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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. v.17 n.2 Lisboa mar. 2010

 

Epigastralgias por osso espetado na parede gástrica

Epigastric pain due to bone in the gastric wall

 

Paulo Freire, Dário Gomes, Helena Sousa, Francisco Portela, Paulo Andrade, Sandra Lopes, Susana Alves, Hermano Gouveia, Maximino Correia Leitão

Serviço de Gastrenterologia – Hospitais da Universidade de Coimbra

Correspondência

 

CASO CLÍNICO

Doente de 84 anos, sexo feminino, admitida no Serviço de Urgência por epigastralgias intensas com início 2 horas após o almoço. Apresentava-se febril (temperatura axilar = 38,0ºC), com dor e defesa à palpação do epigastro. Negava ingestão de anti-inflamatórios não esteróides e não referia história de úlcera péptica. As análises (incluindo enzimologia cardíaca, amilasemia e amilasúria), o electrocardiograma, a radiografia do tórax e do abdómen e a ecografia abdominal não revelaram alterações.

Na endoscopia digestiva alta detectou-se corpo estranho espetado na pequena curvatura do antro pré-pilórico (Fig. 1), cuja extracção revelou tratar-se de esquírola óssea com aproximadamente 3 cm (Fig. 2) inserida numa profundidade de 2 cm. De seguida colocaram-se 2 clips no local da inserção (Fig. 3), tendo o procedimento decorrido sem incidentes. Verificou-se resolução imediata das queixas álgicas. A composição do almoço que antecedeu o início das queixas incluía frango, mas a doente, que usava prótese dentária, não se apercebeu da deglutição do osso.

 

Fig. 1. Corpo estranho (osso) espetado na pequena curvatura do antro pré-pilórico.

 

Fig. 2. Esquírola óssea com 3 cm.

 

Fig. 3. Encerramento do local de inserção com 2 clips.

 

A paciente ficou internada a cumprir vigilancia e tratamento conservador, nomeadamente dieta 0, omeprazol e antibioterapia com imipenem. Após 2 dias estava apirética e assintomática, tendo iniciado dieta oral que tolerou pelo que teve alta.

 

DISCUSSÃO

A ingestão de corpos estranhos é uma ocorrência relativamente frequente, sendo mais comum nos presidiários, doentes psiquiátricos, alcoólicos, crianças, idosos, doentes com problemas dentários (dentição incompleta e/ou utilização de próteses dentárias) e em determinadas profissões (carpinteiros, costureiras)1-3. O risco conferido pelas próteses dentárias resulta do facto destas estruturas abolirem ou diminuírem a sensibilidade táctil do palato3. A função sensorial do palato constitui um importante mecanismo de protecção porque facilita a detecção de elementos afiados ou rugosos do bolo alimentar. Cerca de 80% dos doentes que ingerem corpos estranhos têm problemas dentários, nomeadamente dentição incompleta e/ou utilização de próteses dentárias. Na nossa doente, a deglutição inadvertida e ignorada do fragmento ósseo terá sido facilitada pela prótese dentária que ela utiliza.

A suspeição clínica é dificultada pelo facto de muitos doentes não relatarem a deglutição dos corpos estranhos. Na verdade, a deglutição de corpos estranhos passa frequentemente despercebida ou, sendo notada, não lhe é atribuída importância nem nexo de causalidade com sintomas inespecíficos que por vezes só aparecem meses ou anos mais tarde3.

Embora a maioria dos corpos estranhos ingeridos percorra a totalidade do tubo digestivo e seja eliminada espontaneamente, 10-20% necessitam de remoção endoscópica e 1% exigem extracção cirúrgica1,2,4. Nos casos em que se verifica impacto, o esófago é a localização mais frequente 5. Quando um corpo estranho atinge o estômago, muito provavelmente percorrerá o restante tubo digestivo sem dificuldade e sem causar complicações1,4,5. Na literatura esta descrito apenas um caso de penetração da parede gástrica por osso de frango com resolução endoscópica através da extracção do corpo estranho e posterior encerramento com clips2. Os clips, originalmente utilizados como método hemostático, têm sido utilizados com sucesso na reparação de perfurações, inclusive no contexto da perfuração por corpos estranhos2,5.

Apesar de se tratar de um corpo estranho radiopaco, a radiografia simples do abdómen é frequentemente normal, porque os tecidos moles à volta do osso exercem um efeito de massa, que é dissimulador1,3. Por outro lado, as perfurações não condicionam habitualmente pneumoperitoneu, dado que resultam do impacto do corpo estranho e posterior erosão progressiva da parede intestinal, processo com carácter diferido que permite a contenção por fibrina e pelas estruturas abdominais adjacentes3. Na realidade, o pneumoperitoneu só se verifica em 15,9% das perfurações relacionadas com corpos estranhos3.

A dificuldade de obter uma história definitiva de ingestão dum corpo estranho, o amplo espectro de apresentações clínicas inespecíficas que se associam a estes casos e as limitações da radiografia simples do abdómen, tornam o diagnóstico destas situações um sério desafio, algo de que o caso reportado é bem ilucidativo.

 

 

Referências

1. Eisen GM, Baron TH, Dominitz JA, et al. Guideline for the management of ingested foreign bodies. Gastrointest Endosc 2002;55:802-806.        [ Links ]

2. Kim JS, Kim HK, Cho YS, et al. Extraction and clipping repair of a chicken bone penetrating the gastric wall. World J Gastroenterol 2008;14:1955-1957.

3. Goh BK, Chow PK, Quah HM, et al. Perforation of the gastrointestinal tract secondary to ingestion of foreign bodies. World J Surg 2006;30:372-377.

4. Li ZS, Sun ZX, Zou DW, et al. Endoscopic management of foreign bodies in the upper-GI tract: experience with 1088 cases in China. Gastrointest Endosc 2006;64:485-492.

5. Matsubara M, Hirasaki S, Suzuki S. Gastric penetration by an ingested toothpick successfully managed with computed tomography and endoscopy. Intern Med 2007;46:971-974.

 

Correspondência: Paulo André Vinagreiro Freire; E-mail: pauloavfreire@gmail.com; Tel: +351 239 701 517

 

Recebido para publicação: 01/08/2009 e Aceite para publicação: 23/11/2009.