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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.21 no.3 Lisboa jun. 2014

https://doi.org/10.1016/j.jpg.2014.04.001 

EDITORIAL

 

A endoscopia digestiva alta em Portugal e o diagnóstico de lesões pré-malignas

The diagnosis of premalignant gastric lesions in Portugal

 

António Curado

Diretor do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar do Oeste (CHO), Caldas da Rainha, Portugal

Correio eletrónico: curado.a@gmail.com

 

É sabido que o carcinoma gástrico é uma doença maligna associada a um mau prognóstico quando diagnosticado tardiamente. Sabemos também que, apesar de alguma evolução positiva, Portugal continua a ter uma elevada taxa de incidência de cancro gástrico, sendo baixas as taxas de deteção de cancro precoce (cerca de 8%).

Faz, neste contexto, sentido tentar conhecer a prática real da endoscopia digestiva em Portugal e correlacioná-la com a preocupação de diagnóstico de lesões pré-malignas.

As condições pré-malignas mais significativas são a gastrite crónica atrófica e a metaplasia intestinal, esta relacionável com a infeção pelo Helicobacter pylori (H. pylori). A longo prazo estas condições podem evoluir para lesões displásicas pré-cancerosas. E é no diagnóstico dessas condições pré-malignas que a endoscopia pode e deve ter um papel muito importante.

Conhecer, no entanto, a realidade da prática quotidiana portuguesa é sempre uma tarefa árdua. Ainda que o panorama se esteja progressivamente a alterar para melhor, a colaboração multicêntrica continua a estar aquém daquela que poderia e deveria ser.

O trabalho publicado por Miguel Areia e Mário Dinis Ribeiro, One day of upper gastrointestinal endoscopy in a southern European country1, parte de uma ideia altamente meritória, a de tentar conhecer a nossa prática quotidiana, sendo de lamentar a baixa taxa de participação no estudo (apenas um em cada 4 hospitais). Cabe, no entanto, aqui referir que a opção pela «fotografia» de um só dia de endoscopias, tendo sido justificada com critérios aceitáveis, é também ela própria limitativa. Há, por exemplo, hospitais mais pequenos, que concentram as endoscopias altas programadas em 2 ou 3 dias da semana (e não necessariamente no dia escolhido para esta amostra), uma vez que o peso das colonoscopias nos hospitais é cada vez maior, por razões sobejamente conhecidas.

Mas o estudo tem sempre o mérito de nos sugerir reflexões que consideramos atuais e pertinentes. E de levantar perguntas e questões, algumas das quais não são de agora.

A endoscopia digestiva alta é um bom método de rastreio do cancro gástrico em doentes assintomáticos? O protocolo da realização de biopsias é uniforme e bem estabelecido? Os relatórios histológicos respondem genericamente àquilo que é considerado necessário? A prática da endoscopia digestiva alta em meio hospitalar reproduz aquela que é praticada em meio extra-hospitalar?

Pelo menos em países de baixa incidência é consensual que o rastreio do cancro gástrico não está indicado. Mas a vigilância de condições pré-malignas já levanta outras questões. E, na verdade, os dados deste dia de endoscopia mostram uma elevada prevalência de condições pré-malignas na população portuguesa estudada.

Segundo as guidelines da American Society for Gastrointestinal Endoscopy (ASGE) para a vigilância das condições pré-malignas do trato digestivo alto2, as recomendações são as seguintes:

1. A vigilância endoscópica para a metaplasia gástrica intestinal não está suficientemente estudada nos Estados Unidos e, por isso, não pode ser uniformemente recomendada.

2. Os indivíduos com risco aumentado de cancro gástrico por razões de origem étnica ou por história familiar podem beneficiar dessa vigilância.

3. A vigilância endoscópica deve incluir um mapeamento topográfico de todo o estômago.

4. Doentes com displasia de alto grau confirmada têm um risco significativo de progressão para cancro e devem ser considerados para gastrectomia ou ressecção local endoscópica.

Mas importa, sobretudo, realçar aqui as guidelines europeias conjuntas da European Society of Gastrointestinal Endoscopy (ESGE), European Helicobacter Study Group (EHSG), European Society of Pathology (ESP) e Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (SPED) desenvolvidas em grupos de trabalho liderados pelo Prof. Mário Dinis Ribeiro3.

Estas guidelines, partindo de bases de evidência científica, deixam indicações para a abordagem das condições e lesões pré-cancerosas do estômago (MAPS) e as suas recomendações enfatizam o risco aumentado de cancro em doentes com atrofia gástrica e metaplasia intestinal, bem como a necessidade de um estadiamento adequado nos casos de displasia de alto grau, focando-se depois nas indicações e nos métodos da vigilância e do tratamento.

Estas guidelines defendem, nomeadamente, que aos doentes com atrofia extensa e metaplasia intestinal extensa deve ser oferecida vigilância endoscópica todos os 3 anos. Para aqueles doentes com ligeira a moderada atrofia e metaplasia intestinal limitada ao antro gástrico não existe evidência para recomendar vigilância. Por outro lado, em doentes com metaplasia intestinal, a erradicação do H. pylori não parece revertê-la, mas pode reduzir o ritmo do curso de progressão para neoplasia e, sendo assim, a erradicação é recomendável.

Concordando com as conclusões do trabalho «One day of upper gastrointestinal endoscopy in a southern European country», de que a endoscopia digestiva alta é um método seguro, praticamente isento de riscos e relativamente bem tolerado, o uso da endoscopia continua ainda a ter algumas limitações como prevenção secundária pelo seu grau de invasibilidade, ainda que seja minoritário o número de doentes que necessitam de sedação para a realizar.

E, vindo a talhe de foice, permitir-me-ei dizer que esta é uma realidade bem diferente daquela que se passa atualmente com a colonoscopia, onde é absolutamente crescente a solicitação por parte dos doentes do uso de sedação ou sedo-analgesia profunda para a execução do procedimento. Neste campo, com a publicação do Despacho n.◦ 3756/2014 (Diário da República, 2a.serie, 11 de Março de 2014), a polémica foi imediata e inevitável, nomeadamente no que respeita à imposição de sedação efetuada pelo gastrenterologista nos exames colonoscópicos do regime convencionado. Já durante a revisão do presente Editorial constatámos que, nos últimos dias, se conseguiram, neste campo, soluções de razoabilidade aceitável.

Mas voltando às endoscopias digestivas altas e à sua tolerabilidade, mesmo que minoritariamente, como se disse, houve, ainda assim, em 22% dos casos, necessidade de recorrer a algum tipo de sedação, o que não é despiciendo. E, empiricamente, diria que a tendência, também aqui, apesar de menos premente, não será para diminuir as taxas de exames sem qualquer sedação.

Num outro campo, os formatos atuais dos relatórios histológicos nos casos de gastrite falham em estabelecer uma relação entre o genótipo da gastrite e o risco de malignidade. Os relatórios histológicos não dão aos clínicos e aos gastrenterologistas uma mensagem explícita de orientação daquele doente em concreto. O grau de atrofia e o tipo de metaplasia intestinal nem sempre são classificados.

Como sabemos, a metaplasia intestinal pode ser de tipo entérico (completa, ou tipo I), enterocólica (incompleta, tipo II) ou colónica (incompleta, tipo III), sendo que este grau III tem sido tradicionalmente associado a uma maior gravidade, mas, na verdade, a extensão da atrofia e da metaplasia talvez seja o melhor marcador de pré-malignidade, sendo a subtipagem da metaplasia, provavelmente de menor valor na prática clínica4. A causa mais comum de metaplasia intestinal é a gastrite induzida pelo H. pylori, mas lembramos que a deteção da metaplasia intestinal em biopsias de rotina está sujeita a erros de amostragem e pode não ser o marcador desejável de risco aumentado de carcinoma gástrico5.

Tal como é referido no artigo «One day of upper gastrointestinal endoscopy in a southern European country», a extensão da metaplasia intestinal e da atrofia da mucosa ao corpo gástrico parece ter um papel relevante.

Já há alguns anos, alguns AA advogavam que, com base na sua correlação com a metaplasia intestinal, uma gastrite corporal pronunciada poderia ser considerada um marcador de cancro gástrico. Em comparação com a metaplasia intestinal este marcador de risco de cancro gástrico tem a vantagem de estar associado a uma menor variabilidade interobservadores e, devido à sua apresentação difusa, a um menor risco de erros de amostragem6. Por outro lado, a localização das biopsias de rotina não tem sido consensual, nomeadamente no que respeita às biopsias na incisura angularis, mas a sua realização nesta localização tem sido enfatizada em estudos recentes, dado que a incisura angularis está sujeita a um maior índice de gastrite atrófica severa, metaplasia e inflamação crónica do que o corpo e o antro, pelo que é de considerar (ainda que não haja consenso) que estas biopsias devam ser rotineiramente incluídas nos protocolos7.

Parece óbvio que se torna importante estratificar os doentes de acordo com o risco de desenvolvimento de cancro gástrico, e os sistemas Operative Link for Gastritis Assessment (OLGA)8 e Operative Link on Gastric Intestinal Metaplasia (OLGIM) têm sido propostos com esse objetivo, gastrenterologistas, na execução conveniente das biopsias, e anatomopatologistas, no uso destas escalas de valor analógico de classificação da atrofia gástrica e da metaplasia.

Em termos de biopsias, a proposta do sistema OLGA consiste, basicamente, na realização de pelo menos 5 biopsias: na grande e pequena curvaturas do antro distal (A1 e A2); na pequena curvatura da incisura angularis (A3); e na parede anterior e posterior do corpo proximal (C1 e C2). Mas o número de biopsias continua a não ser consensual.

Considerando estes sistemas (OLGA e OLGIM), cujos graus mais elevados (III e IV) correspondem a um maior risco de cancro gástrico, há um downgrade de 18% para o sistema OLGA e de 4% para o sistema OLGIM quando a incisura angularis é excluída do estadiamento e um downgrade de 30-35% dos estádios OLGA/OLGIM de alto risco (Isajevs et al.).

Não se pode deixar de realçar o elevado nível de lesões pré-malignas encontradas na prática real da endoscopia em Portugal no estudo publicado (causando apenas alguma estranheza, diga-se de passagem, a não diferença entre grupos etários).

Sabemos que estudos clássicos apontam para que em doentes com gastrite atrófica ou metaplasia intestinal a vigilância regular pode aumentar a deteção de novos tumores num estádio precoce com o consequente aumento de sobrevida dos doentes9.

Os benefícios desses programas de vigilância merecem certamente uma maior investigação mas, provavelmente, devemos concentrar as nossas atenções em certos tipos de doentes, nomeadamente nos graus III e IV do sistema OLGA.

No entanto, até aqui, a severidade da gastrite atrófica, o elevado grau do sistema OLGA (tipo III e IV) e a metaplasia intestinal do subtipo incompleta (tipo III)10 eram tidos separadamente como fatores de risco para o cancro gástrico, mas, atualmente, parece ser mais importante associar todos estes dados para selecionar os doentes que devem ser submetidos a vigilância endoscópica regular, com biopsias, para avaliar o risco de cancro gástrico11,12.

 

Bibliografia

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Recebido a 28 de março de 2014; aceite a 28 de março de 2014