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Revista Portuguesa de Pneumologia

versão impressa ISSN 0873-2159

Rev Port Pneumol v.16 n.4 Lisboa ago. 2010

 

Síndroma do pulmão encolhido: Relato de um caso clínico e revisão da literatura

 

Michele De Santis 1, Vitória Martins 1 e Joaquim Moita 2

1 Interno/a de Pneumologia

2 Assistente Graduado de Pneumologia

Centro Hospitalar de Coimbra, EPE

e-mail: iperpicchio76@hotmail.com

 

Resumo

As complicações respiratórias do lúpus eritematoso sistémico (LES) podem atingir cada elemento do aparelho respiratório, sendo relativamente frequentes como manifestação inicial desta patologia e ocorrendo em 60-80% dos doentes durante o curso da doença. Os autores relatam o caso de uma doente lúpica com uma manifestação respiratória raramente reconhecida, cuja abordagem diagnóstica e tratamento ainda representam um desafio clínico.

 

Shrinking lung syndrome: Case report and literature review

Abstract

Respiratory complications of systemic lupus erythematosus may involve every element of the respiratory system and are relatively common as the initial manifestation of this disease occurring in 60 -80% of patients during the course of the disease. The authors report a case of a lupic patient with a respiratory manifestation rarely recognized which diagnostic approach and treatment still represents a clinical challenge.

 

Introdução

A síndroma do pulmão encolhido é uma manifestação respiratória do LES raramente descrita, caracterizada pela tríade de dispneia, diminuição dos volumes pulmonares e alterações funcionais restritivas. A sua verdadeira prevalência é desconhecida, sendo uma doença raramente descrita na literatura. Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos são múltiplos, estando na base das manifestações clínicas, funcionais e radiológicas uma disfunção diafragmática de origem neuromuscular com diferente grau de gravidade. Os autores apresentam o caso clínico de uma doente lúpica com queixas de dispneia de longa data e de agravamento progressivo cuja investigação culminou no diagnóstico de síndroma do pulmão encolhido.

 

Caso clínico

Doente do sexo feminino, de 24 anos, raça caucasiana, doméstica, com diagnóstico de LES desde Agosto de 2007, definido segundo os critérios ACR (derrame pleural e pericádico, úlceras orais, poliartrite, rash malar, proteinúria, anticorpos anti-ADN e ANA positivos), medicada com prednisolona 10 mg e  difosfato de cloroquina 250 mg. Foi enviada à consulta de Pneumologia em Março de 2009 para esclarecimento de quadro de dispneia subaguda acompanhada por toracalgia de cara cterísticas pleuríticas com um ano e meio de evolução, que tinham motivado múltiplas recorrências a serviços médicos. Ao exame objectivo a doente apresentava rash malar em asa de borboleta, eupneica em repouso com respiração torácica preferencial e um índice de massa corporal >30. À auscultação cardíaca apresentava taquicardia sinusal. O exame do tórax mostrava diminuição da amplitude dos movimentos respiratórios e diminuição global do MV. Os testes de laboratório não mostravam alterações relevantes, nomeadamente o valor dos D-dímeros estava dentro da normalidade e havia ausência de anticorpos antifosfolipídicos. As radiografias simples do tórax durante as várias recorrências ao serviço de urgência revelavam principalmente diminuição dos volumes pulmonares, opacidades em estria bibasais (que em TAC mostraram tratar-se de atelectasias laminares, excluindo qualquer outra alteração pleuroparenquimatosa) e elevação de ambas as hemicúpulas (Figs. 1 e 2). A cintigrafia de ventilação/perfusão apresentava baixa probabilidade de tromboembolismo pulmonar (não foi realizada angio-TAC pulmonar por alergia ao produto de contraste). O ecocardiograma transtorácico era normal. A doente foi submetida a estudo funcional respiratório, cujos resultados estão resumidos no Quadro I. As alterações funcionais eram compatíveis com uma grave alteração restritiva, com DLCO ajustada para VA normal e diminuição marcada das pressões máximas dos músculos respiratórios. A prova de esforço cardiopulmonar mostrou intolerância ao esforço por limitação ventilatória (restrição grave) com resposta cardiovascular normal. Face ao diagnóstico de base da doente, as características clínicas, os achados radiográficos e as alterações funcionais observadas, fez-se o diagnóstico de síndroma do pulmão encolhido confirmado por fluoroscopia diafragmática, que mostrou ausência de movimentos diafragmáticos. Adicionalmente, com a intenção de excluir a presença de miopatia secundária à corticoterapia, realizou electromiografia, que foi normal. Do ponto de vista terapêutico, optou-se por incrementar a dose de corticóides para 20 mg de prednisolona por dia, em desmame prolongado, associando-se azatioprina na dose de 150 mg por dia, aminofilina 225 mg 2 vezes ao dia e beta2 -agonista de longa acção (salmeterol 50 mcg) 2 vezes ao dia. Além do tratamento farmacológico, a doente foi incluída num programa de reabilitação respiratória. A evolução clínica foi favorável com atenuação gradual das queixas de dispneia e toracalgia. Do ponto de vista funcional, a doente apresentou melhoria lenta, mas progressiva, dos valores de FEV1, FVC, VC, MIP e MEP (Figs. 2 e 3). Não apresentou complicações relacionadas com o tratamento.

 

Fig. 1 – Radiografi a simples do tórax póstero-anterior que mostra diminuição dos volumes pulmonares, elevação das hemicúpulas diafragmáticas e opacidades em estrias bibasais

 

Fig. 2 – TAC do tórax sem contraste que mostra opacidade em faixas densas bibasais

 

Quadro I – Estudo funcional respiratório inicial

 

Fig. 3 – Evolução dos parâmetros funcionais após início do tratamento

FVC= capacidade vital forçada; FEV1= volume máximo expirado no 1.º segundo; CPT= capacidade pulmonar total; CV= capacidade vital

 

Fig. 4 – Evolução dos valores de PI max e PE max após início do tratamento

PI max= pressão inspiratória máxima; PE max= pressão expiratória máxima

 

Discussão

O shrinking lung syndrome, literalmente síndroma do pulmão encolhido, representa uma das manifestações do LES de mais complexo diagnóstico, condicionando repercussões respiratórias incapacitantes. A síndroma é caracterizada por dispneia não explicada por outra doença ou complicação cardiopulmonar, volumes pulmonares diminuídos sem alterações pleuroparenquimatosas, padrão funcional restritivo e elevação do diafragma. A sua exacta prevalência continua indeterminada. Embora alguns autores refiram uma prevalência de 18-27%1,2, apenas cerca de 70 casos estão descritos na literatura3, levando à consideração a importância do conhecimento da síndroma e das suas características. A sua patogénese continua por esclarecer, embora vários estudos sugiram a interacção de múltiplos mecanismos fisiopatológicos. Para explicar a disfunção diafragmática, alguns autores sugerem uma origem neuropática (neuropatia desmielinizante ou degeneração axonal)4,5,6, outros miopática com a existência de fibrose diafragmática ou justadiafragmática difusa e atrofia muscular5,7. É razoável pensar que estes mecanismos possam conjuntamente e em diferente medida contribuir para o desenvolvimento da síndroma.

A apresentação clínica é caracterizada por dispneia de início subagudo e progressiva ao longo de semanas ou meses e toracalgia pleurítica inexplicada8. A radiografia do tórax mostra volumes pulmonares diminuídos sem evidência de alterações pleuroparenquimatosas, à excepção de atelectasias laminares bibasais. A TAC do tórax confirma os achados da radiografia simples. O estudo funcional respiratório revela um padrão restritivo com DLCO ajustada para o volume alveolar normal. A redução característica do MIP e MEP reflecte as alterações dos músculos respiratórios. Outros exames complementares para sustentar o diagnóstico e confirmar o envolvimento diafragmático são a fluoroscopia e a estimulação eléctrica do nervo frénico, sendo este último um procedimento doloroso e não disponível em todos os centros. O diagnóstico desta complicação pulmonar exige um alto índice de suspeita, a presença de sintomatologia compatível, o despiste de outras complicações pulmonares do lúpus que se possam manifestar com sintomatologia sobreponível (pleurisia lúpica, pneumonia infecciosa, pneumonite lúpica, tromboembolismo pulmonar), a identificação de alterações radiológicas típicas juntamente com padrão restritivo no estudo funcional respiratório, com diminuição das pressões musculares.

O curso clínico da doença mostra uma tendência para a estabilização1, embora ten-ham sido descritos casos de deterioração progressiva da função respiratória com necessidade de oxigenoterapia e ainda um caso fatal de falência respiratória. O tratamento desta síndroma é controverso, não existindo um esquema terapêutico protocolizado, variando fármacos e dosagens entre os autores. Existem relatos de benefícios com corticoterapia, isoladamente ou associada a outros agentes imunosupressores8-9, bem como com xantinas10 e beta2-agonistas de longa acção, devido ao efeito inotrópico positivo sobre os receptores beta do músculo diafragma2.

 

Bibliografia

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Recebido para publicação/received for publication: 09.10.07

Aceite para publicação/accepted for publication: 09.12.14