SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número2Tumores neuroendócrinos gástricos e duodenal simultâneosSífilis hepática simulando metastização hepática índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.19 no.2 Lisboa fev. 2012

 

Causa rara de icterícia obstrutiva

Rare cause of obstructive jaundice

 

Liliana Santos, João Coimbra, Isabel Sousa*, Gonçalo Ramos, Ana Carvalho e João Martins

Serviço de Gastrenterologia, Hospital de Santo António dos Capuchos, Lisboa, Portugal

*Autor para correspondência

 

Resumo

A hemobilia é uma afecção rara, que < 10% dos casos está associada a neoplasias hepáticas ou intra‑biliares.

Apresentamos um doente com cirrose hepática alcoólica, internado por icterícia e colúria. A colangiopancreatografi a retrógrada endoscópica (CPRE) não revelou dilatação ou alterações endoluminais da via biliar principal, tendo‑se extraído microcálculos após exploração com balão de Forgaty e cesto de Dormia.

Vinte e quatro horas após o procedimento, verifi cou-se agravamento da icterícia, tendo repetido CPRE que mostrou a presença de coágulos na via biliar principal. A investigação clínica subsequente revelou uma lesão nodular hepática com 6 cm de diâmetro e extensão para a árvore biliar peri‑hilar.

O doente faleceu ao 33º dia de internamento por choque séptico secundário a infecção respiratória.

PALAVRAS-CHAVE Hemoptises; Etiologia; Diagnóstico; Tratamento

 

Abstract

Hemobilia is a rare affection, which in less than 10% of the cases is associated with hepatic or intrabiliary neoplasm.

We present a patient, with alcoholic hepatic cirrhosis that presented with jaundice and coluria. Endoscopic retrograde cholangiopancreatography [ERCP] was negative for dilation or endoluminal lesions of the common bile duct; Forgaty balloon and Dormia basket exploration revealed biliary microlithiasis.

Due to clinical deterioration, with increasing jaundice 24 hours, another ERCP was performed, that disclosed the presence of a blood clot in the common biliary duct. The following clinical investigation showed a 6 cm hepatic nodule that extended to the peri‑hilar biliary tree.

The patient died 33 days after the admission, due to septic shock secondary to respiratory tract infection.

PALAVRAS-CHAVE Hemoptysis; Etiology; Diagnosis; Treatment

 

Introdução

A hemobilia é uma situação rara. Corresponde à presença de sangue na árvore biliar como resultado de hemorragia com origem na vesícula, no tracto bilio‑pancreatico ou no fígado1. Foi descrita pela primeira vez por Francis Glisson em 1654, no entanto, o termo hemobilia só foi introduzido em 1948, por Sandblom2.

As manifestações clínicas são a hemorragia digestiva, a dor abdominal e/ou a icterícia obstrutiva3.

Actualmente, a causa mais frequente de hemobilia nos países ocidentais é o trauma secundário a procedimentos hepatico‑biliares percutâneos, endoscópicos ou cirúrgicos. A presença de neoplasias hepato‑biliares como causa independente de hemobilia é uma situação rara1,3,4.

 

Caso clínico

Doente do sexo masculino, de 68 anos, com cirrose hepática alcoólica diagnosticada há 10 anos, seguido em consulta de Gastrenterologia, tendo realizado em Ecografia abdominal 3 anos antes que não mostrou lesões nodulares hepáticas e doseamento de AFP que foi normal.

Foi internado por quadro de icterícia e colúria com 1 semana de evolução, sem dor abdominal.

Dos antecedentes pessoais havia a salientar hipertensão arterial, status‑pos acidente vascular cerebral isquémico, doença pulmonar obstrutiva crónica tabágica e litíase vesicular assintomática. Estava medicado com ticlopidina, enalapril, omeprazol e espironolactona.

À admissão apresentava icterícia da pele e escleróticas e hepatomegalia estendendo‑se até 4cm abaixo do rebordo costal direito, de consistência firme, superfície lisa, bordo rombo, dolorosa à palpação. O estudo laboratorial revelou bilirrubina total 11 mg/dL (fracção directa 9,6 mg/dL), GGT 987 UI/L, FA 477 UI/L; AST 134 UI/L; ALT 85 UI/L, sem leucocitose ou neutrofilia e PCR elevada (10 g/dL). A ecografia abdominal revelou fígado heterogéneo e dismórfico, litíase vesicular e discreta dilatação das vias biliares intrahepáticas [VBIH].

Tendo em conta a hipótese diagnóstica de litíase vesicular complicada de coledocolitíase, realizou colangiopancreatografia endoscópica retrógrada [CPRE], que mostrou litíase da vesícula, não se tendo observado dilatação ou alterações endoluminais da via biliar principal [VBP] (fig. 1). Foi efectuada esfincterotomia transpapilar endoscópica [ETE] e extracção de microcálculos após exploração da VBP com balão de Forgaty e cesto de Dormia.

 

Figura 1 Imagem da colangiografia inicial mostrando colelitíase (sem dilatação ou alterações endoluminais da via biliar principal).

 

Cerca de 24 h após este procedimento, observou‑se agravamento clínico e laboratorial, com aumento acentuado dos valores séricos de bilirrubina, GGT e fosfatase alcalina. Foi submetido a nova CPRE, que mostrou a presença de um defeito de repleção intraluminal justa‑hilar, que após exploração com balão, se constatou tratar de um coágulo intraluminal (fig. 2A). Foram extraídos vários coágulos volumosos com balão e foi colocada prótese biliar plástica na via biliar principal (figs. 2B e 2C).

 

Figura 2 Imagens endoscópicas de CPRE que mostram a presença de coágulos extraídos da via biliar principal (2A e 2B) com balão de Forgaty. Posteriormente, foi colocada prótese biliar plástica na via biliar principal (2C).

 

Não se verificou descida significativa dos valores de hemoglobina ou repercussão hemodinâmica, registando‑se descida lenta e gradual da hiperbilirrubinemia para valores próximos ao da admissão.

Na investigação clínica do doente, este veio a realizar ressonância nuclear magnética [RNM] abdominal e colangio‑RNM, que mostrou dilatação das VBIH e uma lesão nodular hepática, com 6 cm de diâmetro, subcapsular direita, com extensão peri‑hilar. O nódulo tinha pseudocápsula que captava contraste e era heterogéneo, com áreas micronodulares hipercaptantes e extensas áreas hipodensas que captavam o contraste tardiamente, sugestivas de necrose parcial (fig. 3A). Observou‑se ainda transformação cavernomatosa da veia porta. A tomografia computorizada (TC) abdominal confirmou este diagnóstico (fig. 3B)3.

 

Figura 3 Imagens de RNM (3A e 3B ) e TC abdominal (3C e 3D) onde se observa uma lesão nodular intrahepática, subcapsular direita, com extensão perihilar, com 6 cm. A lesão é heterogénea, com áreas hipercapatantes e hipocaptantes e apresenta pesudocápsula.

 

Os valores séricos do CEA e da alfa‑feto proteína [AFP] estavam dentro dos valores normais e o valor de CA 19,9 revelou‑se muito elevado (5.994 U/mL; N < 37U/mL).

O doente acabou por falecer, ao 33º dia de internamento, por infecção respiratória nosocomial com choque séptico.

 

Discussão

A presença de neoplasias intrahepáticas ou do tracto biliar como causa independente de hemobilia é uma situação rara,correspondendo a < 10% dos casos1,3,4. Outras causas incluem: traumatismos acidentais ou iatrogénicos, aneurismas da artéria hepática, coledocolitíase, hipertensão portal, infestações parasitárias das vias biliares, hemosuccus pancreaticus e neoplasia da vesícula5.

Nas situações de neoplasia, a presença de sangue nas vias biliares pode ser consequência do envolvimento directo das vias biliares pelo tumor, da migração de fragmentos tumorais para a via biliar principal ou de hemorragia intratumoral3.

No doente apresentado, o quadro clínico inicial caracterizado por icterícia, colúria e hepatomegália dolorosa, poderia corresponder a hepatite alcoólica. No entanto, o doente referia abstinência alcoólica nos últimos 10 anos, os exames laboratoriais não mostraram leucocitose ou neutrofilia e a ecografia abdominal revelou dilatação das VBIH, factos que não apoiam este diagnóstico.

Assim, as hipóteses diagnósticas colocadas foram as de coledocolitíase e de carcinoma hepatocelular, tendo em conta os antecedentes de litíase vesicular e de cirrose hepática.

A Ecografia abdominal realizada na admissão revelou dilatação das VBIH e confirmou a presença de litíase biliar, não tendo mostrado lesões nódulares intrahepáticas, pelo que se considerou como mais provável a hipótese de coledocolítiase.

O exame seguinte realizado foi a CPRE dada a elevada probabilidade de necessidade de terapêutica endoscópica. No entanto, a colangiografia endoscópica não confirmou esta hipótese diagnóstica, tendo‑se extraído apenas microcálculos.

Pelo agravamento da icterícia precocemente após o procedimento, e considerando a probabilidade de complicações e/ou retenção de cálculos biliares, realizou nova CPRE que identificou hemobilia.

Posteriormente, para esclarecimento do quadro, realiza TC e a RM abdominal com administração de contraste endovenoso, que mostraram o nódulo hepático. Estes exames têm elevada sensibilidade para a detecção de nódulos hepáticos em doentes com cirrose hepática e foram importantes para o estabelecimento do diagnóstico.

A Ecografia abdominal não mostrou nódulos intrahepáticos. Este facto corrobora os dados actuais que demonstram que a ecografia convencional, apesar de ter elevada sensibilidade para o diagnóstico de nódulos hepáticos, nos doentes com cirrose hepática, a sua sensibilidade é menor (entre os 68% e os 87%), uma vez que as lesões tumorais podem ser confundidas com nódulos regenerativos. Outros factores que também se relacionam com a sensibilidade da ecografia são o perfil ecográfico do doente e a prática do executante6.

Os factores que contribuíram para o aparecimento de hemobilia, foram a presença de um nódulo intrahepático com envolvimento da via biliar, associado à realização de um procedimento invasivo na via biliar, que terá traumatizado a lesão tumoral com consequente hemorragia e formação de coágulos que obstruíram a via biliar.

A única manifestação de hemobilia foi o agravamento do quadro de icterícia obstrutiva. De facto, apenas 22% dos doentes, apresenta a tríade sintomática descrita por Quinke: hemorragia digestiva, dor abdominal e icterícia obstrutiva7.

O tratamento da hemobilia depende da causa subjacente. No doente apresentado, foi efectuada precocemente CPRE, o que permitiu a extracção dos coágulos e a colocação de prótese biliar, com consequente descompressão biliar, redução da icterícia e controle da hemorragia.

Neste doente, não foi efectuada caracterização histológica da lesão. A primeira hipótese diagnóstica a colocar é de carcinoma hepatocelular, tendo em conta os antecedentes de cirrose hepática. No entanto, os valores de AFP eram normais e havia uma elevação marcada do CA 19,9, pelo que as hipóteses de colangiocarcinoma intrahepático e de hepatocolangiocarcinoma, deverão também ser consideradas, uma vez que a sua incidência está aumentada nos doentes com cirrose hepática8,9.

Não foi possível o tratamento dirigido da lesão tumoral hepática, dada a instabilidade clínica, a idade do doente, a sua performance status, o tamanho da lesão e a presença de trombose da veia porta4.

 

Comentários

A hemobilia clinicamente significativa é uma complicação rara da CPRE, correspondendo a uma pequena minoria dos casos de hemorragia pos‑CPRE.

O agravamento ou aparecimento «de novo» de icterícia, particularmente se associado a descida dos valores de hemoglobina, hipotensão e/ou hemorragia digestiva, é sugestivo da ocorrência de hemobilia. A CPRE é o método de eleição para o seu diagnóstico e tratamento, permitindo a extracção de coágulos, a descompressão biliar e a hemostase.

 

Bibliografia

1. Karsenti D, Tchuenbou J, Djarech H, et al. Pancréatite aiguë liée à une hémobilie compliquant un carcinome hépatocellulaire. Gastroenterol Clin Biol. 2002;26:1051‑4.         [ Links ]

2. Manolakis C, Kapsoritakis A, Tsikouras A, et al. Hemobilia as the initial manifestation of cholangiocarcinoma in a hemophilia B patient. World J Gastroenterol. 2008;14:4241‑4.         [ Links ]

3. Cajot O, Descamps C, Navez B, et al. Hémobilie révélatrice d’un très petit carcinome hépatocellulaire rompu dans les voies biliaires. Gastroenterol Clin Biol. 1997;21:426‑9.         [ Links ]

4. Hirsch M, Avinoach I, Keynan A, et al. Angiographic diagnosis and treatment of hemobilia. Radiology. 1982;144:771‑2.         [ Links ]

5. Eds. Feldman M, Friedman LS, Brandt LJ. Sleisenger and Fordtran’s Gastrointestinal and liver disease: pathophysiology, diagnosis, management. 8ª ed.         [ Links ]

6. Shapiro R, Katz R, Mendelson D, et al. Detection of hepatocellular carcinoma in cirrhotic patients: sensitivity of CT and ultrasonography. J Ultrasound Med. 1996;15: 497‑502.         [ Links ]

7. Kumar M, Gupta S, Soin A, et al. Management of massive haemobilia in an Indian hospital. Indian J Surg. 2008;70:288‑95.         [ Links ]

8. Shaib YH, El‑Serag HB, Davila JA, et al. Risk factors of intrahepatic cholangiocarcinoma in the United States: a case‑control study. Gastroenterology. 2005;128:620‑6.         [ Links ]

9. Bhaga V, Javle M, Yu J, et al. Combined Hepatocholangiocarcinoma. Int J Gastrointest Cancer. 2006;37:27‑34.         [ Links ]

 

*Autor para correspondência

Correio electrónico:misousa@netcabo.pt (I. Sousa).

 

Recebido a 27 de dezembro de 2009; aceite a 29 de outubro de 2010