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Sociologia, Problemas e Práticas

versión impresa ISSN 0873-6529

Sociologia, Problemas e Práticas  n.34 Oeiras dic. 2000

 

VALOR E DISTRIBUIÇÃO: DA TEORIA À NORMA

Mariano F. Enguita

 

 

Resumo Abordar a problemática da desigualdade ou, mais precisamente, da justiça económica, requer partir de um critério distributivo contra o qual confrontar a distribuição realmente existente. Locke propôs uma teoria ou norma da apropriação original referida à distribuição dos recursos naturais, mas foi incapaz de resolver o problema da justiça intergeracional. Marx formulou uma teoria do valor-trabalho incapaz de explicar porque é que o emprego da própria actividade como trabalho, em vez do seu consumo como ócio, daria direito à apropriação do excedente, enquanto o uso da riqueza como capital, em vez do seu consumo como renda, não. Rawls propõe uma teoria liberal da justiça, o princípio de diferença, a qual admite as desigualdades desde que permitam melhorar a posição do mais desfavorecido. Neste artigo defende-se a pertinência dos três problemas, que concernem, respectivamente, à apropriação dos recursos naturais (e, por extensão, da riqueza herdada) e dos produtos do trabalho, e ao incentivo de contribuições extraordinárias. Mas propõe-se, também, a sua correcção: do primeiro, substituindo a apropriação original pelas dotações iniciais para dar lugar à igualdade entre gerações; do segundo, recorrendo a uma norma do valor trabalho ampliada que inclua a retribuição do capital; do terceiro, enfim, substituindo a sua acepção, sem mais, pela ideia de repartir a diferença, isto é, de reduzir a recompensa pelas contribuições extraordinárias ao incentivo necessário para as mesmas.

Palavras-chave Norma do valor; norma de atribuição; legitimidade; acesso aos bens.

 

 

A economia em particular e a ciência social em geral, têm procurado reiteradamente uma teoria do valor por três motivos básicos: primeiro, para explicar porque é que alguns objectos e acções são bens económicos e outros não; segundo, para discutir a justiça dos critérios de distribuição existentes; terceiro, para encontrar o mecanismo subjacente à visível desordem do sistema de preços.1A mistura destes três problemas, que na realidade requerem três teorias diferentes — e em alguns aspectos distantes —, tem sido a principal causa das dificuldades impostas às diversas tentativas de formulação de uma teoria capaz de os explicar de maneira unitária. O marxismo foi o plano mais ambicioso a este respeito, representando um esforço colossal para introduzir e articular numa única teoria três níveis discretos da realidade reduzindo-os a uma dimensão comum e, por isso mesmo, constitui o melhor exemplo da confusão.

Neste artigo trataremos, inicialmente, de deslindar estes três problemas, do que se ocupa a primeira parte. Seguidamente, na segunda e terceira partes, abordaremos a formulação do que já não poderemos chamar uma teoria do valor, mas sim uma norma de valor (não é isso necessariamente, a norma, o que corresponde aos valores?) ou, dito de outra forma, uma norma de atribuição para dois tipos de bens económicos: os produtos do trabalho ou, de forma mais geral, os factores (terra, trabalho e capital), e os recursos naturais. Depois, na quarta parte, consideraremos o problema dos incentivos à produção, o espaço das normas de atribuição, o qual no nosso entendimento faz parte do âmbito da legitimidade e não da justiça. Por último, na quinta secção, recapitularemos as diferenças entre os três modos legítimos de acesso aos bens: recolecção dos recursos naturais, retribuição pela contribuição dos factores e recompensa pelos contributos extraordinários.

O presente artigo está integrado num projecto mais amplo que analisa a desigualdade, parte da qual tem subjacente o problema da justiça das transacções económicas ou, dito de modo mais expressivo, a exploração. O interesse concreto da questão do "valor" reside em que, sem a resolver ou sem pelo menos mostrar que é solucionável, não é sequer possível traçar a problemática da equidade económica ou da justiça distributiva. Para que o seja, é necessário mostrar que é possível uma norma do valor mediante a qual este se distinga do preço, pois de outro modo não haveria lugar para a igualdade ou equidade, já que toda a transacção voluntária seria, por definição, justa, equitativa, não exploradora. No extremo, bastaria demonstrar a possibilidade de tal norma de valor, sem entrar na sua forma concreta, mas resultaria algo forçado pretender que se admite aquela sem discutir sequer algum exemplo desta. Na abordagem do valor procuraremos, pois, seguir dois objectivos: primeiro, sugerir uma norma de atribuição sensata e justa na sua forma concreta; segundo, mostrar com isto que é possível formular alguma norma, ainda que não tenha que ser necessariamente esta.

Não obstante, a teoria normativa do valor que seguidamente se propõe, não é apenas simplesmente mais uma entre outras possíveis (poder-se-ia atribuir o valor, ou seja, o direito sobre os bens, em função da interpretação dos astros, do resto derivado da divisão da data de nascimento pela estatura, ou em função dos resultados de uma tômbola a mover em cada manhã, por exemplo), como também, e isto é sem dúvida o mais importante, é uma mais entre as razoáveis (entre as várias que pessoas sensatas e informadas estariam dispostas a considerar).2 Certamente que uma mais não quer dizer uma qualquer, pois não teria sentido perder em tal o tempo do leitor e do autor. Quer isto dizer que, uma vez que entendemos que a justiça da distribuição (ou o valor entendido como tal) é um problema normativo, seria absurdo pretender que há uma teoria ou norma perfeita perante todas as demais equivocadas, e é preciso admitir que, ainda que consideremos alguma como a melhor possível — em determinadas circunstâncias —, pode haver, e seguramente haverá, outras quase tão boas ou pelo menos dignas de se ter em conta.

 

Bens, preços e valores

O problema de que coisas ou objectos (num sentido amplo, que compreende não apenas seres mas também acções) são bens ou serviços económicos — o que poderia chamar, algo estrondosamente, o problema da economicidade ou, mais discretamente, da delimitação do âmbito económico — tem sido formulado, frequentemente, como um problema de que coisas ou objectos têm valor económico. A economia soube sempre que há coisas úteis e com valor, das quais se ocupa, e coisas úteis e sem valor (como o ar), com as quais não se preocupa. Enquanto as coisas inúteis e com valor são logicamente impossíveis, as coisas inúteis e sem valor não interessam a ninguém. Por conseguinte, tem existido geralmente um acordo em que tudo o que tem valor é útil (sob o ponto de vista de alguém), mas nem tudo o que é útil tem valor. Para distinguir estes dois tipos de coisas úteis foram propostos, ainda que com variantes, dois critérios fundamentais: o trabalho (Smith, Ricardo e sobretudo Marx) e a escassez (Marshall, Jevons e em especial Walras). Neste aspecto, sem lugar a dúvidas, a razão esteve e está do lado dos neoclássicos.

A diferença consiste em que a teoria do valor-escassez pode dar conta de todos os bens económicos, o que não acontece com a teoria do valor-trabalho. A teoria da escassez inclui todos os casos e variantes imagináveis do ponto de vista da teoria do trabalho, mas esta última não pode dar conta de alguns outros casos e variantes que não são problemáticos para a teoria da escassez. A teoria da escassez pode explicar, por exemplo, porque é que a terra e outros recursos naturais têm em geral valor mesmo quando não se produziu neles qualquer trabalho, ou nas suas margens, enquanto a teoria do trabalho manteve-se sempre enredada com o problema da renda da terra sem o resolver. Em geral, é impossível para a teoria do trabalho dar conta da conversão dos recursos naturais em mercadorias, uma conversão facilmente calculável no quadro da teoria da escassez. Por conseguinte, e ainda supondo que a teoria do trabalho é mais adequada, ou simplesmente adequada, para explicar o carácter económico de um tipo de bens, os produtos artificiais do trabalho, a teoria da escassez tem sempre a seu favor poder dar conta de todo o tipo de bens, tanto dos produtos artificiais do trabalho como dos recursos naturais, resultando assim mais compreensiva e parcimoniosa. Se a teoria do trabalho parece poder dar conta do valor de alguns bens, não só em geral (o seu carácter económico), como também em particular (o preço alto ou baixo), quer dizer, se para alguns bens está ao mesmo nível que a teoria da escassez, é porque é precisamente esta, a carência de determinados bens em relação com as necessidades, que leva as pessoas a dedicar trabalho à sua produção, se é que são reproduzíveis, e tanto mais trabalho quanto maior seja a sua escassez; ou seja, porque a escassez mobiliza o trabalho quando ele é tecnicamente viável. Se a escassez fixa um preço suficientemente elevado e o bem é susceptível de ser produzido, então aquele será produzido (numa economia de mercado). Se o preço representa o que estamos dispostos a pagar em dinheiro ou noutras mercadorias por um bem escasso, o trabalho corresponde ao que estamos dispostos a pagar em esforço.

Os preços pertencem a outra ordem de problemas. Em geral, pode interpretar-se a busca quase compulsiva de uma causa última dos preços, da sua essência oculta, como uma simples tentativa intelectual de escapar ao horror da desagradável desordem dos seus movimentos, ou seja, como um impulso quase neurótico. Este desejo de ordem conduziu a procurar a causa ou a justificação última dos preços pelo lado da oferta, via custos de produção. Porém, pelo menos desde Marshall, é já um lugar-comum da economia — salvo na versão mais inexequível ao desalento da economia marxista — que "o custo de produção só afecta o preço no mesmo grau em que afecta a oferta", quer isto dizer que, para um preço dado, só se produz aquilo cujo custo seja inferior (Samuelson, 1948: 443ss). O preço pode entender-se, num sentido amplo, como a razão do intercâmbio, quer quando se trata de uma troca mercantil (um preço propriamente dito) quer quando tem lugar num outro âmbito de transacção (por exemplo, o doméstico ou o fiscal) ou, se alargarmos o conceito à configuração de facto da distribuição do produto, no termo da produção (quer dizer, a sua apropriação: a retribuição dos factores). O preço (a razão do intercâmbio) pode ter origem num acordo de vontades com um carácter contratual, mesmo se efectivamente responde à vontade inteiramente livre de ambas (as utilidades respectivas), a qual se expressa numa constelação de forças mais amplas que as transcende (a competência, ou a falta dela, contra o fundo de uma distribuição dada de dotações), assim como pode ser imperativamente imposto num contexto hierárquico (o Estado ou o lar, por exemplo). No primeiro caso será um preço acordado, ou um preço competitivo; no segundo, um preço político.

A teoria neoclássica pode dar conta adequadamente dos preços, tanto de longo como de curto prazo. Para isso basta-lhe presumir a escassez e um conjunto de agentes maximizadores que actuam livremente no mercado. O marxismo, em contrapartida, não o pode fazer. Em primeiro lugar, e como é inevitável, porque não pode explicar a partir da teoria do valor-trabalho os preços dos recursos naturais. Em segundo lugar, porque não pode explicar sobre esta base os movimentos dos preços de curto prazo. Marx ainda o tentou recorrendo à figura do trabalho socialmente necessário, diferenciado do trabalho incorporado de Ricardo, mas isso não é mais do que a reintrodução da escassez com outro nome — ainda que soe excessivo —, pois o trabalho investido na produção de uma mercadoria será socialmente mais ou menos necessário… segundo a quantidade de gente que esteja disposta a comprá-la, e a que preço, ou seja, em função da sua escassez. Além disso, os preços tendem a dissociar-se das quantidades de trabalho à medida que se verifica a intervenção mais activa do capital: é o velho problema da composição orgânica do capital e da igualitarização da taxa de lucro dos diversos capitais, outro dos problemas que o marxismo não conseguiu ultrapassar. A isto se acrescentam dificuldades não insolúveis, mas dificuldades ao fim ao cabo, que não existem para a teoria rival, como a heterogeneidade do trabalho ou, se se prefere, a existência do trabalho qualificado (incluindo as capacidades naturais extraordinárias) e, em particular, o trabalho dotado de características excepcionais, por exemplo, o caso das obras artísticas.

O problema da justiça dos critérios de distribuição é de ordem diferente, mas confunde-se com facilidade. O pensamento social considerou sempre — ou quase sempre — que umas transacções são justas e outras injustas, e tratou de determinar onde se encontrava a linha divisória que separava umas das outras: desde Aristóteles, passando por Tomás de Aquino, até à actualidade. Não obstante, este problema só poderia colocar-se com plena força uma vez que, por um lado, a esfera da economia, ou uma parte importante dela, se tivesse separado de outras esferas da vida social, em particular das relações de solidariedade e dominação próprias da hierarquia doméstica e do poder político; e uma vez que, por outro lado, o indivíduo se tivesse destacado da sociedade e dos grupos primários como único sujeito com direitos e obrigações. Estas duas grandes mudanças tiveram lugar, sobretudo, com o desenvolvimento do mercado, do direito e do estado modernos. Na economia de subsistência, onde as relações de produção estavam unidas com as de reprodução à estrutura de parentesco, ou nas diversas formas económicas tributárias, desde os antigos impérios ao feudalismo, em que se situavam as relações políticas e a estrutura militar de dominação, o problema não se colocava, pois carecia de sentido, já que nem a cooperação nem o intercâmbio económicos podiam ser isolados das outras relações sociais para que se pudesse interrogar a sua reciprocidade particular e específica.

A teoria neoclássica dá por postulado que para além do preço não existe outro valor possível, o que equivale a dizer que este corresponde ao preço justo. Não pode haver injustiça ou exploração enquanto haja voluntariedade nas transacções e competência no mercado. Se o valor é, em geral, produto da escassez, então o valor particular de cada bem dependerá da sua escassez particular; e, como a escassez é um conceito relativo, dependerá da sua utilidade individual para os que intervêm no mercado: o preço é, então, o valor mesmo, ou não tem sentido perguntar-se por um valor distinto do preço, deixando-se de lado tal pergunta como um falso problema. No entanto, a própria economia neoclássica sabe que é possível alcançar um conjunto de preços de equilíbrio a partir de qualquer distribuição inicial de dotações, e que estes conjuntos de preços serão diferentes para cada distribuição imaginável. Que a escassez seja o limite que marca o perímetro do económico, ou seja do valor, não quer dizer que confira um valor particular a cada objecto. A escassez dá lugar ao sistema de preços em combinação, e só em combinação, com a distribuição inicial das dotações económicas, enquanto a existência desta rompe a identidade entre o preço e a utilidade.3O preço é o preço, e nada mais. Supõe a utilidade, mas não a expressa, nem absoluta nem relativamente (excepto quando as dotações iniciais forem idênticas, caso em que a expressaria em termos relativos, poder-se-ia dizer que ordenaria as preferências). A teoria neoclássica pode dar conta da economicidade dos bens e da estrutura dos preços, mas nada diz, a partir daí, sobre a justiça dos critérios de distribuição.4

Se o valor em geral é, pelo contrário, como considera Marx, produto do trabalho, e uma vez que este parece ser facilmente mensurável (se nos abstrairmos da sua natureza concreta — trabalho abstracto — e, na prática, também da sua intensidade — trabalho médio — e reintroduzirmos a escassez — trabalho socialmente necessário), então resulta quase espontâneo o salto para a teoria do valor-trabalho como teoria do valor particular de cada bem; ou seja, a utilização do tempo de trabalho como medida do valor. A teoria do valor-trabalho de Marx é, de facto, uma teoria normativa da distribuição que se procura converter numa teoria positiva da economia e dos preços. No entanto, pode-se demonstrar que qualquer bem económico é o produto, num sentido físico-material, de um dado processo natural, ou de determinados meios de produção e de determinado processo de trabalho tomados em conjunto, porém não há maneira de imputar com causalidade o seu valor aos factores em particular, uma vez que uns e outros não são em termos físicos mensuráveis.5 As únicas possibilidades de o fazer são ficções teóricas, como a do marxismo ao expressar os preços em tempo de trabalho, elegendo essa mercadoria particular como numerário, tal como o poderia ter feito com qualquer outra, ou a da produtividade marginal supondo que a retribuição marginal dos factores é a medida da sua produtividade individual. É possível, eventualmente, atribuir à quota de rateio o preço do produto aos preços dos factores, ou a quantidade de trabalho incorporada ao produto às quantidades incorporadas aos factores. Pode-se expressar o preço de qualquer produto, formalmente, em força de trabalho, como o fez Steedman (1977) baseando-se no sistema de excedentes físicos de Sraffa (1960), mas também em qualquer outra mercadoria, incluídos o capital, as matérias primas (Boulding, 1953) e até os amendoins (Bowles e Gintis, 1981), mas isso não significa que essa mercadoria seja a "fonte", e muito menos a "única fonte" do valor.

Cabe argumentar, claro está, que na produção de qualquer mercadoria artificial intervêm certos meios de produção e certa quantidade de trabalho, que os meios de produção foram produzidos por mais meios de produção e mais trabalho, etc., retrocedendo uma e outra vez até encontrarmos apenas o trabalho (à parte alguns incómodos recursos naturais),6 mas isso não nos diz nada, em sentido material, sobre que parte do produto se deve a força de trabalho e que parte provém dos meios de trabalho, nem quais das distintas porções de força de trabalho e de meios de trabalho foram utilizadas em cada etapa, ou seja, em cada processo particular e diferenciado de produção. Um só passo mais, por certo, bastaria para retroceder ainda outra etapa e encontrarmo-nos apenas com a natureza, levantando sobre isso toda uma teoria segundo a qual só a natureza cria riqueza e nem sequer o trabalho dá direito a apropriar-se dela. Este exercício, no entanto, não explica porque se atribui o valor ao trabalho, nem porque se calculam os meios de produção segundo o trabalho — socialmente necessário, etc. — neles incorporado, e não pela expectativa ou pela espera que possa supor utilizá-los como tal, em vez de como meios de consumo.

O problema dos dois tipos de teorias parece ser a dificuldade em deslindar o âmbito normativo do positivo. As teorias da utilidade, como expressão do valor e da retribuição dos factores segundo a sua produtividade marginal, pretendem fazer passar o que é pelo que deve ser. A teoria do valor, trabalho rejeita o seu carácter normativo e pretende estabelecer-se como base em última instância dos limites da economia e do movimento dos preços. No entanto, o trabalho não cria valor mas sim riqueza que tem valor, havendo outra parte da riqueza, que também o tem, que não foi criada pelo trabalho.7 O valor não é criado, mas sim atribuído; poderíamos dizer, parafraseando os neokantianos, que não é senão o que vale. A pergunta sobre o que produz o valor, ou qual é a sua fonte, é uma pergunta própria dum enfoque naturalista da sociedade, que trata de deduzir as leis do processo social das do processo físico. A pergunta que corresponde a um enfoque cultural ou histórico da sociedade é outra: a quem ou a que se atribui o valor, ou qual é a sua norma. Por conseguinte, toda a teoria do valor, pelo menos tal como aqui a entendemos, é necessariamente uma teoria da justiça distributiva. A economia "pura", que se ocupa somente de como são as relações económicas, pode proclamar, como Pareto (1916: 94, § 2110), que a única norma é a satisfação individual e que o seu único juiz é o próprio indivíduo. A sociologia, contudo, não pode prescindir do valor nem, por isso mesmo, descartar o problema da exploração, e ao "espírito subjectivo" da vontade individual tem que contrapor o "espírito objectivo" da norma social.

Deve-se salientar, sobretudo, que não há nem pode haver nenhuma relação de determinação entre valor e preço, uma vez que ambas as magnitudes não são co-mensuráveis. Na realidade, podem imaginar-se como rectas ou planos paralelos, cada um dos quais pode projectar-se sobre o outro, mas que jamais se tocam. O conjunto dos recursos económicos apresenta, ao mesmo tempo, uma soma de preços e um valor total, logo a enésima parte daquela corresponderá à enésima parte deste, etc.8

Resumindo, negamos que o que divide os bens económicos dos demais não seja unicamente a escassez, rejeitamos a ideia de que os valores determinem os preços e excluímos a pertinência de uma teoria "científica" do valor. Mas sublinhamos que para se poder falar de exploração basta adoptar qualquer teoria do valor. Segundo a teoria que se aceite, explorados e exploradores serão indivíduos e colectivos distintos, ou ser-lo-ão em diferentes graus. Certamente que as teorias do valor ou, melhor dizendo, da distribuição, não são iguais, nem nós podemos ser indiferentes ante elas, mas neste trabalho apenas quero salientar que a análise da exploração é compatível com qualquer teoria do valor, ou seja, com qualquer norma de distribuição, ainda que exija, isso sim, sustentar alguma.

Contudo, ainda que não precisemos de nenhuma teoria concreta do valor, não parece um exercício ocioso apurar o que poderiam ser a suas coordenadas gerais. Uma vez que se tratará em todo o caso de uma teoria normativa, isto é, moral, não é de esperar que se proponha como uma questão de facto, nem como uma inferência lógica fundada em postulados inquestionáveis, mas sim como um marco aceitável ou razoável numa sociedade, numa cultura e num momento histórico dados: os nossos. Para que seja mais fácil seguir o argumento, vamos adiantar já as suas linhas gerais: partiremos, na segunda parte, do caso dos produtos do trabalho, aos quais se aplicará a teoria do valor-trabalho, entendida como norma de distribuição, para defender de imediato a sua generalização do trabalho vivo ao trabalho acumulado ou, se preferirmos, do trabalho aos meios de produção; continuaremos depois, na terceira parte, com o caso especial dos recursos naturais, para os quais proporemos, a partir da concepção de uma apropriação original igualitária, a ideia da sua substituição pelos direitos sociais; para finalizar, trataremos, na quarta parte, o problema do incentivo das quotizações extraordinárias mediante uma versão corrigida do princípio de diferença rawlsiano.

 

Uma teoria alargada do "valor-trabalho"

Na economia de subsistência, a família produz tudo ou a maior parte do que consome e consome tudo ou a maior parte do que produz. Estas circunstâncias ditam os termos em que se coloca (ou não se coloca) o problema da distribuição. Por um lado, a distribuição interna à vida familiar segue os critérios das relações de força e de parentesco, provavelmente dando primazia à sobrevivência dos mais fortes, o que é uma forma indirecta de dar prioridade à sobrevivência do grupo sobre os indivíduos; isto não obstante poder compatibilizar-se com situações em que a maior carga de trabalho caia sobre os mais débeis, sobre as mulheres mais do que sobre os homens e sobre os mais velhos mais do que sobre os jovens (Sahlins, 1974: 66-70). Além disso, o problema da distribuição externa dá-se sobretudo centrado no acesso aos recursos naturais. No caso dos caçadores recolectores, o uso extensivo do território converte isto numa questão de relações entre clãs ou grupos plenamente auto-suficientes e, portanto, de mobilidade e, eventualmente, de guerra. No caso dos povos agricultores, com um uso muito mais intensivo da terra, o problema da distribuição desdobra-se: por um lado, no acesso de cada família a uma quantidade suficiente da mesma; por outro, na distribuição das obrigações colectivas. Nos dois sistemas a produção e a distribuição apresentam-se sempre unidas a relações de parentesco ou a relações mais amplas de dependência pessoal.

Nas economias de divisão do trabalho desenvolvida, produção e consumo separam-se e, como tal, trabalho e consumo. O trabalho aparece como uma actividade discernível, espacial, temporal e funcionalmente, de qualquer outra; o produto, que já não se consume in situ nem pelo produtor, apresenta-se também como um conjunto independente de bens separados ou de serviços, nos quais se distingue com clareza quem os presta de quem os recebe. Com a produção cooperativa também se clarificam, em termos técnicos, o trabalho e o seu produto, o trabalhador e os meios de produção. É nestas circunstâncias que necessariamente ocorre entre os participantes o problema da sua participação na produção e na apropriação, e o problema dos limites da troca ou da atribuição. Noutras palavras, o problema da equivalência entre os factores e o produto, na produção, ou entre o que se dá e o que se recebe, na circulação. Por outro lado, uma vez que o aproveitamento dos recursos naturais já não tem lugar através do grupo ou como parte do grupo, acrescenta-se o problema da sua apropriação, originária ou derivada.

Uma parte muito importante da riqueza, os chamados bens reproduzíveis, produz-se mediante o trabalho e só com a mediação do trabalho (ainda que não apenas com o trabalho directo, mas também com recursos naturais e trabalho acumulado). Com a passagem da agricultura à indústria e desta aos serviços, o papel do trabalho na produção torna-se mais visível. De facto, toda a tradição do pensamento liberal e individualista parte do postulado de que a liberdade humana dá ao homem um direito sobre os produtos do seu trabalho. Foi principalmente Locke quem fundamentou a legitimidade da propriedade e da apropriação original da terra no trabalho, afirmando sem equívocos que o trabalho e o produto do trabalho são propriedade do trabalhador (se bem que, sendo o trabalho alienável, os produtos do trabalho alienado pertençam a quem o adquiriu: e daí a justificação do capitalismo).9 Do alto do seu altar, os economistas clássicos procuraram no trabalho a causa última dos preços, uma medida "objectiva" do valor, e pode dizer-se que, implicitamente, uma norma de distribuição. Podia tratar-se do trabalho socialmente necessário para a produção da mercadoria, segundo Marx,10 incorporado de facto, segundo Ricardo,11 ou susceptível de ser adquirido com a sua venda, segundo Smith,12 mas trabalho ao fim e ao cabo. Contudo, a diferença crucial entre Smith, por um lado, e Ricardo e Marx, por outro, é que aquele estava plenamente consciente de que as mercadorias só se trocam a preços correspondentes ao seu valor-trabalho quando não haja apropriação (privada e diferencial) da terra, nem acumulação (privada e desigual) de capital.13

O reconhecimento do trabalho como fonte de valor não implica necessariamente o postulado de que quem trabalha tem direito ao produto do seu trabalho, seja este individual ou cooperativo, mas aproxima-nos dele. Smith, simplesmente, não fez disso problema. Apesar da sua associação com o grupo dos moralistas escoceses, o autor de A Riqueza das Nações mostrou pouco interesse em como deveriam decorrer as coisas na economia e muito em como decorriam de facto. Deu por assente que só o trabalho dava ou acrescentava valor aos objectos, mas também que se dividia entre salários e benefícios, dando lugar ao que se passou a chamar teoria do beneficio como dedução do produto do trabalho. Talvez precisamente porque Smith procurava no valor, directamente, o preço real, em relação ao preço nominal sujeito às variações no valor de troca do dinheiro, viu-se obrigado a abandonar esse beco sem saída. Ricardo herdou o problema, mas formulou-o em termos mais gerais como o problema global da distribuição do produto, o qual diz respeito tanto aos termos quantitativos da distribuição (os preços), como à sua própria natureza qualitativa, ou seja, ao que faz com que nele intervenham não apenas o trabalho, mas também o capital e a terra.14Marx, por sua vez, quis fundir a visão normativa do problema, ou quem deve apropriar-se do produto, com a sua análise positiva, ou qual é a fonte do valor, pergunta que pode considerar-se como o modelo metafísico da relação entre valor e preços, ou da lógica inerente dos preços: em síntese, o socialismo científico.

Em todo caso, para os bens e serviços em cuja produção intervém de forma significativa o trabalho — ou na produção de cujos meios de produção ou materiais de trabalho intervém de forma significativa o trabalho —, tem sentido uma norma de atribuição segundo o contributo do trabalho. Se só o trabalho, como refere Locke, retira os recursos naturais do estado natural, onde simultaneamente pertencem a todos e a ninguém, uma vez que apenas o trabalho lhes confere algo próprio e individualizado, diferentes bens que tenham sido objecto do trabalho de distintas pessoas deverão ser objecto de apropriação por cada uma delas, enquanto os bens que tenham sido objecto de trabalho conjunto deverão ser objecto de apropriação conjunta. Entendida, pois, como teoria normativa, ou simplesmente como norma de atribuição, a teoria do valor-trabalho, neste sentido restritivo, parece uma boa teoria — ou uma boa norma — no que concerne aos bens económicos reproduzíveis.

Há uma série de pormenores que não necessitamos de abordar, porque são inteiramente secundários. A contribuição de trabalho poderia medir-se, por exemplo, em tempo, em quilogramas-força, em calorias, em quanta de matéria-energia…; para todos por igual, ou em função da força física, das condições de saúde, etc. Suponhamos simplesmente que, dada a imperfeição dos nossos instrumentos de medida e dados os altos custos que suporia procurar utilizar outro tipo de informação, nos conformamos com esse primitivo instrumento chamado relógio para medir o trabalho pelo tempo de trabalho, supondo uma intensidade e uma habilidade médias. As variações em intensidade e habilidade para a produção de mercadorias normalizadas serão convenientemente registadas pelo mercado. Suponhamos, pois, que o trabalho é o tempo de trabalho.

Ainda que a natureza seja de todos, o trabalho só pode ser de quem o realiza. A exploração do trabalho, pois, só pode ser uma acção entre pessoas adultas e capazes. Uma criança que se coloca a trabalhar pode ser explorada, mas uma criança que não trabalha nem por isso explora os seus pais. Também ficam excluídos desta possibilidade os adultos não capacitados para trabalhar: a sociedade obriga-se a sustentar as suas vidas, e isso a um nível digno e suficiente, porque a natureza ou o azar foram injustos com eles (incapacitados) ou porque já deram a sua contribuição (idosos). Se os recursos fossem todos provenientes da natureza, como o maná, sem trabalho algum, as crianças e os incapacitados só teriam que abrir a boca e comê-los, tal como os demais, sem com nada contribuir. Uma vez que provêm, em maior ou menor grau, do trabalho, e que a natureza não os dotou — ainda, ou com carácter definitivo — para isso, a sociedade, seja através da família, do estado, de outras instituições intermédias ou de qualquer combinação delas, assume a carga correspondente. Deste ponto de vista são, poderia dizer-se, bens de luxo, e a parte do produto social que lhes é atribuída não pode considerar-se perdida, mas sim consumida, e felizmente (pelo menos moralmente) consumida, pelos que mais contribuem. Isto significa que, em princípio e como tais, os filhos não exploram os pais, assim como os incapacitados não exploram aqueles que estão capazes de trabalhar.

Mencionámos apenas a duração e a intensidade do trabalho, mas devemos acrescentar agora a qualificação, entendendo por tal a qualificação adquirida (ou seja, a qualificação do trabalho — produtivo — por meio do trabalho — aprendizagem). Isto significa negar que alguém possa ter maior ou melhor direito que outros pelas suas qualidades especiais inatas, um ponto que sem dúvida será controverso. Pelo menos, não deveria surpreender, uma vez feita antes a afirmação de que as crianças e os incapazes têm os mesmos direitos, tanto sobre os produtos da natureza como sobre os produtos do trabalho, que os adultos capazes, pois esta nova afirmação é o reverso da anterior: se a sorte no que respeita aos dons pessoais recebidos da natureza não pode diminuir os direitos, tampouco deve poder aumentá-los.

Um libertário (o que agora se chama libertários) gritaria imediatamente: por acaso não somos donos de nós próprios e, portanto, das nossas faculdades naturais e, como tal, de tudo o que elas nos permitam conseguir por meios legítimos?15 O problema essencial é que as nossas capacidades naturais não têm como outorgar-nos os mesmos direitos na natureza e na sociedade, mas esta discussão fica para outro momento e lugar. Em geral, o que designamos qualidades naturais terá muito menos de natural e muito mais de adquirido (por mecanismos mono ou oligopolistas) do que se supõe: por exemplo, a inteligência, a iniciativa, etc. Inclusive as que mais obviamente parecem naturais podem ser em grande medida de origem natural, mas só se convertem em qualidades num contexto social. As qualidades vocais de Caruso ou as qualidades pictóricas de Picasso não lhes teriam servido de muito em estado natural, sem uma cultura que as apreciasse, um mercado que as pagasse e um estado que as protegesse. Não obstante, basta dizer aqui que, por um lado, a maior parte das qualidades naturais não passam de potencialidades sem um adequado cultivo, o que as converte também — pelo menos em parte — em qualificações; por outro que fica em aberto o problema de como conseguir que a sociedade retire proveito destas qualidades excepcionais, mas isto pertence mais ao âmbito dos incentivos do que dos direitos, o que é outra forma de dizer que constitui mais um problema de eficácia do que de justiça.

Mais importante é a questão dos meios de produção. O marxismo, principal defensor da teoria do valor-trabalho, estabeleceu uma diferença marcante entre trabalho vivo e trabalho morto, a que corresponderia a dicotomia entre capital variável e capital constante. É notável a eficácia com que Marx logrou convencer o seu público, num estilo próprio do melhor discípulo de Hegel, de que trabalho e capital eram simultaneamente o mesmo e o oposto — a unidade dos contrários. O capital, por um lado, é trabalho acumulado, cristalizado, objectivado; o trabalho, por outro, não é senão um momento no ciclo do capital, o capital variável. Os adjectivos, nada inocentes, com que Marx os distinguiu encerravam já em si toda uma teoria: trabalho vivo perante trabalho morto: como poderia ter direitos o trabalho morto e como poderia deixar de tê-los o vivo? Capital variável, que cria por si só o valor, todo o novo valor, e capital constante, cujo valor simplesmente é transferido sem aumento nem diminuição do produto. Mas em que se funda a ideia de que o trabalho vivo cria valor? Por um lado no artifício de utilizá-lo como numerário, quer dizer, na ilusão produzida pelo facto de que o valor de qualquer mercadoria pode expressar-se em trabalho, tal como poderia expressar-se em qualquer outra mercadoria, pelo que devemos deixar de lado este motivo. Por outro, no que o trabalho tem de distintivamente humano, ou seja, no que é a contribuição específica do homem para o produto — o resto fornece-o a natureza—, e na relação instrumental que o une ao produto, ou seja, em que se trabalha para produzir e obter esse produto.

Marx pretendia que o trabalho cria efectivamente algo que poderia chamar-se valor, uma espécie de cristalização da relação social, da equivalência profunda de todo o trabalho humano. Aqui demonstrámos que tal pretensão é metafísica e que a teoria do valor-trabalho apenas se pode manter como norma de atribuição do produto segundo o trabalho realizado. Ora, se podemos e devemos atribuir valor (ou seja, uma parte do produto) ao trabalho actuante, porque é que não podemos e devemos atribuir também valor ao trabalho acumulado? Para confrontar esta pergunta de cabeça fria talvez seja útil despejar desta a imagem típica do capitalista de charuto e cartola e substituí-la simplesmente, pela de um trabalhador que converte uma parte do produto de que se apropriou em meios de produção e que os integra no ciclo seguinte: em suma, um pequeno investidor. Assim como o trabalhador renuncia ver passar o seu tempo na inactividade e a consumi-lo como ócio, o pequeno investidor renuncia a guardar o seu produto inactivo e a consumi-lo como um bem final. Os direitos sobre o produto futuro resultam de que os dois contribuem com trabalho, vivo um e objectivado o outro, e podem compatibilizar-se e comparar-se facilmente porque as suas contribuições são plenamente mensuráveis, já que ambas podem medir-se em tempo de trabalho.16

De facto, a pretensão de Marx de que o valor dos meios de produção simplesmente se transfere sem incremento algum para o produto resulta insustentável. Por um lado, porque supõe que quem contribui com trabalho vivo seja explorado quem contribui com trabalho acumulado, o que pode resultar inclusivamente atractivo perante o estereótipo do capitalista de cartola, mas que seria difícil de justificar perante o trabalhador que economiza, o subscritor de um fundo de pensões, o pequeno investidor, etc. Por outro, porque é complicado compreender como é que o valor dos meios de produção não pode deixar de se transferir inalterado para o produto, quando o valor deste supera o valor inicial total do capital, mas deixa de o fazer quando fica abaixo; dito de outro modo, como poderia sofrer decréscimos algo que não pode conhecer incrementos. Paradoxalmente, na realidade económica, tão distinta às vezes das petições de princípio da ortodoxia, o que se mantém por mais tempo inalterado, independentemente da aceitação do produto no mercado, é o salário do trabalhador, a parte fantasmagoricamente variável do capital. Não é preciso dizer-se que esta petição de princípio marxista tem a sua correlação na pretensão simétrica do capital, segundo a qual o valor do trabalho, ou seja, a retribuição que deve obter o trabalhador, não senão o seu salário, sem nenhuma possibilidade de participação nos benefícios… com a diferença de que esta pretensão se apoia além disso na força e se torna, por isso, normalmente efectiva.

Chama a atenção o facto de que, para sustentar os direitos exclusivos do trabalhador sobre o novo valor criado, Marx se viu levado a um raciocínio similar ao que empregara Locke com o objectivo de defender os do seu empregador. A ideia de Marx é que, uma vez que o produto do trabalho convertido em meios de produção, em capital, já não pertence ao trabalhador, não produz valor novo; se fugirmos às formulações metafísicas, que não dá direito nenhum sobre o novo valor, mas apenas sobre um valor igual ao próprio. A ideia de Locke é que, uma vez que o próprio acto do trabalho, convertido em trabalho assalariado, já não pertence ao trabalhador, a participação deste no trabalho não lhe dá direitos sobre o valor novo, mas tão só sobre o equivalente ao seu valor próprio (o seu salário). Em suma, é um debate sobre quem se apropria da diferença, se a há, entre o produto e os factores. E, como repetia com frequência o próprio Marx, entre direitos iguais decide a força.

Salta à vista uma diferença entre o trabalho vivo e o trabalho acumulado: que as desigualdades interindividuais da sua posse são limitadas no caso do primeiro e potencialmente mais amplas, ou mesmo ilimitadas, no do segundo. Outra diferença essencial e pertinente para o nosso objecto, na realidade outra faceta do mesmo, reside no seu distinto grau de separabilidade, alienabilidade, renovabilidade, etc. Tudo isto pode bastar para pôr numa sistemática posição de vantagem quem contribui para a produção com trabalho acumulado, perante os que o fazem com trabalho imediato, mas as vantagens que daqui resultam parecem basear-se mais numa diferença de escala, ou pelo menos têm-na como requisito, o que modifica por inteiro o cenário do problema. Este surge quando o investidor, convertido em capitalista, enfrenta o trabalhador munido de uma massa enorme e imprescindível de meios de produção, que lhe permitem ganhar decisivamente a seu favor os termos da apropriação do produto, mas para alcançar a massa crítica de meios de produção, que suponha uma vantagem decisiva em relação a quem não os possui, há que existir pelo meio algo mais do que a poupança, concretamente, a exploração, a herança ou, o que é mais provável, ambas, e não somente a favor de uma pessoa ou de um número reduzido de pessoas, mas a favor de uma classe social. Uma das grandes insuficiências do marxismo foi, precisamente, criticar o capitalismo em termos (a negação do direito do proprietário dos meios de produção sobre o valor acrescentado do produto) sem dúvida atractivos para uma classe operária despojada como a da revolução industrial, mas inaceitável por completo para a pequena burguesia de todos os tempos, incluindo o pequeno campesinato proprietário, e para uma massa de trabalhadores crescentemente vinculados, ou dispostos a vincular-se, à propriedade dos meios de produção, através de participações nos benefícios, em fundos de pensões ou de investimento, pequenas participações accionistas individuais, etc. Além disso, inaceitáveis, por certo, para o senso comum.

Podemos considerar isto como uma versão alargada da teoria marxista do valor-trabalho, mas parece-me mais adequado apresentá-lo, simplesmente, como uma norma universal de atribuição do produto na proporção ao trabalho realizado, norma que Marx e o marxismo teórico quiseram arbitrariamente limitar ao caso do trabalho vivo e que o capitalismo prático limitou de facto, com não menos arbitrariedade, mas com muito maior efectividade, ao caso do trabalho acumulado. O quadro 1 sintetiza as diferenças entre a teoria do valor de Marx e a norma de valor aqui sugerida.

 

Quadro 1    Trabalho e meios de produção

 

Da apropriação original à dotação inicial

Porém, outra parte importante da riqueza são os recursos naturais que não requerem trabalho, ou apenas o requerem em quantidades insignificantes.17 Em tais circunstâncias é irrelevante o trabalho, e pode resultar mais aceitável uma teoria da justiça distributiva que considere sujeitos com direitos iguais todos os seres humanos, todos os adultos, todas as famílias, etc. Antes da industrialização, na economia natural ou predominantemente natural, as normas de distribuição situavam-se normalmente mais perto desta segunda variante: assim, por exemplo, a redistribuição periódica da terra em diversas culturas agrárias, os direitos medievais partilhados sobre a mesma, e inclusive as revoltas tardias do campesinato pela sua redistribuição; é só a partir da revolução industrial, quando a riqueza parece manifestamente derivar da actividade humana que domina a natureza, da intervenção do trabalho e dos meios de produção produzidos — ou seja, do capital em sentido clássico —, que as teorias da distribuição giram de modo prioritário em torno do trabalho e as normas efectivas em torno do capital. Por mais que o desenvolvimento sucessivo da agricultura, da indústria e dos serviços tenha feito aumentar o peso relativo do trabalho vivo e do trabalho acumulado, não deixa de ser certo que continuamos a utilizar recursos naturais. O reconhecimento da natureza como fonte de valor implica que cada qual tem o direito de se apropriar do que necessite e deseje dela, sem outro limite além dos direitos dos demais, sendo a forma mais óbvia de aplicar este princípio o reconhecer a cada qual o direito a uma parte igual dos recursos naturais. Pode dizer-se que a distribuição per capita dos recursos naturais é a que se enquadra melhor numa economia de subsistência, enquanto a distribuição pro labore dos produtos do trabalho se faz numa economia de produção para a troca.

O direito aos recursos naturais pode regular-se de diversas formas: como um direito do primeiro ocupante sem qualquer limite, como um direito à apropriação dos recursos naturais com o limite do próprio trabalho e/ou das próprias necessidades, ou como um direito limitado pelos direitos iguais dos outros. Se excluirmos a primeira possibilidade, a segunda e a terceira poderiam expressar-se melhor como apropriação proporcional (segundo o trabalho ou as necessidades) e apropriação per capita, em partes iguais pelo mero facto de existir. Das duas opções parece mais razoável a apropriação igualitária, per capita, por vários motivos. Em primeiro lugar, se se trata da apropriação dos recursos naturais como tal, isto é, sem a sua transformação pelo trabalho, torna-se difícil justificar a pertinência deste. Em segundo, aos recursos naturais ajustam-se melhor os direitos naturais, ou seja, os direitos ontologicamente anteriores ao trabalho. Em terceiro, a apropriação per capita não exclui os incapacitados para trabalhar, que se distinguem dos demais homens por essa incapacidade mas são iguais a eles na sua condição humana. Em quarto, a apropriação per capita é necessariamente mais igualitária nos seus resultados do que qualquer forma de apropriação proporcional. Em quinto, por essa razão é mais conforme com a tradição liberal sobre a apropriação original.

A primeira forma de apropriação da natureza foi a apropriação em comunidade, quer fosse para o uso igualmente comunitário, como no caso da caça e da recolecção, quer para o uso individual respeitando o acesso e as necessidades dos outros membros do grupo, como no caso do aproveitamento das terras comunais para o pastoreio, a recolha de madeira, etc. Uma vez que a agricultura elevou espectacularmente a produtividade da terra, o que significa que alterou radicalmente o peso relativo entre o processo da natureza e o trabalho do homem para o lado deste, o problema tinha que se colocar necessariamente em termos de apropriação particular. Uma solução possível era, e foi, a apropriação por parte dos grupos familiares, contudo com o retorno da terra à comunidade ao perecer ou ao dissolver-se a família, como era o caso do mir russo, da comunidade camponesa em algumas formas de despotismo oriental, ou em algumas culturas agrícolas africanas. Outra, a apropriação definitiva pelas famílias, incluindo a transmissão intergeracional através da herança, com a concentração do poder de distribuição na figura do patriarca ou chefe de família, e com o seu correlato de obrigações mútuas entre os membros da família e regulação da sucessão. Finalmente, a apropriação estritamente individual, livre ou substancialmente livre dos limites directos impostos pelos vínculos familiares, a qual se distingue da anterior, sobretudo, pela alienabilidade plena da propriedade em contraposição às limitações e obrigações sucessórias.18

Mas, uma vez que se passa da apropriação em comunidade (com usufruto em comum ou individual) à apropriação particular, seja por famílias ou pessoas, coloca-se o problema da justiça da mesma, isto é, o problema dos direitos individuais sobre os recursos naturais. Se se admite, como geralmente se admite, que as transacções em recursos naturais são livres, e nada haverá que lhes objectar, se estão isentas de exploração, o problema reduz-se então à apropriação primeira ou original dos recursos naturais que ninguém possui, res nullius. Independentemente dos sujeitos da apropriação serem as pessoas, as famílias ou outros particulares, a afirmação deste direito ao que ninguém possui está acompanhada do que se chama a cláusula lockeana. Segundo Locke (1690: § 32), todo o homem pode apropriar-se livremente da terra desde que reste tanta e tão boa para os demais.19Mas a questão é a quem e quando se aplica a cláusula.

Em primeiro lugar, deixaremos de lado a mencionada teoria para nos debruçarmos apenas sobre a mencionada cláusula de Locke. Para o pensador liberal eram três os limites da apropriação original: a mencionada cláusula, o que um homem pode trabalhar, e as suas necessidades.20 Como argumentou de forma muito convincente Macpherson (1962), a sua obra mais do que a defesa destes limites é uma colecção de silogismos que conduzem à melhor forma de os esquecer, pelo que aqui podemos ser mais expeditos. De facto, não há razão alguma para que o trabalho e as necessidades sejam limites da apropriação original. Se a natureza fosse o maná, ou na medida em que é o maná (em que pode consumir-se sem trabalho), e se fosse superabundante, tornar-se-ia difícil justificar porque é que a sua apropriação deveria estar sujeita a esses limites. O limite razoável não são as próprias necessidades, mas sim as necessidades dos outros — e, uma vez que não há maneira consensual de medir as diversas necessidades subjectivas, o limite são simplesmente os demais, o qual conduz à partilha igualitária. Quanto ao trabalho, porque não poderia cada qual decidir com a sua própria parcela se se conforma com os frutos que possa extrair dela mediante a caça-recolecção, se recorre ao trabalho agrícola ou se se lança numa empresa industrial?

O fundamental, o que converte a natureza num bem económico, não livre, é a escassez, e é quando há escassez que tem sentido a cláusula lockeana. Mas quando e para quem? Locke parte do pressuposto da existência de bens livres, situação que pode presumir-se nas origens de qualquer sociedade (já que sem sociedade não há direito), não importa o momento no tempo, ou nos processos de conquista e colonização. Locke encontrou-se assim com a feliz circunstância de que, embora as terras inglesas e europeias fossem já no seu tempo escassas e desigualmente repartidas, podiam encontrar-se de novo com abundância nas colónias (ignorando, por hipótese, a apropriação original e as transacções legítimas entre os seus anteriores habitantes).21 Ainda assim, e salvo se Locke imaginasse a humanidade a conquistar outros planetas, o problema só se colocaria quando da total apropriação das colónias, tornando-se difícil saber como participarão na apropriação original das metrópoles as gerações intermédias entre os primeiros a chegar e os descobridores das futuras colónias. Noutras palavras, mais tarde ou mais cedo há-de colocar-se o problema de saber se a cláusula lockeana se aplica somente num momento dado, cada vez que haja terras disponíveis por causas exógenas, ou ao longo das gerações e para todas elas.

Tanto no primeiro caso como no segundo, os que chegam tarde já não podem participar na apropriação dos recursos naturais, mas então não se percebe porque deveriam respeitar o que teve lugar sem contar com eles. Este dilema tem apenas duas saídas: uma é considerar que os sujeitos da apropriação original não são os indivíduos mas as estirpes que aqueles representam; outra proceder a uma redistribuição, a uma nova apropriação original, tantas vezes quantas seja necessário, por ter mudado o censo sobre os que têm direito de participar nela. No primeiro caso, os indivíduos que participam na apropriação original, ou melhor as famílias que eles representam, são sucedidos pelas gerações posteriores, com os consequentes e inevitáveis resultados de concentração ou dispersão da propriedade através da descendência múltipla, ou das alianças matrimoniais, somadas às transacções voluntárias inter vivos. Ao fim de algumas gerações haverá indivíduos ou famílias que se tenham desfeito ou que se tenham visto privados de recursos naturais, mas, uma vez que ninguém nasce spontex, tudo o que se pode exigir é que as formas de aquisição sejam legítimas. No segundo caso, perante o pressuposto de que os titulares do direito à apropriação original são as pessoas de qualquer geração (ou também, mutatis mutandis, se postulássemos que se trata de propriedades familiares de qualquer geração), haverá que proceder a uma redistribuição, ou a uma nova apropriação, cada vez que o censo aumente ou diminua, pelo menos de forma apreciável; ou, se os recursos apropriados se transmitirem por herança individual ou familiar de uma geração para a outra, cada vez que uma nova fornada de indivíduos proceda não proporcionalmente da anterior, ou seja, cada vez que a propriedade procedente de determinadas famílias se dilua por via da sua mais rápida proliferação, enquanto a de outros se concentre pelos motivos opostos.

A forma mais parcimoniosa de desenvolver este processo é, naturalmente, dotar cada novo indivíduo ou família da sua parte alíquota de recursos naturais. Inclusivamente, se se fizesse isto simplesmente com o que vão deixando livres os que abandonam a sociedade, as desigualdades intergeracionais produzidas pelas transformações na densidade demográfica tenderiam a manifestar-se de forma suave e gradual, autocorrigindo-se e voltando a aparecer num processo inesgotável. Mas, por sorte, essa magnífica invenção que é o dinheiro permite um mecanismo ainda mais flexível: dotar cada novo membro da sociedade de bens e recursos num montante equivalente — de valor igual — ao dos recursos naturais de que, caso se produzisse nesse momento a apropriação original, teria direito a apropriar-se. Ao mesmo tempo, evita-se assim ter que enfrentar uma e outra vez problemas, como a talvez imperfeita divisibilidade dos recursos naturais, ou como as preferências diversas dos participantes (as quais podem passar por não conservar a sua parte dos recursos naturais trocando-os por produtos do trabalho de valor igual), assim como as prováveis disfunções de poder repartir só o que vai ficando livre, ou as seguras fricções de ter que redistribuir tudo constantemente.

Numa sociedade onde a natureza é já um recurso escasso, e em que uma boa parte da humanidade vive relativamente afastada dela e não tem necessariamente interesse em desfrutá-la na sua forma original, parece que o mais razoável é considerar o direito à parte alíquota dos direitos naturais como um direito sobre a parte alíquota do seu valor. Assim, a apropriação original dá lugar a uma dotação inicial para todos os novos membros da sociedade. Poderíamos dizer também que um direito natural (um direito sobre a natureza) é substituído por um direito social (um direito sobre a sociedade) equivalente e com o mesmo fundamento, ainda que exigível e outorgável através de um mecanismo distinto. Pois bem: porque não admitir que isto é precisamente a cidadania social, o conjunto dos chamados direitos sociais que a sociedade garante a todos os seus membros em quaisquer circunstâncias: educação obrigatória, assistência sanitária mínima, etc., assim como também os bens públicos? A questão, então, seria simplesmente de quantia e, ainda que não por este motivo, seria sem dúvida uma questão menor.

Qualquer norma de distribuição que se baseie na igualdade de direitos entre os homens terá o alcance correspondente ao que tenha este conceito ou, mais exactamente, a quem forem consideradas as pessoas com iguais direitos. Desde a paideia ou a romanitas até à Declaração Universal dos Direitos do Homem, todas as invocações universalistas em torno dos direitos do homem estiveram limitadas por visões androcêntricas e etnocêntricas da humanidade, as quais incluíam uma parte da mesma e excluíam a outra, o que não conseguiu impedir que esta última se valesse desse mesmo discurso contra a sua exclusão. Por outro lado, nenhum direito pode estar acima do poder disposto a defendê-lo, de maneira que, na actual configuração política das sociedades, e tanto na forma de apropriação original como sob a figura dos direitos sociais, os direitos individuais sobre os recursos naturais não têm nem poderiam ter outra realidade senão a que possam alcançar no âmbito de cada sociedade nacional.

 

Quadro 2    Apropriação original e dotação inicial

 

Finalmente, os recursos naturais, tal como os produtos do trabalho, poderiam consumir-se como bens e serviços de consumo, deixar-se permanecer inactivos ou utilizar-se como factores de produção. Se a opção fosse esta última, e estabelecido algum tipo de equivalência com os produtos do trabalho (pelo jogo do mercado, por uma decisão burocrática, por um referendo ou por qualquer outro sistema), a sua contribuição para o produto novo daria aos seus proprietários um direito sobre este: a renda da terra. Uma vez mais, como nos contos infantis, surge uma figura pouco querida, essa cujo espancamento é sempre seguido de aplausos: o terratenente, com um curriculum vitae pouco recomendável, na perspectiva da igualdade e da justiça; mas o que lhe outorga o seu pior perfil não é ter posto a sua parte alíquota dos recursos naturais a produzir — o que talvez seja a única coisa positiva que se possa esperar dele —, mas sim o facto de possuir muito mais do que a sua parte alíquota, devido a mecanismos que não poderiam reduzir-se às suas propensões pessoais para o trabalho ou para a poupança, mas sim, quase que com total segurança, a um passado familiar iniciado com a rapina e prolongado através da exploração e da herança.

Passaríamos, assim, de uma distribuição pro labore dos produtos do trabalho a uma distribuição pro rata dos produtos da cooperação, às quais todavia devemos acrescentar a observação de que ambas correspondem ao estádio da produção para a troca, embora a primeira o faça no subestádio da produção independente e a segunda no da produção cooperativa. Neste sentido, poderia ver-se a teoria do valor-trabalho, na versão de Marx e, sobretudo, na de outros socialistas como Hodgskin (1825) e Thompson (1825), que pretendiam explicitamente que o trabalhador se apropriasse da totalidade do produto, como um resíduo dos valores artesanais, do modo de produção mercantil, projectado sobre a época industrial, sobre o modo de produção capitalista. Marx, ainda que sustentando que só o trabalho vivo criava valor, rejeitou de forma explícita esta pretensão, mas não a favor dos proprietários dos demais factores e sim da sociedade em geral.22

Como estabelecer a equivalência entre os recursos naturais e os produtos do trabalho? O problema não se colocaria se os recursos naturais fossem os únicos factores de produção, ou os esmagadoramente predominantes, como acontecia nas sociedades agrárias, pois a questão seria sempre dotar os indivíduos (pessoas ou famílias) de bastantes recursos, de factores suficientes, não do seu valor equivalente (a isto responde a redistribuição periódica da terra em algumas sociedades agrárias). Uma vez que os recursos naturais são só uma parte, e decrescente, tanto da riqueza social total como dos factores de produção em particular, não há razão alguma, como já indicámos, para que não sejam substituídos pelo seu valor equivalente, com o consequente ganho em flexibilidade. A questão, então, é a de saber qual é o valor dos recursos naturais, a que quantidade absoluta ou relativa da riqueza social total equivale a parte alíquota dos recursos naturais. Uma solução, certamente, é dada pelo mercado: o preço da terra, mas sabemos que está viciada de antemão pela distribuição inicial das dotações.23 A solução alternativa é estabelecer um preço político que poderia calcular-se em qualquer momento tendo em conta a sua escassez, o seu preço de mercado, as perspectivas de crescimento demográfico e/ou qualquer outro elemento que se pudesse considerar oportuno.

Ora bem: se existe fundamento para estabelecer um preço político para a parte per capita dos recursos naturais, porque não estabelecer directamente o valor da cidadania? Pois isto é, precisamente, o que a sociedade faz quando concorda que, pelo mero facto de nascer e viver, os seus membros têm certos direitos sociais efectivos: certo período de escolarização, certo nível de assistência sanitária não contributiva, uma espécie de seguro não contributivo contra o desemprego ou incapacidade (os subsídios e pensões não contributivos), algum grau de protecção policial e jurídica, etc. Pode ser que, como Jourdain, fale em prosa sem o saber — ou, simplesmente, sem designá-lo como tal —, mas o que faz a sociedade através da cidadania é garantir a todos, pelo simples facto natural de terem nascido, um certo grau de acesso à riqueza. Certamente um grau muito baixo, bastante inferior ao que seria a sua parte alíquota na riqueza, inclusivamente do que seria uma participação típica nos níveis inferiores da sua distribuição através do trabalho, mas também, sem dúvida, superior ao que, num mundo de recursos naturais limitados, densidade demográfica crescente e produtividade agrária muito inferior à da indústria e mesmo à dos serviços, obteriam do aproveitamento individual e directo da sua parte alíquota da terra, sem a cooperação social e sem as infra-estruturas e as tecnologias que a cooperação da sua geração e das precedentes criaram, ou seja, numa economia de subsistência. Isto não significa que o montante em valor dos direitos sociais que uma sociedade concreta reconhece, seja ou deixe de ser insuficiente, por certo, mas apenas que não necessitamos de outra partilha distinta dessa para deixar espaço ao direito, aqui reconhecido aos indivíduos, a recolherem a sua parte dos recursos da natureza, independentemente da opinião que se tenha sobre qual é ou sobre qual deveria ser a sua quantia.

Permita-se-me, de passagem, uma observação: o direito natural à parte alíquota da natureza, ou ao seu valor equivalente, seria o único fundamento possível, em termos de direitos, para um rendimento universal incondicional, ou seja, para um rendimento oferecido a todos sem nenhuma contrapartida contributiva e sem outra condição para além da cidadania. Este é, por certo, o mesmo fundamento que lhe atribuiu Thomas Paine,24 com a independência das fórmulas que propus para o realizar.25Seria a consequência do reconhecimento do direito a afastar-se da sociedade, mas sem a fazer incorrer em custos extraordinários. O indivíduo tem direito a afastar-se da sociedade com a sua parcela de terra, mas, uma vez que para a sociedade seria demasiado complexo e custoso que tal acontecesse, oferece-lhe a opção única de receber o equivalente ao que obteria da sua parcela sem a mediação da sociedade, ou seja, em regime de economia de subsistência. O indivíduo não pode dizer que a sociedade lhe nega o que é seu, porque tem o que teria tido sem a sociedade. Esta, por seu lado, não vê drenados os seus recursos naturais e a sua capacidade produtiva, como veria se mais ou menos indivíduos, ao retirarem-se com as suas parcelas, possam obter um baixo rendimento dos recursos naturais com uma organização do trabalho e uma tecnologia de subsistência, impedindo-a de obter um rendimento maior com uma organização e uma tecnologia fruto da cooperação. Como se vê, um rendimento universal deste tipo não promete muito a ninguém, contudo a sociedade tem direito a pensar que, em relação a ela, há que estar nos bons e maus momentos.26

Por outro lado, parece razoável que o indivíduo tenha direito a retirar-se com a sua parcela, mas não com a mesa posta para toda a vida, seja em termos reais ou equivalentes. Excepto no tão fantasiado como inexistente paraíso perdido, não se tem notícia de que a apropriação da natureza alguma vez tenha permitido ao homem prescindir do trabalho. Creio, pois, que o que pode corresponder hoje à apropriação original da natureza é o acesso aos factores, mais do que um fluxo constante de rendimentos sem nenhuma contrapartida (a renda incondicional). Este último corresponderia, certamente, ao imaginário paraíso em que os frutos, tão saborosos, já então como depois de vários milénios de agricultura, poderiam ser colhidos das árvores apenas com o esticar de uma mão. A apropriação real da natureza corresponde melhor à dotação inicial ou ao acesso permanente aos recursos, ou seja, à possibilidade de os fazer produzir com o trabalho. Em consequência, a sua forma factível e justificável hoje seria uma dotação inicial e/ou uma oportunidade garantida de emprego de baixa intensidade e baixa remuneração.

 

Incentivos e desigualdade

Com a vida e o trabalho esgotam-se as normas morais de atribuição de valor, ou seja, de justiça distributiva. Aquilo a que nos dá direito o mero facto de viver depende simplesmente da natureza, que podemos considerar limitada de momento pelo planeta, e pela quantidade de outras pessoas titulares do mesmo direito, ou seja, pela população do planeta. Aquilo a que nos dá direito o trabalho (directo ou acumulado) depende do produto total do mesmo e da nossa participação individual nele. No entanto, é óbvio que o problema da distribuição não termina aí. Se compararmos a distribuição real com qualquer ideia que tenhamos do que poderia resultar da apropriação igualitária dos recursos naturais e da apropriação equitativa dos resultados da produção, qualquer que seja a variante de cada uma destas que adoptemos, é provável que ainda difiram de forma substancial. Isto pode significar que a distribuição real é injusta ou, simplesmente, que não depende só de critérios de justiça mas sem que isso implique necessariamente que é injusta. Pode suceder, sem ir mais longe, que existam bons motivos para tolerar e até para favorecer certo grau de injustiça, socialmente consensual e, portanto, legítimo. O justo é o justo, mas não necessariamente o melhor.

Em outro local demonstrei que o resultado (relativo) obtido por um indivíduo num processo cooperativo pode expressar-se mediante a seguinte fórmula:

ρ = πτg = πτiτx

onde ρ corresponde à taxa individual de rendimento (o quociente entre aquilo com que inicialmente contribui para à produção cooperativa e o que finalmente a recebe do resultado comum), π à produtividade do processo (o quociente entre o valor do produto e o valor dos factores), τi à taxa de exploração interna (o quociente entre a sua parte no total dos factores e a sua parte no resultado da organização no processo de circulação, ou seja, no intercâmbio com o envolvente — por exemplo, no preço obtido pela sua produção), τx à taxa de exploração externa (o quociente entre o resultado da organização na circulação e o produto do processo de produção) e τg à taxa de exploração global (o produto das taxas de exploração interna e externa: se se prefere uma terminologia mais moderada ou asséptica estas taxas poderiam designar-se também "de intercâmbio").27 Os indivíduos firme ou obsessivamente defensores de princípios podem procurar sobretudo que as diversas τ se mantenham iguais à unidade, ou seja, que não haja exploração, mas o mais provável é que procurem simplesmente maximizar (, ainda que isso passe por aceitar uma diminuição de τ, e particularmente que aceitem aumentar ρ através de aumentos de π e/ou de τx obtidos à custa de diminuições proporcionalmente menos intensas de τi.

Uma vez que ainda não desenvolvemos, nem é o momento de desenvolver, o modelo formal da exploração a que se alude, trataremos de o esclarecer com um exemplo. Suponha-se, simplesmente, um trabalhador numa empresa. Os seus resultados podem expressar-se sob a forma de uma taxa de rendimento, no sentido antes explicado, para evitar que dependam da sua propensão para o trabalho ou para o ócio, isto é, de forma a que possam ser comparáveis para todos os trabalhadores. Estes resultados dependem, por um lado, da sua posição relativa na empresa, que se resume na sua taxa de exploração interna; por outro, da produtividade da empresa, que expressa a sua capacidade de converter eficazmente os factores em produto; finalmente, da posição da empresa no mercado, ou seja, da suas possibilidades de vender bem o produto, o que designamos por taxa de exploração externa. O trabalhador preferirá, naturalmente, uma taxa de exploração interna que lhe seja desfavorável mas resulte sobrecompensada pela produtividade, e/ou a taxa de exploração externa a uma taxa de exploração interna que lhe seja favorável mas não resulte compensatória ou só resulte subcompensada por estas, pois o que conta, no final, é saber que salário obtém por determinado trabalho. É lógico que preferiria que tudo lhe fosse favorável — o que equivale a dizer que provavelmente preferiria ser o proprietário ou o chefe de uma empresa rentável —, mas, se há que escolher entre diversas combinações, o que conta é o resultado final, e este resultado bem pode garantir, do seu ponto de vista, combinações que reúnam a injustiça de que é alvo por parte de outros participantes (exploração interna) com a injustiça perante o público (exploração externa) e a eficácia (produtividade). Aceitará e considerará legítimo, por exemplo, que o seu salário seja comparativamente inferior ao do director de produção ou ao do director comercial, se acreditar que, com isso, aumentam a produtividade e os resultados no mercado e que isso implica, em balanço, um maior salário do que aquele que obteria no quadro de uma partilha equitativa mas menos capaz de promover a produtividade física e os lucros comerciais.

O problema é que este exemplo ilustra as condições em que os indivíduos podem aceitar racionalmente, do ponto de vista dos seus próprios interesses, a injustiça, porém não é susceptível de agregação. Efectivamente, podemos supor que, a médio e longo prazo, a produtividade das organizações se iguala, o que significa que a taxa de produtividade ponderada para todos os participantes de todas as empresas é necessariamente a unidade; por outro lado, as taxas de exploração externa compensam-se, pois o que ganha o vendedor corresponde à perda do comprador, e vice-versa, de modo que a taxa de exploração agregada e ponderada é também igual à unidade. A questão, então, é que o raciocínio válido à escala de cada unidade produtiva não o é à escala da sociedade global. De facto, este problema teria sido detectado anteriormente se, em vez de considerar a exploração ou a justiça distributiva na produção, as tivéssemos considerado na circulação: porque é que a sociedade aceita um procedimento de circulação em que sistematicamente são possíveis transacções injustas, ainda que sejam transacções livres? Ou, considerando o nosso contexto histórico e social: porque é que a sociedade aceita o mercado? Uma possível resposta, certamente, é que ele se impõe pela força, e não é uma resposta desprovida de fundamento — como o demonstra a diligência com que se utilizou sempre a diplomacia dos canhões para abrir caminho ao comércio livre, ou a feroz defesa do mercado pelas classes proprietárias —.28 No entanto, tudo parece indicar que o mercado, pelo menos na nossa sociedade — e, de forma lata, em qualquer contexto —, se baseia muito mais no consenso do que na força. Em todo o caso, podemos iludir este problema de segunda ordem colocando a pergunta de outro modo: em que se baseia o consenso em torno do mercado, um mecanismo de circulação no qual, aparentemente, a maioria dos agentes perde?

A chave da solução é que, se nos estamos a interrogar tomando por referência o conjunto da sociedade, a resposta não pode ser dada em termos de participações comparadas. Quando nos questionávamos sobre em que condições poderia aceitar-se a exploração num processo de produção cooperativa (exploração interna) tivemos que procurar a resposta no contexto externo deste processo (exploração externa) ou no conteúdo substantivo das participações (produtividade), as duas variáveis que afectam a dimensão global do produto. Quando nos interrogamos sobre a sociedade global, desaparece a possibilidade de nos remetermos para o contexto e só nos fica a possibilidade de o fazer por referência ao conteúdo material.29 Cingindo-nos ao nosso exemplo, isto significa que a resposta não pode ser dada em termos de valor (ou, para dizê-lo de modo clássico, de valor de troca), mas sim em termos de bem-estar material (ou seja, nas duas variantes da terminologia clássica: de valor de uso ou de utilidade). Por outras palavras, os indivíduos aceitariam o mercado, ainda supondo que todos suporiam que a maioria perde valor nele, porque ganham ou acreditam ganhar na satisfação das suas necessidades.

Este tipo de abertura à desigualdade corresponde ao segundo princípio rawlsiano: "as desigualdades sociais e económicas, por exemplo as desigualdades de riqueza e autoridade, só são justas na medida em que produzem benefícios compensadores para todos e, sobretudo, para os membros menos favorecidos da sociedade. " (Rawls, 1971: 32). No entanto, a satisfação deste princípio não é suficiente para que deixe de haver exploração — sendo mais exactos: não tem nenhuma relevância para o efeito, pelo menos num sentido estrito. Rawls não é muito explícito sobre o que possam ser esses benefícios compensadores, mas podemos imaginar três interpretações, consoante pensemos em benefícios compensadores para os membros menos favorecidos da relação concreta, do tipo de relação ou do conjunto de relações onde se insere essa relação. Por outras palavras, consoante o princípio de diferença se verifique, no caso, na instituição ou na estrutura.

A primeira interpretação, que os benefícios compensadores devem ser para aqueles que participam em cada relação concreta, pode entender-se, simultaneamente, de duas maneiras: que os resultados superem certo limiar absoluto — por exemplo, o de um rendimento igual ou superior à unidade, ou qualquer outro — ou que sejam melhores do que os das outras opções em presença. Na segunda variante estaríamos simplesmente perante o requisito da voluntariedade das relações económicas, supondo que os agentes que nelas intervêm têm um nível mínimo de informação. Efectivamente, o assalariado assalaria-se, o vendedor vende, o comprador compra, etc., porque, no pior dos casos, acredita que com isso vai estar algo melhor do que se não o fizesse — e não há motivo para duvidar do acerto desta suposição —, e fazem-no na melhor das opções ao seu alcance. Qualquer relação voluntária é estabelecida porque ambas as partes acreditam melhorar com ela, mas isto reduziria o princípio rawlsiano da diferença à simples pretensão, tão cara à economia neoclássica, de que, se a relação é voluntária, ou se beneficia ambas as partes em circunstâncias dadas (o que é exactamente o mesmo, pressupondo a racionalidade instrumental dos actores), então é inquestionável. O que Nozick (1974: 163), com o seu brilhante cinismo, chama "actos capitalistas entre adultos que consentem". Contudo, para esta viajem não havia falta de alforges. Se nos podemos interrogar sobre a existência da exploração, como relação distinta e independente da opressão, é porque partimos do facto de que pode ser parte integrante de uma relação voluntária entre indivíduos livres; de facto, partimos de que, numa sociedade aberta, em geral o é, não no sentido de que os agentes desejem ser explorados, o que seria um absurdo lógico, mas sim no sentido de que se embarca voluntariamente em relações de exploração porque, normalmente, o resultado obtido é, apesar disso, melhor do que aquele que se obteria abstendo-se de o fazer; ou ainda, o que seria outro caso mas provavelmente minoritário, porque não se sabe que é assim, ignorância que só poderia estar na base da sua aceitação, partindo do princípio que, não sendo por ela, poderiam eleger ou obter outro tipo de relações, ou nenhuma, sem diminuição do seu bem-estar.

Na primeira variante, a legitimidade da relação seria dada pelo resultado obtido pelo indivíduo em cada caso, o que quer dizer que existiria em alguns casos e noutros não, ainda que tratando-se da mesma relação, ou, o que é o mesmo, que a aceitabilidade da relação seria contemplada de um modo puramente instrumental: bem está o que bem acaba, mas nada mais, ou cada um conta a festa da forma que a sentiu, etc. Contudo, isso não é o que designamos por legitimidade, pois esta — tal como a justiça — há-de ser uma qualidade procedimental, não substantiva. Não cabe pensar, no nosso exemplo, que o mercado ou a compra e venda de força de trabalho sejam legítimos ou ilegítimos segundo o preço. Em suma, o critério casuístico é demasiado estreito e, por essência, não pode servir de base nem para uma norma moral nem de convivência.

Na terceira interpretação, estaríamos perante uma espécie de justificação da desigualdade pelo desenvolvimento geral, mas o problema subjacente a esta formulação é o de estabelecer relações de causa-efeito entre um determinado tipo de desigualdade e a posição dos membros menos favorecidos. Talvez permita — ainda que me pareça algo duvidoso — retirar conclusões sobre os grandes critérios de organização da sociedade (por exemplo, o mercado perante a planificação, o capitalismo perante o socialismo, etc.),30mas parece-me praticamente impossível, com os instrumentos ao nosso alcance, utilizar este princípio para julgar da aceitabilidade, ou não, de formas ou graus concretos de desigualdade, como os que se discutem no âmbito de uma forma social aceite.31Por outras palavras, se aplicarmos o princípio da diferença a aglomerados demasiado amplos de instituições, é quase certo que se misturariam o grão e a palha — o necessário e o desnecessário — ou inclusivamente o grão e a cizânia — o conveniente e o inconveniente —, de modo que a presença da segunda seria legitimada pelos efeitos da primeira. Creio, no entanto, que esta é a interpretação que sustenta ou está mais perto de sustentar o próprio Rawls, quando afirma que o seu segundo princípio se aplica ao sistema do direito público, mas aqui não estamos obrigados por uma jurisprudência subjectiva.32

A via intermédia consiste em que o princípio da diferença não se aplique a tal ou qual relação desigual mas sim a tipos de relações desiguais, ou seja, a instituições: admitimos, por exemplo, recompensar generosamente os inventores, qualquer inventor, mediante o sistema de patentes, porque partilhamos a convicção de que estimular a inovação técnica melhora as condições gerais de vida da humanidade, em particular as da sua população menos favorecida, e esta convicção geral exime-nos da tarefa de provar que assim o faça tal ou qual invenção particular; ou aos artistas, porque o seu trabalho melhora a qualidade de vida das pessoas, sem perguntarmos se o trabalho de tal ou qual artista particular representa uma melhoria — de gustibus non est disputandum — nem se chega a mais ou menos gente; ou aos empresários, porque estimulando a sua ambição estimula-se a produtividade e, com isso, o tamanho da parte a repartir e o bem-estar de todos. Consideram-se justas, seguindo Rawls, ou simplesmente aceitáveis e legítimas, em meu entender, aquelas desigualdades que melhoram de algum modo a sorte dos mais desfavorecidos. Premiamos, então, as qualidades excepcionais, sejam inatas ou cultivadas, de todos aqueles que nos permitam alcançar quotas de bem-estar que não teríamos alcançado sem isso.

Mas não seria mais moral, e mais justo, que Pavarotti cantasse, Barceló pintasse, García Márquez escrevesse, etc., por metade do seu salário (mais pelo amor à arte e pelo prazer da obra bem feita)? Não poderia o director dirigir apenas pela satisfação de ver crescer o volume de negócios? O problema, aqui, não é de justiça, mas de eficácia: seria algo mais justo, mas muito menos verosímil. A vida, em geral, é ou pode ser melhor com grandes deuses das artes, assim como é melhor com a roda, a água potável, a electricidade, a música gravada, os aviões, o Windows 95, etc., ou com o nível de produtividade dos países do Norte, e conseguir tudo isto bem pode merecer sacrificar parcialmente a igualdade. É aqui que cabe uma salvaguarda do tipo do "princípio de diferença" de Rawls. Mas não deve confundir-se a eficácia com a igualdade, nem as recompensas instrumentais com os direitos individuais, nem a legitimidade com a justiça. Tal como nos contos da época das cortes em que o rei oferece metade do seu reino ou a mão da princesa a quem a salve do dragão, também a sociedade pode oferecer a riqueza por uma maravilhosa melodia, um belo quadro ou um útil sistema operativo: é um aspecto do que faz o mercado (e antes faziam os mecenas). Ora bem, isto é apenas uma parte do que sucede, na realidade um subproduto, porque o que o mercado realmente faz é permitir a cada indivíduo obter pelo que possui tudo o que seja capaz de pagar na medida dos seus desejos, não importa que seja isto ou aquilo, nem como o obteve, nem quanto seja, nem qual o grau de necessidade ou de desejo. As mesmas virtudes do mercado como mecanismo de incentivo são precisamente os seus vícios como instrumento de justiça distributiva, e provavelmente pode dizer-se o mesmo de qualquer outro sistema de distribuição de retribuições e recompensas: que a retribuição justa nunca é recompensa suficiente para ir um pouco mais longe.33

Mas, nesse caso, se as desigualdades admitidas pelo segundo princípio não procedem da justiça mas sim da conveniência, ainda que estejam dotadas da legitimidade que lhes concede a sua aceitação social, não há motivo para as admitir em qualquer quantidade e de qualquer qualidade, pois se são legítimas isso não as converte em justas. Por outras palavras, podem-se admitir as desigualdades que melhoram a situação geral, ou como mínimo, as dos membros ou dos actores menos favorecidos, mas não há motivo para que tudo o que fica acima deste requisito mínimo vá parar à conta dos mais favorecidos. Como sugere o princípio rawlsiano, pode-se admitir a diferença; mas, se o critério é de carácter instrumental, também se poderá, de um modo ou outro, dividir a diferença. Do ponto de vista da economia neoclássica isto significa, sem lugar para dúvidas, explorar os membros ou actores melhor situados, já que se lhes impediria de se apropriarem de todo o proveito possível da sua posição no mercado (mas não teria que produzir demasiado escrúpulo explorar o explorador). Na perspectiva de uma teoria do valor (uma norma de distribuição) como a que é aqui sugerida, ou noutra semelhante, o problema reduz-se à quantidade de desigualdade que se teria que tolerar para conseguir o objectivo da eficácia.34

O segundo princípio rawlsiano da justiça, o princípio de diferença, deveria então ser parcialmente reformulado. Segundo Rawls: "A estrutura básica deveria permitir desigualdades organizativas e económicas na medida em que estas contribuam para melhorar a situação de todos, incluindo a dos menos favorecidos, sempre que essas desigualdades sejam compatíveis com uma igual liberdade e com uma igualdade equitativa de oportunidades. " (Rawls, 1993: 318) A formulação de Rawls permite admitir qualquer grau de desigualdade sempre e quando aquela for acompanhada de alguma melhoria da situação geral ou, como mínimo, da situação dos menos favorecidos. Ainda que na citação anterior, bem como noutras, a expressão "na medida" possa prestar-se a confusão, Rawls não alude a um limite quantitativo mas sim a uma condição qualitativa. As desigualdades sociais são aceitáveis se e só se contribuírem para melhorar a situação dos mais desfavorecidos. Uma clara demonstração do pouco exigente que se torna, na realidade, o segundo princípio rawlsiano é proporcionada pelo próprio autor, quando toma como referência a divisão equitativa dos bens primários, a qual seria equivalente à apropriação original igualitária.

Os dois princípios (da justiça) expressam a ideia de que ninguém deveria ter menos do que receberia numa divisão equitativa dos bens primários, e de que, quando a fertilidade da cooperação social permite uma melhoria geral, então as desigualdades sociais têm que trabalhar em beneficio daqueles cuja posição social tenha melhorado menos, tomando como ponto de referência a divisão equitativa. (Rawls, 1993: 320)

A reformulação que aqui se propõe poderia expressar-se assim: as desigualdades sociais são aceitáveis na medida e só na medida em que se tornem necessárias para melhorar a situação geral, ou pelo menos a dos mais desfavorecidos. A medida representa aqui um limite quantitativo, ainda que pressuponha, eventualmente, a condição qualitativa de que tais desigualdades contribuem de algum modo para melhorar a situação de todos ou a dos pior situados, ou seja, o princípio rawlsiano da diferença (incluindo, se se quiser, a igualdade de oportunidades, ainda que não pretenda deter-me neste). Poderíamos chamar a isto o princípio de recompensa, uma vez que a sociedade recompensa pela sua especial contribuição certos indivíduos, ainda que com isso tenha que aceitar desigualdades das quais, não obstante, se sente compensada por essa excepcionalidade. Representa, o respeito do princípio rawlsiano, uma volta de parafuso mais: não se admite mais desigualdade do que a estritamente necessária e até ao limite em que seja estritamente necessária, porque não tem outro papel para além do de um incentivo material, algo alheio à justiça. Isto não pré-condiciona a forma da sua aplicação, que não teria que consistir numa limitação a priori da desigualdade (proibição de negócios privados, tetos salariais, etc.), mas poderia basear-se numa correcção a posteriori dos seus efeitos (política fiscal redistributiva). As semelhanças e as diferenças entre ambas as normas estão esquematizadas no quadro 3.

 

Quadro 3    Princípio de diferença e princípio de recompensa

 

Recolecção, retribuição e recompensa

O conjunto de recursos a que toda a pessoa pode aceder legitimamente, então, poderia descompor-se em três grandes categorias: recolecção, retribuição e recompensa. A recolecção é simplesmente o exercício do direito à apropriação dos recursos naturais, à sua parte alíquota no que já aí estava antes dele e de qualquer outro, ou independentemente dele e de qualquer outro. A retribuição é a contrapartida pela participação na produção, medida pelo esforço, ou seja, pelo seu trabalho (e, eventualmente, pela sua espera), e proporcional ao mesmo. A recompensa é o prémio extraordinário pela sua contribuição especial para a produção ou para a melhoria dos recursos sociais, aquilo o que se lhe outorga direito pelo seu esforço adicional. O quadro 4 resume estas e outras características dos três grupos de recursos citados.

 

Quadro 4    Os recursos legítimos

 

A recolecção corresponde à reprodução em sentido estrito. Não produzindo, a humanidade consome os recursos naturais e, nesse processo, reproduz-se a ela mesma e reproduz a natureza. Seria a caça-recolecção na sua forma mais elementar, pois é duvidoso que, durante a existência do homem como tal, aquele tenha podido alguma vez viver exclusivamente desfrutando dos recursos naturais, sem qualquer mediação do trabalho.35É uma mera distribuição do preexistente, do que ninguém produziu, pelo que a apropriação por um indivíduo simplesmente limita as possibilidades de apropriação dos outros. A retribuição, ou seja, a apropriação segundo o trabalho (vivo ou morto), ou segundo o esforço (de fazer ou de não fazer), dá acesso aos recursos produzidos, pelo próprio ou por outro. Corresponde à produção propriamente dita, desde a auto-suficiência até à divisão do trabalho e à cooperação. Permite apropriar-se do produto do próprio trabalho e, o que é mais importante, do produto equivalente do trabalho de outro; em suma, do que qualquer um pudesse produzir em certas circunstâncias mas não do que qualquer um produz nas circunstâncias existentes. A recompensa, enfim, corresponde ao que a sociedade valoriza como contributos extraordinários, e permite ao seu beneficiário apropriar-se duma parte superior à que corresponde propriamente ao seu esforço e, ao resto da sociedade, num ou outro grau, dispor do que poucos podem produzir e nenhum queria, sem tal incentivo, produzir.36

A recolecção deve obedecer à igualdade absoluta e supõe assim uma simples partilha estritamente idêntica, pelo que o seu único critério de medida é a divisão; a retribuição deve submeter-se a um critério de igualdade relativa, de proporcionalidade, de equidade, pelo que a sua medida é o tempo de trabalho directo ou acumulado, ou outro indicador do grau de esforço e privação; a recompensa, finalmente, não tem que obedecer a outra medida senão a do mínimo suficiente para suscitar a cooperação procurada em quem a recebe. A recolecção pode tomar a forma de apropriação efectiva dos recursos naturais, mas, numa sociedade economicamente desenvolvida, também a de uma dotação inicial (os direitos sociais) e/ou de um rendimento de cidadania garantido, ambos incondicionais;37a retribuição tem a sua forma típica e, dando-se o caso, separada no salário e no preço (incluídos o salário do trabalho empresarial, o juro normal ou preço do capital, a renda não monopolista da terra, etc.); a recompensa, enfim, adopta a forma de benefícios empresariais, salários que são na realidade rendas de escassez do trabalho altamente qualificado, direitos de autor, etc.

Uma vez que o que se exige ao indivíduo para ser credor de cada um destes três tipos de recursos é diferente, nessa base configuram-se oportunidades e direitos de ordem distinta. A recolecção dos recursos naturais baseia-se apenas na existência, de modo que supõe uma oportunidade garantida, segura, sem nenhum requisito adicional e, portanto, um direito absoluto e incondicional. A retribuição, que se baseia no trabalho ou no esforço, requer a realização deste, mas em condições tais que todo o indivíduo terá a oportunidade de o realizar, sem que deva haver outra possibilidade de não o fazer, para um adulto capaz, senão a renúncia expressa a isso (ao exercício do direito, porque o direito em si é irrenunciável); trata-se, pois, de um direito facultativo, ao alcance da vontade de cada indivíduo sem depender do arbítrio de terceiros, mas ao mesmo tempo condicional no seu usufruto, uma vez que o acesso aos recursos requer a realização do trabalho ou do esforço.38Por último, a possibilidade de optar pela recompensa, por um contributo considerado extraordinário, é sempre uma oportunidade aberta a todos, à qual não se deve opor nenhum obstáculo negativo, mas também uma simples faculdade jurídica, protegida na possibilidade do seu exercício mas sujeita na sua eficácia ao reconhecimento de terceiros.39

[tradução de Rosário Mauritti, revisão científica de João Sebastião]

 

Notas

1    Este trabalho foi possível graças ao patrocínio da Comissão Interministerial de Ciência e Tecnologia, projecto PB94-1382.

2    Pretendo usar o adjectivo razoáveis — distinto de racionais — no mesmo sentido em que é utilizado por Rawls (1993, 67, 74, 83, 165 e seguintes), quando fala de "pluralismo razoável", "doutrinas compreensivas razoáveis", etc. Na realidade é a acepção comum do termo, como quando se afirma que se pode discutir sobre algo com que não se está de acordo, mas na academia tende-se sempre a pensar que só o racional é razoável. O citado autor acrescenta: "Uma das distinções de maior envergadura que podem praticar-se entre concepções da justiça é entre aquelas que permitem a coexistência de uma pluralidade de doutrinas compreensivas, com diferentes concepções do bem, e aquelas que sustentam que não pode haver mais do que uma concepção do bem aceite por todos os cidadãos que sejam plenamente razoáveis e racionais" (Rawls, 1993: 166).

3    "A optimalidade de Pareto, tal como o conjunto de preços de equilíbrio gerado por um sistema de concorrência perfeita, define-se apenas na relação com uma distribuição de recursos inicial dada entre os membros da sociedade [...]" (Blaug, 1980: 164).

4    "o conceito de ‘produto marginal’ de um determinado recurso não se ocupa de quem ‘produziu realmente’ o quê, somente trata da atribuição dos recursos por meio do exame do que ocorreria se se usasse uma unidade mais do recurso (dados todos os demais recursos). A leitura desta história marginalista contrafactual (o que ocorreria se se aplicasse outra unidade, mantendo tudo o mais) como um modo de identificar quem produziu o quê ‘de facto’ no conjunto da produção total é levar o cálculo marginal muito mais além do seu objecto e capacidade" (Sen, 1992: 137).

5    "Onde quer que se introduza a divisão do trabalho, o juízo de outro intervém antes que o trabalhador possa realizar os seus lucros, e não há nenhuma entidade fantástica a que possamos chamar a retribuição natural do trabalho. Cada trabalhador produz somente uma parte do todo, e, não tendo cada parte valor nem utilidade por si só, não há nada de que o trabalhador possa apropriar-se e dizer: ‘Isto é o meu produto, isto quero levar’" (Hodgskin, 1825: 129).

6    Como o faz Sraffa (1960) ao reduzir os custos de produção (não os valores) das mercadorias a trabalho fechado, ou seja, a quantidades de trabalho incorporadas em sucessivas etapas desde a primeira transformação dos recursos naturais até ao produto acabado.

7    Cohen, 1981: 218.

8    Vroey, 1980: 190. Não sei se é a isto que Elster chama "[o] enfoque da identidade global. (a) A soma de todos os preços é igual à soma de todos os valores. (b) A totalidade da mais-valia equivale à totalidade do benefício." (Elster, 1985: 135) O que aqui se sugere não é que o total dos valores seja igual, mas sim que pode ser igual ao total dos preços, pelo que não se deduz em absoluto que o total da mais-valia (entendendo por tal o trabalho excedente) seja igual ao total do benefício.

9    "[S]empre que alguém retira alguma coisa do estado em que a natureza a produziu, e deixou, simultaneamente, nessa coisa algo do seu esforço, adicionou-lhe algo que é seu; e, por isso, a converteu em sua propriedade. [...] Sendo, pois, o trabalho ou o esforço propriedade indiscutível do trabalhador, ninguém pode ter o direito ao que resulta depois dessa adição [...] (Locke, 1690: § 26).

10    "É só a quantidade de trabalho socialmente necessário, pois, ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso, o que determina a sua magnitude de valor" (Marx, 1867: I/1, 48).

11    "O valor de um bem económico, ou seja, a quantidade de qualquer outro bem pelo qual se poderá trocar, depende da quantidade relativa de trabalho necessária para o produzir" (Ricardo, 1817: 19).

12    "O valor de qualquer mercadoria, portanto, para a pessoa que a possui e que não pretende usá-la nem consumi-la em si mesma, mas sim trocá-la por outras mercadorias, é igual à quantidade de trabalho que lhe permite comprar ou dirigir. O trabalho, portanto, é a medida real do valor de troca de todas as mercadorias" (Smith, 1776: 133).

13    "Nesse rude estado da natureza que precede a acumulação de capital e a apropriação da terra, a proporção entre as quantidades de trabalho necessárias para adquirir diferentes objectos parece ser a única circunstância que pode proporcionar uma regra para o seu intercâmbio" (Smith, 1776: 150).

14    "O problema fundamental da Economia Política consiste em determinar as leis que regulam esta distribuição" (Ricardo, 1817: 15).

15    "(1) As pessoas têm direito às suas capacidades naturais. (2) Se as pessoas têm direito a algo, também têm ao que deriva disso (via tipos especificados de processos). (3) As posses das pessoas derivam das suas capacidades naturais. Por conseguinte, (4) As pessoas têm direito às suas posses. (5) Se as pessoas têm direito a algo, devem tê-lo (e isto está acima de qualquer presunção de igualdade que pudesse haver sobre as posses)." (Nozick, 1974: 225-26).

16    "Na verdade, a divisão primária da riqueza a distribuir é dual e não tripartida. O capital não é mais do que uma forma de trabalho, e a sua distinção do trabalho não é na realidade mais do que uma subdivisão, tal como o seria a divisão do trabalho em qualificado e não qualificado." (George, 1879: cap. X).

17    "A distinção real e natural é entre as coisas que são produto do trabalho e as coisas que são ofertas gratuitas da natureza; ou, para dizê-lo em termos da Economia Política, entre a riqueza e a terra." (George, 1879: cap. XX).

18    Weber (1922: I, 35) ocupou-se destas formas de apropriação sob a figura do fechamento social: "Uma relação social ‘fechada’ pode garantir aos seus participantes o usufruto das probabilidades [oportunidades: Chancen] monopolizadas; a) livremente, b) em forma racional ou regulada quanto à forma e à medida, ou c) mediante a sua apropriação permanente por indivíduos ou grupos e plena ou relativamente alienável."

19    "Nenhum dano se causaria aos demais homens com a apropriação, mediante a sua melhoria e cultivo, de uma parcela de terra, uma vez que ainda ficaria disponível terra suficiente e tão boa como aquela, em quantidade superior à que podiam utilizar os que ainda não a tinham." (Locke, 1690: § 32)

20    "A medida da propriedade assinalou-a bem a natureza, limitando-a ao que alcança o trabalho de um homem e às necessidades da vida." (Locke, 1690: § 35).

21    Ou, subsidiariamente, ignorando o seu trabalho e as suas necessidades como não civilizados, com o qual recobrariam vigor as outras duas cláusulas.

22    Veja-se a sua diatribe, para mais algo forçada, contra a ideia lassalliana de "divisão equitativa do fruto do trabalho" (Marx, 1875: 17), da qual haveria que deduzir a amortização, o investimento, um fundo de segurança, a administração, o equipamento colectivo e os fundos para deficientes.

23    Se não, não houveria qualquer inconveniente em servir-se dele, como propõe Dworkin, como um grande leilão: "a igualdade de recursos supõe que os recursos destinados à vida de cada pessoa deveriam ser iguais. Esse objectivo necessita de uma métrica. O leilão [o mercado] propõe o que a prova da inveja assume de facto: que a verdadeira medida dos recursos sociais dedicados à vida de uma pessoa se fixe questionando a importância, de facto, desses recursos para os demais". Mas o mesmo acrescenta: "no entanto, é fundamental neste argumento, nesta conexão entre o mercado e a igualdade de recursos, que os indivíduos acedam ao mercado num plano de igualdade [ou seja: com igual capacidade de compra]." (Dworkin, 1981: 289).

24    "O primeiro princípio da civilização deveria ter sido, e deveria ser ainda, que a condição de toda pessoa nascida no mundo depois de começar um estado de civilização não deveria ser pior do que a que teria se tivesse nascido antes desse período." (Paine, 1795)

25    Paine propôs uma dotação inicial, com a chegada aos 21 anos, e uma pensão vitalícia a partir dos 51 anos.

26    "A civilização [...] actuou de duas formas: tornando uma parte da sociedade mais rica e a  outra mais pobre, do que seriam cada uma num estado de natureza." (Paine, 1795).

27    Veja-se Enguita, 1997.

28    "[E]nquanto esse sistema [o] liberalismo económico, ou seja, o mercado] não se estabeleceu, os liberais deveriam pedir, e pediram sem vacilar, a intervenção do estado com o objectivo de o estabelecer e, uma vez estabelecido, com o de o manter." (Polanyi, 1974: 149).

29    Na realidade, entre a unidade de produção cooperativa e a sociedade propriamente global, isto é, planetária, medeia a sociedade nacional, mas podemos ignorar este nível intermédio por uma questão de simplicidade. Digamos, não obstante, que certa consciência de exploração externa neste nível (favorável para a nação) pode ajudar a legitimar a exploração interna (desfavorável para o indivíduo). Esta poderia ter sido uma resposta adicional ou suplementar — mas não alternativa — à questão colocada por Sombart: Porque é que não há socialismo nos Estados Unidos?

30    Como refere Berger (1986: 48): "se se pretende melhorar as condições materiais dos indivíduos, especialmente as dos pobres, é aconselhável optar pelo capitalismo. Se se pretende modernizar, sob qualquer forma de organização socioeconómica (capitalista ou socialista), provavelmente haverá que estabelecer uma medida considerável de desigualdade material".

31    Por exemplo, no âmbito de uma economia de mercado, mista, ou planificada. O colectivismo burocrático também teve a sua dose de debate sobre o grau de desigualdade aceitável em prol do crescimento económico global: na União Soviética, desde os escritos de Lénine sobre a emulação socialista, passando pelo debate sobre a NEP ou o stakhanovismo até às reformas Lieberman-trapeznikov; em Cuba, com o debate sobre "o socialismo e o homem", auspiciado por Ernesto Guevara.

32    "Aplica-se ao sistema do direito público e das leis públicas (sistema que goza de notoriedade pública); e não às transacções e às distribuições particulares, nem às decisões dos indivíduos e das associações, mas apenas à base institucional que envolve essas transacções e decisões." (Rawls, 1993: 319).

33    "Prémios espectaculares, muito maiores do que teria sido necessário para estimular o esforço particular, são atribuídos a uma pequena minoria de ganhadores, impulsionando assim muito mais eficazmente do que o faria de facto uma distribuição mais igual e mais ‘justa’, a actividade dessa grande maioria de homens de negócios que recebem em troca uma compensação muito modesta, ou nenhuma, ou menos do que nenhuma, e apesar disso se esforçam ao máximo porque têm grandes prémios em perspectiva e sobrevalorizam as suas possibilidades de os conseguir também." (Schumpeter, 1942: 73-74).

34    O que não implica nada sobre onde e como dividir a diferença. Pode-se considerar, tal como o fez a maior parte da economia a partir de Mill, que não se deve interferir na atribuição dos factores de produção através do mercado, mas que se pode intervir na distribuição. Isto é o que, em certa medida, faz o estado social.

35    Duvidoso mas atractivo, como o demonstra a ubiquidade do mito do paraíso perdido.

36    Não é difícil associar isto à concepção schumpeteriana do benefício empresarial como renda dinâmica e temporal, recompensa pela a inovação (Schumpeter, 1912).

37    Sob a epígrafe do rendimento de cidadania podem incluir-se propostas substancialmente diferentes entre si. Em todo o caso, ninguém deve ser levado a supor que as propostas atualmente em debate tenham algo que ver com o que aqui se sugere sobre o direito aos recursos naturais. Provavelmente a defesa mais popular da proposta, pelo menos no que se refere ao âmbito académico, seja hoje a de Parijs (1994, 1995), o qual por sua vez se inspira na proposta — essa, sim, muito próxima do nosso raciocínio — de Paine (1795). Além disso, já em 1942 se fez uma proposta de dividendo social por Rhys Williams, e George McGovern incluiu-a na sua sonora campanha de 1968 à margem dos partidos tradicionais norte-americanos (veja-se Meade, 1972, e Atkinson, 1975: 305-8).

38    Estas condições, obviamente, não são satisfeitas pelo actual reconhecimento constitucional do direito ao trabalho e ao seguro de desemprego. Sê-lo-iam, enventualmente, através de um sistema de garantia de emprego para todo aquele que quisesse trabalhar. A forma de articular isto com a atribuição eficaz dos recursos pelo mercado seria deixar funcionar livremente o mercado de trabalho, mas oferecendo empregos com uma remuneração mínima aos que não pudessem obter outros, sem nenhuma retribuição para os que não trabalhassem (excepto, claro está, a sua "recolecção"). Um emprego de reserva, mais do que um seguro de desemprego.

39    Esta é a primeira metade do princípio de diferença rawlsiano, sob a qual até agora não nos tínhamos detido: que as posições desiguais "se vinculem a empregos e cargos acessíveis para todos", que "os cargos e as funções sejam acessíveis a todos, sob condições de justa igualdade de oportunidades." (Rawls, 1971: 82, 341).

 

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*Mariano F. Enguita. Departamento de Sociologia da Universidade de Salamanca. Edificio FES, Campus Miguel de Unamuno, 37071 Salamanca, Espanha. E-mail: enguita@gugu.usal.es.http: //sociologia.usal.es/mfe/Enguita/Enguita.htm

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