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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27 no.3 Lisboa July 2020

https://doi.org/10.24950/PP/3/2020 

PÁGINA DO PRESIDENTE / PRESIDENT'S PAGE

 

A Medicina Interna nas Trincheiras da Guerra Contra a Pandemia COVID-19

Internal Medicine in the Trenches of the War Against the COVID-19 Pandemic

 

João Araújo Correia
https://orcid.org/0000-0002-6742-3900

Presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

 

“Ter estado num naufrágio ou numa batalha, é algo belo e glorioso; o pior é que teve de se lá estar, para se ter lá estado.” Fernando Pessoa

Estamos a viver uma experiência única das nossas vidas, da qual ainda estamos longe de conhecer todas as consequências. Sabemos que se trata de uma catástrofe económica e social, com uma perda brutal de vidas humanas. Esta pandemia, põe á prova os sistemas políticos dos Países, com a saúde em primeiro lugar, e é tão avassaladora, em poucos dias, que não há tempo para esconder nada. Houve quem dissesse, que esta pandemia era uma guerra, igual às grandes, que já conhecemos, na sua capacidade destruidora do mundo de cada um. Acho que têm razão. Parece até, que este inimigo invisível é capaz de abalar ainda mais as nações poderosas, corroendo-as por dentro, mostrando os defeitos dos seus sistemas políticos, com as chagas sociais expostas a olho nu.

Nesta Guerra da COVID-19, cujo primeiro embate Portugal parece ter vencido, há muita gente a quem temos de prestar tributo. Todos os que mantiveram as cidades vivas, mesmo que letárgicas, permitindo aos outros ficarem em casa. Às forças de segurança, aos bombeiros e a todos os elementos das equipas de saúde. Nestes, há que realçar os auxiliares, que limparam tudo com afinco, várias vezes por turno, para que os médicos e enfermeiros não se infetassem, sem olharem para o seu próprio risco, nem para o salário irrisório. Dos médicos, logo nos lembramos da Saúde Pública, da Medicina Geral e Familiar, dos Infeciologistas, dos Pneumologistas, dos Internistas e dos Intensivistas. Mas, no auge da crise de março, os hospitais recrutaram Especialistas e Internos de muitas outras Especialidades, e todos não foram de mais.

A verdade mais evidente que nos fica, é a da necessidade do País ter um Serviço Nacional de Saúde (SNS) estruturado, não subfinanciado ou reduzido, a contar com a quimera da capacidade instalada nos hospitais privados. Só um sistema de saúde público, forte e universal, é capaz de ter uma resposta concertada, com empenhamento absoluto de médicos, enfermeiros e auxiliares, que por isso deverão estar tendencialmente a trabalhar em regime de exclusividade.

A linha da frente das guerras convencionais, é a trincheira. Logo nos vêm à memória aquelas da I Guerra Mundial, cheias de lama e cheiros nauseabundos, que os soldados sem nome defendiam até á última bala, ou até que o gás mostarda lhes dilacerasse os pulmões. É nossa convicção, de que a Medicina Interna, como especialidade hospitalar mais numerosa (14% dos especialistas hospitalares) e competente para o tratamento global do doente idoso pluripatológico, desde a Urgência até aos Cuidados Intensivos e Paliativos, teve um contributo decisivo na resposta estruturada do SNS à COVID-19. Foi a Medicina Interna, que encheu as trincheiras nesta luta titânica contra a pandemia!

A SPMI fez um inquérito dirigido aos Diretores dos 85 Serviços de Medicina Interna instalados nos Hospitais COVID de todo o País, referido ao dia 29-04-2020. Através dele, a SPMI procurou avaliar o envolvimento dos Internistas no tratamento dos doentes infetados pela COVID-19. Registamos as respostas de 63 Hospitais COVID, que correspondem a 74% do total. A primeira conclusão relevante, é que, nesse dia, o SNS tinha uma capacidade de resposta muito superior necessária, pois a taxa de ocupação das enfermarias COVID era de 48,8% (1963 camas disponíveis e 958 doentes internados) e nas Unidades de Cuidados Intensivos era de 31,6% (620 camas e 196 doentes internados). Em 65% das enfermarias COVID, houve colaboração de especialistas de Medicina Interna com vários especialistas de outras áreas (Pneumologia, Infeciologia, Cirurgia, Gastroenterologia, Cardiologia Ortopedia, Pediatria, Oncologia, Oftalmologia, Nefrologia, ORL, etc.), enquanto em 35% das Unidades a gestão clínica dos doentes foi assegurada integralmente por Internistas. Foi 579, o número de especialistas (327) e Internos de Medicina Interna (248), em dedicação exclusiva ao tratamento dos doentes COVID, nas enfermarias dedicadas, e nas Unidades de Cuidados Intensivos.

Todos os hospitais tiveram que se reinventar, para terem camas onde recebessem os doentes COVID-19, para além da necessidade da criação de circuitos diferenciados estanques, para ser possível tratar os outros pacientes não infetados. Na maior parte dos casos, as Unidades COVID ficaram sediadas em Unidades de Medicina Interna. Os outros doentes médicos internados, foram ocupar as camas dos Serviços Cirúrgicos, deixadas livres pela suspensão da cirurgia programada.

Mas, não há dúvida que Portugal soube aproveitar o tempo a mais que teve, para se preparar para o combate. O Governo, levou a sério as imagens chegadas doutros Países, com os hospitais em rutura, e decretou o Estado de Emergência a 19 de Março, quando ainda não tínhamos nenhum falecido e apenas algumas dezenas de casos confirmados. Num estudo da Escola Nacional de Saúde Pública, calcula-se que, se o confinamento não tivesse sido decretado, na primeira quinzena de Abril teríamos o triplo de doentes em Cuidados Intensivos (748/229), quando apenas havia 528 camas disponíveis, nessa altura. Essa medida, também teria resultado numa redução de 5568 casos positivos (-25%) e menos 146 mortos (-25%), no mesmo período de tempo.

As grandes crises, podem ser oportunidades para mudarmos os nossos hábitos, formas de pensar e no terrível vício português do desenrascanço. Infelizmente, não acredito que esta pandemia chegue para que os donos do mundo repensem o modelo de desenvolvimento, de consumismo desenfreado e inútil. Mas, tenho esperança que os portugueses tenham aprendido que o recurso ao Serviço de Urgência do Hospital deve ser reservado para a doença aguda ou crónica, moderada a grave. E, talvez os políticos vejam quão preciosas são as camas hospitalares, que não podem ser desperdiçadas em doentes com alta clínica, a aguardar colocação na Rede de Cuidados Continuados ou num Lar da Segurança Social. Isto, é um flagelo para os Serviços de Medicina Interna, que têm 25% das camas disponíveis ocupadas permanentemente com internamentos inapropriados (estudo da SPMI de 18/2/2020).

Esta, não será a última pandemia. Outras virão, ou esta recrudesce, lá para o Outono. Vamos estar mais preparados, porque adquirimos equipamentos em falta e recrutamos muitas pessoas que precisávamos. O SNS ficou mais reforçado e capaz de resistir nas trincheiras, com a Medicina Interna como a maior força nas suas fileiras!

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) e Revista SPMI 2020. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

© Author(s) (or their employer(s)) and SPMI Journal 2020. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.

 

Recebido / Received: 08/07/2020

Aceite/Accepted: 08/07/2020

 

Publicado / Published: 28 de Setembro de 2020

 

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