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Sociologia, Problemas e Práticas

versão impressa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.35 Oeiras abr. 2001

 

MODERNIDADES MÚLTIPLAS

S. N. Eisenstadt*

 

Resumo A ideia de modernidades múltiplas pressupõe que a melhor forma de compreender o mundo contemporâneo - e de explicar a história da modernidade - é concebê-lo como história de constituição e reconstituição contínua de uma multiplicidade de programas culturais. O termo "modernidades múltiplas" tem duas implicações. A primeira é que modernidade e ocidentalização não são idênticas; o padrão, ou padrões, ocidentais de modernidade não constituem as únicas modernidades "autênticas", mesmo se foram historicamente precedentes e se continuaram a ser uma referência central para outras visões da modernidade. A segunda é que o termo modernidades implica finalmente o reconhecimento de que essas modernidades não são "estáticas", que se encontram antes em constante mutação.

Palavras-chave Modernidades múltiplas, padrões institucionais e ideológicos.

 

Abstract The idea of multiple modernities presumes that the best way to understand the contemporary world — indeed to explain the history of modernity — is to see it as a story of continual constitution and reconstitution of a multiplicity of cultural programs. The term "multiple modernities" entails two implications. The first one is that modernity and westernisation are not identical; the western pattern or patterns of modernity are not only "authentic" modernities, even if they were historically prior and continued to be central reference ont for other modern visions. Second, the term modernities entails finally the recognition that such modernities are not "static", but continually changing.

Keywords Multiple modernities, institutional and ideological patterns.

 

Résumé L’idée des modernités multiples présuppose que la meilleure manière de comprendre le monde contemporain — et d’expliquer l’histoire de la modernité — c’est de le concevoir en tant qu’histoire de constitution et de reconstitution continuelle d’une multiplicité de programmes culturels. Le terme "modernités multiples" a deux implications. La première est que la modernité et l’occidentalisation sont deux choses différentes; le modèle, ou les modèles occidentaux de modernité ne constituent pas les seules modernités "authentiques", même si historiquement elles ont été précédentes et si elles ont continué d’être une référence centrale pour d’autres visions de la modernité. La deuxième est que le terme modernités revient à reconnaître que ces modernités ne sont pas "statiques" et qu’elles sont plutôt en constante mutation.

Mots-clés Modernités multiples, modèles institutionnels et idéologiques.

 

Resúmene La idea de modernidades multiples presupone que la mejor forma de comprender el mundo contemporáneo y de explicar la historia de la modernidad es concebirlo como historia de constitución y reconstitución contínua de una multiplicidad de programas culturales. El término "modernidades múltiples" tiene dos implicaciones. La primera es que la modernidad y occidentalización no son idénticas; el patrón, o patrones, occidentales de modernización no constituyen las únicas modernidades "auténticas", incluso si fueran historicamente precedentes y si continuaran a ser una referencia central para otras visiones de la modernidad. La segunda es que el término modernidades implica finalmente el reconocimiento de que esas modernidades no son "estáticas" sino que se encuentran en constante mutación.

Palabras-clave modernidades múltiples, patrones institucionales o ideológicos.

 

I

A noção de "modernidades múltiplas" denota uma certa visão do mundo contemporâneo - também da história e das características da era moderna - que contraria as visões desde há muito prevalecentes no discurso académico e geral.1 Contraria a visão das teorias "clássicas" da modernização e da convergência das sociedades industriais, prevalecentes na década de 50, e contraria as próprias análises clássicas de Marx, Durkheim e, em grande medida, mesmo a de Weber, pelo menos no que respeita a uma das leituras que permite a sua obra. Todas elas assumiam, mesmo que só implicitamente, que o programa cultural da modernidade, tal como se desenvolveu na Europa, e as constelações institucionais básicas que aí emergiram, acabariam por dominar todas as sociedades modernas e em modernização; com a expansão da modernidade, viriam a prevalecer por todo o mundo (Kamenka, 1983; Weber, 1978; 1968a; 1968b; e 1958; Runciman, 1978; Bellah, 1973; Jay, 1984).

A realidade que emergiu na sequência do chamado começo da modernidade, e especialmente depois da II Guerra Mundial, não suportou estas assunções. Os desenvolvimentos concretos nas sociedades em modernização refutaram as assunções homogeneizadoras e hegemónicas deste programa ocidental de modernidade. A par de uma tendência generalizada que se desenvolveu na maior parte destas sociedades, no sentido da diferenciação estrutural entre diversas instituições - na vida familiar, nas estruturas económicas e políticas, na urbanização, na educação moderna, nos meios de comunicação de massas e nas orientações individuais -, as formas através das quais estas arenas se foram definindo e organizando variaram fortemente, nos diversos períodos do seu desenvolvimento, dando origem a múltiplos padrões institucionais e ideológicos. Significativamente, estes padrões não se constituíram, na era moderna, como simples prolongamentos das tradições das respectivas sociedades. Todos eles eram distintamente modernos, apesar de largamente influenciados por premissas culturais, tradições e experiências históricas específicas. Todos eles desenvolveram dinâmicas modernas e modos de interpretação distintos, para os quais o projecto original do ocidente se constituiu como referência crucial (e, normalmente, ambivalente). Muitos dos movimentos que se desenvolveram em sociedades não ocidentais articularam fortes temas anti-ocidente, ou mesmo antimodernos; no entanto, todos eles eram distintamente modernos. Isto aplicava-se não só aos vários movimentos nacionalistas e tradicionalistas que surgiram nestas sociedades, a partir de cerca de meados do século XIX até à II Guerra Mundial, mas, também, como faremos notar, aos movimentos fundamentalistas mais contemporâneos.

A ideia de modernidades múltiplas pressupõe que a melhor forma de compreender o mundo contemporâneo - e também para explicar a própria história da modernidade - é vê-lo como uma história contínua de constituição e reconstituição de uma multiplicidade de programas culturais. Estas incessantes reconstruções dos múltiplos padrões institucionais e ideológicos são levadas a cabo por actores sociais específicos em estreita relação com activistas sociais, políticos e intelectuais, e também por movimentos sociais que perseguem diferentes programas de modernidade, defendendo visões muito diferentes acerca do que torna uma sociedade moderna. Através da ligação destes actores com sectores mais alargados das suas respectivas sociedades, são realizadas expressões únicas de modernidade. Estas actividades não se confinaram a nenhuma sociedade ou estado específico, apesar de certas sociedades e estados se terem revelado arenas privilegiadas para que activistas sociais pudessem implantar os seus programas e lutar pelos seus objectivos. Apesar de se terem desenvolvido diferentes interpretações da modernidade múltipla nos diferentes estados-nação, no interior de diferentes agrupamentos étnicos e culturais, entre comunistas, fascistas e movimentos fundamentalistas, cada um deles, por mais diferente que fosse dos restantes, era, em diversos sentidos, internacional.

Uma das implicações mais importantes do termo "modernidades múltiplas" é que a modernidade e a ocidentalização não são idênticas; os padrões ocidentais de modernidade não constituem as únicas modernidades "autênticas", apesar de gozarem de precedência histórica e de continuarem a ser um ponto de referência básico para os restantes.

Ao admitir-se uma multiplicidade de modernidades em contínua evolução, somos confrontados com o problema de saber o que se constitui como núcleo comum da modernidade. Este problema é não só exacerbado como é também transformado pela desconstrução ou decomposição contemporânea de muitos dos componentes dos modelos "clássicos" da nação e dos estados revolucionários, em particular como consequência da globalização. O discurso contemporâneo levantou a possibilidade de o projecto moderno, pelo menos nos termos da sua formulação clássica, se ter esgotado. Uma visão contemporânea defende que esse esgotamento é manifesto "no fim da história" (Fukuyama, 1992). A outra visão mais difundida é a noção de Huntington (1996) de "choque de civilizações", em que a civilização ocidental - a síntese aparente da modernidade - é confrontada por um mundo em que civilizações tradicionais, fundamentalistas, anti-modernas e anti-ocidentais são predominantes, algumas delas vendo o ocidente com animosidade ou desdém (de forma mais evidente, os agrupamentos islâmicos e os chamados confucionistas).

 

II

O programa cultural e político da modernidade, como começou por ser desenvolvido na Europa ocidental e central, implicava, como nota Björn Wittrock (2000), premissas ideológicas e institucionais distintas. O programa cultural da modernidade implicava alterações muito diferentes na concepção de acção humana e do seu lugar no fluir do tempo. Carregava consigo uma concepção de futuro caracterizada por um número de possibilidades realizáveis através da acção humana autónoma. As premissas em que assentava a ordem social, ontológica e política, e a legitimação dessa mesma ordem, já não eram dadas como garantidas. Desenvolveu-se assim uma intensa reflexividade em torno das premissas ontológicas básicas das estruturas da autoridade social e política - uma reflexividade partilhada mesmo pelos críticos mais radicais da modernidade, que negavam por princípio a sua validade. A melhor formulação deste processo foi conseguida por Weber. Seguindo a apresentação de James D. Faubian (1993: 113-115) sobre a concepção weberiana de modernidade:

Weber descobre o limiar existencial da modernidade numa certa desconstrução: daquilo a que se refere como o "postulado ético de que o mundo é governado por Deus, e é portanto um cosmos que, de alguma forma, possui um significado e é eticamente orientado…"

A asserção de Weber - o que em qualquer caso pode ser extrapolado das suas asserções - é que o limiar da modernidade pode ser marcado precisamente no momento em que a legitimidade incontestada de uma ordem social divinamente pré-ordenada entra no seu declínio. A modernidade emerge - ou, de modo mais preciso, uma variedade de possíveis modernidades emergem - tão-somente quando aquilo que tinha sido visto como um cosmos imutável deixa de ser dado como certo. Os que se opunham à modernidade rejeitam essa abordagem, acreditando que o que é imutável não é a ordem social, mas as tarefas exigidas pela construção e pelo funcionamento de qualquer ordem social…

Podem ser extraídas duas teses: 1) em toda a sua variedade, as modernidades, o que quer que possam ser, são respostas à mesma problemática existencial; 2) em toda a sua variedade, as modernidades, o que quer que possam ser, são precisamente essas respostas que deixam intacta a problemática em questão, que formulam visões da vida e da prática que não a ultrapassam nem a negam, que as formulam antes no seu interior, mesmo em deferência para com ela…

O grau de reflexividade característico da modernidade ultrapassou aquilo que estava cristalizado nas civilizações da era axial [Eisenstadt, 1982; e Eisenstadt (org.), 1986]. A reflexividade que se desenvolveu no seio do programa moderno não se centrou somente na possibilidade da existência de diferentes interpretações das visões transcendentais nucleares e das concepções ontológicas básicas prevalecentes numa sociedade ou civilização particular; questionou-se também a própria evidência dessas visões e dos padrões institucionais com elas relacionados. Surgiu assim uma consciência da possibilidade de múltiplas visões que, de facto, podiam ser contestadas.

Esta consciência estava estreitamente ligada a duas componentes centrais do projecto de modernidade, sublinhadas em estudos anteriores sobre a modernização, tanto por Daniel Lerner (1958), como por Alex Inkeles e David H. Smith (1974). O primeiro reconheceu entre os modernos, ou entre os que se tornavam "modernizados, " a consciência da existência de uma grande variedade de papéis para lá dos papéis estreitos, determinados, locais e familiares. Os segundos reconhecem a possibilidade de pertença a comunidades translocais alargadas, sujeitas a possíveis mudanças.

No centro deste programa cultural encontrava-se a ênfase colocada na autonomia do homem: a emancipação do homem ou da mulher (na sua formulação original, tratava-se certamente do "homem") dos grilhões da autoridade política e cultural tradicionais. Neste processo de contínua expansão do domínio da liberdade e da actividade pessoal e institucional, essa autonomia começou por implicar a reflexividade e a exploração; em segundo lugar, implicou também a construção activa e o domínio da natureza, incluindo a natureza humana. Este projecto de modernidade colocava uma ênfase muito forte na participação autónoma dos membros da sociedade na constituição da ordem social e política, no acesso autónomo de todos os membros da sociedade a estas ordens e aos seus centros.

Da conjugação destas diferentes concepções surgiu uma crença na possibilidade de a sociedade poder ser constituída activamente por meio da actividade humana consciente. Duas tendências complementares, mas potencialmente contraditórias, desenvolveram-se no interior deste programa, em torno das melhores formas de concretizar a construção social. A primeira, cristalizada sobretudo nas grandes revoluções, deu origem, talvez pela primeira vez na história, à crença na possibilidade de diminuir o fosso entre a ordem transcendente e a ordem mundana - de realizar, através da acção humana consciente, praticada ao nível da vida social, grandes visões utópicas e escatológicas. A segunda sublinhou o crescente reconhecimento da legitimidade de múltiplos objectivos e interesses, individuais e colectivos, permitindo, como consequência, múltiplas interpretações do bem comum (Eisenstadt, 1992; 1978; 1985; e 1981; Voegelin, 1975; Seligman, 1989).

 

III

O programa moderno implicava igualmente uma transformação radical das concepções e das premissas da ordem política, da constituição da arena política e das características do processo político. O rompimento com todas as legitimações tradicionais da ordem política era central na ideia de modernidade, o que implicava a abertura a diferentes possibilidades de construção da nova ordem. Estas possibilidades combinavam temas de rebelião, protesto e antinomismo intelectual, permitindo a formação de novos centros e a construção de novas instituições, dando origem a movimentos de protesto que se transformaram em componente permanente do processo político (Ackerman, 1991).

Estas ideias, associadas às características que então emergiam, definindo a arena política moderna, sublinharam a abertura desta arena e dos processos políticos, que, de um modo geral, se encontrava em estreita relação com uma forte aceitação da participação activa da periferia da "sociedade" em questões de interesse político. Fortes tendências para a permeabilização das periferias sociais pelos centros, e o impacte das periferias sobre os centros, levaram, inevitavelmente, ao esbatimento das distinções entre centro e periferia. Estavam lançados os fundamentos para uma nova e poderosa combinação da "carismatização" do centro, ou centros, com temas e símbolos de protesto; estes, por sua vez, tornaram-se nos componentes elementares das visões transcendentais modernas. Temas e símbolos de protesto - igualdade e liberdade, justiça e autonomia, solidariedade e identidade - tornaram-se componentes centrais do projecto moderno da emancipação do homem. De facto, foi a incorporação dos temas de protesto da periferia no centro que anunciou a transformação radical de diversas visões utópicas sectárias em elementos centrais do programa político e cultural.

A partir da ideologia e das premissas do programa político da modernidade e das características nucleares das instituições políticas modernas, emergiram três aspectos centrais do processo político moderno: a reestruturação das relações centro-periferia como principal foco da dinâmica política nas sociedades modernas; uma forte tendência para politizar as exigências de diversos sectores da sociedade e os conflitos entre eles; e a luta contínua sobre a definição do domínio do político. De facto, foi só com o advento da modernidade que o traçado dos limites da esfera política se tornou num dos maiores focos de contestação aberta e de luta política.

 

IV

A modernidade implicou também um modo distinto de construção das fronteiras das colectividades e das identidades colectivas (Eisenstadt e Giesen, 1995; Shils, 1975). Desenvolveram-se novas definições concretas dos componentes básicos das identidades colectivas - civis, primordiais e universalistas, transcendentais ou "sagradas". Desenvolveram-se fortes tendências que procuravam enquadrar estas definições em termos absolutos, sublinhando os seus componentes civis. Ao mesmo tempo, desenharam-se ligações entre a construção das fronteiras da esfera política e as das colectividades culturais. Desta forma, tornou-se inevitável que se enfatizasse a importância das fronteiras territoriais dessas colectividades, criando tensões contínuas entre os componentes territoriais e/ou particulares e outros mais alargados, mais universalistas. Em contraste com as civilizações da era axial, pelo menos parcialmente, as identidades colectivas já não eram dadas como adquiridas, pré-ordenadas por uma qualquer visão e autoridade transcendente, ou sancionadas por um costume ancestral. Constituíam focos de contestação e de luta expressas, muitas vezes, em termos profundamente ideológicos.

 

V

À medida que a civilização da modernidade se foi desenvolvendo, primeiro no ocidente, foi assolada por antinomias e contradições internas, dando origem a um contínuo discurso crítico e a contestações políticas. As antinomias básicas da modernidade constituíram uma transformação radical em relação às que eram características das civilizações da era axial. Centradas em questões desconhecidas nessa época anterior, revelavam desta forma consciência sobre um amplo leque de visões e interpretações transcendentais. No programa moderno, estas foram transformadas em conflitos ideológicos entre avaliações concorrentes das principais dimensões da experiência humana (especialmente a razão e as emoções e o seu lugar respectivo na vida e na sociedade humanas). Não existiam afirmações acerca da necessidade de construção activa da sociedade; o controlo e a autonomia, a disciplina e a liberdade tornaram-se assuntos polémicos.

A clivagem mais crítica, em termos tanto ideológicos como políticos, talvez tenha sido a que separava visões universalistas e particularistas - entre uma visão que aceitava a existência de diferentes valores e racionalidades e uma visão que via diferentes valores e, acima de tudo, a racionalidade, de um modo totalizante. Esta tensão desenvolveu-se, antes de mais, a respeito do próprio conceito de razão e do seu lugar na constituição da sociedade humana. Era manifesta, como Stephen Toulmin (1990) mostrou, de uma forma algo exagerada, na diferença entre as concepções mais particularistas de Montaigne ou de Erasmus, por oposição à visão totalizante promulgada por Descartes. O movimento mais significativo, que procurou universalizar diferentes racionalidades - muitas vezes identificado como a principal mensagem do iluminismo -, foi o da soberania da razão, que subsumia a racionalidade orientada para valores (Wertrationalität), ou a racionalidade substantiva, à racionalidade instrumental (Zweckrationalität), transformando-a numa visão utópica de cariz moralista e totalizante.

A par destas tensões, desenvolveram-se no interior do programa da modernidade contradições contínuas entre as premissas básicas das dimensões culturais e políticas e os grandes desenvolvimentos institucionais. De particular importância - tão fortemente sublinhada por Weber - foi a dimensão criativa inerente a visões que levavam à cristalização da modernidade, e o esbatimento destas visões, o "desencantamento" do mundo, inerente à crescente rotinização e burocratização. Tratava-se de um conflito entre uma visão englobante, através da qual o mundo ganhava significado, e a fragmentação desse significado pela força de uma dinâmica imparável no sentido do desenvolvimento autónomo de todas as arenas institucionais - económica, política e cultural (Elias, 1983; e 1978-1982; Foucault, 1973; 1988; 1975; e 1965). Aqui se reflecte a tensão, inerentemente moderna, entre a tónica colocada sobre a autonomia humana e os controlos restritivos, inerentes à realização institucional da vida moderna: na formulação de Peter Wagner (1994), a tensão entre liberdade e controlo.

 

VI

No interior do discurso político moderno, estas tensões têm sido manifestas no conflito insanável entre a legitimidade de um sem-número de interesses abstractos, individuais e de grupo, de diferentes concepções de bem comum e ordem moral, e as ideologias totalitárias que negavam taxativamente a legitimidade desses pluralismos. Uma das formas principais da ideologia totalitária sublinhava a primazia das colectividades percepcionadas como entidades ontológicas distintas, assentes em atributos primordiais ou espirituais comuns - principalmente a nacionalidade colectiva. Uma segunda forma era a visão jacobina, cujas raízes históricas remontam a fontes escatológicas medievais. A crença na primazia da política, na possibilidade de a política ser capaz de reconstituir a sociedade, transformando-a através da mobilização da acção política participativa, era central ao pensamento jacobino. Quaisquer que fossem as diferenças entre estas ideologias colectivistas, elas partilhavam entre si fortes suspeitas acerca da discussão aberta e pública dos processos políticos e, especialmente, a respeito das instituições representativas. Não é surpreendente que partilhassem fortes tendências autocráticas.

Estas várias tensões inerentes ao programa político da modernidade estavam fortemente relacionadas com as que existiam entre os diferentes modos de legitimação dos regimes modernos - entre, por um lado, a legitimação legal em termos de adesão civil às regras do jogo e, por outro, os modos de legitimação "substantivos", os quais dependiam acima de tudo, na terminologia de Edward Shils (1975), de diversos componentes primordiais, "sagrados", religiosos ou secular-ideológicos. Contradições paralelas desenvolveram-se em torno da construção de identidades colectivas, promulgadas por novas formas activistas - os movimentos nacionais.

 

VII

Entre estes activistas, os movimentos sociais, muitas vezes movimentos de protesto, eram de especial importância. No cenário moderno, transformaram algumas das principais heterodoxias das civilizações da era axial, especialmente as que pretendiam realizar certas visões utópicas, através da acção política e da reconstrução do centro. Entre os movimentos que se desenvolveram durante o século XIX e as seis primeiras décadas do século XX, os mais importantes foram o movimento liberal e o socialista/comunista; os quais foram seguidos por outros dois, assentes em preconceitos nacionalistas, o fascista e o nacional-socialista. Estes movimentos eram internacionais, mesmo quando as suas bases ou raízes assentavam em países específicos. Os que alcançaram maior sucesso cristalizaram-se em padrões ideológicos e institucionais distintos, que se vieram a identificar muitas vezes com um estado específico (como no caso da França revolucionária e, mais tarde, da Rússia soviética), mas o seu alcance ultrapassou largamente as fronteiras nacionais.2

Os conflitos entre estes movimentos e outros - religiosos, cooperativos, sindicalistas ou anarquistas - não eram simplesmente ideológicos. Todos eles tiveram lugar dentro de limites específicos da arena política moderna, acabando por ser também afectados pelo processo político moderno, especialmente pela luta contínua em torno da definição das fronteiras da esfera política.

Em todas as sociedades modernas desenvolveram-se padrões de conflito entre estes actores sociais, em torno de pólos fundados nas antinomias inerentes aos programas políticos e culturais específicos da modernidade. O primeiro desses pólos centrava-se em torno do grau de homogeneização das principais colectividades modernas, significativamente influenciadas pelo grau de articulação entre as dimensões ou componentes primordiais, civis ou universalistas, da identidade colectiva nestas diferentes sociedades. O segundo pólo reflectia o confronto entre orientações particularistas e universalistas.

Estes choques emergiram em todas as colectividades e em todos os estados modernos, primeiro na Europa, mais tarde na América e, com o decorrer do tempo, em todo o mundo. Foram de uma importância crucial na configuração dos diversos padrões de sociedades modernas, primeiro no interior de estados territoriais e de estados-nação, gerando aí diferentes definições das premissas da ordem política. Definiram os termos de responsabilidade das relações de autoridade entre estado e sociedade civil; estabeleceram padrões de identidade colectiva, moldando as autopercepções das sociedades individuais, sobretudo a sua autopercepção como modernas.

À medida que estas contestações surgiram na Europa, o padrão dominante destes conflitos fundou-se em tradições europeias específicas, centrando-se em torno das clivagens existentes entre orientações utópicas e civis. Os princípios de hierarquia e de igualdade competiam na construção da ordem política e dos centros políticos. O estado e a sociedade civil eram vistos por alguns como entidades separadas. A identidade colectiva, muitas vezes expressa em termos ideológicos, era definida de um modo diferente. A variedade dos resultados sociais pode ser ilustrada pelas diferentes concepções de estado que se desenvolveram no continente e em Inglaterra. Existia, por um lado, a forte "laicização" da França, com resultados homogeneizadores, ou, num sentido diferente, dos países escandinavos luteranos, e por outro lado, as disposições muito mais consolidadas e pluralistas, comuns à Holanda e à Suíça e, numa escala muito menor, à Grã-Bretanha. A forte concepção semifeudal e aristocrática de autoridade na Grã-Bretanha contrastava com visões mais democráticas, mesmo mais populistas, de outros países europeus (Graubard, 1986; Kuhnle, 1975; Rothstein, 1996; Rustow, 1956; Thomas, 1978; Thompson, 1968; Thomson, 1940; e 1960; Geyl, 1958; Beloff, 1954; Daalder, 1971; Bergier, 1974; Lehmbruch, 1972; Lorwin, 1971; Steiner, 1974).

Nas décadas 20 e 30, marcadas indelevelmente pelas tensões e antinomias da modernidade, à medida que se ia desenvolvendo na Europa, surgiram distintamente as primeiras modernidades ideológicas "alternativas" - as de tipo comunista soviético e as de tipo fascista/nacional-socialista (Arnason, 1990, e 2000; Sunker e Otto, 1997). Os movimentos socialistas e comunistas estavam em acordo absoluto com o enquadramento traçado pelo programa cultural da modernidade e, acima de tudo, com o enquadramento traçado pelo iluminismo e pelas principais revoluções. A sua crítica ao programa da sociedade capitalista moderna girava em torno do conceito de imperfeição destes programas modernos. Em contraste, os movimentos nacionais ou nacionalistas, especialmente o fascismo extremista ou o nacional-socialismo, pretendiam acima de tudo reconfigurar os limites das colectividades modernas. Procuravam assim provocar um confronto entre as componentes universalistas e as mais particularistas e primordiais das identidades colectivas dos regimes modernos. A sua crítica à ordem social existente negava as componentes universalistas do programa cultural da modernidade, especialmente na sua versão iluminista. Revelavam menor zelo missionário em transcender as fronteiras puramente nacionais. No entanto, e de modo significativo, apesar de repudiarem as componentes universalistas do programa cultural e político da modernidade, procuravam transpô-las de diversas formas para as suas visões particularistas, tentando apresentá-las em certos termos semiuniversalistas - de que, paradoxalmente, raça pode ser um caso.

Por meados do século, o desenvolvimento incessante de modernidades múltiplas na Europa testemunhava uma evolução contínua. Como observou Nilüfer Göle (1996), uma das características mais importantes da modernidade é simplesmente a sua capacidade potencial para a autocorrecção contínua. Essa qualidade, já manifesta no século XIX, no encontro das sociedades modernas com os muitos problemas criados pelas revoluções industriais e democráticas, não podia, contudo, ser tomada como um dado adquirido. O desenvolvimento da modernidade gerou no seu seio possibilidades destrutivas que foram expressas, muito frequentemente, de um modo algo irónico, através de alguns dos seus críticos mais radicais, que acreditavam que a modernidade era uma força moralmente destruidora, sublinhando os efeitos negativos de algumas das suas características nucleares. A cristalização da modernidade europeia e sua expansão posterior não foram, de forma alguma, pacíficas. Contrariamente às visões optimistas da modernidade, que a concebiam como progresso inevitável, a cristalização das modernidades era continuamente entretecida por confrontos e conflitos internos, fundados nas contradições e tensões implícitas ao desenvolvimento dos sistemas capitalistas e, na arena política, às crescentes exigências de democratização. A composição destes factores foi desenhada por conflitos internacionais, que foram depois exacerbados pelo estado moderno e pelos sistemas imperialistas. A guerra e o genocídio não eram fenómenos novos na história. No entanto, viram-se radicalmente transformados e intensificados, gerando modos de barbárie especificamente modernos. A ideologia da violência, do terror e da guerra - testemunhada pela primeira vez e da forma mais expressiva na revolução francesa - tornou-se num dos componentes de cidadania mais importantes, senão mesmo nos componentes exclusivos, para a sustentação dos estados modernos. A tendência existente para essas ideologias da violência veio a relacionar-se de modo estreito com o facto de o estado-nação se ter tornado no foco central dos símbolos de identidade colectiva (Giddens e Held, 1982; Schumpeter, 1991; Furet, 1982; Furet e Ozouf, 1989; Joas, 1996). O holocausto, que teve lugar no centro da modernidade, foi a sua manifestação extrema e tornou-se num símbolo do seu potencial negativo e destrutivo, da barbaridade latente no interior do seu próprio centro.

 

VIII

Desenvolveram-se diversos temas no seio do discurso da modernidade sem que nenhum tivesse sido mais importante do que o que sublinhava o confronto contínuo entre os sectores mais "tradicionais" da sociedade e os chamados centros ou sectores modernos que se desenvolviam no seu interior. Desta forma, existia também uma tensão inerente entre a cultura da modernidade, o modelo "racional" moderno do iluminismo que emergia hegemonicamente em certos períodos e locais, e outros programas construídos de modo a reflectir as tradições culturais mais "autênticas" de sociedades específicas. Entre os apoiantes das ideologias da autenticidade tradicional, e no interior dos sectores mais tradicionais de certas sociedades, desenvolveu-se igualmente uma ambivalência duradoura a respeito das culturas modernas (e, consequentemente, das suas premissas e dos seus símbolos universalistas e exclusivistas), e uma oscilação contínua entre cosmopolitismo e localismo. Estes temas começaram por ser desenvolvidos no interior da própria Europa; com a expansão da modernidade para as américas e (especialmente) para os países asiáticos e africanos, estes temas continuaram a ser desenvolvidos, ainda que num sentido diferente.

 

IX

A primeira transformação radical das premissas de ordem cultural e política teve lugar com a expansão da modernidade para as américas. Emergiram então modernidades distintas, reflectindo novos padrões de vida institucional, com novas autoconcepções e novas formas de consciência colectiva. Dizê-lo é sublinhar que praticamente desde o começo da expansão da modernidade se desenvolveram modernidades múltiplas, todas elas no interior do que pode ser definido como o enquadramento civilizacional ocidental. É importante notar que tais modernidades, de cariz ocidental, mas significativamente diferentes das europeias, se desenvolveram em primeiro lugar não na Ásia - Japão, China ou Índia - ou em sociedades muçulmanas, a que podem ter sido atribuídas pela existência de tradições distintamente não europeias, mas no interior do enquadramento geral das civilizações ocidentais. Elas reflectiam uma transformação radical das premissas europeias.

A cristalização de padrões de modernidade distintos nas américas ocorreu, através do confronto discursivo com a Europa - particularmente com a Inglaterra e a França (Heideking, 2000). Apesar de não ser normal sustentar estes argumentos em termos de diferentes interpretações de modernidade, eles estavam, de facto, centrados nas vantagens e desvantagens de padrões institucionais que se desenvolveram nos Estados Unidos, os quais eram marcadamente diferentes dos que se tinham desenvolvido na Europa. Para além disto, os principais temas relacionados com a dimensão internacional da modernidade encontravam-se claramente articulados neste discurso. Esses confrontos tornaram-se característicos do discurso contínuo acerca da modernidade à medida que ele se foi difundindo pelo mundo. Apesar de esta ideia se aplicar também à América latina, existiam importantes diferenças entre as américas, especialmente entre os Estados Unidos e a América latina. Nesta última, pontos de referência "externos" - ainda que muitas vezes ambivalentes - mantinham uma importância crucial (Ortiz, 2000). A importância prolongada destes pontos de referência, sobretudo na Europa - Espanha, França e Inglaterra - e mais tarde nos Estados Unidos, foi de importância crítica para a autoconcepção das sociedades latino-americanas. Semelhantes considerações foram gradualmente perdendo importância nos Estados Unidos, que se viam a si próprios, cada vez mais, como o centro da modernidade.

 

X

A variabilidade das modernidades foi concretizada, sobretudo, através do imperialismo económico e militar e através do colonialismo, e efectivada pela superioridade económica, militar e das tecnologias de comunicação. A modernidade ultrapassou os limites do ocidente, pela primeira vez, ao penetrar em diferentes sociedades asiáticas - Japão, Índia, Birmânia, Sri Lanka, China, Vietname, Laos, Cambodja, Malásia, Indonésia -, em países do médio oriente, chegando finalmente a África. No final do século XX, engloba quase o mundo inteiro, na primeira verdadeira vaga de globalização.

Em todas estas sociedades o modelo básico do estado territorial e, mais tarde, do estado-nação foi adoptado, tal como as premissas e os símbolos básicos da modernidade ocidental, e as instituições modernas do ocidente - representativas, legais e administrativas. Mas ao mesmo tempo, o encontro da modernidade com sociedades não ocidentais causou transformações de longo alcance nas premissas, símbolos e instituições da modernidade - fazendo surgir, como consequência, novos problemas.

O poder de atracção de muitos dos temas e formas institucionais da modernidade sobre muitos grupos nestas sociedades resultava, em primeiro lugar, do facto de ter sido o padrão europeu (mais tarde, ocidental), desenvolvido e difundido através do mundo pela expansão económica, tecnológica e militar ocidentais, a enfraquecer as premissas culturais e os centros institucionais destas sociedades antigas. A apropriação destes temas e instituições permitiu que muitos dos que viviam em sociedades não europeias - especialmente elites e intelectuais - participassem activamente na nova tradição moderna e universal (apesar de inicialmente ocidental), podendo do mesmo passo seleccionar muitos dos seus aspectos, com especial destaque para aqueles que garantiam a hegemonia das formulações ocidentais do programa cultural da modernidade. A apropriação destes temas da modernidade possibilitou que estes grupos incorporassem alguns dos elementos ocidentais da modernidade de cariz universalista na construção das suas próprias identidades colectivas, sem que abdicassem das componentes específicas das suas identidades tradicionais (sustentadas frequentemente, tal como os temas da modernidade ocidental, em termos universalistas, especialmente religiosos). Não aboliu também as atitudes negativas ou, pelo menos, ambivalentes, em relação ao ocidente. Os temas de protesto e a construção institucional, característicos da modernidade, e a redefinição do centro e da periferia, serviram para encorajar e acelerar a transposição do projecto moderno para cenários não europeus, não ocidentais. Muitos destes temas, apesar de inicialmente terem sido expressos em termos ocidentais, encontraram ressonância nas tradições políticas de muitas destas sociedades (Eisenstadt, 1982; e 1986).

 

XI

A apropriação por parte de sociedades não ocidentais de temas e padrões institucionais específicos das sociedades da civilização moderna ocidental implicou a selecção, a reinterpretação e a reformulação contínuas destas ideias importadas. Estas vieram produzir inovação contínua, com a emergência de novos programas culturais e políticos, que exibiam novas ideologias e padrões institucionais. Os programas culturais e institucionais que se desenvolveram nestas sociedades eram caracterizados, sobretudo, pela tensão entre concepções de si mesmo como parte integrante do mundo moderno e atitudes ambivalentes para com a modernidade em geral e o ocidente em particular.

Em todas estas sociedades ocorreram transformações de longo alcance. Estas transformações, moldadas em cada uma das sociedades pelo impacte combinado das suas respectivas tradições históricas e dos modos diversos de incorporação no novo sistema-mundo moderno, são admiravelmente interpretadas num ensaio de Sudipta Kaviraj (2000). O autor analisa o impacte das tradições políticas e da experiência colonial imperial na constituição das características distintas de modernidade tal como se cristalizaram na Índia. Investigações semelhantes para os casos da China ou do Vietname parecem indicar os modos específicos que permitem que noções "alternativas", revolucionárias e universalistas do programa moderno de modernidade surjam dos seus contextos civilizacionais. O caso do Japão é diferente; aí, a sobreposição entre o estado e a sociedade civil, a fraqueza das orientações utópicas, a ausência de conflitos de princípio com o estado entre os principais movimentos de protesto e o significado relativo de componentes universalistas e particularistas contribuíram para a criação de uma identidade moderna colectiva diferente de todas as outras sociedades (Eisenstadt, 1996).

 

XII

Os múltiplos e divergentes casos da idade "clássica" da modernidade cristalizaram-se durante o século XIX e, sobretudo, nas primeiras seis ou sete décadas do século XX, em estados-nação e estados revolucionários, e em movimentos sociais na Europa, nas américas e, depois da II Guerra Mundial, na Ásia. Os contornos institucionais, simbólicos e ideológicos dos estados nacionais e revolucionários modernos, que chegaram a ser vistos como a síntese da modernidade, mudaram radicalmente com a recente intensificação das forças de globalização. Estas tendências, manifestas sobretudo na crescente autonomia do mundo financeiro e dos fluxos financeiros, intensificaram as migrações internacionais e o desenvolvimento paralelo, a um nível internacional, de problemas sociais tais como a propagação de doenças, da prostituição, do crime organizado e da violência juvenil. Tudo isto serviu para reduzir o controlo do estado-nação sobre os seus assuntos políticos e económicos, apesar dos esforços contínuos para fortalecer políticas tecnocráticas, de cariz racional e secular, em diversas arenas. Os estados-nação perderam também parte do seu monopólio sobre a violência interna e internacional, que foi sempre um monopólio parcial, para grupos locais ou internacionais de separatistas ou terroristas. Em muitos países, os processos de globalização são também evidentes na arena cultural, com a expansão hegemónica, através da influência dos principais média, do que aparentemente são programas ou visões uniformes de proveniência ocidental, sobretudo americana (Friedman, 1994; Hannerz, 1992; Marcus, 1993; AA.VV, 1999; Smolicz, 1998).

A centralidade simbólica e ideológica do estado-nação, a sua posição enquanto lugar carismático nas principais componentes do programa cultural da modernidade e da identidade colectiva, foi enfraquecida; novas visões políticas, sociais e civilizacionais, novas visões de identidade colectiva estão correntemente a desenvolver-se. Estas novas visões e identidades foram proclamadas por uma variedade de novos movimentos sociais; todos eles, por muito diferentes que fossem, desafiaram as premissas da nação clássica moderna e do seu programa de modernidade, que ocupavam, até então, o centro incontestado do pensamento político e cultural.

Os primeiros desses movimentos a desenvolverem-se na maioria dos países ocidentais - o movimento feminista e o movimento ecologista - estavam estreitamente relacionados ou enraizados nos movimentos estudantis e anti-Vietname dos finais da década de 60 e do início da década de 70. Eram indicativos de uma mudança mais geral em muitos países, quer fossem "capitalistas" ou comunistas: um abandono dos movimentos orientados em torno do estado, em favor dos movimentos com um alcance e com programas mais locais. Em vez de se centrarem na reconstituição dos estados-nação, ou na resolução de conflitos macroeconómicos, estas novas forças - muitas vezes apresentando-se a si próprias como "pós-modernas" e "multiculturais" - promulgaram uma política cultural, ou uma política de identidade, sustentada, muitas vezes, como multiculturalismo, e estavam orientadas para a construção de novos espaços sociais, políticos e culturais autónomos (Marcus, 1993).

Os movimentos fundamentalistas emergiram um tanto mais tarde entre comunidades muçulmanas, judias e protestantes, e conseguiram ocupar o palco central em muitas sociedades nacionais e, de tempos a tempos, na cena internacional. Os movimentos religiosos comunais desenvolveram-se de modo paralelo no interior das culturas hindu e budista, partilhando, geralmente, fortes temas antimodernos e/ou antiocidentais (Eisenstadt, s. d.; Marty e Appleby 1995; 1994; 1993a; 1993b; 1991).

Um terceiro e novo tipo de movimento, que ganhou dinâmica especialmente nas duas últimas décadas do século XX, tem sido o movimento "étnico" particularista. Observado inicialmente nas antigas repúblicas da União Soviética, emergiu igualmente de formas horrendas em África e em partes dos Balcãs, especialmente na antiga Jugoslávia.

Todos estes movimentos desenvolveram-se por arrastamento, tendo sido mesmo acelerados por transformações sociais muito importantes, servindo para consolidar novos cenários e enquadramentos sociais. Para mencionar apenas dois dos mais importantes, o mundo vê surgir agora novas diásporas, especialmente de muçulmanos, chineses e indianos, algumas investigadas num artigo de Stanley J. Tambiah (2000). A seguir ao colapso do império soviético, as minorias russas surgiram como forças visíveis, em muitos dos estados que sucederam à União Soviética nos antigos países comunistas da Europa de leste.

Nestes e em muitos outros cenários emergiram novos tipos de identidade colectiva, superando os modelos do estado-nação e do estado revolucionário, deixando de se centrar neles. Muitas destas identidades étnicas locais, regionais e transnacionais, até então "subjugadas", moveram-se, mesmo que de um modo altamente reconstruído, para os centros das respectivas sociedades e, muitas vezes, também para a arena internacional. Ao reclamar o seu próprio lugar autónomo em arenas institucionais centrais - programas educativos, comunicações públicas, emissões nos média -, contestavam a hegemonia dos anteriores programas homogeneizadores, vindo a ter cada vez maior sucesso na afirmação de exigências de longo alcance, a respeito da redefinição da cidadania e de direitos e garantias a ela associados.

Nestes cenários, as preocupações e os interesses locais surgem muitas vezes sob novas formas, indo além do modelo clássico do estado-nação, seleccionando alianças com organizações transnacionais como a União Europeia, ou com enquadramentos religiosos alargados fundados nas grandes religiões do islão, do hinduísmo, do budismo ou das ramificações protestantes do cristianismo. Simultaneamente, vemos uma decomposição contínua da imagem relativamente compacta oferecida por sistemas de crença que sustentam estilos de vida, que definem o "homem civilizado" - todas associadas à emergência e difusão do programa original da modernidade (Eickelman, 1993; 1983; Eickelman e Piscatori, 1996; Hefner, 1998). Ninguém pode duvidar de que ocorrem presentemente mudanças significativas e duradouras na posição relativa e na influência detida pelos diferentes centros de modernidade - oscilando entre o ocidente e o oriente. Este facto pode apenas produzir maior contenção entre centros, a respeito do seu grau de influência num mundo em processo de globalização (Tiryakian, 1996).

 

XIII

Todos estes desenvolvimentos atestam a decomposição das principais características estruturais e o enfraquecimento da hegemonia ideológica dos outrora poderosos estados-nação. Mas assinalarão eles o "fim da história" e o fim do programa moderno, sintetizado no desenvolvimento de diferentes pós-modernidades (assim são chamadas) e, acima de tudo, num recuo da modernidade patenteado nos movimentos fundamentalistas e religiosos de cariz comunal, tantas vezes retratados pelos próprios como diametralmente opostos ao programa moderno?

Uma análise mais próxima destes movimentos apresenta um retrato bem mais complexo. Em primeiro lugar, muitos dos movimentos fundamentalistas radicais revelam características distintas do jacobinismo moderno, mesmo quando combinadas com fortes ideologias antiocidente e anti-iluminismo. De facto, as diferentes visões dos movimentos fundamentalistas têm sido formuladas em termos comuns ao discurso da modernidade; procuram assim apropriar-se da modernidade nos seus próprios termos. Enquanto os fundamentalistas radicais constroem elaborados temas aparentemente antimodernos (ou antes, anti-iluministas), eles constituem basicamente movimentos revolucionários jacobinos que se inserem na tradição moderna, partilhando, paradoxalmente, muitas características (por vezes, reflectindo-se como um espelho) com movimentos comunistas de épocas anteriores (Eisenstadt, s. d.). Partilham com os movimentos comunistas a promulgação de visões totalizantes, as quais implicam a transformação tanto do homem como da sociedade. Alguns afirmam preocuparem-se com a "purificação" de ambos. Trata-se da reconstrução total da personalidade, de identidades individuais e colectivas, através da acção humana consciente, nomeadamente pela acção política, e da construção de novas identidades pessoais e colectivas, que implicam a submersão do indivíduo na sociedade que procuram realizar. Tal como os movimentos comunistas, estes movimentos procuram estabelecer uma nova ordem social, fundada em dogmas ideológicos revolucionários e universalistas, transcendendo em princípio todas as unidades primordiais, nacionais ou étnicas. No caso dos primeiros regimes comunistas, os objectivos declarados reclamavam a produção de colectividades de "operários" e de "intelectuais" que se alargariam a todo o género humano; no caso dos regimes fundamentalistas islâmicos, o domínio do islão, como nova concepção do ummah, transcende qualquer lugar específico, possuindo fronteiras alargadas e em constante mudança, ainda que ideologicamente fechadas. Tanto os movimentos comunistas como os fundamentalistas - sobretudo, mas não exclusivamente, os muçulmanos - são transnacionais, sendo activados por redes intensivas em contínua reconstrução, que facilitam a expansão das visões sociais e culturais proclamadas por esses grupos. Ao mesmo tempo, vão sendo confrontados com visões concorrentes. De todas estas formas, tanto os movimentos como os seus programas constituem parte e parcela da agenda política moderna.

Existem, certamente, diferenças marcantes nas visões respectivas dos dois tipos de movimentos e regimes jacobinos (os comunistas e os fundamentalistas), sobretudo no que se relaciona com a sua atitude para com a modernidade e nas suas críticas. Na sua análise das antinomias básicas da modernidade e na sua interpretação e rejeição de diferentes componentes dos programas culturais e políticos da modernidade clássica, os fundamentalistas islâmicos partilham, como Nilüfer Göle (2000) demonstra, uma preocupação com a modernidade. Esta constitui o seu principal quadro de referência (idem, 1996).

 

XIV

As tentativas de apropriação e de interpretação da modernidade nos seus próprios termos não se confinam, contudo, aos movimentos fundamentalistas. Eles constituem antes parte de um conjunto de desenvolvimentos muito mais alargados que têm tido lugar por todo o mundo, como mostra Dale F. Eickelman (2000), num ensaio a respeito das sociedades islâmicas. Dando continuidade aos confrontos entre movimentos religiosos reformistas e outros movimentos tradicionais mais antigos que se desenvolveram nestas comunidades, as tensões inerentes ao novo programa moderno, especialmente entre valores pluralistas e universais, são jogadas em novos termos. Quer se trate de atitudes utópicas ou outras mais abertas e pragmáticas, de identidades multifacetadas ou fechadas, todas elas implicam uma mudança importante, mesmo radical, no discurso acerca do confronto com a modernidade, no reenquadrar da relação entre civilizações, religiões e sociedades, ocidentais e não ocidentais (Eickelman, 1993).

É possível identificar paralelos significativos entre estes diversos grupos religiosos, incluindo o fundamentalismo, e os seus opositores aparentemente extremos - os diversos movimentos pós-modernos com os quais entram muitas vezes em confronto a respeito da hegemonia entre os diferentes sectores da sociedade. Assim, em muitos destes movimentos "pós-modernos" ou "multiculturais", desenvolveram-se orientações profundamente totalitárias, manifestas, por exemplo, em diferentes programas de correcção política. Ironicamente, por causa da sua grande variedade e da sua dinâmica interna e pragmatismo mais pluralista, vemos também certos temas "pós-modernos" surgirem em movimentos fundamentalistas. Para lá deste paradoxo, estes movimentos partilham uma preocupação generalizada acerca da relação entre as identidades que promulgam e os temas universalistas promulgados por outros programas hegemónicos de modernidade, sobretudo no que respeita à relação entre as suas identidades que pretendem ser autênticas e a presumida hegemonia cultural do ocidente, especialmente americana, na cena contemporânea. De modo significativo, o medo da erosão das culturas locais como resultado do impacte da globalização levou estes movimentos a criarem suspeitas acerca dos centros emergentes de um mundo em globalização, dando origem uma vez mais a uma oscilação contínua entre cosmopolitismo e diversas tendências "particularistas" (Friedman, 1994; Marcus, 1993; Smolicz, 1998; AA.VV, 1999).

 

XV

A saliência contínua das tensões entre programas pluralistas e universalistas, entre identidades multifacetadas por oposição a outras fechadas, e a ambivalência contínua dos novos centros da modernidade para com os principais centros tradicionais da hegemonia cultural atestam o facto de que, ao ultrapassar o modelo do estado-nação, estes novos movimentos não ultrapassaram os problemas básicos da modernidade. Todos eles são profundamente reflexivos, possuindo a consciência de que nenhuma resposta às tensões inerentes à modernidade será a resposta final - mesmo se cada um deles procura à sua própria maneira fornecer repostas finais e incontestáveis aos dilemas irredutíveis da modernidade. Todos eles reconstituíram os problemas da modernidade em novos contextos históricos, em novas formas. Todos eles procuram um alcance mundial e a difusão através dos diversos média. Os problemas que enfrentam, reconstruindo continuamente as suas identidades colectivas por referência ao novo contexto global, constituem desafios de proporções sem precedentes. A própria pluralização dos espaços quotidianos no enquadramento global leva-os a ideias absolutistas altamente ideológicas e, do mesmo passo, transporta-os para o centro da arena política. O debate em que se inserem pode ser descrito em termos "civilizacionais", mas estes mesmos termos - o próprio termo "civilização" integrado nesse discurso - são já expressos na nova língua da modernidade, utilizando termos totalizantes, essencialistas e absolutistas. Quando nos debates culturais esses choques se interceptam com lutas políticas, militares ou económicas, podem rapidamente tornar-se violentos.

As reconstruções das diversas visões políticas e culturais, através do espectro de identidades colectivas na cena contemporânea, implicam uma mudança no confronto entre as civilizações ocidental e não ocidental, entre religiões e sociedades, e também na relação destes confrontos com o programa cultural da modernidade do ocidente. Por oposição à aparente aceitação generalizada das premissas da modernidade e da sua contínua reinterpretação, característica dos antigos movimentos religiosos e nacionais reformistas, a maior parte dos movimentos religiosos contemporâneos - incluindo movimentos fundamentalistas e a maioria dos movimentos religiosos comunais - parecem enveredar por uma rejeição muito mais intensa e selectiva de pelo menos algumas destas premissas. Assumiram uma atitude conflituosa para com o ocidente, para tudo o que seja concebido como ocidental, procurando apropriar-se da modernidade e do sistema global nos seus próprios termos, muitas vezes antiocidentais. O seu confronto com o ocidente não assume a forma de desejo de incorporação numa nova civilização hegemónica, mas de apropriação da nova cena global internacional e da modernidade para eles próprios, celebrando as suas tradições e "civilizações". Estes movimentos tentaram desassociar a ocidentalização da modernidade, negando o monopólio ocidental sobre a modernidade e rejeitando o programa cultural ocidental como a síntese da modernidade. Significativo é o facto de muitos destes temas serem também abraçados, apesar de em diferentes idiomas, por muitos movimentos "pós-modernos".

 

XVI

A análise anterior não implica que a experiência histórica e as tradições culturais destas sociedades não possuam qualquer importância no desdobrar das suas dinâmicas de modernidade. O significado das suas tradições anteriores é manifesto no facto de que entre as sociedades modernas e contemporâneas, os movimentos fundamentalistas se desenvolvem sobretudo em sociedades que ganharam forma em contextos de religião monoteísta ecuménica - as civilizações muçulmana, judaica e cristã. Nestes contextos, o sistema político tem sido percepcionado como a principal arena para o implemento de visões utópicas transcendentais. Por contraste, a reconstrução ideológica do centro político na forma jacobina tem sido muito mais fraca em civilizações com orientações "além-mundo" - especialmente na Índia, e numa medida de certa forma menor, em países budistas. Nestes casos, a ordem política não é percepcionada como fórum para a implantação de uma visão transcendental (Eisenstadt, s. d.).

Trata-se de um lugar comum observar que as distintas variedades de democracia moderna na Índia ou no Japão, por exemplo, podem ser atribuídas ao encontro entre a modernidade ocidental e as tradições culturais e as experiências históricas destas sociedades. Isto aplicava-se também, evidentemente, para os diferentes regimes comunistas. Menos compreendido é o facto de o mesmo se ter passado no que respeita ao primeiro caso de modernidade - o europeu -, profundamente enraizado nas premissas culturais e na experiência histórica especificamente europeia (Eisenstadt, 1987). Mas, tal como no caso da Europa, todas estas influências "históricas" ou "civilizacionais" não perpetuaram simplesmente um velho padrão de vida institucional.

Nem, tão pouco, o mesmo acontece na cena contemporânea, como se nada mais do que a continuação dos respectivos passados e padrões históricos fosse nela perpetuada. Pelo contrário, estas experiências particulares influenciam a emergência contínua de novos movimentos e redes entre diferentes actores - juízes, especialistas, deputados e outros - de um modo transversal a todas as sociedades, mantendo um fluxo entre elas. A dinâmica política em todas estas sociedades está estreitamente entretecida com realidades geopolíticas, influenciada pela história e moldada sobretudo por desenvolvimentos e conflitos modernos, o que torna impossível qualquer esforço no sentido de construir entidades "fechadas" (AA.VV., 1999).

Assim, o processo de globalização na cena contemporânea não implica nem o "fim da história" - no sentido do fim dos choques ideológicos conflituosos entre diferentes programas de modernidade - nem um "choque de civilizações" entre um ocidente secular em confronto com sociedades que parecem rejeitar, ou negar, o programa da modernidade. Não constitui sequer um regresso aos problemas das civilizações axiais pré-modernas, como se tal fosse possível. Pelo contrário, as tendências da globalização nada revelam de forma tão clara como a contínua reinterpretação do programa cultural da modernidade, como a construção de modernidades múltiplas, como as tentativas por parte de diversos grupos e movimentos de se apropriarem e redefinirem o discurso da modernidade nos seus próprios termos. Ao mesmo tempo, estão a provocar um reposicionamento das principais arenas de contestação em que são moldadas novas formas de modernidade, distanciando-se do fórum tradicional do estado-nação em direcção a novas áreas em que diferentes movimentos e sociedades interagem continuamente.

Não só continuam a emergir modernidades múltiplas - indo, hoje em dia, para além das premissas do estado-nação - como surgem igualmente novos modos de questionar e reinterpretar as diferentes dimensões da modernidade no seio de todas as sociedades. É inegável a tendência, no final do século XX, para a crescente diversificação dos modos de compreensão da modernidade, dos programas culturais básicos de diferentes sociedades modernas - muito para além das visões homogéneas e hegemónicas da modernidade que prevaleciam na década de 50. Para além disto, em todas as sociedades, estas tentativas de interpretação da modernidade encontram-se em contínua mutação, submetidas ao impacte de forças históricas que se vão alterando, dando assim origem a novos movimentos que chegarão, a seu tempo, a reinterpretar uma vez mais o sentido da modernidade.

Se é verdade que o ponto de partida comum foi outrora o programa cultural da modernidade tal como se desenvolveu no ocidente, desenvolvimentos mais recentes viram uma multiplicidade de formações culturais e sociais superar esses aspectos homogeneizadores da versão original. Todos estes desenvolvimentos atestam, de facto, o contínuo desenvolvimento de modernidades múltiplas, ou de múltiplas interpretações da modernidade - e, sobretudo, atestam as tentativas de "desocidentalização", privando o ocidente do seu monopólio sobre a modernidade.

 

XVII

Estas considerações encontram-se em estreita relação com os problemas levantados nos ensaios reunidos na revista Daedalus.3 Todos eles discutem, de diversas perspectivas e através de um grande leque de casos, as características centrais da modernidade. Do mesmo passo, os estudos aí apresentados atestam a contínua expansão do leque de possibilidades de interpretações ideológicas, tanto das construções do sentido da modernidade como dos padrões institucionais da vida política e social. Estas considerações confirmam, como demonstra Nilüfer Göle (2000), que uma das características mais importantes da modernidade é simplesmente, mas de modo profundo, o seu potencial para a autocorrecção, a sua capacidade de enfrentar problemas nunca imaginados no seu programa original. Hoje em dia, os problemas mais importantes são provavelmente aqueles que se relacionam com o ambiente, com a igualdade entre sexos e com os novos conflitos políticos e internacionais que já discutimos. Ao procurar lidar com estes problemas, as diferentes sociedades contemporâneas podem utilizar de modos cada vez mais diversos, como nota Tu Weiming (2000), os recursos culturais das respectivas tradições civilizacionais.

Do mesmo passo, estes mesmos desenvolvimentos - sobretudo a tendência para a constante autocorrecção característica da modernidade - tornam mais premente a grande dificuldade que é dar resposta a respeito dos limites da modernidade. Não se trata de afirmar a inexistência desses limites; mas o simples facto de levantarmos essa questão, insere-a no seio do discurso da modernidade.

Elucidar e descrever o carácter essencialmente moderno dos novos movimentos e identidades colectivas, desenhando percursos que de alguma forma ultrapassam o modelo clássico do estado, territorial, nacional ou revolucionário, não nos leva necessariamente a assumir uma visão optimista. Pelo contrário; as ramificações são de tal ordem que tornam evidente a fragilidade e mutabilidade de diferentes modernidades, bem como as forças destrutivas inerentes a certos programas modernos, que se revelam de forma mais vincada na ideologia da violência, do terror e da guerra. Estas forças destrutivas - os "traumas" da modernidade que puseram em questão as suas grandes promessas - surgiram claramente depois da I Guerra Mundial, tornando-se ainda mais visíveis na II Guerra Mundial e no holocausto, e foram geralmente ignoradas ou postas de parte no discurso da modernidade nas décadas de 50, 60 e 70. Ultimamente, ressurgiram de um modo assustador - no novo conflito "étnico" em partes dos Balcãs (especialmente na antiga Jugoslávia), em muitas das antigas repúblicas da União Soviética, no Sri Lanka e, de uma forma terrível, em países africanos como o Ruanda ou o Burundi. Não são simples erupções de velhas forças "tradicionais", mas o resultado de um diálogo contínuo entre forças de reconstrução modernas e outras aparentemente "tradicionais". Do mesmo modo, desenvolveram-se também movimentos fundamentalistas e religiosos de cariz comunal no quadro da modernidade, que não podem ser compreendidos completamente senão no interior desse mesmo quadro. A modernidade - parafraseando a bem conseguida e humorada expressão de Leszek Kolakowsky (1990) - está de facto "em julgamento contínuo".

[Tradução de Frederico Ágoas]

 

 

Notas

1    Uma primeira versão deste artigo foi publicada em inglês na revista Dædalus: Journal of the American Academy of Arts and Sciences, 129 (1), 2000.

2    Sobre revoluções e modernidade ver, por exemplo, o número especial sobre "A revolução francesa e o nascimento da modernidade", Social Research (1989). Sobre o papel desempenhado por grupos de intelectuais heterodoxos em algumas das revoluções e em períodos anteriores, ver Augustin Cochin (1924); e 1979; J. Baechler (1979); François Furet (1982); Vladimir C. Nahirny (1981).

3    Dædalus: Journal of the American Academy of Arts and Sciences, 129 (1), 2000.

 

 

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*S. N. Eisenstadt, M. A., Ph. D. Rose Issacs Professor Emeritus of Sociology, Faculty of Social Sciences. Contacto: The Van Leer Jerusalem Institute, P. O. B 4070, Jerusalem 914040. Fax 972(2) 5619293; Tel. 972(2) 5605222.

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