SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número38The cultural activities cluster in Portugal: trends and perspectivesMudança e modernização nas empresas portuguesas índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.38 Oeiras maio 2002

 

DA INSOLÊNCIA À OBEDIÊNCIA

Alterações nas atitudes dos despossuídos (1900-1945)

Eduardo Cintra Torres *


“Aquela onda de insolência”

A chegada do capitalismo aos campos e o crescimento do operariado urbano motivaram atitudes de desafio por parte dos despossuídos que observadores da época e detentores do poder identificaram como insolência. Privilegiando as fontes literárias, descrevem-se na primeira parte deste ensaio manifestações dessa insolência em Portugal; anotam-se as diferenças entre operariado e população urbana, por um lado, e trabalhadores rurais, por outro lado, nas primeiras décadas do século XX; e, na segunda parte, verifica-se como, perante o estabelecimento da ditadura e o “apavorante” desemprego, os despossuídos abandonaram a luta política e adoptaram estratégias individuais e colectivas que escondiam a insolência.1

Escolheu-se como época as primeiras quatro décadas do século XX, período em que a insolência e depois a obediência surgem em pleno nos comportamentos sociais espelhados na literatura. São atitudes que ocorrem longe do mundo pequeno da gestão da política nacional, sem calendários ajustados nem consciência, pelo que os factos mais relevantes a tomar como pano de fundo são a “domesticação” do mundo rural pelo poder liberal, a irrupção do proletariado nas grandes cidades (a literatura consultada refere-se especialmente a Lisboa), a vitória da repressão sobre o movimento operário a partir de 1926 e a recessão económica sentida a partir de 1929.

Nas últimas décadas do século XIX e no início do século XX a literatura regista formas populares de resistência às novas relações de propriedade e à afirmação do primado do regime judicial burguês e liberal. Surgem novas formas de resistência, apolíticas, quer individuais quer colectivas, como “a preguiça”, que fora todavia estruturada politicamente por Paul Lafargue, no muito divulgado Direito à Preguiça, de 1880.

Para Lafargue, o amor dos proletários ao trabalho era uma “estranha loucura”: “Esta loucura consiste no amor ao trabalho, na paixão moribunda pelo trabalho, levada ao extremo aniquilamento das forças vitais do indivíduo e dos seus descendentes” (p. 15). O objectivo do seu premonitório opúsculo de propaganda era o de combater, não pelo direito ao trabalho, mas pelo direito dos operários “embrutecidos pelo trabalho, (que) produzem como maníacos” (p. 66), ao lazer e ao consumismo: “é preciso domar a extravagante paixão dos operários pelo trabalho e obrigá-los a consumir as mercadorias que produzem” (p. 48).

A “preguiça” politizada, resultante da consciencialização individual ou colectiva de que era possível mudar a ordem das coisas, é um facto perscrutável na sociedade portuguesa a partir do início do século XX. A esta premeditada indolência veio juntar-se a irreverência ou insolência dos pobres face aos ricos, atitudes individuais inicialmente ressentidas por representantes das classes possidentes como uma “traição” a uma ancestral relação de confiança entre patrões e empregados.

É o fim das “famílias”, conceptuais ou reais, englobando senhores e serviçais e empregados no campo, ou industriais e seus operários. O patrão e o operário afastam-se, sem regresso. Longe ficará o tempo em que a Revista Universal Lisbonense, de 20 de Setembro de 1849, podia escrever: “O maior amigo do operário é o fabricante e o maior amigo do fabricante é o operário” (Mendes, 1994: 493). O Chapeleiro, em 1905, recordava aos leitores que “nos antigos tempos, o patrão e o operário viviam familiarmente” e que já não podiam apreciar o patrão mesmo que este fosse amigo: “serão muito boas pessoas individualmente falando, mas há sempre enorme diferença, a que vai entre o que explora e o que é explorado”. Era diferente agora: “O egoísmo tudo modifica, fazendo desaparecer todo o sentimento de bondade” (idem: 275).

Em 1930, o filósofo Ortega y Gasset explicava o novo fenómeno d’ A Rebelião das Massas: “as massas exercitam hoje um repertório vital que coincide, em grande parte, com o que antes parecia reservado exclusivamente às minorias; (…) tornaram-se indóceis frente às minorias; não lhes obedecem, não as seguem, não as respeitam, e, pelo contrário, olham-nas de lado e ocupam-lhes o lugar” (p. 55). Nas primeiras décadas do século perdeu-se “todo o respeito, toda a atenção” para com o passado: “pela primeira vez encontramo-nos com uma época que faz tábua rasa de todo o classicismo, que não reconhece, em nada pretérito, um possível modelo ou uma possível norma” (p. 67).

A mesma falta de “todo o respeito” atribuía pela mesma altura Fernando Pessoa no Livro do Desassossego ao “empregado de comércio” Bernardo Soares: “Pertenço a uma geração — ou antes a uma parte de geração — que perdeu todo o respeito pelo passado e toda a crença ou esperança no futuro. Vivemos por isso do presente com a gana e a fome de quem não tem outra casa”. E Pessoa dizia que, se fosse operário ou de outra classe desprotegida, seria anarquista: “Seríamos anarquistas se tivéssemos nascido nas classes que a si próprias chamam desprotegidas, ou em outras quaisquer de onde se possa descer ou subir” (Pessoa, 1998: 469-470 e 428).

Também para Ortega (1997) o homem-massa vive a urgência do presente, não tem projectos de futuro, “é o homem cuja vida carece de projecto e que anda à deriva” (p. 78). Ortega verificava que mudava a atitude das massas perante os direitos e as invenções que o século XIX tinha posto à disposição de uma pequena minoria: “o que antes se considerara como um benefício da sorte que inspirava humilde gratidão para com o destino, converteu-se num direito que não se agradece, antes se exige. Desde 1900 começa também o operário a ampliar e a assegurar a sua vida. Sem embargo, tem que lutar para consegui-lo” (p. 83). Essas “massas mimadas” (p. 86) destroem para garantir o que acham ser os seus direitos: “nos motins que a escassez provoca buscam as massas populares pão, e o meio que empregam para isso é destruir as padarias” (p. 87).

A massa dos “insolentes” (p. 202) é “indócil”, “mais forte que a de qualquer outra época, mas, ao contrário da tradicional, hermética sobre si mesma, incapaz de ouvir alguém ou alguma coisa, crendo que se basta a si mesma” (pp. 92-93). “O homem vulgar, antes dirigido, resolveu governar o mundo” (p. 118) e não é de estranhar que “triunfe a violência”, pois assentou-se num “processo da violência como norma” (p. 135).

Um factor essencial na insatisfação geral dos indivíduos foi a difusão da informação, no caso português “a explosão de comunicações que teve lugar na sociedade portuguesa a partir de meados de 1880”, como refere Hermínio Martins (1998: 75). A explosão de títulos de imprensa, não só em Lisboa e Porto como em dezenas de outras cidades e vilas do país, exponenciava a informação, o que só por si é gerador de insatisfação, conforme já notava o original romancista Thomas Love Peacock, em 1831, citando o jornal Morning Chronicle: ”O descontentamento dos trabalhadores no nosso tempo é mais uma prova da superior informação que eles detêm do que da deterioração” da sua condição (p. 251). A imprensa foi uma arma utilizada eficazmente, não só pelos republicanos no poder como por todas as suas oposições, fossem monárquicas, conservadoras ou anarco-sindicalistas. A imprensa era insolente.

* * *

No século XIX acelera-se a chegada da “cidade” aos campos através do caminho-de-ferro, da estrada e do jornal. O liberalismo chegava com a privatização dos baldios e florestas. E o estado burguês chegava com a aplicação da justiça que justificava essa nova propriedade privada do que fora comum. Com o seu aparelho judicial e as suas leis, é a burguesia que passa a gerir a contida violência do mundo camponês. A violência aldeã será domesticada durante o século XIX (Vaquinhas, 2001), mas a insolência manter-se-á, ou até aumentará, com a mudança das relações sociais e de trabalho.

Fornecendo ao estado os mancebos e os impostos, este mundo rural não precisara de polícia. Fazia ele a gestão dos conflitos violentos. É o que diz um relatório oficial de 1872 do distrito de Coimbra: “a maior parte dos crimes praticados no distrito (…) não vêm ao conhecimento das autoridades, por não haver polícia regularmente organizada, nem ainda nas terras principais do distrito” (Vaquinhas, 1995: 288). Em 1900, as guardas municipais empregavam 2100 homens e a guarda fiscal cerca de 4700, mas no resto do país o governo não mantinha polícia (Ramos, 1994: 96)

Era a legislação burguesa que definia novos crimes, gerando a perplexidade dos prevaricadores. Contrariando a tradição, a lei originava descrença e insegurança. A justiça burguesa opunha-se à justiça não escrita que cimentava a vida quotidiana e secular dos campos. Num tribunal de Coimbra, após a leitura da sentença dum delito em que incorrera por ter lançado gados em terra alheia, uma Maria Ramalha gritara, “em altas vozes”, que “a justiça lhe roubaba a sua justiça” (Vaquinhas, 1995: 123).

As estatísticas apontam para o aumento nesta época do crime contra a propriedade — aumentava a propriedade privada e aumentava o interesse do aparelho judicial por este tipo de crimes. Um estudioso escrevia em 1897 que o crime de sangue — o crime que a aldeia conhecia e “geria” — ia diminuindo nas estatísticas, mas que aumentava “o crime de menor gravidade aparente, aquele que pouco a pouco cai corroendo e desorganizando a sociedade (…), calcando o dever, a honra e a moral” (Vaquinhas, 1995: 280).

Os novos deveres, honra e moral da burguesia infiltravam-se nos campos e faziam dos tribunais o novo local para a sua resolução: mas custou a impô-los. A população de Arzila, perto de Coimbra, em 1899, expulsou selvaticamente dois representantes judiciais (à pedrada e com forquilhas, gritou: “arrenquemos-lhes os testículos”). A população adulta foi levada, toda ela, ao tribunal. Os arguidos recusaram-se a colaborar com o tribunal (Ramos, 1994: 88). Uma velha foi tão cumpridora do pacto aldeão que a todas as perguntas, incluindo as de nome, idade, estado, naturalidade e residência, respondeu apenas: “Não sei”. “A pobre da ignorante agarrou-se ao bordão do não sei, não havendo meios de a afastar duma tal obstinação”, comentou O Conimbricense, assim interpretando como ignorância o facto de a velha se recusar a participar no julgamento por uma entidade exterior ao seu mundo rural (Vaquinhas, 1995: 439).

Com a “pequena criminalidade” controlada pelo aparelho judicial (Vaquinhas, 1995: 290), com o aumento do policiamento nos campos (a introdução da Guarda Nacional Republicana no Alentejo pelos governos do Partido Democrático), com o aumento dos crimes contra a propriedade (a tornarem necessário o policiamento), a “cidade” infiltra os seus costumes no mundo rural.

Dão-se, pois, dois choques: o dos campos contra as normas de nacionalização da vida económica e social e da progressiva impregnação de valores urbanos e o choque dos pobres do mundo rural contra os ricos do mundo rural.

Os trabalhadores rurais criam, devido à “invasão” de valores urbanos, formas de resistência que desembocam em alguma forma de contestação política, apesar da falta de consistência teórica e apesar da personalização da conflitualidade. Os conflitos são personalizados no representante deste ou daquele partido no tempo da monarquia, são relacionados com a bipartidarização do período monárquico, e não se transformam em contestação republicana. Nem isso teria sentido, pois os republicanos representavam precisamente os valores burgueses que os pobres dos campos poderiam querer contestar. Daí que os republicanos não tenham conseguido penetrar no país rural, à excepção do mais aberto aos valores urbanos, no distrito de Lisboa. O mundo rural resistia aos valores dos republicanos, não por serem republicanos mas por serem burgueses. A insolência rural defendia a tradição.

Mas na forma como os pobres dos campos tratavam os seus superiores (patrões, proprietários, agentes do poder), o mundo rural não foi diferente do urbano: o pobre substituía o silêncio pela palavra de afrontamento. Desaparecia a relação de mundos diferentes que se toleram, como na relação de Raul Brandão com o velho caseiro (“há oitenta anos que ele paga a renda”), que aceita a miséria e contrariedade da vida: “Olho para ele. Nunca nos pudemos entender, separa-nos uma légua de comprido. Eu pergunto, ele responde como se falasse do fundo do poço” (Brandão, 1966: 399).

Em 1909 um observador atento, António de Oliveira Salazar, sabe que estar no fundo do poço não significa desatenção pelas novas realidades: “O povo é cego, o povo não vê. Ou pelo contrário, o povo vê mas faz-se cego, o povo ouve mas faz-se surdo” (Salazar, 1997: 67).

Faltava deixar de lado a cegueira e a surdez. Raul Brandão descreve a mudança de atitude na sua relação com o caseiro: “Há dias em que tenho medo. Ontem encontrei-o no caminho e pôs-se a olhar para mim com espanto, como se me visse pela primeira vez. Pôs-se a olhar para mim como se deparasse com o meu verdadeiro ser de egoísmo, de homem que não se atreve, de homem inútil que sabe e não se atreve, e que Deus um dia vomita porque não passa dum simulacro” (Brandão, 1966: 400).

Morre uma sociedade: “Antigamente, no Minho todas as mulheres do povo fiavam e eu ainda cheguei a conhecer algumas senhoras que fiavam à lareira, com as criadas. Hoje (1920) é raríssimo encontrar-se uma mulher de roca à cinta” (idem: 457). As criadas e as senhoras já não se encontravam ao serão. Desapareciam, “e isto dum dia para o outro, as bases duma existência que parecia indestrutível” (ibidem: 458).

Na mesma altura (1925-27), Brito Camacho recordava os tempos da sua infância alentejana, nos anos 80 do século XIX: “Naquele tempo ainda o lavrador era uma espécie de patriarca, respeitado de todos, querido do maior número, excepto quando abusava do que Deus lhe dera, soberbo e egoísta, para fazer sentir aos pobres, com dureza, os caprichos da fortuna” (Camacho, 1988: 41).

Nas relações entre os pobres e a sua família de proprietário identifica o que se alterara desde o tempo em que todos os pobres pediam esmola “com respeito” e “rezavam um padre-nosso e uma avé-maria por intenção” dos benfeitores: “os homens sobretudo, quase pediam trabalho como se pedia esmola, nos mesmos termos de humildade respeitosa, e longe de invejarem a fortuna alheia, o que desejavam era que os ricos fossem cada vez mais ricos, em termos que nunca lhes faltassem com o trabalho na validez, e com a esmola na arruinada velhice — Deus lhes acrescente o que têm para repartirem com os pobres, e o trabalho remunerado já eles o consideravam como que uma co-participação, a única a que vagamente se reputavam com direito na simplicidade rudimentar, primitiva, do seu espírito!” E Camacho assim termina esta memória: “A que infinita distância este tempo me fica!” (Camacho, 1988: 42). Era a mesma distância que separava a Revista Universal Lisbonense de 1849 do Chapeleiro de 1905.

Ao mesmo tempo que se verifica a estruturação de descontentamentos através do crescimento das organizações de trabalhadores (neste caso no Alentejo), desde o início do século, mas principalmente após a República, verifica-se uma alteração no relacionamento entre ricos e pobres, como se lê em Brito Camacho.

Para Manuel Ribeiro, colaborador d’A Batalha e autor de romances favoráveis à Igreja, a revolta não era contra o latifúndio: “A todos roía uma ambição: ter. Ter terra, uma morada de casas, carro e parelha de bestas. Mas, por desgraça, a terra ainda estava toda em regime latifundiário”. E, mesmo assim, acrescentava em Planície Heróica, de 1927, “ninguém se insurgia. Tudo achava legítima a posse: cada um é senhor daquilo que é seu” (p. 27).

Na ambição de ter, os assalariados opunham-se aos que já tinham. Exigiam, respondiam, assumiam o direito à palavra. Para a classe dos proprietários e burgueses, habituados ao silêncio que Raul Brandão descobria no seu caseiro, a nova atitude definia-se como “falta de respeito” e “insolência”.

Em O Homem que Perdeu o Passado (1932), de Assis Esperança, um proprietário rural queixa-se ao vizinho: “O fenómeno da falta de respeito é que me dói. Ainda sou do tempo em que os criados se mostravam agradecidos a quem lhes mostrava trabalho, que o mesmo é dizer o seu e o sustento da família. Agora é vê-los! (…) É que chegam a detestar-nos. Invejosos, como se nós fôssemos os culpados da vida que levam, o menos que se tornam é manhosos. Eu, logo que possa, (…) arrendo as terras e vou viver para a cidade. Perdi a paciência, compreende?, para os suportar, quando, pela ordem natural das coisas, deviam ser eles a aturar-me. Estou pelo que perguntamos uns aos outros: para onde teria ido a humildade de toda esta gente?” (pp. 261-262). Desaparecera no tempo, como escrevera Brito Camacho.

E em 1943 Miguel Torga também descobria um povo rural que já não era o que fora, e o mesmo conselho para o proprietário se tornar absentista poderia estar neste O Senhor Ventura: “hoje em dia fia tudo mais fino. O pessoal já tem os olhos mais abertos, os gastos são muitos, as terras estão cansadas… Veja se tira para as despesas, que já anda com muita sorte…” (p. 120).

Com “os olhos mais abertos”, o “pessoal” podia “sofismar o seu contrato”, como notava Brito Camacho, comparando os anos 20 com a sua meninice: “Os trabalhadores rurais não tinham organização corporativa, nem faziam ideia do que isso fosse; procuravam, naturalmente, melhorar os seus salários, mas quando se ajustavam, não sofismavam o seu contrato, fazendo o que hoje se chama a greve de braços caídos, e que consiste em não trabalhar, fingindo que se trabalha” (Camacho, 1988: 67).

Este direito à preguiça é de facto identificado por Camacho quando recorda o tio Rosa, criado e compadre do seu pai: “Fossem lá dizer-lhe que a preguiça é um protesto legítimo contra a exiguidade dos salários, uma arma que o trabalho tem de empregar contra o capital, não podendo forçá-lo a uma remuneração justa ou equitativa” (idem: 42). “Os tempos, hoje, são muito diferentes: os homens ganham muito mais e trabalham menos, e por muito pouco que trabalhem ainda reputam exíguo o seu salário” (ibidem: 65).

A mandriice era uma das formas de resistência passiva ao poder, muito frequente, também expressa no alheamento das eleições — que não diziam respeito nem alteravam a vida do campo —, nas fugas ao fisco, à escola e à tropa. Era uma forma individual de resistência, uma forma de “luta” que não implicava organização, um fenómeno silencioso que se insinua na história do povo português no século XX e se vai encontrando nos relatos literários e livros de memórias. Está por exemplo nesse chico-esperto que é O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, escrito na fase final da “sua” República: “Raios partam o governo mailos governados, raios partam tanto tributo com que a gente de bem tem de ustir para andar aí meia dúzia de figurões, de costa direita, mais farófias que pitos calçudos! Raios partam! O governo é um corpo da guarda que nos defende ou é a quadrilha do olho vivo que não faz senão roubar? Quem lhe encomenda o sermão?!” (1994: 154).

Estará a insolência ligada à “descatolização”, que Oliveira Martins já mencionava em relação às classes médias em 1885? (Ramos, 1994: 258) A resposta das fontes literárias é afirmativa, mesmo que o censo de 1891 indicasse que 99,8% dos portugueses se declaravam católicos, colocando Portugal como o país mais católico da Europa (Carqueja, 1919: 88).

O anticlericalismo não era especificidade do republicanismo, que fez sua bandeira desse movimento subterrâneo da sociedade. De facto, a reacção anticlerical e anticatólica não era monopólio dos maçons e dos militantes. Eram frequentes os actos de desrespeito à Igreja e sua doutrina, com origem em todas as classes sociais. A Igreja queixava-se da pouca assiduidade, principalmente dos homens, à missa e aos sacramentos, quer nas grandes cidades, quer no Sul do país.

Em 1880 Camilo Castelo Branco descrevera um grupo de operários portuenses que assiste à saída dum baile, “com a neblina do Douro, de madrugada”. Depois da tirada dum operário contra a “corja de vadios”, um “velho magro” murmura: “E dizem que há Deus!” E outro: “Para nós o que há é o diabo!” (Lima, 1989: 193). Em 1903, é também no Porto que João Grave põe na boca de operários no enterro dum companheiro: “— Deus se lembre da pobre viúva e dos filhos! — Ora, Deus! — acudiu um companheiro. Que o leve o Diabo. Bem se importa esse figurão com a gente pobre!” (idem: 210).

A insolência e o abandono da religião aparecem igualmente ligados em O Salústio Nogueira, de Teixeira de Queirós (edição de 1909), com acção em Lisboa: “De manhã cedo (Angelina) saía com o fim de ir à missa, na igreja mais perto, que era a de S. Paulo. Quando se encontrava na rua populosa e na igreja cheia de povo, sentia maior isolação do que estando só, em casa! (…) A rapaziada daquela hora, criados de servir e marçanos, que, mesmo durante a missa, se conservavam à porta da igreja fumando charutos baratos, com ar janota e provocante, dirigiam-lhe cumprimentos, que ela repelia timidamente, passando em silêncio. Este contacto com uma multidão insolente e irreligiosa rebaixava-a (…)” (Queirós, 1909: 54-55).

Manuel Ribeiro, numa obra de 1919, escrevia que os operários eram todos “irreverentes e incrédulos” — de novo ligando a insolência ao afastamento das igrejas. “Não se portam como cristãos”, acrescenta o personagem de A Catedral, para perguntar: “Que outra coisa há a esperar de gente desta, educada sem religião na atmosfera ímpia das cidades?” (p. 174).

Mas o fenómeno também surge na literatura com enredo nas zonas rurais. Em Planície Heróica, do mesmo Manuel Ribeiro, um personagem explica ao pároco por que não vão os homens à missa: “As mulheres é que fazem isso p’la gente macha”, diz um personagem a um pároco (Ribeiro, 1979: 94).

Aquilino é conciso, em 1922, ao pôr na boca do Malhadinhas um fait accomplit: “Os templos por esse mundo estão às moscas” (p. 153). Escrevendo sobre essa época, Aquilino referia em O Arcanjo Negro: “o povo ao mesmo tempo descristianizava-se”, “o aldeão deixara de acreditar no Diabo e andava muito desconfiado que não era Deus que governava o mundo” (Ribeiro, 1939-40: 155).

O escritor Manuel Laranjeira, depois de um encontro em Agosto de 1908 com Miguel de Unamuno, que teimava em integrar a religião no seu edifício filosófico, escrevia no seu Diário Íntimo o que lhe parecia ser a evidência que escapava ao escritor espanhol: “A fé morreu” (Laranjeira, 1908: 271).

Teixeira de Pascoaes, em 1912, via no fenómeno uma contrariedade para a criação do seu Portugal utópico, ao referir “a cultura religiosa do Povo que se tem abastardado, num grosseiro cepticismo” (Pascoaes, 1993: 83). Em 1930, no Livro do Desassossego, Fernando Pessoa dava assim início ao seu retrato interior: “Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber porquê” (p. 45). O operariado, classe sem passado nem devir, sabia porquê: “Para mim não há depois”, diz o Vagabundo de Manuel Laranjeira em … Amanhã (Laranjeira, 1902: 90).

* * *

Nas cidades, sede do poder político, económico e cultural da burguesia, sede também duma nova classe, operária, avessa ao paternalismo e à moral e organização católicas, todos os fenómenos que se encontravam nos campos eram mais patentes e transformavam-se mesmo em factor de alteração da ordem das coisas ao adquirirem cariz político. A plebe das cidades tornou-se o “bom povo republicano” e estava mobilizável para a violência política. Foi o que sucedeu a partir de 1904 (Valente, 1974).

Mas a violência da “canalha”, como lhe chamava Francisco Homem Cristo em 1909 (Ramos, 1994: 266), era diferente da que se manifestava nos campos. Esta visava manter o status quo, criar a ordem com a desordem, sendo por isso uma violência domesticada, intramuros ou de aldeia para aldeia, sem pôr em causa a ordem social, pelo menos enquanto a justiça do estado não quis ela mesma dirimir os conflitos.

Na cidade, a violência não se circunscrevia à estrutura do grupo, antes se orientava contra outros grupos. As folias do Carnaval na mudança do século revelam essa diferença. Nos campos, e por décadas futuras ainda, o Entrudo era um momento de transgressão calendarizada, aceite por todos, uma catarse de pulsões, a purga necessária ao regresso à ordem, um momento de igualdade e de liberdade para todos, aceite pelos poderosos. Na cidade, o Carnaval transformou-se numa forma de “luta de classes”, com uma insolência e irreverência (e montras de lojas partidas) que assustavam os burgueses. Os exageros do Carnaval urbano foram regulamentados e domesticaram-se os festejos, com a criação dos desfiles (Ramos, 1994: 81-82).

Na capital, as relações sociais alteraram-se num ápice. Nos primeiros anos do século XX, ainda era possível a fidalguia misturar-se — “sem se misturar” — com o povo das ruas na sua própria casa. É o que relata a Novela do Amor Humilde, de Norberto de Araújo, com acção cerca de 1906 no Arco de S. Vicente, “com a sua fidalguia antiga, do tempo em que ela sabia confundir-se com o povo, sem se misturar”. O filho da fidalga organiza um baile: “juntou-se toda a gente do sítio. Era uma novidade. (…) No salão do primeiro andar, (…) reunira-se a família da casa, que improvisou também o seu S. João, e com ela os primos Lapas, os Sampaios, as primas (da Rua de) de Buenos Aires, a Mariquinhas, que ia casar, e a Leonor a dirigir tudo. Mas a certa altura os rapazes da casa fugiram lá para baixo, ‘para os operários’” (Araújo, 1927: 57-65).

O convívio não significava que o povo era cego, apenas que se fingia cego. Em 1900, Malheiro Dias publica um romance, Filho das Ervas, sobre a (im)possibilidade de um filho-família da alta burguesia lisboeta casar com uma costureirita de quem teve um filho. A atitude das personagens femininas populares não é a insolência mas o desalento e a aceitação: “Os pobres como nós só têm uma coisa a fazer: deixarem-se ir. Deixe-se ir, senhora Aninhas. Tudo vai ter ao mesmo sítio”. Esse sítio era a miséria, a doença, o sofrimento e a morte (citado em Serrão, 1978: 73).

Contudo, havia muitos pobres a não quererem deixar-se ir. As alterações sociais, a organização sindical e, depois, a Grande Guerra e com ela a fome e as epidemias, tornavam impossível o convívio da Novela do Amor Humilde que já o Amanhã de Abel Botelho (1901; datado de 1895-6) atirara para o domínio da utopia. Em 1918, Raul Brandão descrevia o Porto pobre com uma epidemia de tabardilho e acrescentava: “a gente pobre das ruas atira com o piolho a quem passa ou para dentro das casas, dizendo: Os ricos também hão-de morrer!” (Brandão, 1966: 441-2).

Era assim no Porto, mas em Lisboa, recordava Brandão, “aqui há tempos, as galerias atiraram moedas de pobre sobre os deputados, gritando-lhes: Parasitas! Parasitas!” Agora, os pobres odiavam os ricos: “Os jornaleiros começaram a olhar com desconfiança os ricos. Pulularam as fábricas que influíram nos costumes, na dissolução e na propaganda do ódio contra a classe exploradora. A carestia da vida chegou a equilibrar-se com o aumento dos salários, mas os sentimentos já não se equilibravam” (Brandão, 1966: 454-457).

No inquérito de 1909-10 às associações de trabalhadores, o chefe da Repartição do Trabalho Industrial notava a falta de estruturação ideológica das reivindicações dos operários: “vê-se que as suas aspirações cabem dentro de limites restritos”, poucas respostas “deixam transparecer reivindicações sobre outra distribuição de riquezas, ou sobre a socialização dos meios de produção”, mas já refere que há “palavras escritas com fel e ódio, com má vontade manifesta” (Cabral, 1977: 194).

Por mais que o burguês se achasse comiserando, de facto, os sentimentos já não se equilibravam. Para ele, o operário era indolente e insatisfeito, queria sempre mais. Era o que dizia um industrial no romance A Burguesinha de A. M. Lopes do Rego (1925): “O operário, presentemente, é o maior inimigo do industrial!… Por mais que se lhe faça, por mais que se lhe dê, nunca fica satisfeito!…”. “Segunda-feira pouco se faz… (na fábrica). A maior parte do pessoal não comparece…” (Rego, 1925: 151).

“Isto de dirigir operários nos tempos que correm é tarefa muito ingrata!”, dizia um personagem de A Catedral, ao que o outro respondia: “Ah, certamente, replicou o arquitecto. E então os que tenho aqui!… São todos sindicalistas!” (Ribeiro, 1919: 173).

Quando reclamavam ao governo, os latifundiários alentejanos queixavam-se sempre à cabeça dos “altos salários” e da “insolência” dos trabalhadores; só depois mencionavam a carestia ou a falta de adubos. E os industriais de Lisboa e da Margem Sul, antes das deficiências do comércio, queixavam-se do carácter pouco submisso da mão-de-obra como o principal motivo das “dificuldades da indústria” (Telo, 1977: 103).

A insolência surgia mais facilmente nas cidades do que nos campos, mas uma particularidade favorecia-a também nos meios rurais: a emigração. Os agricultores queixavam-se de, com a emigração em massa, terem de elevar os salários a uma população trabalhadora menos abundante e, portanto, menos dócil.

O “povo republicano” dividia-se em bons e maus: os que defendiam a propriedade privada e os que a atacavam. Em 1910, a plebe de Lisboa defendera os bancos. Em 1916-17 as grandes cidades e muitas localidades de província registaram centenas de assaltos e saques pela plebe, promovidos pelos anarco-sindicalistas. “É preciso distinguir”, escrevia em 1925 Santos Graça, director do Poveiro, da Póvoa de Varzim. “A CGT e A Batalha não são elementos da República”. “O povo republicano não é aquele que protesta contra a propriedade individual, nem aquele que altera a ordem com atentados pessoais. O povo republicano não é aquele que solta vivas à revolução social” (Sá, 1986: 218).

Era preciso polícia, “o anjo-da-guarda da gente rica”, (Laranjeira, …Amanhã: 89). No orçamento de 1910-1911, a segurança pública — polícias, guardas municipais, etc. — ficava com 1,7% das verbas do estado. Nos anos conturbados do pós-guerra, o orçamento de 1918-19 dava às polícias 7,4% dos dinheiros do estado e no ano seguinte 7,6%. A “normalização” das relações sociais faria baixar as verbas com a polícia para 2,1% no orçamento de 1926-1927.

Tinha-se instalado a insolência. Almada Negreiros contava em 1926 o que sentiu ao regressar a Portugal em 1922 depois de dois anos: “Lisboa modificou-se de tal maneira nos modos das gentes que não me foi difícil verificar que aquela onda de insolência que eu vira no estrangeiro entrara também em Portugal como uma epidemia. Uma epidemia que não olhava as portas antes de entrar e tanto ia aos casebres como a palácios” (Negreiros, 1993: 61).

Estava já longe o tempo do caseiro que falava do fundo do poço ou dos pobres que se deixavam ir. Estaria já longe, também, o Almada chefe-de-fila da insolência futurista, que desafiava a Lisboa pequena dos burgueses com provocações artísticas e em manifestos? O Almada dos futuristas que o conservador Homem-Cristo Filho considerava, em 1916, “fautores da desordem e da revolução”, “novos arautos da anarquia”, “iconoclastas impenitentes sem fé nem pátria”, “bastardos invejosos do génio criador”, merecendo ser “corridos à gargalhada, quando inofensivos, a chicote, quando insolentes e perigosos”? Os próprios artistas estavam diferentes. Comparando a sua experiência dos anos 20 com a de antes da guerra, o pintor Dórdio Gomes manifesta-se desencantado: “Havia qualquer coisa de mudado, parecendo outro o ar, mais rarefeito, compenetradas as pessoas não sei por que ar solene e pouco confiante que já não permitia ilusões nem atrevimentos” (França, 1991: 60 e 102).

Eram muito poucos os que entendiam que, encontrando-se as classes politicamente, poderiam diminuir-se conflitos. Esse encontro, a nível político, significava a democracia, como concluía Pessoa nos textos políticos que escrevia para si mesmo. Para Almada, os dirigentes das nações foram “sucessivamente até hoje sendo procurados nas camadas sociais cada vez mais próximas do povo”, o qual “foi pouco a pouco perdendo o seu imposto aspecto de pitoresco e tomando a sua nova aparência de participante social. É quanto basta para deduzir que dirigentes e dirigidos se encaminham uns para os outros” (Negreiros, 1993: 31).

Dirigentes e dirigidos, cidades e campos, ricos e pobres, senhorios e caseiros, patrões e operários, agricultores e assalariados: todos se encaminhavam uns para os outros, mas podia ser por choques ou encontros.

Até os campos mudavam. O mesmo Aquilino que em 1919 via os campos avessos a qualquer modernidade — “Com grande consolo, depois de ver uns países tão raivosos de progresso, vim topar Lamego não só não eivado da noção do tempo mas refractário de todo à febre moderna”, escrevia em A Via Sinuosa (citado em Serrão, 1978: 80) —, notava a mudança em 1931, em Maria Benigna: “Nos últimos anos, com a vaga de progresso, macadame, resinagem, fábricas de lacticínios, o automóvel de aluguer e o chauffeur sedutor, a aldeia tem-se desmoralizado o seu tanto. Desmoralizado no sentido teologal da palavra pelo que perdeu em rigidez e, sobretudo, em resistência ao sex-appeal. Mas tem ganho a estética física do camponês. Existe hoje uma juventude donairosa e bem apresentada, como não se via há quinze, vinte anos” (Ribeiro, 1983a: 145). E o Malhadinhas, que chamava ao governo “quadrilha do olho vivo”, era o mesmo que achava o mundo melhor: “Há menos atropelos, maior igualdade, menos a pata do rico sobre o cachaço do pobre…” (Ribeiro, 1994: 154 e 16).

Era um pensamento positivo, desde que houvesse compreensão. Mas o mais frequente era que se mantivessem os poços de mistério: “Quem podia compreender aquela gente?”, escrevia Mário Dionísio num conto. “Chegariam a pensar? (…) Se fosse provocação, os outros poderiam gostar da graça, parar o trabalho, pôr-se a olhar para ele com aqueles mesmos olhos que nem o Diabo entendia. O tempo dos chapéus na mão tinha passado na quinta. Tudo mudara desde que o pai morrera, já lá iam quinze anos. E agora estava só, com todos contra ele naquela imensidão de terra. Não bastava a família. Também aqueles brutos já se iam atrevendo a responder”. “Eram poços de mistério debaixo dos chapéus imundos” (Dionísio, 1997: 173).

Era preciso mudar alguma coisa: “a sociedade normal só pensa na ordem quando nela aparece a desordem”, escrevia Fernando Pessoa em 1915 (Pessoa, 1910-1919: 66-67). Tal não era possível com o regime republicano, que necessitava da “rua” para se afirmar, como notava Fialho d’Almeida em Dezembro de 1910: “Estes factos (…) revelam já duma maneira terrível, a criminosa soltura, a destrambelhada filáucia e a brutalidade insolente a que a turba-multa chegou, num país que já não tem para lhe opor, desgraçadamente, nem uma burguesia corajosa, nem um exército disciplinado” (p. 83).

Durante anos, os insolentes continuariam ainda “senhores da rua”, como os miúdos dos romances Bairro Excêntrico (Ribeiro, 1945: 30) e Multidão (Fatela, 1989: 216).

Depois de arrumada a casa no aparelho civil e militar, o estado deitou mãos à obra para erradicar a insolência. “É preciso limpar Lisboa”, escrevia-se no editorial do boletim do Governo Civil em Janeiro de 1931 (Fatela, 1989: 209). Era preciso fazer desaparecer aquela “qualquer coisa de hostil” que um escritor, José Sousa Gomes, via em 1937 no bairro popular de Alcântara, lugar “inquieto”, “selvagem e difícil”. Era preciso o estado intervir nos bairros populares porque, entre outras coisas, conforme dizia um relatório oficial de Daniel Barbosa em 1936, tinham “espírito de revolta, fermento de indisciplina” (Leitão, 1996: 28 e 33).

O fim da “altivez”

Coincidindo com o advento da Ditadura Militar, a sociedade vive no final dos anos 20 e início da década de 30 uma alteração no comportamento das classes trabalhadoras: aos movimentos aguerridos, reivindicativos, insolentes, que nasciam do parto difícil da sociedade moderna, seguia-se um afastamento da política e a divergência para outros interesses, como o futebol, concretizava-se o início da integração da classes populares na sociedade comandada pelas burguesias e, finalmente, surgia uma inconsciente estratégia de comportamento social que passava por uma falsa humildade, um baixar de cabeças que afligia intelectuais.

Chegara a vez de os burgueses se tornarem atrevidos, insolentes, intolerantes: já não podiam conviver com o pé-descalço, com o mendigo, com o proletário insolente, com esse mundo social aculturado a que se chamava “rua”. Os burgueses queriam a “rua” para si. Era preciso, portanto, limpá-la, como exigia o Governo Civil de Lisboa, em Janeiro de 1931. Quatro meses depois, em 4 de Maio, chegou novo decreto regulando a repressão da mendicidade nas ruas.

O novo regime, saído do golpe militar de 1926, correspondia aos anseios das classes burguesas urbanas de Lisboa, Porto e Coimbra no que toca à repressão e “limpeza” da “rua”. De finais dos anos 20 ao ano da comemoração do “Duplo Centenário”, 1940, a Ditadura Militar e o Estado Novo aplicaram meios policiais, escreveram legislação e desenvolveram instituições de cariz prisional, como o albergue da Mitra, que serviam de armazém de mendigos e vadios. O relatório da PSP para 1940 descreve Lisboa como uma “cidade limpa”, parte integrante duma “ordem nova”. A miséria mantinha-se, mas era “varrida” para debaixo do tapete, para a Mitra (Fatela, 1989: 28).

Os mendigos e gente da “rua” assustavam o burguês e simbolizavam a insolência. A codificação legal do liberalismo desde o século XIX procurava combater a vadiagem, mas a vitória sobre os “arruaceiros”, aliás identificados com a oposição, só pôde ser reivindicada pelo corporativismo (idem: 181-6, 238). A proibição do pé descalço pelo novo regime, mais do que uma medida profiláctica era um símbolo de um novo poder que queria quebrar o poder à rua, à insolência. Uma brochura do Estado Novo sobre a assistência social incluía os vendedores ambulantes na lista dos “parasitas” que se serviam “da manha, insolência, ameaça, violência, etc. ”. A lista era longa, alargando-se aos que “mendigam, podendo trabalhar”, os falsos doentes, os “pseudo ‘despedidos’ permanentes de fábricas e outros empregos”, “os desempregados que não aceitam o trabalho que se lhes proporciona, e alegam sempre as profissões onde não há vagas, que aliás nunca exerceram”, e ainda “os garotos que abrem as portas dos automóveis”.

O controle da rua passou também pela criação do Tribunal dos Pequenos Delitos, a que podemos chamar tribunal da insolência: só existiu nas cidades de Lisboa, Porto e Coimbra e visava combater os “maus costumes de certas classes da população da cidade”: ofensas corporais, desobediência, embriaguez, difamação, calúnia e injúria, ultraje à moral pública, vadiagem, mendicidade e ameaças (ibidem: 40). Os grupos sociais “marginais”, como os mendigos e vadios, eram os últimos a que chegava a repressão contra a insolência.

Entre as classes trabalhadoras urbanas a situação alterara-se também. Em 11 de Fevereiro de 1931, a direcção da CGT, a central sindical anarco-sindicalista, núcleo por excelência da insolência, atitude à qual o anarquismo estava tão intimamente associado, reconhecia que a “altivez” do proletariado tinha desaparecido: “Vós sabeis que o proletariado, mercê da crise que se atravessa, tem deixado de pronunciar-se com altivez. Não se tem agitado em qualquer sentido e o resultado é que algumas das principais regalias noutro tempo conquistadas estão-lhe sendo cerceadas. Novos factores de miséria têm surgido com os acontecimentos, que em pior situação têm colocado os trabalhadores, e nós sentimos que piores dias virão, tornando insolúvel a miséria e o abandono proletário, se uma acção enérgica de agitação colectiva não se fizer sentir, destinada a pôr cobro a tão desgraçado estado de coisas”.

“Piores dias virão”, previa então a CGT. De facto, o regime ditatorial preparava o cerco final aos sindicatos livres e estabeleceria a partir da aprovação da Constituição de 1933 o edifício do corporativismo, que considerava que os trabalhadores viviam concertados com os patrões (tal como num industrialismo entretanto desaparecido, como vimos) e estava-lhes vedada a reivindicação e a greve (Patriarca, 1995, vol. I: 91).

A partir de 1926, com a repressão do movimento sindical e operário, a censura e proibição das suas publicações, a prisão e deportação dos seus dirigentes, os trabalhadores estiveram à mercê da livre acção do patronato. Em Janeiro de 1933, os abusos de algum patronato eram reconhecidos até por um industrial e dirigente da AIP, César da Silva Azevedo, referindo que a fiscalização oficial aos locais de trabalho era pouca, quase só em Lisboa, “com intermitências” no Porto e ausente no resto do país, onde se verificava “a liberdade de abusarem da docilidade do operariado, impondo-lhe 10, 12 e mais horas de trabalho” (Patriarca, 1995, vol. II: 356).

Em vez da insolência, eis agora a “docilidade do operariado”. Se bem que seja em referência a locais menos urbanos do que as maiores cidades, esta “docilidade” é um sinal dos tempos, paralelo ao desaparecimento da “altivez” que mencionava a CGT.

De facto, além da mudança de regime político, que também visava controlar e reprimir a insolência das lutas operárias e da rua, existia um factor fulcral para a mudança de comportamento social de indivíduos e grupos operários no final dos anos 20 e início dos anos 30: a crise económica e o espectro do desemprego. O já citado documento do Comité Confederal da CGT refere que é “mercê da crise que se atravessa” que o operariado “tem deixado de pronunciar-se com altivez”. O desemprego era “apavorante”.

A relação entre os dois factos — o desemprego e o fim da insolência — foi captada por George Orwell, antigo militante político, quando em 1937 empreende uma “viagem” à vida dos operários e dos seus bairros em Road to Wigan Pier. Vale a pena acompanhá-lo nessa viagem, ao mesmo tempo colectiva e individual, pelo que tem de paralelo com o percurso das classes trabalhadoras portuguesas.

“Quando eu tinha 17 ou 18 anos, escreveu Orwell, era em simultâneo um snobe e um revolucionário. Eu era contra toda a autoridade”. A classe operária, depois da Grande Guerra, estava num período de militância. “Olhando para trás para esse período, parece-me que passei metade do tempo a denunciar o sistema capitalista e a outra metade enraivecido contra a insolência dos condutores de autocarros”. “Por fim, desenvolvi uma teoria anarquista de que todo o governo é um mal” (Orwell, 1989: 130-137).

Mas isso era após a guerra e nos anos 20, acrescenta Orwell, “porque uma mudança está realmente a ter lugar, não há dúvida nenhuma disso. A atitude das submersas classes trabalhadoras é profundamente diferente do que era há sete ou oito anos”, isto é, antes da depressão iniciada em 1929 (p. 78). O ódio de classes nas ruas desapareceu: “antes da guerra havia muito mais abertamente ódio de classes do que há hoje. Nesses dias, era muito fácil ser-se insultado só por se parecer um membro das classes altas; hoje, por outro lado, é mais fácil que se seja bajulado. Qualquer pessoa com mais de 30 anos pode lembrar-se do tempo em que era impossível uma pessoa bem vestida atravessar um bairro degradado sem ser vaiada” (p. 118).

Essa atitude mudou abissalmente, acrescentava: “na última dúzia de anos as classes trabalhadoras inglesas tornaram-se servis com uma rapidez bastante horrenda. Tinha de acontecer, porque a assustadora arma do desemprego tem-nas intimidado. Antes da guerra, a sua posição económica era comparativamente forte, pois, embora não houvesse esmola que lhes caísse em cima, não havia muito desemprego e o poder do patronato não era tão óbvio como agora” (p. 118). “As classes trabalhadoras são submissas onde costumavam ser abertamente hostis e a indústria de roupa barata do pós-guerra e o amaciamento geral dos modos suavizaram a superfície entre as classes. Mas sem dúvida que o sentimento essencial ainda lá está” (p. 123).

Orwell considerava que o fim da insolência das classes trabalhadoras nos anos 30 constituía um “ajustamento psicológico” necessário perante as novas circunstâncias, pois manter um nível de militância como no pós-guerra seria uma “agonia e desespero” e poderia levar a “fúteis massacres e a um regime de repressão selvagem”. O desenvolvimento da sociedade de consumo no pós-guerra tinha sido um antídoto às lutas operárias: “É bem possível que o peixe com batatas fritas, as meias de seda, o salmão em lata, o chocolate barato (…), o cinema, a rádio e chá forte e as apostas do futebol tenham entre si evitado a revolução”. A sociedade de consumo satisfazia a “necessidade de paliativos baratos pelas massas semiesfomeadas” (p. 83).

Em Portugal, a crise, o desemprego, estavam também na origem do fim da “altivez” do proletariado, juntamente com o cerco aos sindicatos, a censura e a repressão — quer dizer, a derrota dos trabalhadores em toda a linha; era o que levava ao mesmo “ajustamento psicológico” que Orwell encontrava em Wigan Pier.

Houve neste período um afastamento em massa dos trabalhadores das associações de classe: os trabalhadores fizeram o “ajustamento psicológico” antes dos seus dirigentes. Em vez dos sindicatos, os trabalhadores procuravam as tabernas, onde se jogava, as associações desportivas e os novos desportos, como o ciclismo e o futebol, que deixam de ser actividades dos burgueses para se transformarem nas mais populares das actividades de massas.

A Volta a Portugal em Bicicleta começou em 1927 (em França tinha começado em 1903). A segunda Volta realizou-se em 1931 e a terceira no ano seguinte. Quanto ao futebol, a sua popularidade cresce enormemente nos anos 20. Num romance sobre militantes anarquistas, Mário Domingues, do grupo de A Batalha, escrevia que no início dessa década “a mocidade, atraída pelo jogo da bola, desprezava” as actividades inspiradas pela vivência anarquista (Domingues, 1937: 166).

O PCP, na política de “entrismo” em organizações onde as massas estivessem, conforme recomendava a Internacional Comunista a partir de 1934, procurou neste período infiltrar-se em grupos de futebol ou chegou mesmo a criá-los, como foi o caso do Sacavenense, que proporcionava um enquadramento organizativo nas condições da clandestinidade. Esta era, entretanto, para os comunistas, a única possibilidade de fuga para a frente, pois à repressão do regime juntava-se a estratégia do desinteresse por parte do operariado (Pereira, 1999: 186, 270).

O “ajustamento psicológico” dos trabalhadores passava pela nova forma de representação da diferença de classes. Se antes era o insulto na rua, como observava Orwell, agora era o servilismo: “julga … que deve a obediência aos ricos e aos doutores”, diz Irene Lisboa, no início dos anos 40 de um lojista que nem sabe lidar com os clientes (Lisboa, 1995: 198).

“O respeito medular, avassalante, sem abalo”, escrevia pela mesma altura José Gomes Ferreira. Respeito “por este mundo fixo e imutável, eternamente assim no rolar das eras, com senhores e mendigos, sol e teias de aranha, honra e aviltamento, brio e opróbrio, céu e inferno, privado de qualquer esperança, mesmo a mais remota, de aleluia de transformação, ou do esgarçar duma janela de inveja na alma daquela pobre mulher das sentinas, por onde entrasse, em último recurso, a lufada benéfica que destrói o bafio de apodrecer” (Ferreira, 1990: 127).

O novo posicionamento psicológico dos trabalhadores, menos combativo e radical, espelhou-se também na actividade sindical e reivindicativa. Não era só o novo regime a querer acabar com “o errado e criminoso princípio marxista da luta de classes”, como escrevia um sindicalista que aderiu aos princípios do corporativismo. O sindicalismo católico posicionou-se de forma a convencer os operários de que “as greves e as violências são processos velhos e revelhos que já deram tudo o que tinham para dar como os próprios socialistas reconhecem”, conforme escrevia em 1932 A Voz dos Trabalhadores. “Para a classe operária ver satisfeitas as suas justas reivindicações”, era “preciso mudar de processos”, abandonando “a greve a propósito de tudo e de nada, o insulto, os berros, as calúnias” (Patriarca, 1995, vol. I: 208).

Mesmo em empresas no coração das lutas operárias, como a Carris, em Lisboa, surgem sindicalistas de novo tipo, que, apresentando-se de esquerda, se pretendem todavia “libertos de todas as paixões, alheios à desordem, estranhos a violências, amigos do respeito mútuo, da disciplina e da lealdade” (idem: 264). Os dirigentes da Associação de Classe dos Empregados da Carris, eleitos em 1930, afirmam que irão “ordeiramente junto das instâncias superiores” para satisfazerem reivindicações. Eis uma atitude muito diferente da que nem uma década antes caracterizava as lutas na empresa. Em Janeiro daquele ano, o jornal dos trabalhadores da Carris, O Eléctrico, prometia: “não será um jornal violento de frases ‘bombásticas’ que nada dizem e de nada servem. Será um jornal sereno, calmo, tratando os assuntos que dizem respeito à classe sem escusados exageros que a ninguém aproveitam, não deixando, todavia, de ser firme e claro nas opiniões expendidas” (Patriarca, 1995, vol. I: 64). E o “órgão independente dos empregados de comércio de Portugal”, Acção, opunha-se aos “combates aguerridos, flâmulas rubras ao vento, toques estridentes de belo clarim!” e declarava que tinha intenções “pacíficas” mas não pusilânimes: queria conquistar regalias “palmo a palmo”, pois “tudo se poderia conseguir amigavelmente, sem sofismas, numa transigência mútua, ordeira, em que os medianeiros poriam a consciência, a justiça e a razão ao serviço dum acordo com que todos teriam a lucrar. Bem sabemos que é quase impossível uma sincera aliança entre o capital e o trabalho. Mas com um pouco de boa vontade, tudo se realizaria” (Patriarca, 1995, vol. I: 61).

A partir de 1930, as “representações” começam a substituir as greves como forma de reivindicação: a “representação” corresponde “à obediência aos ricos e aos doutores” de que falava Irene Lisboa. É a mais cordial das formas de uma associação pedir alguma coisa às autoridades locais ou centrais.

Um dirigente da FAO, a central sindical do Partido Socialista, que defendia a colaboração reformista com o estado, escrevia em 1930 que “todas as classes o seguem (o reformismo), sem se preocuparem se ele transforma ou não o sistema capitalista, ou se entorpece a sua acção combativa. O que elas desejam, em primeiro lugar, é melhorar a sua situação económica, e em segundo, que não lhes exijam muitos sacrifícios”. Numa conferência do PSP em 1931 recomenda-se a “todos os militantes operários que embora não estejam filiados no Partido Socialista, aceitem a luta de classes no campo legal”. A atitude reformista dos socialistas atingiu o seu extremo em 1933, quando o Secretário-Geral da FAO participa, em 1933, na Conferência Internacional do Trabalho, como a FAO sempre fizera, mas na companhia de Pedro Teotónio Pereira, o subsecretário de estado de Salazar (ibidem: 80, 116, 201).

O Estado Novo criava regras em todas as manifestações da vida organizada (“estamos num país que é preciso organizar de alto a baixo, porque o pouco que parece não estar desorganizado, está tão desorganizado como o resto”, dizia Salazar, em 1933) e estabelecia até uma nova disciplina social e política nas convenções de trabalho contra a insolência: perdiam direito ao emprego os operários que difamassem, injuriassem ou agredissem os seus superiores hierárquicos, os que promovessem o descrédito dos industriais, dos grémios ou dos sindicatos nacionais, que inutilizassem propositadamente a produção e os que fossem privados pelos tribunais dos seus direitos sociais e políticos.

O corporativismo serviu para o Estado Novo organizar na sua estrutura o movimento sindical, impedindo-o de se manifestar fora das suas comissões tripartidas. Durante alguns anos, a fórmula resultou. Em alguns casos, o governo defendeu algumas reivindicações mínimas contra um patronato que estava à vontade num regime que, desde 1926, reprimia como queria o movimento sindical. Chegava-se ao ponto de um relatório da PDPS, antecessora da PVDE e da PIDE, referir, em 1934, que os abusos de muitos patrões na zona do Ave, “pela maneira por que tratam os operários, são os principais incitadores à revolta”, e um relatório dos Serviços de Acção Social do Estado Novo falar, no mesmo ano, de uma “ofensiva patronal” e “concluir com razão e com justiça que na maioria dos casos o trabalhador, o desprotegido de tudo e de todos, tem razão”. Em 1940, ao lado dos “proletários irreverentes” já surgia como personagem do romance Ansiedade, de Joaquim Paço d’Arcos, “o patrão insolente” (pp. 68, 103).

Assim, é compreensível a estratégia de apagamento dos trabalhadores. Durante alguns anos, a política corporativa do Estado Novo, em conjunto com a implacável política repressiva dos movimentos sindicais da oposição anarco-sindicalista e comunista, teve êxito. Os trabalhadores acomodavam-se para sobreviverem. Mas, como dizia Orwell, o “sentimento essencial ainda lá estava” (Orwell, 1989: 123).

Quando irrompeu a Segunda Guerra Mundial, optando Salazar pela protecção aberta do patronato e desleixando o abastecimento de alimentos, o que provocou as últimas fomes do século, o “sentimento essencial” irrompeu em lutas abertas, algumas espontâneas (sem organização política por trás) e a insolência regressou às ruas. Em 6 de Novembro de 1941, “uma grande multidão de operários de ambos os sexos” chega à frente da Câmara Municipal da Covilhã “em grande algazarra e atitude hostil”. O movimento era totalmente inesperado. A PVDE, em relatório, notava que era a velha insolência que vinha ao de cima: “a cidade da Covilhã é um meio” em que “talvez devido a influência do passado, os operários ‘querem conquistar’ e não que lhes ‘ofereçam’”. E propunha uma solução: “só com uma repressão enérgica, como a que se está fazendo, será possível normalizar a situação” (Patriarca, 1995, vol. II: 578). O Correio da Estremadura de 25 de Maio de 1943 reacordava um velho espectro ao falar da necessidade do “combate à preguiça”, a qual era motivo de perseguição num despacho do subsecretário das Corporações do mesmo mês destinado a manter ou aumentar as jornadas de trabalho (Rosas, 1995: 402).

Depois da Covilhã, os movimentos espontâneos, e mais tarde organizados pelo PCP, surgiram nas zonas industriais de Lisboa e em redor. O movimento grevista, com altos e baixos nas suas reivindicações imediatas, teve, porém, um aspecto político crucial: com a repressão policial violenta, entregue ao militar que chefiara as operações portuguesas na Guerra Civil de Espanha em prol de Franco, com a quebra da política dialogante que o Estado Novo simulara criar, a fachada do corporativismo caía e a natureza do regime ficava a nu. A ira popular contra a escassez de alimentos e os baixos salários poderia já não resultar da “insolência” incentivada pelos anarco-sindicalistas das primeiras décadas do século, mas estava agora em condições de ser transformada em oposição política ao regime. No campo sindical, o corporativismo terminava com a conclusão da Segunda Guerra Mundial. A luta de classes, cujo “fim” Salazar anunciava com a Constituição de 1933, saltava-lhe à porta de casa e juntava-se à luta política contra o regime.

O sentimento essencial estava lá, estava. Fernando Namora, Casa da Malta, 1945: “O lavrador vinha muitas vezes oferecer trabalho e trazia uma caneca de vinho para beberem; as suas gargalhadas parvas atordoavam os ouvidos. Ele falava que o povo devia ser tratado a chicote, que era madraço; disparatava com todos os nomes que lhe apetecia dizer. Um qualquer, de uma vez, num rompante, mostrara-lhe nas trombas um cabrito esfolado e, de sangue a esquentar-lhe a cabeça, dissera: ‘Um dia a gente faz-te assim mesmo!‘” (Namora, 1998: 103).

 

Nota

1 Partes abreviadas deste ensaio foram publicadas em dois volumes da obra de divulgação histórica O Século do Povo Português, (vols. 2 e 4), Alfragide, Ediclube, 2001.


Referências bibliográficas

Almeida, Fialho d’ (1920), Saibam Quantos… (Cartas e Artigos Políticos), Lisboa, Livraria Clássica Editora, 3.ª ed.         [ Links ]

Araújo, Norberto de (1919), Varanda dos Meus Amores, Lisboa, Aillaud e Bertrand, s. d.         [ Links ]

Araújo, Norberto de (1925, 1927), Novela do Amor Humilde, Lisboa, Aillaud e Bertrand, 2.ª ed. revista.         [ Links ]

Botelho, Abel (1901), Amanhã, Porto, Livraria Chardron.         [ Links ]

Brandão, Raul (1966), “Memórias, III”, Obras Completas, I, Lisboa, Jornal do Fôro.         [ Links ]

Cabral, Manuel Villaverde (1979, 1988), Portugal na Alvorada do Século XX, Lisboa, Ed. Presença, 2.ª ed.         [ Links ]

Cabral, Manuel Villaverde (1977), O Operariado nas Vésperas da República (1909-1910) seguido de extractos da “Inquirição pelas associações de classe sobre a situação do operariado” (1909-1910), Lisboa, Ed. Presença.         [ Links ]

Camacho, Brito (1988), Memórias e Narrativas Alentejanas, prefaciadas e seleccionadas por Óscar Lopes, Lisboa, Guimarães Editores.         [ Links ]

Carqueja, Bento (1919), O Povo Portuguez, Porto, Livraria Chardron.         [ Links ]

D’Arcos, Joaquim Paço (1940, 1987), Ansiedade, Lisboa, Guimarães Editores, 7.ª ed.         [ Links ]

Dionísio, Mário (1944, 1997), O Dia Cinzento, Mem Martins, Publicações Europa-América.         [ Links ]

Domingues, Mário (1937), Uma Luz na Escuridão, Lisboa, Agência Editorial Brasileira.         [ Links ]

Esperança, Assis (1932, 1947), “O Homem que perdeu o passado”, em O Dilúvio, Lisboa, Guimarães Ed., 2.ª ed.         [ Links ]

Fatela, João (1989), O Sangue e a Rua: Elementos para uma Antropologia da Violência em Portugal (1926-1946), Lisboa, Publicações Dom Quixote.         [ Links ]

Ferreira, José Gomes (1950, 1990), O Mundo dos Outros, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 8.ª ed.         [ Links ]

França, José-Augusto (1991), A Arte em Portugal no Século XX (1911-1961), Venda Nova, Bertrand Ed.         [ Links ]

Guedes, Maria Estela (org.) (1990), À Sombra de Orfeu, Lisboa, Guimarães Ed.         [ Links ]

Lafargue, Paul (1880, 1971), O Direito à Preguiça, Lisboa, Publicações Dom Quixote.         [ Links ]

Laranjeira, Manuel, “…Amanhã” (1902), in Obras, Volume I, Porto, Edições Asa, 1993.         [ Links ]

Laranjeira, Manuel, “Diário Íntimo” (1908), in Obras, Volume I, Porto, Edições Asa, 1993.         [ Links ]

Leitão, Cláudia (1996), “A Alcântara Operária dos Anos Trinta”, História, Junho, n.º 21 (nova série)        [ Links ]

Lima, Isabel Pires de (1989), “Selecção e prefácio”, em Trajectos: O Porto na Memória Naturalista, Lisboa, Guimarães Editores.         [ Links ]

Lisboa, Irene (1939-40, 1995), Esta Cidade!, Lisboa, Ed. Presença.         [ Links ]

Martins, Hermínio (1968-71, 1998), Classe, Status e Poder, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.         [ Links ]

Mendes, J. Amado (1994), “As camadas populares urbanas e a emergência do proletariado industrial”, em José Mattoso (org.), O Liberalismo (1807-1890), História de Portugal, vol. V, Lisboa, Círculo de Leitores.         [ Links ]

Mónica, Maria Filomena (1982), A Formação da Classe Operária Portuguesa: Antologia da Imprensa Operária (1850-1934), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.         [ Links ]

Namora, Fernando (1945, 1998), Casa da Malta, Mem Martins, Publicações Europa-América, 16.ª ed.         [ Links ]

Negreiros, Almada (1993), “Textos de intervenção”, Obras Completas, vol. VI, Lisboa, IN-CM.         [ Links ]

Nogueira, Franco (1977), Os Tempos Áureos (1928-1936), Salazar, vol. II, Coimbra, Atlântida Ed.         [ Links ]

Ortega y Gasset, José (1930-38, 1997), La Rebelion de las Masas, Madrid, Alianza Ed.         [ Links ]

Orwell, George (1937, 1989), Road to Wigan Pier, Londres, Penguin Books.         [ Links ]

Pascoais, Teixeira de (1912, 1993), Arte de Ser Português, Lisboa, Assírio & Alvim,
2.ª ed.

Patriarca, Fátima (1995), A Questão Social no Salazarismo: 1930-1947, 2 vols., Lisboa, IN-CM.         [ Links ]

Peacock, Thomas Love (1831, 1986), Crotchet Castle, Londres, Penguin Classics.         [ Links ]

Pereira, José Pacheco (1999), “’Daniel’: o jovem revolucionário (1913-1941)”, em Álvaro Cunhal: Uma Biografia Política, vol. 1, Lisboa, Temas e Debates.         [ Links ]

Pessoa, Fernando (1910-1919), Páginas de Pensamento Político-1, 1910-1919, Mem Martins, Publicações Europa-América, s. d.         [ Links ]

Pessoa, Fernando (1998), Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, edição Richard Zenith.         [ Links ]

Pessoa, Fernando (1986), Obra Poética, Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar.         [ Links ]

Queirós, Teixeira de (1909), O Salústio Nogueira, nova edição totalmente refundida, Lisboa, Parceria A. M. Pereira.         [ Links ]

Ramos, Rui (1994), “A segunda fundação (1890-1926)”, em José Mattoso (org.), História de Portugal, vol. VI, Lisboa, Círculo de Leitores.         [ Links ]

Rego, A. M. Lopes do (1925), A Burguesinha, Lisboa, Liv. Aillaud & Bertrand.         [ Links ]

Ribeiro, Aleixo (1945), Bairro Excêntrico, Lisboa, Edit. Inquérito.         [ Links ]

Ribeiro, Aquilino (1922, 1994), Malhadinhas, Venda Nova, Bertrand Ed., 25.ª ed.         [ Links ]

Ribeiro, Aquilino (1931, 1983a), Maria Benigna, Lisboa, Círculo de Leitores.         [ Links ]

Ribeiro, Aquilino (1939-40, 1983b), O Arcanjo Negro, Lisboa, Círculo de Leitores.         [ Links ]

Ribeiro, Manuel (1919), A Catedral, Lisboa, Guimarães Ed.         [ Links ]

Ribeiro, Manuel (1927, 1979), Planície Heróica, Lisboa, Guimarães Ed., 5.ª ed.         [ Links ]

Rosas, Fernando (1995), Portugal entre a Paz e a Guerra, 1939-1945, Lisboa, Editorial Estampa.         [ Links ]

Sá, Víctor de (1986), “Um ‘democrático’ típico de republicano conservador: Santos Graça”, em Liberais & Republicanos, Lisboa, Livros Horizonte.         [ Links ]

Salazar, António de Oliveira (1997), Inéditos e Dispersos I, Escritos Político-sociais e Doutrinários (1908-1928), organização e prefácio de M. Braga da Cruz, Venda Nova, Bertrand Ed.         [ Links ]

Serrão, Joel (1978), Temas Oitocentistas: II, Lisboa, Livros Horizonte.         [ Links ]

Telo, António José (1977), O Sidonismo e o Movimento Operário Português: Luta de Classes em Portugal, 1917-1919, Lisboa, Ulmeiro.         [ Links ]

Torga, Miguel (1943, 1991), O Senhor Ventura, Coimbra, Edição do Autor, 3.ª ed.         [ Links ]

Valente, Vasco Pulido (1974), O Poder e o Povo: A Revolução de 1910, Lisboa, Publicações Dom Quixote.         [ Links ]

Vaquinhas, Irene Maria (1995), Violência, Justiça e Sociedade Rural, Porto, Afrontamento.         [ Links ]

Vaquinhas, Irene Maria (2001), “Alguns aspectos da violência nos campos portugueses do século XIX”, Revista de História da Sociedade e da Cultura, 1, pp. 285-325.         [ Links ]

 

* Eduardo Cintra Torres. Jornalista, crítico, autor.
E-mail: eduardo.torres@cintra-leal.pt

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons