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Sociologia, Problemas e Práticas

Print version ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  no.34 Oeiras Dec. 2000

 

LEITURAS

 

O NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO

[Luc Boltanski e Ève Chiapello (1999), Le Nouvel Esprit du Capitalisme, Paris, Gallimard, 640 páginas de texto acrescentadas de anexos e notas, no total de 844 páginas]

António Pedro Dores*

 

 

Com um nome destes, à semelhança de O Trabalho das Nações (Reich, Robert B., 1991, O Trabalho das Nações, Lisboa, Quetzal), só pode ser um candidato forte a leitura clássica. Trata-se de um trabalho de sociologia que procura responder à questão de como caracterizar os tempos que vivemos, à luz das competências analíticas que nos mostraram os fundadores da nossa disciplina. É um trabalho inspirado e inspirador. Por isso, o texto que se segue só pode ser um convite à leitura, para a emergência de discussões que urge serem feitas e que podem encontrar neste livro um bom pretexto e um bom fundamento.

Os analistas simbólicos, tematizados por Reich, em particular os consultores e os gurus do management, aparecem-nos desenhados, em grande pormenor, pelos autores, como fornecedores e difusores de formas de encarar os problemas práticos do capitalismo. Evidentemente que nenhum deles terá sido capaz de se sentar num lugar de pilotagem dos caminhos do capitalismo, ao contrário do que possam pensar aqueles que ainda concebem como viáveis e até desejáveis — mesmo que só como reminiscência de ideologias derrotadas — formas centralizadas de controlo económico e social. No seu conjunto, porém, das ideias divulgadas, as melhor acolhidas e as mais eficazes medidas pelo número de livros vendidos e pelo prestígio dos seus autores, eventualmente simplificadas e até transformadas a partir de originais com intenções diversas, tais ideias, dizíamos, foram sendo socialmente escolhidas para fins de mobilização da cooperação produtiva capitalista. Reich chama-nos também a atenção para o papel do trabalho dos juristas e das novas formas de proceder na manipulação dos códigos legais. O número de activos nas profissões jurídicas cresceu exponencialmente nos EUA desde os anos 70. O texto que estamos a tratar não se refere a estes assuntos, embora eles sejam importantes para caracterizar as novas relações entre os estados e as grandes iniciativas económicas globais.

A análise de Boltanski e Chiapello parte dos acontecimentos de 1968, em França, para chegar a uma visão do que se passa trinta anos depois. Passa por compreender os actores sociais revolucionários, a respectiva trajectória social e política, desde os tempos da contestação radical até à cooperação e exploração no seio do capitalismo renovado, inclui a análise das formas históricas de separação dos campos político, social e artístico, conforme têm sido vividos, a história recente do capitalismo e os dilemas práticos para aqueles que, do lado do patronato, do lugar da política e da burocracia, e do lado dos trabalhadores, se têm sentido responsáveis por continuar a funcionar quotidianamente enquanto organizadores da luta de classes, apesar da rapidez das mudanças e da dificuldade de lhes atribuir sentido.

Ficamos a saber que a ideia de constituição de redes técnicas como a internet é imaginada ao mesmo tempo que, em sociedade, as redes empresariais se formavam na prática, independentemente da consciência que disso tinham os empreendedores e trabalhadores, preocupados antes de mais em reagir à "crise" dos anos 70, em emagrecer custos de funcionamento, do lado do capitalismo, e em disciplinar os fornecedores de força-de-trabalho, do lado dos sindicatos. Efectivamente, na sequência dos acontecimentos de 68, os poderes instituídos foram perturbados com a exigência de desburocratização e com a procura de realização dos ideais de "vida autêntica", vindas de baixo (das classes subordinadas, fornecedoras de força-de-trabalho, e dos estudantes, mas também das respectivas vísceras, i. e. de forma inegociável). As instituições de concertação social dessolidarizaram-se entre si.

Face ao dobre de finados do segundo espírito do capitalismo, do keynesianismo e do estado-providência (o primeiro espírito do capitalismo terá sido aquele que foi abordado por Max Weber) e perante a iminência do soçobrar do capitalismo face à contestação radical dos anos 70, o novo espírito do capitalismo foi capaz, sabemo-lo hoje, de integrar as críticas anticapitalistas, de inspirar a implosão do socialismo real e conquistar para o seu campo a parte importante dos seus contestatários, através do estímulo à flexibilização e mobilidade dos trabalhadores e de um forte incremento das qualificações académicas e profissionais como condição de emprego e justificação para o desemprego.

A perspectiva de verdadeiras mudanças de estado social ao longo da vida, consoante o talento e capacidade de trabalho de cada um, começou a superar o ideal das carreiras burocraticamente pré-desenhadas até à reforma e da mobilidade social intergeracional. O ideal da segunda fase do capitalismo, do capitalismo monopolista de estado, conforme era conhecido, deixou de ser uma aspiração moderna. A nova forma de organizar a vida, através de um sistema de concorrência entre os trabalhadores, revelou-se produtora de exclusões sociais, não apenas no terceiro mundo mas também nos próprios países do centro.

Entretanto, as fontes de indignação consideradas típicas das sociedades capitalistas têm permanecido estáveis, através das profundas mudanças verificadas. A saber (cf.: 82):

· a produção de sentimentos de desencantamento relativamente a objectos, pessoas, tipos de vida não "autênticos", i. e. incoerentes com os desejos profundos de realização pessoal de cada um;

· as resistências ao exercício das liberdades através de processos opressivos, centrados no controlo do trabalho nas empresas e extensíveis a outros campos sociais;

· a miséria e as desigualdades numa dimensão desconhecida no passado;

· egoísmo e oportunismo recompensados mas destrutores da solidariedade social.

A oposição ao capitalismo, de acordo com os autores, tem hoje, no final dos anos 90, um novo recrudescimento, depois de mais de 20 anos sem dar acordo. Tal oposição tem já uma vertente social activa e evidente em França, e merece e precisa de desenvolver uma expressão artística, estética para atingir maior sucesso e ser mais eficaz. O que não significa, necessariamente, qualquer previsão de substituição do capitalismo por qualquer outro sistema económico-social, já que as provas da capacidade de encaixe e de transformação do capitalismo estão bem documentadas historicamente. Tão bem como a perversidade de estratégias simplistas (unidimensionais, como as políticas de inspiração marxista mais conhecidas) demonstradamente menos capazes de manipular e pilotar a mudança estrutural do que o capitalismo.

A acção social é apoiada nas sensibilidades de compaixão pelos mais pobres e desafortunados. Primeiro lá longe, nos países que pareciam estar em vias de desenvolvimento, desenvolveu-se uma indústria de solidariedade entre povos e de apoio ao desenvolvimento. Depois mais perto, nos guetos urbanos dos países ditos desenvolvidos, ao lado dos condomínios fechados. Fechados por sistemas de segurança cada vez mais pesados e menos eficazes, a nível do conjunto da sociedade, principalmente se comparados com a segurança que se vivia antes do sucesso empresarial das empresas de segurança. Neste quadro de intensificação da rapidez das mudanças incompreendidas, das desigualdades sociais e da insegurança real e subjectiva, derivada tanto da maior consciência dos riscos envolvidos como de uma estética concorrencial de organização da vida em geral, o associativismo temático reivindica e consegue apoios, estatais e das populações. A contestação assim organizada é comparada, pelos autores, às formas de socialismo utópico referidas classicamente por Marx, servindo tal comparação para que, mais um vez, se estabeleça uma demarcação dos autores face ao marxismo — ou não fosse o livro inspirado directamente na obra de um dos seus maiores críticos. Para Boltanski e Chiapello tal tipo de reflexões é útil e até indispensável, mesmo se localizadas em campo de acção que apenas proporciona consequências limitadas para a mudança da estrutura social.

As limitações das acções sociais são variadas. Por exemplo, as que decorrem da legitimação de recolha de fundos, quando as acusações de uso privado de fundos de solidariedade já desestruturaram, nestes últimos trinta anos, todas as boas intenções de redistribuição de recursos pelas populações excluídas do desenvolvimento. Quem se esqueceu da experiência antiburocrática global do Live-Aid, organizado pelo mundo da música? Entusiasmado com as novas condições técnicas de divulgação de mensagens, com vontade de "ensinar" as organizações internacionais de cooperação para o desenvolvimento, nem por isso Bob Geldof, organizador do Live-Aid para África, conseguiu demonstrar aquilo que pensava poder fazer — um tecido social corrompido utilizava todos os recursos para enriquecer, incluindo as ajudas humanitárias. Alguns anos mais tarde, no próprio centro político da Comunidade Europeia, um escândalo de corrupção sobre os recursos de apoio ao desenvolvimento em África esteve na origem da demissão da Comissão Europeia! A solidariedade internacional, entendida no quadro da contestação social, está, por isso, reduzida a acções humanitárias de emergência e a orçamentos extraordinários, enquanto notícias de corrupção nos continuam a chegar dos países do terceiro mundo, lá onde a vida quotidiana dos povos é improvável, explorada, desprezada.

Tais problemas são ultrapassáveis, através de novas conceptualizações a produzir por movimentos sociais de um tipo mais radical que as de âmbito estritamente social, referidas anteriormente: as críticas artísticas e estéticas ao capitalismo e aos poderes que com ele colaboram. Críticas que sejam capazes de interferir directamente na classificação, catalogação, controlo e gestão das redes empresariais e de solidariedade. De acordo com a proposta apresentada por Boltanski e Chiapello, não se trata de opor à lógica organizativa de projectos em rede ou à flexibilização e mobilidade de mão-de-obra, que caracteriza o terceiro espírito do capitalismo actualmente estabelecido, a velha lógica da segurança carreirista e de um mesmo trabalho rotineiro para toda a vida. Trata-se de, pelo contrário, desenvolver formas de utilização da criatividade disponível para barrar as circunstâncias que têm vindo a fazer crescer de forma intolerável a exclusão social, das circunstâncias que são propiciadoras da exploração capitalista.

As inspirações teóricas do trabalho passam pelas teorias da regulação, divulgadas em Portugal por Maria João Rodrigues (ver, por exemplo, Sistema de Emprego em Portugal: Crise e Mutações, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995). O livro em apreço é também, na melhor tradição sociológica, uma reacção às visões economicistas, em aliança com as teorias que, do lado da economia, se mostram sensíveis — neste caso através da análise histórica contemporânea — às determinantes sociais do desenvolvimento da modernidade e, portanto, do capitalismo.

A análise aprofundada, teórica e metodologicamente, dos manuais e livros de referência do management lembra-nos os modos de proceder e de raciocinar de Norbert Elias quando, no seu O Processo Civilizacional (Elias, Norbert, 1939, 1990, O Processo Civilizacional, Lisboa, D. Quixote), analisa os manuais de boas maneiras de séculos longínquos.

O poder é-nos apresentado não como um actor maquiavélico mas em forma de uma plêiade de ideais-tipo de lógicas relacionais — que incluem modos de raciocínio ético próprios — desenvolvidos por Boltanski num trabalho anterior (Boltanski, L. e L. Yhènevot, 1991, De la Justification: Les Économies de la Grandeur, Paris, Gallimard), a que agora é acrescentado mais um, a que os autores chamam a cité des projects. Trata-se de uma lógica de referência adequada ao funcionamento económico em rede, à procura de formas de avaliação de desempenho mais "autênticas" e "flexíveis", num quadro de (i)mobilidade potencial crescente da mão-de-obra, em que a esfera do social é mobilizada (ou desmobilizada) ao nível de cada trabalhador e já não ao nível associativo ou sindical.

O reconhecimento da centralidade do trabalho e do seu valor ético, identitário e social caracteriza este livro, onde se dedicam largas páginas a tratar de problemas de sindicalismo nos últimos trinta anos em França. O capítulo IV, com o título "A desconstrução do mundo do trabalho", e o capítulo V, "O enfraquecimento das defesas do mundo do trabalho", são dois dos sete capítulos que constituem o livro e dos três que formam a sua segunda parte: "As transformações do capitalismo e o desarmamento da crítica".1

A inspiração dos clássicos da sociologia leva-nos a revisitar temas como os movimentos sociais, as classes sociais, a exclusão social, o individualismo e o egoísmo, a exploração, a crítica do romantismo, a vida das classes médias, a igualdade de oportunidades, as formas democráticas e justas de distribuição de prestígio social, o sentido do valor da liberdade na vida social tal qual ela é vivida, a esfera mercantil e também a actualização do valor teórico da anomia durkheimiana. De forma menos evidente e concisa trata de temas fundamentais, como sejam o lugar do social e do económico na vida social moderna e nas formas de expressão teórica dessa mesma vida ou o lugar do espírito (neste caso do capitalismo) na condução da história da modernidade.

De facto, foi a procura de aprender a lidar com o "espírito", enquanto tema sociológico, que me levou até esta obra magnífica. Da primeira leitura fica a sensação de que as respostas neste campo possam ser algo vulneráveis a interpretações funcionalistas, talvez por estarem tão vinculadas a análises ideal-típicas. O que, ao mesmo tempo, mostra como a sociologia tem produzido poucas propostas para abordar este tópico clássico, no último século. Provavelmente por preferir não o levar a sério.

Se o(a) leitor(a) chegou a este ponto, há que lhe lembrar que o objectivo deste texto é o de fixar o meu agradecimento a Luc Boltanski e a Ève Chiapello, pelo trabalho que desenvolveram, pelo prazer da leitura, pela inspiração que produziram em mim e de o(a) convidar vivamente a ficar mais próximo(a) de uma interpretação profunda e cientificamente fundada dos tempos que vivemos. Para o efeito ser mais benéfico, porém, exige algum planeamento. A densidade do texto e o seu volume não se compadecem com tempos cronometrados, leituras em diagonal ou outras estratégias consumistas, próprias do espírito do capitalismo que estamos a viver. Reserve uma suite de hotel para uma semana, guarde bastas horas para leitura única e deixe a sua imaginação voar com os nacos mais inspiradores. Vai ver que sai do hotel diferente do que era quando entrou. Quem sabe, mais contestatário(a)?

 

 

Notas

1    Tradução dos subtítulos da minha responsabilidade (APD).

 

 

*António Pedro Dores é investigador do CIES e professor auxiliar do ISCTE.
E-mail: antonio.dores@iscte.pt

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