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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. vol.18 no.5 Lisboa set. 2011

 

O Dilema do Nódulo Solitário do Fígado em Doente Não-Cirrótico

 

José Velosa1, Ana Henriqueta2, Adília Costa2

1Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia, Centro Hospitalar Lisboa Norte, Hospital de Santa Maria - Lisboa, Portugal; 2Serviço de Anatomia Patológica, Centro Hospitalar Lisboa Norte, Hospital de Santa Maria - Lisboa, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

O nódulo hepático constitui por vezes um desafio clínico irresolúvel com os meios de diagnóstico não invasivos que estão disponíveis. O diagnóstico diferencial de uma lesão hepática ocupando espaço compreende um conjunto variado de lesões benignas e malignas. A idade do doente, o sexo, o uso de produtos hormonais e a história de doença hepática podem sugerir a etiologia. A propósito do caso de uma mulher jovem, obesa, assintomática, a tomar contraceptivos orais e que se apresentou com uma lesão sólida no fígado, discutimos os aspectos clínicos, imagiológicos e histológicos da hiperplasia nodular focal (HNF) e sublinhamos a dificuldade em excluir outras etiologias, nomeadamente o adenoma hepático.

PALAVRAS-CHAVE: Nódulo hepático benigno; hiperplasia nodular focal; adenoma hepático.

 

The Dilema of a Solitary Nodule of the Liver on a Non-Cirrhotic Patient

ABSTRACT

Hepatic nodules constitute a clinical challenge, not always clarified by the diagnostic tools available. The differential diagnosis of a hepatic space occupying lesion is broad and includes benign as well as malignant le­sions. Age, gender, use of hormonal products and a history of chronic liver disease may provide clues to the etiology. We discuss the clinical, radiologic and histologic findings of focal nodular hyperplasia in a young obese woman, taking oral contraceptive drugs, who presented with a symptomless hepatic space occupying lesion. We underscore the difficulty in ruling out other etiologies, particularly the hepatic adenoma.

KEYWORDS: Hepatic benign nodule; focal nodular hyperplasia; hepatic adenoma.

 

 

Mulher de 33 anos, caucasiana, tradutora, com obesidade mórbida, foi referenciada à consulta de Hepatologia para investigação de um nódulo hepático detectado em ecografia de rotina. Com expeção de uma dor tipo moinha intermitente no hipocôndrio direito não tinha outros sintomas. Tomava Diane® (acetato de ciproterona e etinilestradiol) desde os 16 anos; negava transfusões de sangue e consumo de álcool. O exame objectivo era normal, exceptuando um Índice de Massa Corporal (IMC) de 38 Kg/m2. Além de uma discreta elevação intermitente da alanina aminotransferase (< 1,5 x N) e gamaglutamil transpeptidase, as restantes análises hepáticas, os testes serológicos para as hepatites B e C e os níveis séricos dos marcadores tumorais (alfafetoproteína, antigénio carcinoembrionário e antigénio carbohidrato 19 – 9) eram normais.

A ecografia revelou um fígado hiperecogénico com uma única lesão nodular sólida com 8 cm no lobo direito. A Tomografia Axial Computorizada (TAC) mostrou que a lesão captava o contraste de forma heterogénea nas fases arterial e venosa (Fig. 1). A biopsia hepática guiada por ecografia e a peça de ressecção cirúrgica revelaram tecido hepático com alguns septos fibrosos contendo ligeira reacção inflamatória, hipervascularização e ligeira reacção ductular; intensa esteatose difusa, balonização dos hepatócitos com alguns corpos de Mallory, raros lipogranulomas e áreas de congestão sinusoidal; o CD34 mostrou capilarização dos sinusóides, não havendo marcação para o GPC - 3 e o Ki67 (Fig. 2).

 

Fig. 1. Ecografia hepática mostrando um nódulo sólido de 8 cm de diâmetro, ligeiramente mais ecogénico do que o parenquima (A). TAC abdominal com captação ténue e heterogénea do contraste na fase arterial. (B) e na fase venosa (C).

 

Fig. 2. Nódulo hepático ressecado (A1), observando-se a cicatriz central na secção do nódulo (A2); (B) Uma baixa ampliação corada com a H&E mostrando um septo fibroso contendo vasos sanguíneos e ligeiro infiltrado inflamatório constituído predominantemente por células mononucleadas; o septo dissocia o tecido hepático formando nódulos (seta); (C) Fibrose corada pelo tricrómio, e esteatose micro e macrovacuolar (C1); marcação dos ductos biliares com anticorpos para a citoqueratina 7 (CK7) na faixa de fibrose (C2).

 

Foi considerado como mais provável o diagnóstico de Hiperplasia Nodular Focal (HNF) telangiectásica. No entanto, após um período de vigilância de seis meses, subsistiam dúvidas quanto à verdadeira natureza da lesão, e como não foi possível excluir-se com segurança o adenoma hepático, a doente foi submetida a ressecção cirúrgica do nódulo.

 

DISCUSSÃO

A detecção acidental de um tumor do fígado num doente assintomático, sem evidência de cirrose, não suscita grande dificuldade diagnóstica, sobretudo quando a clínica ou a lesão revelam características típicas que permitem classificá-la (Quadro 1). Contudo, uma pequena percentagem de casos origina dúvidas que nem o exame histológico permite esclarecer por completo.

 

Quadro 1. Diagnóstico do Nódulo Hepático Sólido em Mulher Jovem sem Cirrose.

 

A HNF é o segundo tumor benigno do fígado mais frequente depois do hemangioma1. Corresponde a um rearranjo da arquitectura do fígado, uma resposta hiperplástica do parenquima hepático a uma malformação arterial2. Em cerca de 90% dos casos é uma lesão solitária, detectada quase sempre de forma acidental, em ambos os sexos e em qualquer idade. O diagnóstico é relativamente fácil quando a ecografia ou a TAC revelam a típica cicatriz central, que corresponde a um estroma fibroso onde se encontram ductos biliares e uma artéria de calibre aumentado, a qual pode ser identificada por doppler. A TAC e a Ressonância Magnética (RM) são particularmente úteis, mostrando um nódulo que apresenta realce na fase arterial para logo passar a isodenso na fase venosa. Embora a cicatriz central constitua um achado diagnóstico importante, só por si não garante o diagnóstico de HNF porque pode ser encontrada em alguns doentes com Carcinoma Hepatocelular (CHC) fibrolamelar, adenoma hepático ou colangiocarcinoma intrahepático.

Na prática, os diagnósticos diferenciais mais importantes da HNF são o adenoma, o CHC, principalmente a variante fibrolamelar, o hemangioma e a metástase hipervascular (Quadro 1).

Se bem que a HNF seja uma lesão estável pode, no entanto, ocorrer um ligeiro aumento em doentes a tomar a pílula. Não parece haver uma associação causal entre a HNF e a utilização de contraceptivos orais, mas estes podem ter algum efeito trófico sobre a lesão. Assim, nos casos de dúvida quanto à natureza do nódulo, é razoável aconselhar a descontinuação da pílula, realizar ecografia a espaços de 6 meses e decidir pela intervenção cirúrgica se surgir alguma complicação ou crescimento3.

Esta mulher jovem, obesa e com exames laboratoriais e histológicos compatíveis com esteatohepatite não alcoólica, apresentava uma lesão hepática de grandes dimensões cujas características imagiológicas e histológicas não permitiam um diagnóstico definitivo de HNF ou adenoma. Todavia, alguns aspectos apontavam para a HNF: a estabilidade da lesão e a presença de proliferação ductular. O CHC, cuja incidência está aumentada nos indvíduos obesos4 e nos doentes com esteatohepatite não alcoólica5, era uma possibilidade; no entanto, foi afastado por não haver evidência clínica de cirrose hepática, pela inexistência de infecção pelos vírus das hepatites B ou C e pela ausência da típica hipervascularização arterial do tumor na TAC. A variante fibrolamelar do CHC, um tumor da mulher jovem, foi também excluída histologicamente. Outros tumores que se apresentam como nódulos isolados – linfomas, granulomas, angiomiolipoma, tumores neuroendócrinos e pseudotumor inflamatório – também mereciam consideração na discussão imagiológica, mas a sua raridade, a ausência de sintomas sistémicos e, por último, a biopsia, permitiram a sua exclusão.

A dificuldade em distinguir a HNF do adenoma, quer imagiologicamente quer histologicamente, ocorre em menos de 20% dos casos e principalmente no que até há pouco tempo se considerava uma forma não clássica de HNF – o subtipo telangiectásico. Esta forma de HNF, além de não apresentar as características típicas que a identificam6, dizia-se, até recentemente, que partilhava vários aspectos morfológicos e moleculares com o adenoma hepático7. Posteriormente, o grupo de Bordéus reclassificou a HNF telangiectásica como um adenoma hepático do grupo dos adenomas hepáticos inflamatórios, isto é, expressando as proteínas amilóide A (SSA) e C - reactiva (PCR)8,9. Quando comparado com o tipo liver fatty acid binding protein (LFABP) - negativo, o adenoma hepático inflamatório (SAA/CPR-positivo) ocorre mais frequentemente em doentes com excesso de peso e esteatose hepática e revela peliose na biopsia hepática10. Este tipo de adenoma comporta um risco de CHC quando a mutação da β-catenina está presente10.

A nossa doente apresentava algumas das características morfológicas e histológicas atrás descritas, pelo que sem o recurso a estudos imunohistoquímicos e moleculares do nódulo era difícil estabelecer o diagnóstico diferencial entre a HNF e o adenoma9. O arranjo nodular moldado pela fibrose e a reacção ductular, embora discreta, são aspectos que a biopsia hepática revelou e que podem ser usados como argumentos a favor de HNF. Contudo, a reacção ductular tem um valor diagnóstico relativo, pois pode ser encontrada no adenoma hepático inflamatório11. Considerando estas reservas, nos casos duvidosos a coloração para os anticorpos anti-citoqueratina 7 (CK7) e para a glutamina sintetase podem ser úteis na caracterização da HNF10.

Apesar da nossa convicção a favor da HNF, a decisão cirúrgica resultou da indefinição imagiológica e histológica, considerando que a ressecção cirúrgica está indicada em lesões de grandes dimensões sugestivas de adenoma hepático. Não está definido um tamanho específico para a intervenção, mas os adenomas com mais de 5 cm, pelo risco de complicações que comportam – hemorragia ou ruptura –, devem ser excisados. O risco de malignização e a possível confusão com um CHC bem diferenciado são outras preocupações que deverão ser ponderadas. Nos casos duvidosos e quando for impossível obter um diagnóstico definitivo, um período de vigilância antes de uma eventual intervenção cirúrgica é uma atitude aceitável3,12. Aguardar a regressão de pequenos adenomas, nomeadamente do tipo inflamatório, é uma decisão discutível na ausência de caracterização imunohistoquímica ou molecular.

 

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência: José Velosa; Serviço de Gastrenterologia e Hepatologia - Hospital de Santa Maria; Av. Professor Egas Moniz, 1649-035 Lisboa - Portugal. E-mail: josevelosa@fm.ul.pt

 

Recebido para publicação: 13/10/2010 e Aceite para publicação: 16/02/2011.