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Sociologia, Problemas e Práticas

Print version ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.38 Oeiras May 2002

 

COBERTURA JORNALÍSTICA DA INFÂNCIA: DEFININDO A “CRIANÇA INTERNACIONAL”

Cristina Ponte *

Resumo Neste artigo comenta-se a construção social das crianças produzida pelo jornalismo, com base em duas análises comparadas. A primeira caracteriza a “criança internacional” nas páginas de dois jornais nacionais de informação geral (Público e Diário de Notícias) no ano 2000. A segunda toma como base uma semana do mesmo ano em cinco jornais (Público, Diário de Notícias, Le Monde, The Guardian e El Pais) e aprecia de que formas as crianças são apresentadas nos títulos de peças que a elas se referem. Enquanto a primeira ressalta a variável geográfica como definidora das “nossas crianças” e das “outras”, a segunda análise evidencia formas de representação que desvalorizam o seu lugar social.

Palavras-chave Crianças, jornalismo, notícia, imagem.


Abstract In this article the author uses two comparative analyses to comment on the social representation of children produced by journalists. The first describes the “international child” as portrayed in the pages of two national generalist newspapers (Público and Diário de Notícias) in the year 2000. The second bases itself on a particular week in the coverage of five newspapers (Público, Diário de Notícias, Le Monde, The Guardian and El Pais) during the same year, and assesses the ways in which children are presented in the titles of pieces that refer to them. While the former emphasises the geography variable in order to define “our children” and the “others”, the latter displays forms of representation which devalue children’s place in society.

Keywords Children, journalism, news, image.


Résumé Cet article commente la construction sociale des enfants produite par le journalisme, à partir de deux analyses comparées. La première caractérise “l’enfant international” dans les pages de deux quotidiens portugais (Público et Diário de Notícias) durant l’année 2000. La deuxième se base sur une semaine de la même année dans cinq quotidiens (Público, Diário de Notícias, Le Monde, The Guardian et El Pais) et commente la façon dont les enfants sont présentés dans les titres des articles qui parlent d’eux. Tandis que la première fait apparaître la variable géographique pour définir “nos enfants” et les “autres”, la deuxième analyse met en évidence des formes de représentation qui dévalorisent leur place dans la société.

Mots-clés Enfants, journalisme, nouvelles, image.

 

Resúmene En este artículo se comenta la construcción social de la infancia producida por el periodismo, sobre la base de dos análisis comparados. El primero caracteriza la “infancia internacional” en las páginas de dos diarios nacionales de información general (Público y Diario de Noticias) en el año 2000. El segundo toma como base una semana del mismo año en cinco periódicos (Público, Diario de Noticias, Le Monde, The Guardian y El País). Se analiza de que formas son presentados los niños en los titulares de varios artículos. Mientras el primero destaca la variable geográfica como definidora de “nuestra infancia” y de las “otras”, el segundo análisis pone en evidencia las formas de representación que desvalorizan su papel social.

Palabras-clave Infancias, periodismo, noticia, imagen.


Estudos comparados no jornalismo: a atenção a outras agendas

Os estudos dos média noticiosos têm estado estreitamente ligados a questões políticas nacionais, constituindo sobretudo um metadiscurso académico sobre a definição diária da realidade política (Schudson, 2000). Esta delimitação à agenda política em sentido estrito — envolvendo sobretudo decisores, governamentais e de outras esferas de poder — secundariza outras vertentes do que constitui notícia e tende a subestimar porque constitui notícia. A escolha de um grupo social habitualmente silenciado mas de grande influência simbólica — as crianças — como território para observar processos de construção da notícia na imprensa de informação geral considerada de qualidade no nosso país teve pois como enquadramento a atenção a uma agenda de notícias frequentemente discretas e no interior do jornal.1

No nosso país, os estudos sobre crianças e média têm-se vindo a afirmar de forma notória, nos últimos anos (Pinto e Pereira, 1999). Tem sido a televisão o campo mais trabalhado, em estudos centrados na programação para crianças (Brederode-Santos, 1991; Ponte, 1998) mas sobretudo na recepção. As vivências de crianças de várias idades e meios sociais como espectadores de televisão foram objecto de estudo por Manuel Pinto (1995), Teresa Fonseca (2000), Sara Pereira (2000), Sara Saramago (2000). Compilações de pesquisas internacionais neste campo (von Feilitzen, 1999; 2000; 2001) revelam também que tem sido a televisão o meio mais estudado, e os programas para crianças ou “programas familiares” os que têm suscitado maior atenção por parte de investigadores. Por contraste com esta grande atenção ao audiovisual e ao entretenimento, ressalta a escassez de estudos sobre o discurso informativo em outros suportes, como a imprensa ou a rádio.

Como outros campos que cruzam o público e o privado, como os estudos de género ou a presença da ideologia da família nas notícias (Carter, 1998), também a infância tem estado pouco presente nos estudos jornalísticos. A pesquisa académica e a reflexão de profissionais sobre a cobertura jornalística de crianças é ainda escassa mas vem registando um interesse crescente (Ponte, 2000). Deste interesse destacamos nomeadamente o estudo comparado envolvendo 13 países asiáticos (Goonasekera, 2001) e a intervenção protagonizada pela Federação Internacional de Jornalistas, traduzida na aprovação de um guião para tratamento noticioso dos direitos da criança consignados pela Convenção dos Direitos da Criança de 1989, e elaborado conjuntamente com a UNICEF.

As análises que apresentamos fazem parte de um estudo mais geral sobre a cobertura jornalística da infância nos últimos 30 anos (Ponte, 2002). Folheando jornais de informação geral, procurámos ir além de “momentos de crise” ou de calendário (abertura do ano escolar, exames, Dia Mundial da Criança), inventariar que assuntos aparecem no dia-a-dia, tanto os que aparecem muito como os que aparecem pouco, e procurar perceber como essas opções se inserem na construção mais geral do discurso jornalístico.

Com contributos da história, da sociologia e da antropologia da infância, construímos categorias sociais e culturais que permitem a diferenciação temática das peças (por exemplo: criança aluno, para peças que cobrem conteúdos de educação; criança em risco, para peças que cobrem conteúdos relacionados com situações de insegurança; a criança olímpica, para peças que referem crianças filhas de figuras públicas, da vida artística ou política).

O critério de recolha de notícias neste estudo tem como limite os 14 anos (e não os 18, consignados na Convenção), uma vez que o nosso objectivo se centra na percepção social da criança e da infância, e nos valores com que são culturalmente construídas no ocidente (vulnerável, inocente, dependente). Mesmo sabendo como são artificiais as fronteiras de idade, fizemo-lo na procura de uma separação com a adolescência.

A criança internacional no Público e Diário de Notícias, em 2000

A primeira comparação versa notícias internacionais e tem como base peças recolhidas no ano 2000, nos dois jornais, que reportam situações vividas directa ou indirectamente por crianças. Privilegiámos a comparação entre notícias provenientes do espaço europeu, por um lado, e do “terceiro mundo” (África, Ásia, América Latina), por outro.

Em secções como “Internacional”, “Sociedade”, “Ciência” ou “Média”, no Diário de Notícias e Público, em 2000, as notícias internacionais pesam no total das peças recolhidas. A percentagem das peças com origem externa é respectivamente de 41,9% e 50,8%. Estes valores são superiores aos de outros anos, analisados no nosso estudo, e para eles contribuiu a elevada cobertura que os dois jornais portugueses (como de quase todo o mundo) deram à saga de Elián Gonzalez, o pequeno náufrago cubano constituído como objecto de disputa política entre Cuba e os Estados Unidos. Só este caso representa 16,4% das notícias com origem externa no Diário de Noticias e 20,1% no Público

.

O quadro 1 discrimina as origens por jornal, quantifica o total recolhido e apresenta a variação dos valores percentuais entre os dois jornais.

Em ambos, dominam notícias da Europa (37,7%) e dos Estados Unidos (onde se inclui o caso Elián), com 30,9%. O terceiro lugar, bem afastado (9,3%), pertence ao continente asiático, em particular devido ao conflito israelo-palestiniano. Para os valores alcançados por África (7,5%) contribuem notícias sobre Angola e Moçambique no DN. Peças sobre as Nações Unidas e outras instituições, reportando estudos ou conferências internacionais, apresentam baixa percentagem, da ordem dos 7%, valor que quase coincide nos dois jornais. Podemos pois constatar que o noticiário internacional é orientado sobretudo para notícias de países do “primeiro mundo”.

Nos dois jornais, o número de peças de origem europeia (210) quase duplica o número de peças cobrindo a Ásia, África e América Latina (112). Esta distribuição mostra também a relevância da proximidade geográfica. Num ano marcado pelo caso Elián e apesar do seu peso neste noticiário, a maioria das notícias externas ainda veio de países europeus.

A distribuição irregular verifica-se nas notícias com origem europeia (quadro 2). Não é de Espanha, país vizinho, nem da França, Suíça ou Alemanha, países com proximidade com a sociedade portuguesa, dado o elevado número de emigrantes que aí se fixaram, que vem a maioria das notícias. O lugar de destaque pertence ao Reino Unido, com quase metade do total das notícias europeias. Para esta relevância quantitativa podem contribuir factores como o elevado número de revistas científicas aí publicadas e que constituem fonte de informação para as páginas de ciência, o peso que tiveram em 2000 as campanhas de jornais tablóides em prol da publicitação de listas de pedófilos (e tornando-se elas próprias tema de agenda de outros jornais), a existência de correspondentes permanentes na capital britânica, com produção regular de notícias, a influência da agência de informação Reuters nas salas de redacção, estes dois aspectos visíveis na maior cobertura do Público (provém do Reino Unido mais de metade das suas notícias europeias).

No seu conjunto, cinco países (Reino Unido, Itália, Alemanha, Espanha e França) representam mais de 3/4 das notícias da Europa. De novo se sente a dificuldade da circulação de notícias do espaço supranacional: notícias sobre instituições, reportando políticas comuns ou estudos sobre as crianças da União Europeia, representam apenas 6,2%, na linha do que se verificara com outras instituições internacionais. A distribuição dos restantes países com notícia é mostrada no quadro 3.

Não se registaram pois notícias sobre crianças provenientes da maioria dos países europeus (nomeadamente do norte, centro e leste da Europa). Iremos ver adiante que conteúdos sobre crianças foram contemplados nestas notícias.

Dimensão das notícias e uso de fotografias

As decisões editoriais sobre a apresentação das peças quanto à extensão (número de parágrafos) variaram nos dois jornais no ano 2000, desenhando dois estilos diferentes de cobertura. As notícias de parágrafo único dominam no Diário de Notícias, tanto nas europeias como dos outros continentes, enquanto no Público encontramos peças mais extensas. A variação entre as coberturas dos dois jornais neste item é a mais elevada (a comparação reporta ao ano anterior à reformulação gráfica do Público). Estes resultados dão assim conta de duas “culturas de redacção” diferentes quanto ao tratamento jornalístico, entre a peça curta e de síntese e peças mais extensas e contextualizadas.

Se a maioria das peças não tem ilustração, encontramos mais imagens de crianças nas notícias provenientes de África, Ásia e América Latina (43,2%) do que no espaço europeu (36,2%). As imagens fotográficas foram apreciadas segundo variáveis como a idade aproximada, género, características étnicas2 e estatuto social e a sua comparação evidenciou diferentes retratos consoante a proveniência geográfica:

A criança da Europa nestas fotografias de imprensa é mais nova que a criança do Terceiro Mundo. É sobretudo bebé, de pele branca e de “classe média”. É ainda uma “criança genérica”, não se distinguindo se é “menino ou menina”, dado o recurso frequente a grandes planos de rostos de crianças. O espaço interior (da casa, creche, hospital, escola, jardim cercado) é o ambiente dominante. A homogeneidade nas características étnicas e nível social impõe-se perante a quase ausência de grupos mistos (3,0%) e de cenários de pobreza (11,8%).

Vejamos por contraste as imagens da criança do Terceiro Mundo. Nas peças do Público e do Diário de Notícias é sobretudo rapaz, pobre e mais velho que a criança europeia (predominam aqui crianças entre os 6 e os 10 anos). Em apenas 27,1% das fotografias encontramos raparigas. São as crianças asiáticas as mais presentes, seguidas das africanas. O cenário dominante é agora o exterior: com frequência, são crianças deslocadas dos seus contextos naturais, fotografadas em campos de refugiados, em cenários de guerra ou vítimas de catástrofes ambientais.

A composição destas fotografias corresponde às observações de Patricia Holland (1992: 148) sobre as representações em imagem das crianças do Terceiro Mundo: crianças pobres, negligenciadas, abandonadas, vítimas de guerra ou de desastres naturais, estão presentes em fotografias de imprensa ou em anúncios de campanhas como as figuras mais vulneráveis desse espaço. O seu sofrimento (ao contrário das imagens de crianças bem alimentadas e com recursos, dos países desenvolvidos) solidifica a imagem de debilidade dessas nações. Escreve Holland (1992: 150):

O sofrimento do Terceiro Mundo proporciona (aos países desenvolvidos) um certo sentido de conforto, recordando-nos que temos poder para ajudar outros. Esse poder é confirmado pelo olhar apelativo de uma criança, cuidadosamente seleccionada de maneira a que não nos faça vacilar da nossa posição. Essas crianças que nos apresentam não são refugiados que procuram entrar nas nossas fronteiras, não são guerrilheiros armados causadores de perturbação internacional, não têm marcas de doença que as tornem fisicamente repelentes. O seu ar miserável e submisso assegura a nossa compaixão e ajuda a que decidamos contribuir. Ao olharmos essas crianças, reconhecemo-nos como adultos e habitantes do Ocidente.

Diplomatas, organizações não governamentais e os média conhecem bem estes códigos e estes olhares. Para Charlie MacComarck, dirigente da Save the Children, a escolha de uma imagem forte para uma campanha de fundos obedece a critérios bem pensados do ponto de vista da recepção desejada (recolha de donativos). Comenta MacComarck (apud Moeller, 2002: 50):

As crianças escolhidas para essas imagens têm 5, 6, 7 anos. Andam por essa idade. Mais novos do que isso e (acreditam os doadores) os pais devem tomar conta deles —  ou o que precisam não é de apoio financeiro mas de alimentos. Mais velhos e as pessoas acham que já são autónomos, capazes de tomarem conta de si. A minha impressão (sobre o que funciona melhor) é uma criança gira, genérica em termos de etnicidade ou género. Pode ser uma rapariga, mas pode ser uma criança indonésia, com uma aparência não muito acentuada de rapaz ou de rapariga, de 6 ou 7 anos. Penso que há um motivo para isso. As pessoas precisam de uma imagem genérica. Quando a imagem é muito específica, para muitos o caso torna-se muito específico. Outro ponto central são os olhos. Mais do que o resto, é preciso que a criança nos esteja a olhar.

Por contraste com as crianças vítimas e desprotegidas, raramente é dada a conhecer a autonomia e a resistência de crianças que vivem em condições diferentes do “ideal de infância” do ocidente, a sua capacidade para cuidarem de si, o cruzamento que fazem de papéis (entre o cuidar de irmãos mais novos e o brincar com eles, por exemplo), o seu sentido da responsabilidade e capacidade de sobrevivência ou, quando tal é feito, frequentemente, é-o em termos de tragédia ou de ameaça.

Tópicos de diferentes mundos

Vejamos agora nos dois jornais portugueses, em 2000, quais foram os cinco tópicos mais frequentes nas notícias da Europa e dos três continentes. Sem surpresa, verificamos que não há tópicos comuns nestes dois territórios. Ao contrário da variação nas decisões editoriais quanto à extensão das peças, de que demos conta, a escolha temática evidencia menor diferença nos processos de decisão sobre que temas cobrir relativamente a notícias envolvendo crianças nos dois espaços geográficos: encontramos os mesmos temas em ambos os jornais, e a sua variação situa-se abaixo de 2, 5 pontos em sete dos 10 principais temas (quadro 4).

Na comparação entre os jornais, observamos a liderança da pedofilia. Segue-se no DN a atenção a outros riscos envolvendo as crianças, enquanto o Público coloca em segundo lugar a criança aluno (o tema da educação, tópico dominante na cobertura nacional nos dois jornais, é uma das suas bandeiras noticiosas). Estes dois temas, riscos e educação, alternam pois na segunda e terceira posições nestes jornais.

A pedofilia constitui hoje um dos perigos mais associados à vida das crianças nos países ocidentais, assinalam Jackson e Scott (1999), integrante do cenário de uma sociedade vista como colocando em risco a segurança e bem-estar dos mais novos. O motivo porque aparece aqui isolada é evidenciar como é forte a sua frequência nas notícias dos jornais portugueses.

Quase 1/5 das notícias provenientes da Europa cobre o tema da pedofilia, em percentagens quase idênticas nos dois jornais. A maioria das peças reporta o número crescente de sites com pedofilia na Internet, prisões, julgamentos, perseguições e ameaças públicas a pedófilos em diversos países europeus. As crianças estão implícitas, como pressupostos “objectos de desejo”, são portanto notícia de forma indirecta. A polémica sobre a divulgação de listas de pedófilos por tablóides britânicos, nos meses de Julho e Agosto de 2000, mereceu grande atenção dos jornais portugueses, mas a sua cobertura foi mais focalizada nas questões éticas da acção dos média do que no problema do abuso sexual de crianças. Comparando esta atenção ao tema nas notícias internacionais com a sua presença no noticiário nacional, constatamos que o abuso sexual de crianças foi sobretudo construído como “perigo do exterior” (fora de casa, fora do país), em ambos os jornais.

A criança em risco cobre notícias que dão conta de outros riscos para crianças, provenientes também de zonas inseguras fora de casa (acidentes, sequestros, raptos, crianças desaparecidas, mordidas por cães em jardins públicos ou na rua), do próprio mercado de consumos e mesmo dentro de casa (riscos alimentares, em cuidados de saúde, brinquedos, programas de televisão).

As notícias sobre pedofilia e outros riscos representam quase 30% do total das notícias com origem na Europa. Podemos assim considerar que a criança europeia é sobretudo construída nesta imprensa como criança em risco, rodeada de espaços e experiências arriscadas, com a sua segurança em perigo (embora as estatísticas confirmem que a maioria dos abusos sexuais, acidentes e situações de perigo ocorrem na esfera doméstica).

A criança aluno (7,6%) é o principal tópico de cobertura das crianças de âmbito nacional, não só nos jornais portugueses. O mesmo se verifica nos EUA, Brasil e na maioria dos países asiáticos cobertos pelo estudo de Goonasekera, conforme demos conta na revisão deste tema (Ponte, 2002). Nos jornais portugueses, as notícias sobre educação provindas de países europeus reportam matérias e questões como currículos, castigos físicos, violência entre estudantes, indisciplina, acesso à escola e insucesso em crianças de minorias sociais, conteúdos de actualidade também presentes na agenda nacional sobre educação.

Para a criança da ciência (6,2%) contribui sobretudo a informação fornecida por fontes científicas (revistas, estudos, especialistas) em páginas de ciência dos jornais, ou eventos dramáticos e de final incerto envolvendo crianças e decisões médicas, como nascimentos múltiplos decorrentes de gravidezes in-vitro, nas páginas de Saúde/Sociedade. A medicina, a genética, as ciências do ambiente ou a psicologia cognitiva são alguns dos “campos naturais” destas notícias. Recordemos em 2000 como crianças da ciência o caso das gémeas siamesas de Manchester e a polémica sobre a sua separação conduzindo à morte de uma delas, uma polémica que envolveu os seus pais, médicos, tribunais e instâncias éticas, extravasou fronteiras e se prolongou como notícia de continuidade durante semanas.

O quinto tópico nas notícias da Europa, a criança olímpica (5,2%), mostra a atenção recebida por eventos como o nascimento do filho do primeiro ministro britânico, Tony Blair, ou a mudança de escola das netas de Isabel II. Estas crianças são vistas como “especialmente notáveis” devido à posição de elite das suas famílias.

Na sua maioria, as “notícias europeias” cobrem, pois, eventos ou situações consideradas como de risco ou polémicas para o bem-estar das crianças nas sociedades ocidentais contemporâneas, correspondendo a um discurso latente de ansiedade para com elas e aos valores-notícia da negatividade e do conflito. Nalguns casos, como em notícias sobre pedofilia, os jornais fazem uma cobertura do tema mais alargada que na sua agenda nacional, como se as notícias provenientes do espaço europeu funcionassem como amplificadores de recursos para a agenda pública destes “temas de risco”. Também o contexto escolar, favorecido na agenda nacional sobre educação, é aqui ampliado, contribuindo para o debate sobre questões educacionais nas sociedades contemporâneas. Em muitos destes tópicos, menos que a negatividade pesará a polémica e a proximidade com a vida quotidiana e as preocupações dos leitores sobre o presente escolar dos seus filhos. A polémica e a novidade são valores dominantes nas notícias sobre crianças da ciência. Questões sobre o valor da vida humana ou o primado da decisão (pais versus médicos ou juízes), limites éticos de decisores e de descobertas alimentam eternos e renováveis debates públicos. Por fim, a posição de figuras de elite é também relevante. Notícias sobre as suas crianças sustentam sentimentos calorosos, por extensão, sobre os seus papéis como “pessoas comuns”, mobilizam sobretudo o interesse humano, com proximidade afectiva. Podemos dizer, em síntese, que a criança europeia se aproxima bastante da criança do noticiário nacional.

Conjunto diferente de tópicos domina nas notícias provindas de África, Ásia ou América Latina, onde a negatividade é o valor-notícia comum. As crianças são apresentadas como vítimas de “problemas distantes” para uma perspectiva europeia ocidental, como guerras ou perseguições étnicas, catástrofes naturais ou falta de cuidados básicos de saúde. São as maiores vítimas da pobreza, dependentes da ajuda internacional, abandonadas e negligenciadas pelos governos dos seus países. Estamos aqui perante “imagens convencionais” de situações remotas de um ponto de vista europeu, apresentadas em textos, em regra curtos, sem contexto nem alternativas, construindo um sentido de fatalidade e impotência. Ao contrário da criança europeia, estas “crianças distantes” pertencem definitivamente a outro mundo.

Claro que isto não significa que essas situações sejam irreais. Mas se pensarmos que o que aparece muito é tão significativo como o que aparece pouco, destacamos a ausência ou escassez de notícias sobre a situação das crianças desses territórios contextualizadas com fenómenos sociais e económicos de natureza global. Por exemplo, questões como as redes de turismo sexual envolvendo crianças ou o trabalho infantil em indústrias são temas praticamente ausentes do noticiário internacional. As condições de vida desses milhões de crianças tendem a ser ofuscadas pela redundância de estórias ou informações apresentando-nos um mundo dos outros aparentemente sem conexões com o nosso.

O discurso dos títulos sobre crianças

Trabalhamos agora com um menor conjunto de peças (97), recolhidas na primeira semana de Outubro de 2000 em cinco jornais (Público, Diário de Notícias, El Pais, The Guardian e Le Monde), sobre notícias, nacionais e internacionais, relacionadas com crianças. Os temas das peças não variaram muito das grandes categorias identificadas na análise anterior. Apenas um único evento foi comum a todos os jornais: o nascimento de um bebé geneticamente concebido para ser compatível com a irmã, com leucemia. A notícia foi primeira página no Washington Post, no dia 3 de Outubro, e no dia seguinte surgia também na primeira página do El Pais, The Guardian e Diário de Notícias e em páginas de interior nos restantes, prosseguindo no dia 5 o tratamento deste caso de uma criança da ciência com artigos de opinião e editoriais. Outras notícias retomam os temas que encontrámos na liderança dos tópicos, respectivamente, a pedofilia no espaço geográfico mais próximo e a criança vítima de violência política e de guerras, no mais distante.

Esta análise procurou apreciar como os jornais representaram nos títulos das peças as crianças como membros de contextos sociais, usando instrumentos da análise crítica do discurso (Fowler, 1991). Nesta análise de títulos observamos a transitividade, as transformações sintácticas e elementos interpessoais das frases, integrando-os no inventário sociossemântico da representação dos actores sociais, proposto por Teun van Leeuwen (1997).

Pelo conceito semântico da transitividade, uma frase é lida analisando-se como representa a “realidade” a que se reporta, que lugares ocupam os diferentes participantes na acção: quem/o quê é o agente (sujeito lógico), que acção é representada, quem/o quê é o paciente afectado pela acção. Como veremos, muitas vezes o sujeito lógico está ausente dos títulos. As acções são mencionadas sem agente, por vezes mesmo sem verbo indicador do seu processo. Os títulos com estruturas sintácticas (sujeito-verbo) coexistem com outros sem elas e continuando, apesar disso, a terem sentido para os leitores pelo conhecimento contextual partilhado.

Algumas das transformações sintácticas mais comuns são a passiva e a nominalização. Fowler (1991) observa que o uso da passiva é muito frequente nos títulos de imprensa: pela voz passiva, pacientes ocupam sintacticamente posições de sujeito, geralmente associadas a um agente. Também comum é a nominalização, a realização sintáctica de predicados (verbos e adjectivos) como substantivos. Fowler aprecia as consequências estruturais e possibilidades ideológicas desta transformação, sublinhando o seu potencial para a mistificação e reificação: “processos e qualidades assumem um estatuto de coisas: impessoais, inanimadas, capazes de serem agregadas e contabilizadas como capital e exibidas como troféus”.

Como apreciação da relação interpessoal estabelecida pelo texto, a modalidade cobre o “comentário” ou “atitude” implícita ou explicitamente introduzidos pelo autor do texto. Tem a ver com diferentes regimes de afirmação: a verdade (da confiança absoluta no que se afirma a vários graus de incerteza), a obrigação, a permissão e a apreciação (indicação de aprovação ou desaprovação do estado de coisas comunicado pela proposição).

Por fim, o inventário sociossemântico proposto por van Leeuwen articula a linguística com a sociologia, sublinhando categorias sociológicas da linguagem, como agência e actor social. Deste inventário escolhemos seis categorias. São elas:

1) exclusão (supressão ou lugar secundário ou remoto);

2) apresentação por um papel activo (como actor) ou passivo (como objecto directo da acção, beneficiário ou circunstância);

3) particularização pelo nome (nomeação) ou pelas identidades e funções comuns (categorização);

4) referência associada a membros de classes na realidade social (representação genérica) ou a pessoas singulares, ligadas a lugares e acções singulares (representação específica);

5) despersonalização pelo uso de uma qualidade (abstracção) ou lugar ou objecto directamente ligado à pessoa (objectivação);

6) sobredeterminação pelo uso de práticas opostas (inversão), dimensões simbólicas ou conotações.

Cada um dos 97 títulos foi apreciado segundo estas categorias, de seguida comentadas agregando-se a cada uma títulos considerados ilustrativos.

[1] A exclusão de crianças dos títulos é comum nas peças que reportam eventos ou questões com elas relacionados, pela supressão (1, 2) e pela sua secundarização ou lugar implícito (3, 4). A ligação desses títulos às experiências das crianças (como a escola ou produtos para ela direccionados) pressupõe que se complete informação como “quem foi/é/poderá ser afectado pela acção”. Se ignorássemos estas questões, muitas peças ficariam de fora do nosso corpus. Se o fizéssemos, perderíamos certamente informação sobre lugares e valores associados a este grupo, nas notícias.

1) El 57% de los franceses apoya la “enseñanza de las religiones” (El Pais, 02-10).

2) Jardins de infância/Rede pública do pré-escolar não chega para necessidades (DN, 06-10).

3) Itália/Site pedófilo aberto (Público, 04-10).

4) À imagem do V-chip americano/PE quer protecção contra TV e net (Público, 05-10).

[2] A apresentação das crianças como participantes sociais activos ou passivos é a que mais varia. As crianças são sobretudo participantes passivos, directa ou indirectamente afectados por acções externas, como podemos ver em vários títulos. São objecto da acção de outrem quando directamente afectadas ou marcadas pela acção externa (5-8). Mesmo quando ocupam posições de sujeito gramatical (como o bebé nos títulos 6 e 7), não são sujeitos lógicos do ponto de vista da transitividade, uma vez que a sua situação depende da acção de “outros” (pais, médicos). São beneficiárias quando indirectamente afectadas (como a irmã doente, em 4, 5 e 6). Podem também ser apresentadas como circunstância (9), aqui a causa remota para uma condenação.

5) Parents create baby to save sister (The Guardian, 04-10).

6) Un enfant a été crée par fécondation in vitro pour soigner sa soeur leucémique aux États-Unis (Le Monde, 05-10).

7) Genética/Bebé nasce para salvar irmã de morte prematura (DN, 04-10).

8) Vaga de assassínios de crianças em Nairobi (Público, 05-10).

9) Condenado a 18 años un cura por abusar de 11 menores en Francia (El Pais, 07-10).

Poucos títulos apresentam as crianças de modo activo, como alguém capaz de fazer coisas e fazendo-as. Neste conjunto de notícias quando isto acontece estamos perante acções negativas (10, 11, 34) ou processos de emposse e metafóricos associados a capacidades de recém-nascidos ou mesmo de fetos (12, 13). Aqui a criança delinquente e a sua punição e a criança aluno e a sua ignorância estão a par da criança da ciência e todas as suas espantosas possibilidades.

10) Florida/Criança de 11 anos presa por assaltar banco (Público, 04-10).

11) Alunos do 1.º ciclo sabem pouco sobre os símbolos da República/5 de Outubro “é sexta-feira santa” (Público, 02-10).

12) Embriologia/Los fetos pueden memorizar y aprender en el útero materno (El Pais, 03-10).

13) Bebé salva irmã (Público, 04-10).

[3] A particularização neste conjunto mostra que poucos títulos nomeiam crianças, uma vez que a maior parte delas não são figuras públicas. O uso de nomes próprios significa que os leitores as conhecem, devido ao seu estatuto social ou a estarem presentes em notícias de continuidade. No nosso corpus, a nomeação associa-se a circunstâncias relacionadas sobretudo com a morte, nomeando a criança vítima (14, 15, 16, um rapaz palestiniano de 12 anos e um assassinato civil). O uso do nome surge também em notícias de temas polémicos, onde a continuidade no tratamento do assunto gera intimidade com a pessoa afectada, neste caso a criança da ciência (17). Também encontramos este recurso num título sobre uma criança com um estatuto próximo do olímpico (18).

14) A morte de Rami I, A morte de Rami II, A morte de Rami III (Público, 06-10).3

15) Le père du petit Mohamed réclame vengeance (Le Monde, 05-10).

16) Fait-divers: l´autopsie de la petite Marine, douze ans (Le Monde, 05-10).

17) Discrepâncias éticas sobre el caso de Adam Nash (El Pais, 05-10).

18) Chama-se Alexandre, como o pai (Público, 02-10).

A particularização por categorização é mais comum e está sobretudo associada à idade, que pode ter vários sentidos: estatuto (19), amplitude (20) ou apresentação simbólica enfatizada (21). Outras categorizações invocam indirectamente situações remotas ou presentes (22):

19) Justicia tendra que crear 52 fiscalías de menores (E Pais, 02-10).

20) Annan wants UN to try teenagers for war crimes (The Guardian, 07-10).

21) La mort d’un enfant (Le Monde, 03-10).

22) Indemnização para vítimas de orfanatos ingleses (Público, 05-10).

[4] A referência distingue a apresentação genérica, baseada em classes e suas espécies, da representação específica como pessoas singulares ligadas a lugares singulares. Nos nossos títulos, como é corrente no jornalismo onde os eventos são mais facilmente tratados que as problemáticas, a apresentação genérica (23, 24) é minoritária comparada com a representação específica, predominando apresentações de crianças como pessoas ligadas a lugares ou acções específicas (25, 26, 27 e ainda 6, 8, 9, 10).

23) El Congreso debate hoy la ley de Extranjería/El PP nega el derecho a la educación infantil a los hijos de irregulares (El Pais, 05-10).

24) Ambassador’s wife and the missing children — For the children (The Guardian, 05-10).

25) Atacado con un “coctel mólotov” un centro de niños inmigrantes en FuerteVentura (El Pais, 06-10).

26) Bereaved couple demand right to baby girl (The Guardian, 05-10).

27) Fait divers: une fillette disparue retrouvée morte à Nantua (Le Monde, 04-10).

[5] A despersonalização é outra opção comum, pela abstracção ou pela objectivação, podendo também ser associada à exclusão. A abstracção, pela qualidade (28, 29) é menos frequente que a objectivação, o uso de um lugar ou objecto directamente ligado à pessoa (30, 31, 32).

28) Delinquência juvenil/Centros de acolhimento terão vigilância reforçada (DN, 02-10).

29) Castilla y Léon crea un servicio contra la violencia escolar (El Pais 02-10).

30) Nouvelle campagne d´éducation à la sexualité dans les collèges (Le Monde, 02-10).

31) O peso do 2.º ciclo do ensino básico (Público, 06-10).

32) Three-fifths of failing schools raise standards (The Guardian, 07-10).

[6] A sobredeterminação reforça a dimensão expressiva da linguagem. Isto implica da parte do jornal uma ligação estreita com os leitores, uma audiência pressuposta como capaz de compreender não apenas o contexto implícito do título (o seu tema) mas também figuras de estilo como a ironia ou a metáfora. Esta opção não é frequente no nosso corpus, mas foram encontrados alguns casos, nomeadamente no noticiário nacional dos jornais. Realiza-se por estratégias como a surpresa e inversão (33, 34), dimensões simbólicas (35, também 13), associações e conotações (36, 37, também 31) ou o sublinhar uma menoridade de estatuto (35, 38).

33) Niños adultos? (El Pais, 06-10).

34) Once in school, they’ll learn to hate each other (The Guardian, 03-10).

35) Volodia Poutine, le gros ours et les petits enfants (Le Monde, 05-10).

36) Go forth and multiply (The Guardian, 04-10).

37) Embrión de un dilema (El Pais, 05-10).

38) Campanha da Administração Interna, Educação e Juventude arranca hoje em todo o país/Levar o hino e a bandeira às criancinhas (Público, 02-10).

Apesar das diferenças editoriais, estes jornais não diferem na representação que fazem das crianças nos seus títulos. O uso da passiva é dominante, a apresentação como actores sociais activos é temperada pela negatividade ou pelo olhar de espanto sobre seres distantes. A exclusão e a despersonalização são também escolhas comuns, criando outra distância social no leitor. Dispositivo ideológico que também contribui para afastar os problemas sociais das crianças da agenda pública, como grupo, é a opção maioritária pela representação específica. A estreita ligação com lugares e acções específicas configura-se como sugestão de leitura de acontecimentos de um ponto de vista singular e fragmentado, acentuado pelo uso dominante da notícia curta. Este dispositivo, comum no discurso noticioso, pode ser associado a processos de reificação. Encontramos também a nominalização nos títulos 14, 17, 21 ou 22. Mesmo recordando que estamos perante títulos (que partilham a síntese como necessidade informacional), os seus conteúdos permanecem sem pistas de leitura (muitas vezes a explicação também está ausente no próprio corpo da notícia). A mistificação e a reificação podem ser assim, como notava Fowler, consequências desta escolha linguística.

A análise interpessoal mostra o domínio da modalização de verdade com elevados níveis de certeza, algo esperável na cultura jornalística. Aqui podemos observar modalidades de verdade (“apresentação de factos”), por vezes acompanhadas pelos seus propósitos (5, 6, 7) ou antecedentes (9, 10). As excepções a este modelo dominante são relevantes e vêm de outro tipo de modalização, a apreciação interpretativa. Esta coloca os jornais como comentadores críticos dos assuntos públicos (título 2) e pode ser construída de diferentes maneiras. Por exemplo, o título 33 (um editorial) mostra uma apreciação crítica das medidas de decisores políticos construída de forma dialógica, questionando-os e cada um dos leitores sobre o sentido de reduzir a idade mínima de prisão. O título 11, o único que directamente dá voz a uma criança, apresenta uma apreciação negativa das crianças quando generaliza a fala de uma delas a uma avaliação global do conhecimento. Finalmente, os títulos 16 e 27, ambos do Le Monde, enquadram o leitor no modo de ler aquelas notícias: como fait-divers.

Conclusões

Os dois tipos de análise comparada apontam informações diferentes sobre a apresentação das crianças como actores sociais nas notícias de imprensa. A comparação dos dois jornais portugueses, durante um ano no que se refere a noticiário estrangeiro, mostra o espaço geográfico como critério de noticiabilidade. Não é surpresa ver como é assimétrica a distribuição da informação, com o reduzidíssimo espaço editorial concedido aos países mais pobres. Vinte anos depois do relatório MacBride e num contexto de intensa luta de audiências, nos países ocidentais a informação permanece, sem surpresa, orientada pelo olhar ocidental.

Mas não se trata apenas a quantidade de notícias. Tendo como terrenos a Europa, por um lado, e a África, Ásia ou América Latina, por outro, retiramos diferentes critérios sobre o que constitui tema jornalístico. As notícias da Europa estão mais próximas das agendas nacionais, estendendo-as e completando-as, cobrindo matérias sobretudo ligadas a insegurança e riscos da vida quotidiana. Dos “espaços distantes” vêm sobretudo “problemas distantes”, como a pobreza imensa ou a violência da guerra. Há polarização entre a imagem hegemónica da criança europeia, com mais futuro e menos marcada pelo género e pela pobreza, e a criança do Terceiro Mundo, mais marcada nas suas diferenças étnicas, de género, de idade, de posição social. Esta distribuição pode ser lida como promovendo uma imagem do mundo que associa a pobreza (quase ausente nas notícias europeias) a mundos distantes, ausentada do “nosso” e dissociada dos fenómenos de globalização.

Também não estamos perante um espaço homogéneo na própria Europa, mesmo no espaço político da União Europeia. As notícias vindas de um único país, o Reino Unido, dominam a agenda externa neste assunto nos jornais portugueses, como se a cobertura britânica deste campo e algumas das suas estórias (muitas cobrindo situações de “pânico moral” ou de ansiedade social) tivessem noticiabilidade suficiente para influenciar de forma tão marcada agendas de jornais de outros países. Estudos semelhantes, noutros países, poderão confirmar, ou não, esta hipótese de uma hegemonia cultural britânica.

A comparação entre os dois jornais portugueses mostrou ainda diferenças nos seus critérios de cobertura e de edição, contrastando com a quase idêntica “agenda de temas”. Neste último ponto, diríamos, é como se existisse uma visão latente e partilhada do que constitui a boa “matéria de notícia”, ainda que na maioria das vezes os acontecimentos relatados não coincidam.

Por seu lado, a comparação de uma semana em cinco jornais sublinhou escolhas comuns de representação das crianças nos títulos. Parece possível identificar enquadramentos linguísticos comuns que contribuem para colocar as crianças no lugar da alteridade de jornalistas e leitores. Essa construção é traçada pela sua presença como sujeitos passivos ou beneficiários, e pela negatividade ou distância social que acompanha a sua apresentação como sujeitos activos. Processos de exclusão ou de objectivação contribuem também para colocar as vivências das crianças fora da agenda pública definida pelos média. Se a primeira análise tinha mostrado uma bastante comum “agenda de temas”, aqui estamos perante uma forma bastante comum de apresentar as crianças como os outros por excelência.

As análises que apresentamos apelam a mais estudos e comparações alargadas, bem como a serem integradas em debates sobre o que é notícia e sobre formas de construção da infância pelo discurso jornalístico. Apesar dos seus limites, parecem confirmar que, como afirmava Hartley, as notícias sobre crianças são sempre sobre algo mais e esse algo mais foca-se sobretudo em adultos. Tal pode ser visto nos tópicos e na sua relevância social, e nos valores-notícia (negatividade, polémica, consonância, proximidade, figuras e países de elite) a eles associados. Ambos designam escolhas do que pode ser mostrado e do que pode ser ignorado.


Notas

1 Artigo baseado na comunicação “Mapping the international child in the news”, apresentada na V Conferência da European Sociological Association (ESA), Helsínquia, 2001.

2 Estas construções sociais (branco, negro, asiático, latino-americano), comuns no discurso corrente, não são rigorosas do ponto de vista biológico ou sociológico. São aqui usadas contudo para exprimir as diferenças na aparência das crianças, o que consideramos constituir elementos relevantes para a própria construção social das crianças de diferentes espaços geográficos.

3 Títulos atribuídos a cartas de leitores publicadas neste dia na respectiva secção do jornal.


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* Cristina Ponte. Assistente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa. E-mail: cpjvl@mail.telepac.pt

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