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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.35 Oeiras abr. 2001

 

DIÁLOGOS

 

CUMES NO HORIZONTE ARQUITECTÓNICO DO SÉCULO XX

Luiz Cunha*

 

O meu pai tinha um curioso hábito - que eu tentei seguir sem o mesmo êxito porque, ao mudar de casa por várias vezes, fui perdendo os testemunhos anteriores: ele gostava de marcar na ombreira de uma porta pequenos traços a lápis correspondentes à altura de pessoas amigas que o visitavam, deixando anotada a data da visita e o nome delas.1 Nesta mudança de século e de milénio, tempo propício para, com o auxílio de espelho retrovisor, apontar ou corrigir o caminho futuro, esta imagem da porta recordatória ajuda-me a consciencializar que também na porta da minha memória traços fortes da experiência vivida moldaram indelevelmente o arquitecto que procuro ser.

Como estou convicto de que só se transmite o que nos passa pelo coração, propus-me descrever-vos aqui as ombreiras desse meu portal. E como no fim deste trabalho senti algum benefício e satisfação, convido-vos também, sobretudo aos mais novos, a iniciarem quanto antes a construção dessa porta, esperando que por ela passem muitas e boas amizades ao longo da vossa vida.

Antes porém de iniciar a enumeração dos edifícios seleccionados, e para que este exercício de memória não fique truncado em aspectos que reputo basilares, refiro, a título complementar, duas áreas de actividade arquitectónica que podem ser consideradas como fazendo parte do húmus fértil em que as diversas obras se nutriram:

· os planos urbanísticos que anteciparam a imagem da cidade moderna;

· os projectos de edifícios que não se construíram, arquitecturas de papel, que nem por isso deixaram de marcar e influir os caminhos percorridos pelas obras concretizadas.

 

O planeamento urbanístico

A Carta de Atenas (1933), documento emanado de um grupo de arquitectos, sobretudo europeus, que na década de 30 se reuniu várias vezes em congressos conhecidos sob a sigla CIAM, para confrontarem experiências e divulgarem princípios técnicos, sociais e artísticos comuns, foi indiscutivelmente um momento historicamente relevante.

Redigida a "carta" a bordo de um barco sulcando o Mediterrâneo, na primavera de 1933, a caminho de um dos locais fundacionais da velha Europa, os congressistas simbolicamente reivindicavam os laços de família que as novas obras assumiam como laços genealógicos.

Produto de uma atitude de pensamento jovem e idealista, sem o peso dos compromissos da práxis ditada pelas confrontações provadas no terreno, foi a Carta de Atenas o justificativo para muitas realizações de nível duvidoso, se não mesmo negativo, que macularam a Europa, sobretudo no período de reconstrução posterior a 1945. Mas também foi o passaporte para um punhado de projectos e obras que marcaram o melhor que o século findo nos legou no esforço de pensar a vida das comunidades humanas na sua expressão urbana racionalizada e poeticamente bela.

 

 

 

 

 

 

As cidades novas

· Brasília, de Lúcio Costa e Niemeyer, 1960/70;

· Chandigarh, de Le Corbusier e Pierre Jeanneret, 1950.

Ambas, curiosamente, construídas fora da Europa, foram oportunidades raras de concretizar e testar princípios organizativos previstos no documento de Atenas.

Apesar dos pontos discutíveis que sempre se poderão apontar a estas realizações e a outras de menor dimensão - segregação de actividades, ao contrário do que se passa nas cidades históricas onde as actividades se apresentam sintetizadas, constituindo porventura uma das principais vantagens da organização urbana -, são inegáveis "cumes" do pensamento urbanístico do século XX. Como pontos positivos a credenciar à Carta de Atenas haveria ainda que anotar os diversos planos, não executados, mas difundidos em publicações e conferências, nomeadamente de Le Corbusier, de que recordamos sem preocupação de ser exaustivos: Alger, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Paris, Nova Iorque, Bogotá, Saint-Dié, La Rochelle-Pallice e, por fim, Marselha, de que um único edifício, que adiante referiremos, ficou marcando a dimensão utópica, mas indiscutivelmente fascinante dos planos do velho "capitão", a quem não custa chamar "o arquitecto do século".

Ainda no domínio do pensamento urbanístico prospectivo e fazendo também a transição para a "arquitectura de papel", uma referência rápida às utopias metropolitanas dos anos 60, protagonizadas sobretudo pelos ingleses do grupo "Archigram" e pelos japoneses "metabolistas", passando, nos anos 80, às imagens sedutoras de um retorno ao espírito clássico e tradicionalista, que tão sugestivamente difundiram os desenhos de Leon Krier.

A "arquitectura de papel"

Com a força da ideia pura que não sofre a usura da materialização degradável e comprometida, foi, como disse, uma forte componente da evolução arquitectónica verificada no século que estamos a recordar. Os exemplos poderiam ser muitos e igualmente notáveis, mas cito três que marcaram o meu próprio imaginário e certamente de muitos colegas da minha geração, e não só.

· O arranha-céus de vidro, de Mies Van der Rohe em Friedrich-Strass, Berlim, 1919, com os seus cunhais aguçados como lâminas e translúcidos como cristais.

· Algumas obras do construtivismo russo dos anos 20, de Chernikov e outros, com a imagem, ingenuamente idealizada, de um paraíso industrial portador de felicidade terrena a ser vivida num mundo de leveza e transparência

. · O projecto para a sede da Sociedade das Nações, em Genebra, de Le Corbusier, 1927, antecipando, de modo definitivo, a morfologia da arquitectura corporativa do nosso tempo.

· Entre muitas outras possíveis, lembro ainda a Sinagoga Hurva, em Jerusalém, de Louis Kahn, 1960. Obra esta que, em nome do património mundial, se justificava ver concretizada se os critérios de paz e de concórdia algum dia vierem a consumar-se nessa terra conturbada que é também um lugar primogénito da civilização ocidental.

 

Doze obras construídas

Vamos pois ao tema desta comunicação, que consta das marcas (cicatrizes, talvez) da minha porta.

Seleccionei doze obras construídas que me parecem fundamentais para caracterizar o século de rupturas e continuidades que estamos deixando para trás. Como todas as escolhas, é uma selecção discutível com que muitos poderão estar em desacordo. Poderá, por exemplo, notar-se a ausência de obras de Mies Van der Rohe, ou a pouca representatividade concedida a Aalto ou Wright. Mas é a minha escolha e, como tal, peço que a compreendam, sabendo que não nego a ninguém o direito e a legitimidade de outras opções.

Começo, pois, por enumerar as mais recentes, caminhando em direcção às mais antigas, já que a memória, ao enfraquecer, tem de apoiar-se na técnica dos escoteiros para reconstituir o caminho de regresso ao acampamento, deixando na floresta um rosário de marcas assinalando a passagem.

(1) Pavilhão de Portugal na Expo 98, em Lisboa, do nosso colega Siza Vieira

É a primeira obra que encontro. Na realidade são duas construções justapostas: o palácio e a tenda. Poderemos multiplicar as oposições dialécticas: o cheio e o vazio; o público e o privado; o contido e o aberto; etc.

Sobretudo o espaço, sob a cobertura suspensa na sua ambiguidade de "forma mole - petrificada", cria uma tensão que impressiona fortemente quem dela se acerca. Indiscutivelmente é um edifício que ficará para a história.

(2) Museu Guggenheim de Bilbau, por Frank Gehry, 1997

Neste caso, o que mais surpreende, e que constitui um notável exemplo a reter, é o grau, até então impensável, da liberdade assumida pelo autor. A capacidade de subverter a imagem tradicional da construção nunca tinha sido levada a tais extremos. As conotações metafóricas são inúmeras e complexas: flor de metal; explosão acidental de maquinismo gigante; escultura informalista à escala urbana, etc. Pessoalmente, há nesta obra algo que me atrai e repele simultaneamente. Qualquer coisa de semelhante com o que se passa com a luz do raio durante a trovoada - luz bela mas que não serve para alumiar o caminho na noite.

 

 

 

(3) Apartamentos em Makuari, Tóquio, de Steven Holl, 1996

Este conjunto habitacional prova que não é necessário renunciar à imagem da cidade tradicional para inovar positivamente na composição dos espaços urbanos. A teoria dos elementos "passivos" e "activos" na morfologia do corpo citadino que o autor refere, revela uma aguda percepção do modo como vivemos os espaços que habitamos. Neste exemplo, o pano de fundo dos grandes contentores "silenciosos", contrapostos às pequenas construções de coloridos cativantes e formas surpreendentes, ajudam a criar uma tensão altamente expressiva.

Ao fim e ao cabo reconstitui-se o modelo da cidade histórica com os seus monumentos pontuando a trama de ruas e praças moldadas pelo casario anónimo. Neste nosso tempo, em que alguns defendem a grande dimensão e o gigantismo como garantias da vitalidade social e económica da cidade futura, o exemplo do bairro de Makuari oferece uma alternativa muito válida, que obriga a pensar se não há alguma futilidade ou, pior ainda, oportunismo economicista, nas teorias defendidas pelo neoliberalismo urbanístico dominante.

(4) Sede do Banco Hong Kong e Shanghai, de Norman Foster, 1985

Hesitei na escolha deste edifício. Praticamente contemporâneo do Centro Pompidou em Paris, ele é também um reflexo indirecto da arquitectura utópica, virtualmente difundida em desenhos, do grupo inglês Archigram, nos anos 60. Optei finalmente por incluir a obra de Foster, por esta, a meu ver, evitar o equívoco de uma simples acumulação de peças fabris sem relação entre si nem com o ambiente envolvente, como acontece com o edifício parisiense. O Banco de Hong Kong, exibindo, igualmente de forma ostensiva, a sua estética "mecanicista" e industrial, não deixa de lhe emprestar a mais-valia de uma forte presença escultórica com fortes analogias metafóricas com a anatomia humana no que ela pode ter de fisicamente mais exaltante, isto é, na sua exibição ginástica e desportiva. O edifício, ainda hoje, apesar de rodeado de gigantescos novos vizinhos que o confinam e diminuem, num contexto típico das explosivas cidades asiáticas, representa um momento de alta dignidade, que se impõe, não pela grandeza do volume, mas pela subtil articulação das suas formas.

 

 

 

(5) Ampliação da Staatsgalerie em Estugarda, Alemanha, de James Stirling e Michael Wilford, 1984

Na calmaria das águas paradas em que navegava a arquitectura dos anos 70, começou a tornar-se evidente, para alguns espíritos mais atentos e lúcidos, a necessidade de rever os pressupostos teóricos do chamado "movimento moderno", então quase exclusivamente atolado numa prática predominantemente utilitarista e de pouca ou nenhuma atenção à melhoria das condições habitacionais, à salvaguarda dos valores do passado e à qualificação estética da construção.

Como frequentemente acontece, na gestação de movimentos reformadores, sejam eles artísticos ou não, grande parte das boas intenções soçobravam em futilidades superficiais e nada convincentes.

Creio que não foi o caso do Museu de Estugarda, obra polémica, sem dúvida, mas com um indiscutível poder de síntese de elementos, simultaneamente evocadores de um passado clássico e coerente com um espírito contemporâneo, reflectindo o carácter industrial da técnica em uso, sem excluir as preocupações artísticas que definem a arquitectura perene. Para mim, o Museu de Estugarda foi uma das obras chave do século que estamos a encerrar e que melhor o retrata na multiplicidade das suas facetas negativas e positivas.

(6) Edifício principal da Escola Politécnica de Otaniemi, Finlândia, de Alvar Aalto, 1964

Poderiam ser vários os edifícios de Aalto a ilustrar os pontos altos da arquitectura do século XX. Escolhi a escola de Otaniemi por uma simpatia pessoal por esta obra. Tratando-se de responder a um programa de espaços para o ensino politécnico em que se misturam aulas teóricas e práticas, o que por vezes conduz a soluções estereotipadas, em Otaniemi tudo é articulado com grande fluidez e variedade. Destaca-se, como elemento aglutinador do conjunto, o anfiteatro maior com a sua particularíssima luz sabiamente doseada e a curiosa solução de a cobertura servir também como hemiciclo ao ar livre, transformando parcialmente o terreno natural em proscénio, à maneira dos teatros clássicos gregos da antiguidade. O efeito da luz conduzida para o interior por clarabóias e superfícies reflectoras é de tal modo bem conseguido que a mesma solução pôde ser igualmente utilizada em igrejas e edifícios religiosos com igual êxito.

A actividade de estudo que no auditório da escola de Otaniemi se processa beneficia assim de uma mais-valia espiritual que raramente se consegue em construções para o ensino.

(7) Torre Velasca em Milão, do Grupo BBPR: Banfi, Belgiogioso, Peressutti, Rogers, 1958

A propósito do Museu de Estugarda falei na revisão dos cânones modernistas que essa obra documentava, mas a verdade é que essa reflexão crítica já anteriormente vinha sendo tentada de diversos modos e com resultados de diferente valor. Na Itália dos anos 50 foi particularmente fecundo o labor dos que reconheciam a necessidade de não fechar os olhos à herança histórica do passado, tentando compatibilizar a nova dimensão urbana com o tecido citadino moldado pelo tempo. O desafio que a Torre Velasca empreendeu foi, nada menos que, o de compatibilizar, num todo coerente e harmónico, o "arranha-céus" típico da actividade terciária contemporânea com a morfologia do edificado medieval ou renascentista.

 

 

 

Esta obra, hoje pouco recordada, parece-me ter representado um papel muito válido e digno de estudo.

(8) Convento de Sta. Maria de la Tourette, em Lyon, França, por Le Corbusier, 1957

Esta obra, tardia na vida agitada e rica de Le Corbusier, reflecte, a meu ver, muitas das preocupações do velho mestre, em domínios que vão do urbanismo à habitação unifamiliar, traduzidas, na presente oportunidade, em fórmulas expressas na dialéctica indivíduo-comunidade. Trata-se de uma obra tecnicamente amadurecida, onde a imaginação se abre às moções do espírito. O convento é, para além da função primária a que responde, um paradigma brilhante na sua aparente modéstia, testemunhando como a arquitectura pode, em momentos felizes, sintetizar no espaço limitado de poucas paredes todo um mundo humano banhado pela harmonia que só o sentimento da transcendência pode assegurar. Eu diria que o Convento de La Tourette foi a grande herança que Le Corbusier legou às gerações que o seguiram, pois estão ainda longe de ser totalmente avaliadas as virtualidades que encerra.

(9) Ópera de Sydney, Austrália, de Jorn Utzon, 1957/68

Os recentes Jogos Olímpicos de Sydney foram ocasião para divulgar à escala mundial um edifício estranho e original que certamente uma minoria do público conhecia, mas que desde há cerca de quarenta anos vem sendo objecto de admiração e apreço de muitos arquitectos.

Trata-se, como é vidente, da sala de espectáculos da Ópera de Sydney. Situado num lugar de eleição - uma plataforma artificial prolongando dramaticamente uma pequena ponta de terra no meio do multi-recortado porto de mar da cidade -, o edifício recorta a sua silhueta de veleiro branco no céu austral. Projecto escolhido em concurso internacional, onde a proposta do arquitecto dinamarquês Jorn Utzon pouco mais era que um belo apontamento rabiscado nervosa e apressadamente, a sua construção deu origem a inúmeras peripécias, em que não faltou a queda do governo responsável pela escolha da solução. Numa época em que as telecomunicações estavam longe do desenvolvimento que hoje têm e os transportes aéreos de longa distância eram difíceis, a obra correu várias vezes o risco de ser interrompida e o autor acabou mesmo por abandoná-la, deixando os responsáveis locais com o embaraçoso encargo de a terminar, declarando que do seu ponto de vista pouco haveria a perder uma vez que "as ruínas também podiam ser belos monumentos como o provavam as do Egipto ou do México".

 

 

 

Obra ímpar e insuperada ainda hoje, a Ópera de Sydney, para mim, será sempre a certeza de que a arquitectura do século XX não foi inferior ao melhor que a antiguidade clássica nos legou.

(10) Bloco residencial "Unidade de Habitação", em Marselha, França, de Le Corbusier, 1946

Trata-se de um edifício paradigmático do tipo de módulos residenciais que deveriam constituir os elementos base das cidades novas preconizadas por Le Corbusier nos seus planos concebidos segundo os critérios programáticos da Carta de Atenas e elaborados em frenética sequência como resposta à reconstrução pós-bélica francesa, a partir de 1945.

Neste edifício, cuja população equivalia à de uma pequena aldeia rural da época, às células habitacionais (vinte e tal modelos diferentes) juntavam-se as instalações de apoio da função residencial, correspondendo às necessidades primárias - comércio diário, jardim infantil, salas de reunião de condóminos, ginásio, arrecadação de velocípedes e pouco mais. O comércio localizava-se ao longo de uma rua interna situada a meia altura do prédio, isto é, desligada do solo natural, o que originou de início fortes críticas dos utilizadores. Hoje, ocupados esses espaços, a solução parece menos condenável. No entanto, a dimensão urbana do empreendimento continua comprometida por falta de um espaço público centralizado onde as actividades cívicas e políticas (Le Corbusier era algo céptico nestas matérias) se possam realizar. Resta válida a extraordinária força plástica da obra, como genuína criação artística demonstrativa de uma visão generosa e optimista da cidade futura.

(11) Casa da Queda de Água, EUA, de Frank Lloyd Wright, 1937

Viver plenamente mergulhado na natureza selvagem e aparentemente virgem foi sempre uma aspiração romântica do homem. Esta ideia está cada vez mais comprometida pelas estruturas impostas pela vida comunitária.

Tal como em épocas anteriores, pelos mais diversos meios e formas, os arquitectos tentaram dar corpo a este sonho. O século XX ensaiou também as suas soluções.

Wright tentou resolver as contradições implícitas em tal objectivo usando, no entanto, meios diferentes e, sobretudo, apoiados na sua enorme capacidade de imaginação plástica. Em vez de recorrer ao tema das transparências vítreas, optou pela disposição livre e sabiamente orquestrada dos volumes pesados e opacos apoiados em suportes escondidos que criam a ilusão de aqueles voarem sem peso próprio. A escolha do local, precisamente num terreno acidentado e com uma passagem de água, que em condições normais seria rejeitado como terreno de construção, dramatiza o empreendimento de modo único e fascinante.

 

 

(12) Parque Guell, Barcelona, por António Gaudi, 1914

Termino a lista que me propus apresentar não com um edifício, mas com um jardim. Simbolicamente pode ser feita a leitura que associa o acto de "nascer" com a terra donde tudo brota ou, na leitura inversa que adoptei nesta exposição, com o regresso à terra onde a materialidade da vida se esgota e consome.

O Jardim do Parque Guell é, pois, na minha perspectiva, um fim e um princípio, já que contém nas suas formas simultaneamente racionalizadas e profundamente imaginativas e originais, no seu mimetismo naturalista, os dois pólos que a arquitectura do século XX tentou sempre sintetizar.

E desta obra, a todos os títulos singular, faço a passagem para uma breve conclusão, que é simultaneamente uma perspectiva de evolução e um voto de futuro.

Revendo de um golpe de olhar o conjunto de obras que escolhi e, sobretudo, da análise global da produção arquitectónica que dominou o século que deixamos, parece-me ressaltar uma evidência que vos proponho como tarefa a considerar: do esforço de pôr em ordem a racionalidade de uma disciplina do pensamento e da operacionalidade humana, que dominou o labor dos arquitectos nos primeiros anos do século, foi-se consciencializando entre os praticantes mais lúcidos e sensíveis da modalidade a necessidade de prestar maior atenção às exigências espirituais da prática arquitectónica, reivindicando o carácter eminentemente social e artístico, no caminho para a primazia dos "valores" perenes sobre os mais transitórios e perecíveis.

Apesar de muitos profetas da desgraça afirmarem o contrário, eu creio que a marcha para uma consciencialização desses valores pode ser detectada hoje com alguma evidência no domínio dos equipamentos arquitectónicos. Basta reconhecer a profusão de instalações dedicadas à melhoria das condições sociais e da cultura, as quais não têm qualquer paralelo como o que as anteriores sociedades humanas puderam realizar.

Apesar do mal existente no mundo, a que evidentemente ninguém pode ficar indiferente, devemos reconhecer que a sensibilidade humana é hoje mais atenta ao respeito pelas liberdades e pelos direitos dos indivíduos, à fruição de vidas dignas e orientadas por valores de "respeito" em "independência de pressões escravizantes".

Mas o caminho, sempre incompleto em que avançamos, deve, a meu ver, pugnar hoje pelo reconhecimento das necessidades de ordem espiritual que se exprimem pela consideração do lado transcendente da vida. Com estes votos, que transmito em especial aos que agora iniciam o seu percurso escolar, manifesto a esperança de que, no século XXI, os novos arquitectos sejam, cada vez mais, agentes activos e responsáveis na melhoria das condições de vida e da felicidade a que todos aspiramos.

 

Nota

1    Palestra proferida na licenciatura de Arquitectura do ISCTE, no início do ano lectivo de 2000/2001.

 

 

*Luiz Cunha. Arquitecto. Professor na cadeira de Projecto, na licenciatura de Arquitectura do ISCTE.

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