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Jornal Português de Gastrenterologia

versão impressa ISSN 0872-8178

J Port Gastrenterol. v.17 n.1 Lisboa jan. 2010

 

Linfangiectasia Intestinal Primária – Como causa de Enteropatia Exsudativa

 

Margarida Figueiredo1, Emília Costa2, Elisabete Coelho2, Rosa Lima3, Fernando Pereira4, Herculano Rocha3

1Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar do Porto -Unidade Hospital Maria Pia;

2Serviço de Pediatria – Centro Hospitalar Póvoa do Varzim/Vila do Conde;

3Unidade de Gastrenterologia, C. Hospitalar do Porto - Unidade Hospital Maria Pia;

4Serviço de Gastrenterologia, C. Hospitalar do Porto - Unidade Hospital Maria Pia;

Correspondência

 

Resumo

Linfangiectasia Intestinal Primária (LIP) é um distúrbio linfático raro de etiologia desconhecida. Consiste na ectasia dos vasos linfáticos digestivos, podendo provocar ruptura com enteropatia exsudativa. A apresentação clínica é variável e os sintomas relacionam-se com a deficiência de proteínas, linfócitos, imunoglobulinas e má-absorção de gorduras, vitaminas e cálcio. Os autores apresentam um caso de LIP diagnosticada num rapaz aos três anos. O diagnóstico foi feito pelo quadro clínico, endoscopia digestiva alta e biópsias intestinais. Apesar do extenso envolvimento da mucosa intestinal, sugerido pelo estudo radiológico do intestino delgado, respondeu bem à dieta hiperprotéica e pobre em triglicerídeos de cadeia longa. Actualmente é um adolescente com edema facial e das extremidades e uma vida semelhante aos adolescentes da sua idade.

Palavras-chave: edema, Linfengiectasia Intestinal Primária, enteropatia perdedora de proteínas.

 

Primary Intestinal Lymphangiectasia – A Cause of Exsudative Enteropathy

Abstract

Primary Intestinal Lymphangiectasia (PIL) is a rare form of lymphatic disorder, of unknown aetiology. It is characterized by dilated lymphatic vessels of the bowel leading to lymph leakage and exsudative enteropathy. Presentation is variable and symptoms are related to low serum protein, lymphocytes, immunoglobulin and fat malabsorption. The authors report a case of PIL diagnosed in a 3 years old boy. The diagnosis was based on clinical, endoscopic and histological findings. Despite the large involvement of the intestinal mucosa (small bowel X-ray), the child had good clinical response to high protein and decreased long-chain fat diet. The boy is now 16 years old and has a life similar to the other healthy adolescents despite maintaining oedema of the face and limbs.

Keywords: oedema, Primary Intestinal Lymphangiectasia, protein-losing enteropathy.

 

INTRODUÇÃO

O termo Linfangiectasia Intestinal descreve um grupo de doenças caracterizadas pela dilatação dos canais linfáticos1. A ingestão de gorduras, resulta na distensão e ruptura destes canais originando perda intestinal de proteínas, linfócitos e imunoglobulinas2.

A associação de hipoalbuminemia, linfopenia e hipogamaglobulinemia deve fazer suspeitar deste diagnóstico.

A linfangiectasia intestinal pode ser primária (LIP), idiopática ou secundária. A LIP é uma malformação congénita intestinal, descrita pela primeira vez em 1961 por Waldmann et col2,3, podendo a apresentação clínica ocorrer desde o período fetal até à idade adulta. Na maioria dos doentes é uma anomalia esporádica, embora estejam descritos casos familiares ou em associação com os Síndromes de Noonan, Turner e Klippel-Trenaunay-Weber2,4. Os vasos linfáticos afectados localizam-se primariamente no intestino delgado5, estando este atingido numa extensão variável1,2,6. A sua etiologia é ainda desconhecida1.

A linfangiectasia secundária resulta de uma obstrucção linfática com pressão linfática elevada ou lesão directa dos canais linfáticos1, por situações tais como fibrose retroperitoneal, pancreatite crónica, tumores abdominais ou retroperitoneais, tuberculose mesentérica, doença de Crohn, má rotação intestinal, doença de Whipple, doença celíaca, pericardite constritiva e insuficiência cardíaca congestiva2,4.

 

CASO CLÍNICO

Criança do sexo masculino, 18 meses de idade, referenciado à consulta externa por hipertrofia do membro inferior esquerdo. Aos nove meses foi detectado aumento de volume do membro inferior esquerdo. Aos 18 meses, quando foi referenciado à consulta externa apresentava bom estado geral e nutricional e assimetria dos membros inferiores. O restante exame objectivo não evidenciava alterações e os exames complementares de diagnóstico efectuados (radiografia dos membros inferiores, tomografia axial computorizada cerebral, ecografia abdominal e cariótipo) foram normais. Em consulta de genética foi feito o diagnóstico de hemihipertrofia segmentar isolada (do membro inferior esquerdo), ficando em vigilância.

Aos 3 anos de idade começou a ter episódios de dor abdominal difusa tipo cólica, distensão abdominal e diarreia, de frequência crescente. Ao exame objectivo (Fig. 1) apresentava hipertrofia da hemiface direita, hipertrofia e edema duro dos membros superior e inferior esquerdos. O abdómen era globoso, timpanizado, com baço palpável cerca de 2-3 cm abaixo do rebordo costal esquerdo, fígado palpável 2 cm abaixo do rebordo costal direito. Analiticamente, apresentava hipoproteínemia (34 g/dl), hipoalbuminemia (17 g/L) com electroforese normal, hipogamaglobulinemia com imunoglobulina A e M normais. A função hepática e o exame sumário de urina não revelaram alterações. O restante estudo analítico (hemograma, ionograma, cálcio, fósforo, colesterol total, triglicerídeos, velocidade de sedimentação, estudo do complemento, anticorpos antigliadina e antitransglutaminase, alfa-1-antitripsina) também foi normal. A endoscopia digestiva alta revelou mucosa edemaciada na segunda e terceira porções do duodeno, pregas grossas e revestidas a pontuado branco leitoso sugestivo de linfangiectasia (Fig. 2). O exame histológico das biópsias duodenais confirmou o diagnóstico revelando grande deformação das vilosidades na dependência de expansão de capilares linfáticos que chegavam a assumir proporções microcísticas. (Fig. 3). O estudo radiológico do intestino delgado por trânsito mostrou edema e espessamento das pregas em todo o intestino delgado (Fig. 4).

 

Fig. 1. Aos 3 anos de idade é notória a assimetria das extremidades, abdómen proeminente e edema generalizado.

 

Fig. 2. Pregas espessas, edemaciadas, de tonalidade rosa claro com múltiplas formações de coloração branco leitoso que ocupam quase toda a superfície.

 

Fig. 3. Peça de biópsia duodenal: mucosa com vasos linfáticos edemaciados com aparência microcística (coloração hematoxilina).

 

Fig. 4. Rx EGD: áreas de espessamento e edema da mucosa intestinal (setas).

 

Iniciou dieta hiperproteica com baixo teor de gordura e de ácidos gordos de cadeia-longa e suplementação com triglicerídeos de cadeia média. Até aos 6 anos manteve episódios de diarreia e distensão abdominal e necessidade de perfusões regulares de albumina. A melhoria clínica foi significativa com desaparecimento progressivo do edema, normalização dos valores analíticos e boa evolução estaturo-ponderal. Desde então assintomático e sem registo de alterações electrolíticas ou proteicas significativas apesar de ter cometido alguns erros dietéticos.

Aos 16 anos encontrava-se no percentil 75 de peso e 10 altura, detectando-se ao exame objectivo assimetria corporal caracterizada por hipertrofia da hemiface direita e dos membros superior e inferior esquerdo. Os exames laboratoriais revelavam proteínas totais e albumina dentro dos valores normais e hipogamaglobulinemia (lgG: 317 mg/dl (N: 639-1349)). A endoscopia digestiva alta mostrava “Duodeno com pregas hipertrofiadas e edemaciadas com pontuado branco difuso abundante e distribuição irregular até à 3ª porção” e o exame histológico:”...numerosas linfangiectasias e hiperplasia dos folículos linfóides.” A densitometria óssea era normal para a idade. Trata-se de um adolescente com um QI dentro da média. Apesar de manter edema assimétrico da face e membros tem um estilo de vida semelhante aos adolescentes saudáveis da sua idade.

 

DISCUSSÃO

A incidência da LIP, embora baixa, é ainda desconhecida uma vez que pode ser assintomática até à idade adulta2. As manifestações clínicas variam desde as formas assintomáticas até alterações graves com anasarca e ascite quilosa, que aparecem habitualmente de uma forma episódica1,2,5,7. Associa-se muitas vezes com edema linfático da face, membros e órgãos genitais, podendo este preceder o aparecimento dos sintomas gastro-intestinais1. A incidência é igual em ambos os sexos e ocorre habitualmente durante o primeiro ano de vida4. Embora esteja relacionada com alterações significativas do sistema imunitário (linfopenia e hipogamaglobulinemia), as infecções graves não são frequentes4. Esta patologia pode cursar com tetania, má evolução estato-ponderal e dismorfias devidas ao edema linfático4. Para além de uma dieta permanente1,2,4,6,7 rica em proteínas, com baixo teor de gorduras e com triglicerídeos de cadeia média, cálcio e vitaminas lipossolúveis, podem ser necessárias perfusões de albumina e nos casos de lesões focais a exérese cirúrgica do segmento intestinal afectado pode ser curativa2. Tratamentos com antiplasmina, corticóides e octreótido não são ainda consensuais1,2,4,6.

Perante uma criança com edemas generalizados, excluídas as hipóteses de malnutrição, insuficiência cardíaca ou hepática e síndrome nefrótico, deve ser considerada a possibilidade de uma enteropatia com perda de proteínas.

A hipoproteinemia ocorre quando a perda intestinal é o dobro do normal, considerando que a síntese hepática não compensa a perda entérica e a síntese de imunoglobulinas não aumenta de forma compensadora.

No caso descrito o nível sérico de IgG estava diminuído mas a linfopenia característica, devida à exsudação pelos canais linfáticos não se observou.

Neste doente a co-existência de hemihipertrofia facial e edema linfático das extremidades levou à suspeita de Linfangiectasia Intestinal Primária uma vez que neste doente tinham sido já excluídos outras síndromes na consulta de genética. O diagnóstico foi confirmado pelas imagens características da endoscopia e pelos achados histológicos. As múltiplas amostras de biópsia jejunal permitiram estabelecer o diagnóstico, o que nem sempre acontece em especial quando as lesões não são difusas4. O exame endoscópico é extremamente importante para localizar as lesões e biopsá-Ias1-4. O estudo radiológico do intestino delgado e mais recentemente a videocápsula endoscópica permitem conhecer a extensão das lesões.

O objectivo do tratamento médico é compensar a perda entérica de proteínas, com dieta com elevado teor proteico e reduzir o fluxo nos vasos linfáticos com suplementação com triglicerídeos de cadeia média1-4. Pode ser necessário a administração de vitaminas lipossolúveis e suplementos de cálcio.1,2,4 Habitualmente obtêm-se melhores resultados quando a lesão está limitada à lâmina própria. Em muitos casos em que não se verifica melhoria com esta terapêutica é necessária nutrição parentérica.1,2 O tratamento cirúrgico está indicado nas pequenas lesões intestinais localizadas, no envolvimento pleural ou pericárdico e em casos de falência da terapêutica médica1,2,4.

O prognóstico é muito variável dependendo da resposta à terapêutica e da extensão de intestino afectado bem como do grau de imunodeficiência celular ou humoral do doente. Varia desde a remissão espontânea ou boa tolerância às gorduras, até casos de deterioração total com anasarca e caquexia2,4. A principal complicação é o edema linfático dos membros inferiores que pode vir a infectar necessitando de cuidados específicos e pode levar a deterioração da qualidade de vida por dificuldades na locomoção. Outras complicações que podem ser ameaçadoras são o derrame pericárdico e pleural. Está descrito aumento da incidência de neoplasias (especialmente linfoma). Apesar do acentuado envolvimento da mucosa intestinal no doente apresentado verificou-se uma boa resposta à dieta. A vigilância clínica destes doentes é muito importante não só pelo estado nutricional do doente como também pela possibilidade de desenvolvimento de neoplasias linforecticulares que pode ocorrer ao longo dos anos2-4,8.

 

Bibliografia

1.    Proujansky R. Pediatric Gastrointestinal Disease. 3rd ed. Ontario, BCDecker 2000;194-202.        [ Links ]

2   Vignes S, Bellanger J. Primary intestinal lymphangiectasia (Waldmann’s disease). Orphanet Journal of Rare Diseases 2008;3:5.

3   Garcia-Careaga M, Kemer JA. Nelson Textbook of Pediatrics. 17th ed. Philadelphia: Saunders 2004;1266.

4   Yokocama MY, Neto FU. Linfangiectasia intestinal. The electronic joumal of Pediatric Gastroenterology, Nutrition and Liver Diseases 2003;7 (www.e-gastroped.com.br/sep03IIinfangiectasia.htm).

5   Uguralp S, Mutus M, Kutlu O, Çetin S, Baysal T, Mizrak B. Primary Intestinal Lymphangiectasia: A rare disease in the differential diagnosis of acute abdomen. J. Pediatr Gastroenterol Nut 2001;33:508-510.

6   MacLean JE, Cohen E, Weinstein M. Primary Intestinal and Thoracic Lymphangiectasia: A Response to Antiplasmin Therapy. Pediatrics 2002;109:1177-1180.

7   Fang YH, Zhang BL, Wu JG, Chen CX. A primary intestinallymphangiectasia patient diagnosed by capsuIe endoscopy and confirmed at surgery: A case report. World J Gastroenterol 2007;13:2263-2265.

8   Bouhnik Y, Etienney I, Nemeth J, Thevenot T, Lavergne-Slove A, Matuchansky C. Very late onset small intestinal B cell lymphoma associated with primary intestinal lymphangiectasia and diffuse warts. Gut 2000;47:296-300.

 

Correspondência: Margarida Figueiredo; Hospital de Crianças Maria Pia; Rua da Boavista, 827; 4050-111 Porto; e-mail: margaridafigueiredo@net.sapo.pt

 

Recebido para publicação: 04/09/2008 e Aceite para publicação: 11/02/2009