacional. Toureiros e ganadeiros são tratados como pessoas sem escrúpulos que nada fazem na vida senão “torturar e matar”54 os toiros, aos quais, antes mesmo do que se passa na arena e para que não se possam defender perante as agressões cobardes, deixam sacos de areia nos lombos para tirar a força, esmagam os testículos para enraivecer, introduzem piri-piri no ânus para fazer enlouquecer, injectam drogas para amolecer, cobrem os olhos com vaselina para não poderem ver, limam as unhas para não se poderem mover normalmente, etc.55 As touradas são sistematicamente apresentadas como práticas cruéis, próprias da idade média, brutais, equiparáveis à pena de morte, à tortura e à inquisição.56 É notória a agressividade dos argumentos, a procura de imagens fortes e chocantes e a repetição de argumentos, como mecanismo de propaganda visando a condenação ideológica e moral da festa de toiros. Barrancos, neste quadro, foi apresentada como “ponta de lança” de um movimento mais vasto, apesar de nunca se lhe ter detectado a mínima iniciativa nesse sentido.

A festa: nunca dantes tão visível

A campanha tem tido, porém, um preço: nunca tanta propaganda tinha sido feita à festa de toiros. Para Barrancos a consequência imediata foi que o número de visitantes quintuplicou e muita gente em turismo pelo Alentejo passou a incluir aquela terra, onde só se vai por se querer ir, nos seus roteiros de fim-de-semana.

No plano nacional, todos os assuntos taurinos passaram a ter uma nova visibilidade. Até as festas populares açorianas, tão tradicionais e localmente relevantes como as barranquenhas, mas abrangendo uma comunidade muito mais numerosa, foram apresentadas numa reportagem jornalística sob o título “Barranquenhos numa ilha…”, apenas porque se diz à boca pequena que nas “praças de tenta”57 dos ganadeiros locais às vezes se matam toiros a estoque. Do mesmo modo, a Barrancos se atribui, nas notícias, a tradicional presença de milhares de portugueses nas praças de Badajoz, Olivença ou Mérida.

Barrancos apenas tem procurado defender os seus direitos culturais, sem proselitismo e sem pretender impor o seu gosto tauromáquico. Aliás, os chamados “taurinos” quase não se manifestaram, e quando o fizeram foi quase sempre para se demarcarem daquele tipo de tauromaquia popular.

Em contrapartida, agentes exteriores ao campo surgiram no debate, valorizando-o. Deram visibilidade a fenómenos que ligam a tauromaquia a outras manifestações de cultura, rompendo com um certo ostracismo que nela tem sido criticado. Mostraram, por exemplo, que ela não tem um conteúdo ideológico unívoco, ao serviço de grupos específicos, podendo servir de linguagem para a expressão dos mais diversos interesses, mesmo opostos.58 As touradas foram equiparadas a símbolo do regime autoritário, do poder latifundiário, do marialvismo, da servidão, do culto do álcool e da violência. Mas também a símbolo da “luta proletária” (dos forcados, com as mãos, por oposição aos cavaleiros, do alto da montada), a manifestação de cultura popular mediterrânica, de festa subversiva. A diversidade de conteúdos — económico, estético, fisiológico, poético, social, cultural, filosófico, religioso — e de pontos de vista profissionais, foi igualmente salientada. Marguerite Yourcenar (a propósito do papel do legislador a quem cabe mudar uma lei se ela não é cumprida), Hemingway, Lorca, Picasso, Mónica Lewinsky, o Partido Comunista Português, a Igreja Católica e o projecto soviético, são exemplos de figuras e instituições que estiveram em equação ou serviram de ilustração a argumentos.

Dada a riqueza do debate é legítimo supor que o país também tenha mudado por causa de Barrancos, confrontado como tem estado com uma realidade que existe, que é sua, mas que durante muito tempo tinha escapado à atenção da maioria das pessoas.

Os toiros e os outros animais

Nenhum outro tema, como por exemplo o dos animais abandonados, o da criação e abate industrial de animais, o das desinfestações, o do sofrimento imposto a animais domésticos encerrados em apartamentos contra a sua natureza ou mesmo o das espécies em extinção, garantiria aos interesses associados e uma determinada representação das relações entre os homens e os animais, uma plateia tão vasta como a tauromaquia.59 A presença prolongada na sociedade de uma polémica em torno da festa, a fácil descontextualização dos rituais e das práticas da lide de toiros, a incompreensão de sectores importantes da população urbana, principalmente a mais jovem, da relação de amor passional e trágico com o toiro, susceptível de ferir as suas sensibilidades que não foram educadas para tolerar algumas das manifestações mais impressivas dessa relação, são factores que contribuem para a escolha da festa de toiros como alvo de uma campanha publicitária sistemática. O pretexto adicional da lei reforçou o oportunismo da escolha de Barrancos.

A referida campanha beneficia, decisivamente, de um ambiente ideológico favorável. Uma das dinâmicas presentes no mundo moderno consiste no processo global de massificação cultural,60 imposta a partir de centros internacionais produtores de símbolos, dotados dos mais sofisticados meios de propaganda, que lhes asseguram a inculcação massiva da sua própria visão do mundo e da natureza. Segundo essa visão (a que são aparentemente mais permeáveis as populações urbanas que perderam o contacto directo com a natureza), os animais são divididos em três tipos principais: os que só aparecem já preparados para cozinhar; os que só têm existência virtual nos livros e vídeos; e os que são equiparados aos humanos.61

Quanto ao primeiro daqueles tipos, o contacto que as pessoas comuns têm com eles é de tal modo mediado pelas indústrias alimentares, que ao consumidor não chega nem uma imagem aproximada dos animais vivos. Salvo insignificantes e tímidas campanhas contra as condições em que alguns desses animais são criados, ninguém comenta os seus “direitos”, nomeadamente a serem abatidos, já que a “necessidade” de alimentação tudo justifica.62 No segundo tipo incluem-se as espécies selvagens, que chegam à generalidade das pessoas apenas na forma de imagens filmadas, por vezes cruéis e violentas, mas tão distantes que da sua natureza só fica a ficção, mais ou menos informada cientificamente, ou a revolta quando se trata de espécies em extinção.

Já os do terceiro tipo, apesar da prática sistemática de “desumanidades” como a esterilização ou a retenção em casa, são apresentados como se de seres humanos se tratasse.63 Aparentemente, quanto mais as pessoas se distanciam da sua própria natureza, mais projectam nos animais que adoptam para companhia os seus sentimentos e emoções. Projecção essa industrialmente alimentada pela produção cultural de massas, através da criação de um imaginário povoado por personagens e ícones animais “humanizados”, de que o exemplo paradigmático são as produções “Walt Disney”. À propaganda ideológica acrescentam-se estudos ditos científicos que se têm desenvolvido com base na verificação da continuidade genética, fisiológica e até emotiva entre os seres humanos e os animais em aspectos onde antes se pensava que não existiriam senão rupturas, dos quais se tem partido para abusivas conclusões éticas sobre os direitos dos animais e para um esbatimento da fronteira moral pelos menos em relação a algumas espécies de mamíferos mais aparentadas aos humanos.

As campanhas conduzidas contra a festa de toiros com base na exploração de emoções empáticas com os animais, paradoxalmente, abriram espaço para a afirmação dos valores opostos. Desde logo, do valor humanístico que estabelece uma divisão radical, ética e moral, entre os homens, sujeitos dessa ética e dessa moral, e os animais, que delas não podem ser senão objecto. Assim, se os humanos possuem direitos que advêm da sua condição de seres morais com deveres, aos animais apenas resta o arbítrio das prerrogativas que os homens lhes queiram conceder.

Mais pragmaticamente, afirmaram os que defenderam Barrancos, se há que mobilizar energias a favor de direitos, então que seja a favor de direitos humanos que continuam a ser desrespeitados. E mesmo que sobrassem energias, ainda restariam muitas práticas de violência sobre animais com maior prioridade.

Pode-se ir mais longe, tentando perceber como a diversidade dos contextos sociais segrega diferentes relações com a natureza e, por extensão, com os animais. Por exemplo, uma coisa é a morte industrial dos animais, para consumo de massa, e outra respeita a rituais sacrificiais onde entram animais, presentes em todas as sociedades e meios sociais.64 Para além do modo como cada cultura trata, na prática e no plano simbólico, os animais, deveremos ainda considerar o modo como certos animais se tornam eles mesmos símbolos totémicos de determinadas culturas. Será o caso do cordeiro de Deus do cristianismo, do “rato Mickey” do cinema de animação, dos “aristogatos” dos apartamentos urbanos e do toiro das culturas mediterrânicas. Assim, tratar o povo de Barrancos como incivilizado, por causa da tourada, é não compreender isso.

Em regiões rurais como Barrancos, não porque estejam num estágio mais adiantado de civilização, mas porque são diferentes os contextos e os modos de vida, os animais são um dado da natureza, que está próximo e que o homem respeita e utiliza directamente nas mais variadas actividades diárias. Não passaria pela cabeça de uma mulher ou de um homem barranquenho, confundir o sacrifício com fins comensais de um animal, com qualquer espécie de violência praticada sobre humanos, como por exemplo perseguir ou classificar como bárbaras as pessoas só porque pensam de modo diverso. Do mesmo modo que não passaria pela mesma cabeça abandonar cães e gatos, desperdiçar restos de comida, ou projectar num coelho sentimentos fraternais.

Alguns animais emblemáticos são, como dissemos acima, investidos de uma particular carga simbólica. Tal é o caso do toiro de lide. Deus mediterrânico antigo,65 umas vezes feroz e destrutivo, outras fértil e generoso, ao mesmo tempo criminoso e maná do bodo aos pobres, o toiro bravo tem sido símbolo de força, de poder, de fertilidade. E de insubmissão, num duelo ancestral com o homem. Criação humana, permanece porém altivo na sua bravura e desafiante na sua natureza irredutível. Do toiro não se pode ter pena, que isso é sentimento para os fracos. Nas sociedades onde permanecem cultos taurinos, o toiro bravo sugere medo e paixão. Por isso, é ele, e não outro animal qualquer, o sacrificado. São as suas qualidades excepcionais que procuram os que o comem

Essa carga simbólica está na origem de rituais que comportam, entre muitas outras coisas, a violência, é certo.66 Mas, desde logo, estão longe de deter dela o monopólio. A violência faz parte da vida e manifesta-se muitas vezes de forma desregulada e contra as pessoas. As touradas constituem, pelo contrário, instrumentos de controlo da tensão e da agressividade. Depois, se violência existe, ela é regulada e vai de par com a paixão que se sente pelo animal, incluindo o destino heróico para que foi criado. Um destino “natural”, do ponto de vista de quem os cria, os alimenta e com eles vive em equilíbrio. De resto, do ponto de vista da festa, a verdadeira natureza do toiro de lide realiza-se e exprime-se pelo acto de que morre: a bravura e a nobreza na luta (Wolf, 1999).

Conclusão: metáforas do país de Barrancos

Terá já ficado claro como foi rico e estimulante o debate travado a propósito de Barrancos. Falou-se de animais e dos seus direitos, de toiros e da sua simbologia, do direito e das suas fontes, da festa em geral e das suas funções, da festa de toiros e do seu significado, da esquerda e da direita em política, do povo e das elites, de conservadores e progressistas, de norte e sul, de urbanos e rurais.

Mas principalmente, como se procurou mostrar, o caso de Barrancos aparece recheado de interessantes motivos de análise política e sociológica. Esses motivos poderão dizer respeito tanto à própria terra, como ao país inteiro e aos diversos actores intervenientes ou colocados em equação no processo.

Estamos a analisar uma realidade que está ainda a processar-se e cujo desfecho está totalmente em aberto. Veremos como evoluirão os factos e o que nos trarão os novos episódios. Abre-se assim uma agenda de observação em três planos distintos.

O primeiro tem a ver com as transformações da própria comunidade barranquenha. O caso pode ser exemplar das relações de forças que atravessam os processos de integração de comunidades rurais recuadas na sociedade global, destino de que não escaparão, caso sobrevivam. Perdida a ingenuidade da festa etnológica, abertas as fronteiras que a isolavam do mundo mais distante, como vai adaptar-se esta comunidade que subitamente se viu envolvida no centro de um turbilhão, em luta pela sobrevivência contra adversários muito mais poderosos? Como se desenvolverão as suas estruturas sociais, políticas e simbólicas, num quadro em que para além das transformações que têm ocorrido no contexto material-concreto, a própria identidade teve que se redefinir no jogo de espelhos que resultou do choque, violento, com as imagens que lhe eram devolvidas a cada momento e com as quais aprendeu a jogar? Irá a exaltação identitária constituir um tónico para a revitalização económica, demográfica e social, ou pelo contrário fechar-se-á num discurso conservador da tradição? Até onde e em que condições poderá uma especificidade cultural como a barranquenha resistir à pressão uniformizadora que a persegue?

O segundo tem a ver com o campo tauromáquico. Não se trata de um problema central da sociedade portuguesa, mas sem dúvida afecta um segmento muito relevante da população. Barrancos forneceu à festa de toiros uma visibilidade para a qual esta não estava preparada. Extremamente conservadoras, as estruturas institucionais da tauromaquia portuguesa, incluindo o quadro normativo que a regula, vão modernizar-se por influência do debate ao qual procuraram escapar, ou vão permanecer alheias aos processos dinâmicos que atravessam toda a sociedade, correndo o risco de se fecharem numa espécie de “reserva de índios” vulnerável e incapaz de produzir um discurso adaptado ao mundo moderno? Ou o movimento que entretanto se lançou a partir da intervenção do poder autárquico para que este assuma a gestão de uma prática cuja relevância é eminentemente local e regional — o problema pode parecer descabido aqui, mas a verdade é que esse movimento coincide no tempo com a “politização” dos toiros a propósito de Barrancos — será capaz de se afirmar no processo?

Por fim, a questão mais relevante tem a ver com o caminho que seguirá o processo de afirmação dos direitos culturais, nomeadamente o direito à existência e livre expressão de culturas populares desalinhadas em relação aos padrões de cultura dominantes. O que se disse foi, pensamos, suficiente para não permitir qualquer confusão entre o que aqui defendemos e o relativismo cultural. Os direitos possuem uma hierarquia e, obviamente, o direito à identidade tem como limite os direitos de cidadania e os direitos sociais que tornam um membro de uma comunidade específica igual a qualquer outro. No caso de Barrancos, a especificidade cultural nem é imposta estatutariamente aos barranquenhos, nem colide com outros direitos que eles possuem como cidadãos portugueses, nem, tão-pouco, limita direitos alheios, isto é, não se impõem coercivamente a ninguém. A tolerância que a sociedade e o estado português revelarem em relação a esta comunidade será, então, um sinal da maturação do processo que sustenta a afirmação da nova geração de direitos culturais.

Não estará pois em causa nem a autoridade do estado, nem a atitude dos portugueses face às leis e à sua observância, como muitas vezes se tem julgado, mas antes a capacidade do estado e dos cidadãos para progredirem mais um passo em direcção a uma modernidade mais aberta, mais plural e mais democrática.


Notas

1 O presente artigo retoma uma comunicação apresentada pelo autor ao Congresso Internacional “Fiestas de Toros y Sociedad”, organizado pela Universidade de Sevilha e pela Fundación de Estudios Taurinos em Novembro e Dezembro de 2001. Uma versão ligeiramente alterada será publicada nas actas do congresso.

2 Nos anos subsequentes novas providências foram interpostas, por juízes de Lisboa e Porto, pese embora o facto de sempre terem sido oficialmente declarados incompetentes para o fazer. Uma delas chegou a estabelecer coimas de 5 mil contos por cada toiro morto e proibia não apenas essa morte, mas também a venda de bilhetes, o arranjo das bancadas, peditórios de donativos e contribuições e outras acções preparatórias, transcrevendo na íntegra as “denúncias” da Sociedade Protectora dos Animais, sem sequer verificar a sua veracidade ou sequer a sua lógica.

3 Antes, as televisões apenas raramente organizavam debates rituais entre zoófilas e aficionados sobre os direitos dos animais, com evidente desinteresse do público e mais do que rebatidos argumentos.

4 Em 2000 Norberto Franco publicou um livro contendo um interessante levantamento de argumentos envolvidos nos debates sobre Barrancos (cf. Norberto Franco, 2000).

5 Cf. António Firmino da Costa, “O ‘caso’ de Barrancos ou o sentido contemporâneo dos direitos culturais”, Público, 11 de Setembro de 2000.

6 A capacidade que a comunicação social tem, nos nossos dias, não apenas de trabalhar sobre os fenómenos, como o de Barrancos, mas também de criar ela própria novos factos sociais, fica plenamente demonstrada neste processo.

7 Cf. Ana Prata, “Barrancos, o Estado de direito e o estado do direito: onde se fala do direito, do ensino dele e também de touradas de morte”, Público, 1999.

8 Partido em cujas listas tinha sido eleito o Presidente da Câmara de Barrancos.

9 Anteriormente o CDS/PP havia proposto um quadro normativo semelhante ao francês, com a passagem da tutela sobre as festas de toiros para as câmaras municipais, que decidiriam, com base em critérios de referência local, sobre o tipo de tauromaquias a praticar, solução também defendida pelos responsáveis de Barrancos e pela minoria activista pró-toiros de morte em Portugal.

10 Note-se que a tutela sobre a tauromaquia é do Ministério da Cultura, sendo que o protagonismo do ministro do interior nesta matéria revela bem a mudança do enfoque: de problema tauromáquico, a problema de autoridade do Estado e de ordem interna.

11 O conteúdo da lei foi sendo sucessivamente modificado, desde o anúncio inicial até à versão final, pelo meio das mais diversas hesitações, informações e contra-informações, quanto ao valor das coimas, aos responsáveis pela aplicação, aos agentes a quem as coimas seriam aplicadas e à excepção a aplicar no caso de “práticas ininterruptas”, na verdade, só aplicável em Barrancos.

12 Dizendo que se criou uma lei que de certeza não será aplicada, dado que a morte dos toiros continua proibida e eles serão com certeza mortos em Barrancos, pelo que seria melhor rever a lei.

13 Reclamando a aplicação das várias providências cautelares emitidas por juízes de Lisboa e Porto e ameaçando o ministro, o governador civil e o presidente da Câmara com processos judiciais, caso não actuassem de modo a impedir a morte dos toiros, fosse a que custo fosse.

14 Manifestando-se contrária à solução, por não resolver nenhum problema, como se verificou.

15 Só sobre essa manifestação e o processo que a precedeu (localização, objectivos, reacções da população e do Presidente da Câmara, contra-reacção dos zoófilos, preparativos da polícia, trajes e palavras de ordem dos cerca de 100 manifestantes, etc.) foram publicadas mais de duas dezenas de notícias. A população local, porém, ignorou-a.

16 Ver, por exemplo, o Diário de Notícias, de 17 de Junho de 2000.

17 Usaram-se nesta matéria figuras de estilo tão sugestivas como a “fatwa contra Barrancos”, o “síndroma Mónica Lewinsky”, ou a luta contra o medo imposto pelos “ayatollah”, à semelhança do que se fez a respeito de Timor.

18 Como se verificou, não foi o facto de em todas as instâncias os tribunais terem dado razão a Barrancos, que desarmou a oposição.

19 Para uma análise profunda do processo de construção desse tipo de identidades, ver António Firmino da Costa, “Processos endógenos e exógenos de reconfiguração sociocultural”, op. cit.

20 O tom alegre da procissão distingue-a de outras com coreografia mais pesada. As monografias mostram que é antiga uma relação particular dos devotos barranquenhos com a religião e, principalmente, com as suas formas institucionais. O reflexo desta questão verificou-se no período em análise quando se noticiou que as mulheres reagiram mal a uma homilia de conteúdo sexual/moralista de um padre, que substituía provisoriamente o velho padre Agostinho, falecido em 2000, e genuinamente respeitado pelo modo como durante décadas compreendeu e se adaptou à religiosidade popular em Barrancos.

21 A excepção são os jovens, normalmente visitantes, que não resistem a mais uma noite de “cachondeo” e “palmoteo” e ficam a dormir nos carros, ou onde calha.

22 Para uma descrição dos tabuados e do processo da sua montagem, ver António Eloy, “Um monumento: o nosso tabuadû”, Público, 01 de Setembro de 2000. Projectou-se a candidatura dos tabuados a património móvel da UNESCO.

23 No largo situam-se, em cantos opostos, duas associações, a “sociedade dos ricos” e a “sociedade dos rapazes”, cujas designações sugerem uma clivagem entre os associados que já não se verifica.

24 Termo que designa o desfile dos intervenientes numa corrida de toiros com que esta se inicia. É suposto representar uma apresentação ao público e um pedido de autorização ao director de corrida para iniciar as lides.

25 O “choupo” é uma faca apropriada para abater bovinos nos matadouros.

26 Ficamos a saber pelos jornais que, entre os insultos chegados pelos mais diversos meios, nem o falecido padre deixou de ser ameaçado, por carta, com um “tiro nos cornos”.

27 Enchidos frescos de carne de porco preto.

28 Instrumento artesanal fabricado pelos próprios jovens.

29 Os “quintos constituem um ritual relacionado com o recrutamento dos jovens para a tropa, tornando-se os membros de cada geração ”quintos”, em relação uns aos outros.

30 Se cada sociedade possui estruturas profundas que lhes determinam certas características duráveis, que se podem medir através de taxas (de emprego, de desemprego, de natalidade, de mortalidade, de suicídio, etc.), porque não supor, mesmo que ainda não o saibamos medir, que também poderão ter uma propensão específica para produzir festa e diversão?

31 Trata-se de outras práticas tauromáquicas, de diversão popular (capeias e vacadas) ou de selecção genética e gestão das ganadarias (as tentas).

32 São várias as referências teóricas que salientam o contraste/oposição entre o tempo da festa e o quotidiano. Vejam-se, por exemplo, Julio Caro Baroja, 1985; Jean Cazeneuve,  s.d.; Jean Duvignaud, 1976; Jacques Heers, 1987;  Velasco (org.), 1982.

33 Ver, a este propósito, Roberto da Matta, 1980 e, para o caso português, António Firmino da Costa e Maria das Dores Guerreiro, 1984.

34 Para uma excelente análise das relações de género em Barrancos, ver Ana Espírito Santo, 2001.

35 Não resulta do que está dito que estes diferentes níveis de referenciação sejam estanques. Pelo contrário, eles combinam-se, cruzam-se, sobrepõem-se, às vezes opõem-se ou evitam-se, afectam-se mutuamente. Ver, sobre esta problemática, os trabalhos já referidos de António Firmino da Costa.

36 Roberto da Matta, na obra já referida, trata a procissão como ritual de evitamento da ordem das desigualdades sociais, ao passo que o Carnaval seria o ritual da inversão e a parada militar o ritual do reforço dessa mesma ordem.

37 Este sistema implica que às relações pessoais os festeiros sobreponham o interesse comum no sucesso da festa, dado que nem sempre as redes de interconhecimento coincidem com as relações de simpatia e amizade.

38 Nas décadas mais recentes, de forma reforçada quando os ataques externos tornaram mais complexas algumas das questões, a Câmara Municipal passou a constituir um apoio fundamental, também neste domínio.

39 Sem que por vezes deixassem de se estabelecer tensões e conflitos entre estas diferentes esferas das elites locais. Para uma análise clássica das desigualdades no Alentejo, ver José Cutileiro, 1977.

40 Uma análise de um processo semelhante em contexto urbano pode encontrar-se em Luís Capucha, 1990. Uma análise do clássico de Álvarez de Miranda, 1962, fornece uma ampla paleta de festas onde o mesmo princípio se pode detectar.

41 A entrada da vaca brava na “sociedade dos ricos” durante a tourada do dia 31 constitui outro exemplo.

42 A acentuação da dimensão da festa de toiros como indústria do espectáculo, faz com que cada vez mais as ganadarias percam o carácter simbólico do poder do latifúndio, para se tornarem explorações agrícolas para fins comerciais. O seu poder simbólico permanece, porém, como antes, totalmente dependente do desempenho dos toiros durante a lide.

43 “O toiro sai ao seu dono”, isto é, ao ganadeiro que o criou, é uma expressão comum no mundo taurino.

44 Uma das razões que levava Fernando Teixeira a tratar as tauromaquias populares como uma forma de luta contra a opressão. Cf. Fernando Teixeira, “O touro e a luta contra a opressão”, Diário de Notícias, 20 de Novembro de 1988.

45 Um interessante registo dos bodos do Espírito Santo no séc. XVI, no actual Ribatejo, encontra-se em Moisés Espírito Santo, 1988.

46 Pedro Romero de Solís oferece abundante bibliografia sobre a dimensão sacrificial da festa de toiros. Ver, nomeadamente, as duas obras deste autor referenciadas na bibliografia.

47 Não há nenhuma obra detalhada de caracterização socioeconómica de Barrancos. Para uma aproximação, ver AA.VV., 1993 e Ana Espírito Santo, 2001.

48 Em J. Leite de Vasconcelos, 1955, encontram-se referências à história da vila.

49 Marcel Mauss refere-se na obra citada ao “potlash”, ritual que vem à memória ao observar o modo como os bombeiros, generosamente, molham os rapazes que estão dentro do recinto da tourada, “desperdiçando” tão precioso bem naquelas paragens.

50 O jogo que se estabelece entre as referências internas e externas, confundindo níveis que permanecem porém irredutivelmente separados, podia ser apreendido pelo modo como a população de Barrancos passou a relacionar-se com a imprensa, isto é, com o exterior que se reflecte interiormente. Um exemplo vivido desta relação poderia ser fornecido pelo modo como a população sempre se uniu em torno do Presidente da Câmara, conferindo-lhe um poder de representação nunca contestado perante o exterior, de modo tal que, do ponto de vista externo, ele se “naturalizou” como parte do caso barranquenho. Tal não impediu que perdesse as eleições autárquicas de Dezembro de 2001 por 12 votos face a um jovem opositor, também comprometido com os toiros de morte, como todos os líderes locais, no quadro de um processo eleitoral marcado por uma transferência de votos ocorrida de modo mais vasto no país.

51 Nos processos eleitorais de 2001 para a Presidência da República e para as autarquias locais, Barrancos encontrou-se entre os poucos concelhos “mediaticamente relevantes”, como as grandes cidades ou aqueles em que as disputas são mais intensas, a terem cobertura jornalística específica.

52 Ver, a este respeito, Araceli Guillaume-Alonso, 1999, e também Carlos Serrano, 1999.

53 Cf. Público, 30 de Julho de 2000. Entre os artigos de fundo surgidos nos jornais no período em análise do lado dos zoófilos, veja-se o do “clássico” activista anti-taurino António Maria Pereira, “Barrancos e o estado de direito”, Diário de Notícias, 25 de Agosto de 2000.

54 Cf. Público, 30 de Maio de 2000.

55 Estas acusações, como o autor várias vezes testemunhou, carecem de fundamento. Tornariam mesmo inviável qualquer tourada. Isso não impede que sejam sistematicamente apresentadas como verdadeiras, em Portugal e noutros países da Europa, às vezes pela boca de personalidades públicas — e no nosso caso até pela pena de juízes — que as repetem, certamente, por ingénua credulidade.

56 Estas expressões são repetidamente referenciadas nos diários em análise ao longo de todo o período observado.

57 São pequenas praças construídas nas explorações pecuárias onde se “tenta”, isto é, testa a bravura e outras qualidades das vacas e, mais raramente, de novilhos, com vista a seleccionar reprodutores.

58 A identificação de uma cultura com uma ideologia específica, datada no tempo, pode matá-la. Pelo contrário, a sua polissemia pode torná-la mais dinâmica. Ver, a este propósito, os trabalhos já citados de António Firmino da Costa e Maria das Dores Guerreiro.

59 Esta ideia apareceu inteligentemente defendida, entre outros, por Helena Matos (c.f. “Do ‘sol e toiros’ aos ‘Aristogatos’”, Público, 25 de Agosto de 2001). Entre esses interesses contam-se, naturalmente, os da indústria de produtos para animais de companhia.

60 Esse processo gera uma tendência uniformizadora de padrões culturais que, apesar da assimetria de recursos com que os agentes se batem no campo simbólico, encontra resistência quer no campo dos produtores da “grande tradição cultural”, quer da “pequena tradição” das culturas populares. Estas dinâmicas conflituais não obstam a que, nos mais diversos espaços culturais e sociais, padrões da cultura erudita, da cultura de massas e das culturas populares se cruzem, combinem, sobreponham e se fundam em configurações de múltiplas facetas e referências.

61 Os outros, “nocivos”, incómodos, invertebrados, sem sangue, ou invisíveis, não são objecto da propaganda cultural, apenas da ciência ou do saneamento público.

62 Como se houvesse prática menos neutra do ponto de vista social e cultural do que, precisamente, a alimentação.

63 “Nossos irmãos” foi a expressão que serviu de mote a uma das manifestações das associações zoófilas contra as touradas.

64 A caça artesanal à baleia e a matança do porco foram casos expressamente referidos.

65 Para uma análise longitudinal da relação das civilizações mediterrânicas com o toiro ver J. R. Conrad, 1978. Ver ainda Moisés Espírito Santo, 1995. Na imprensa portuguesa em análise publicaram-se artigos de Francisco José Viegas, “O minotauro em Barrancos”, DNa, 1998, e de Cláudio Torres, “O Sr Ministro não gosta de caracóis”, Público, 30 de Agosto de 2000.

66 Sobre a violência e o sagrado, veja-se René Girard, 1972.

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* Luís Capucha, Sociólogo, docente do ISCTE, investigador do CIES.
E-mail: luis.capucha@mail.telepac.pt

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