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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27 no.2 Lisboa Apr. 2020

https://doi.org/10.24950/CC/252/19/2/2020 

CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS

 

Escorbuto, Deveria Deixar de Ser Uma Surpresa?

Scurvy, should we be Less Surprised?

 

Adriana Watts Soares1
https://orci.org/0000-0002-6166-3145

Luis Falcão2
https://orci.org/0000-0001-8303-5134

Maria Maia1
https://orci.org/0000-0001-5194-6865

Virginia Visconti1
https://orci.org/0000-0001-5815-0528

João Espírito Santo1
https://orci.org/0000-0001-6415-2095

Isménia Oliveira1
https://orci.org/0000-0002-9207-7851

1Serviço de Medicina Interna, Hospital Beatriz Ângelo, Loures, Portugal

2Serviço de Nefrologia, Hospital Beatriz Ângelo, Loures, Portugal

 

Resumo:

Os autores relatam o caso clínico de um homem de 77 anos com história de etilismo crónico que residia em condições socioeconómicas precárias numa região suburbana, admitido no hospital por hematoma espontâneo na coxa esquerda sem compromisso neurovascular. A avaliação complementar revelou pancitopenia(hemoglobina 6,4 g/dL; hematócrito 19%; leucocitos 2600/L; plaquetas 126000/L), macrocitose (VGM 113fL), hiperbilirrubinemia (total 2,64 mg/dL), tempo de protrombina prolongado (INR 1,47), hipoalbuminemia (2,8 mg/dL) e alterações fibróticas na arquitetura estrutural do fígado visíveis na ecografia abdominal. No internamento, verificaram-se alterações semiológicas sugestivas de escorbuto (lesão purpúrica nos membros inferiores, hemorragia perifolicular, pápulas hemorrágicas, pêlos em saca-rolha e hipertrofia gengival). A hipótese diagnóstica de hipovitaminose C foi confirmada perante doseamento < 1 mg/L, para além de déficit de vitamina B12 e ácido fólico. Iniciou-se suplementação vitamínica e otimização dietética, resultando numa evolução favorável das alterações clínicas e laboratoriais associados ao escorbuto. Com a descrição deste caso, os autores pretendem alertar para a associação entre má nutrição, etilismo e carência económica com subsequente hipovitaminose C. O reconhecimento das manifestações clínicas de escorbuto e diagnóstico atempado permite evitar investigação desnecessária e tratamento eficaz de uma entidade que acarreta grande morbilidade e mortalidade.

Palavras-chave: Alcoolismo; Deficiências de Vitaminas; Desnutrição; Escorbuto.

 

Abstract:

The authors present a case of a 77-year-old male with an alcohol use disorder, living alone, in poor sanitary conditions in a suburban area, admitted to hospital due to a spontaneous hematoma on his left lower limb with no neurovascular complications. Additional workup concluded pancytopenia (Hb 6.4 g/dL; Htc 19%; leuc 2600/L; plat 126000/L), macrocytosis (VGM 113 fL), hyperbilirubinemia (total 2.64 mg/dL), prolonged prothrombin time (INR 1.47), hypoalbuminemia (2.8 mg/dL) and fibrotic changes in hepatic architecture on ultrasound. Upon thorough examination, an extensive purpuric lesion on both lower limbs associated with perifollicular haemorrhagic papules, corkscrew hair, gingival hypertrophy, and lack of teeth was noted. Even though it is rarely seen nowadays, the semiology findings suggested vitamin C (ascorbic acid) deficiency, known as scurvy. This diagnosis was confirmed via laboratory testing that quantified seric vitamin C <1 mg/L (ref value 2-15 mg/dL), as well as vitamin B12 value of 186 ng/L (ref value 193-982 ng/L) and folic acid value of <1ng/mL (ref value 3-17 ng/mL). Vitamin supplementation and healthy nutrition were begun showing a favourable outcome with hematoma, purpura, and pancytopenia regression. The clinical manifestations of vitamin deficiency, like scurvy, can be vast and overlooked, if this outdated diagnosis is not considered, leading to unnecessary investigation and erroneous diagnoses.

Keywords: Alcoholism; Avitaminosis; Malnutrition; Scurvy.

 

Introdução

A má nutrição e as subsequentes hipovitaminoses são complicações frequentes dos doentes com alcoolismo crónico.  As manifestações e consequências clínicas são vastas,sendo reversíveis se adequadamente identificadas. O escorbuto é uma doença causada pelo défice de vitamina C, comprometendo a síntese de colagénio e consequente manutenção da integridade das paredes capilares, formação de glóbulos vermelhos, metabolismo de alguns aminoácidos, resistência às infeções, entre outras. Apesar de o défice de vitamina C constar como uma das hipovitaminoses mais frequentes nestapopulação de risco, contrariandoa ideia de que o escorbuto é uma doença do passado, os seus sinais clínicos e laboratoriais raramente são pesquisados.

 

Caso Clínico

Doente do sexo masculino, 77 anos, leucodérmico, com história de abuso de álcool (um litro de vinho por dia), situação socioeconómica precária e risco nutricional elevado, que foi admitido no hospital por hematomaespontâneo de grandes dimensões na coxa esquerda.

Do exame objetivo, destacava-se mau estado de higiene e idade real inferior à idade aparente, normotenso (PA 129/65 mmHg) e taquicardico (FC 129 bpm), vígil e colaborante, diminuição da sensibilidade vibratória a nível distal dos membros inferiores bilateralmente, marcha base alargada e discreta ataxia, mucosas e pele desidratadas, descoradas e anictéricas, hipertrofia gengival com peças dentárias em mau estado (Fig. 1), telangiectasias dispersas, lesões purpúricas extensas não palpáveis e não coalescentes nos membros inferiores, extensa equimose na coxa esquerda com sinais de má perfusão periférica a jusante (Fig. 2) e hemorragia perifolicular e pêlos em “saca-rolhas” (Fig. 3). A nível abdominal, apresentava circulação venosa colateral, mas à palpação, sem organomegalias ou ascite identificável.

A avaliação complementar revelou pancitopenia com anemia macrocítica (hemoglobina 6,4 g/dL, hematócrito 19,6%, volume globular médio 113 fL), leucopenia (3300 células/L), trombocitopenia (126000 células/L), esfregaço de sangue com anisomacrocitose moderada, prolongamento dos tempos de coagulação (tempo de protrombina 15,5 segundos, INR 1,47), hiperbilirrubinemia total à custa da bilirrubina conjugada (bilirrubina total 2,64 mg/dL, bilirrubina conjugada 1,16 mg/dL) com restantes parâmetros hepáticos dentro dos valores de referência (aspartato aminotransferase 20 UI/L, alanina aminotransferase 20 UI/L, fosfatase alcalina 103 UI/L, gamaglutamiltransferase 72 UI/L), hipoproteinemia com hipoalbuminemia (proteínas totais 5,8 mg/dL; albumina 2,8 mg/dL), função renal normal com natremia 134 mmol/L e hiperlactacidemia (lactatos 21 mg/dL). Serologias para o vírus da imunodeficiência humana e vírus hepatotrópicos negativas. A ecografia abdominal mostrou um fígado de dimensões aumentadas e com contornos irregulares com ecoestrutura discretamente heterogénea e a ecografia vascular dos membros inferiores excluiu trombose venosa profunda e alterações do eixo arterial periférico.

A impressão diagnóstica fora que o hematoma espontâneo se contextualizasse na coagulopatia secundária a doença hepática crónica, neste caso, de etiologia etanólica, e classificada em Child-Pugh B (7 pontos) associado a neuropatia periférica no contexto de etilismo crónico. Porém, considerando o contexto socioeconómico, relato de hábitos alimentares pobres em vegetais e frutas, abuso de álcool e achados semiológicos, considerou-se a hipótese diagnóstica da existência concomitante de hipovitaminose grave, especificamente escorbuto,entre outros deficits nutricionais.

Os resultados laboratoriais confirmaram a hipovitaminose com valores de ácido ascórbico não doseáveis (< 1 mg/L; valores de referência 2-15 mg/dL), tal como baixos valores de ácido fólico (<1 ng/mL; valores de referência 3-17 ng/mL) e de vitamina B12 (186 ng/mL; valores de referência 193-982 ng/mL).

Como abordagem terapêutica, para além dos cuidados dirigidos à doença hepática crónica e etilismo crónico, otimizou-se a dieta com reforço de frutas e vegetais e iniciou-se reposição multivitamínica com 1000 mg/dia de ácido ascórbico, 5 mg/dia de ácido fólico e 1 g de cianocobolamina. O doente apresentou evolução clínica lenta, mas favorável tendo-se verificado regressão progressiva do hematoma da coxa, tal como das hemorragias perifoliculares e ausência de hemorragias de novo. Do ponto vista laboratorial, evidenciou-se a normalização das alterações do hemograma (hemoglobina 12 g/dL, hematócrito 37%, volume globular médio 84 fL, leucócitos7300 células/L, plaquetas 196 000 células/L) e do tempo de coagulação (tempode protrombina 13,5 segundos, INR 1,17). A alta hospitalar foi possível após assegurar condições habitacionais seguras com dinamização de apoio ao domicílio para continuidade dos cuidados dietéticos necessários.

 

Discussão

As descrições de escorbuto são encontradas em literatura que remete ao tempo do antigo Egipto e império romano, o que revela a antiguidade do conhecimento desta doença.1 O escorbuto foi identificado como uma hipovitaminose no século XVI, ganhando notoriedade quando se reconheceu que a maioria dos marinheiros da época dos descobrimentos tinha esta doença1,2 e que era evitada quando se introduzia uma dieta rica em vegetais. Todavia,relatos de escorbuto continuam a merecer destaque em populações com risco nutricional elevados, nomeadamente pessoas com abuso de álcool crónico, distúrbios alimentares psiquiátricos ou com restrições dietéticas, doença inflamatória intestinal, idosos e crianças com hábitos dietéticos pobres em vitaminas. Estudos epidemiológicos revelam que é uma doença muito prevalente nestas populações,2-4  mas raramente identificada ou diagnosticada.

Relativamente ao caso clínico apresentado, realça-se que o alcoolismo crónico é a causa mais frequente desta hipovitaminose por razões multifatoriais, nomeadamente um excesso de bebidas alcoólicas que são pobres em vitamina C, a tendência que os alcoólicos têm para se alimentarem com uma dieta pouco nutritiva e o efeito negativo que o álcool exerce na absorção intestinal de vitamina C.1 A prevalência de má nutrição varia entre 20%-60%, dependendo da presença e grau de cirrose hepática.4

A vitamina C (acido ascórbico) é uma vitamina hidrossolúvel  cujo corpo humano não tem a capacidade de produção nem de armazenamento, estando dependente do aporte exógeno através de alimentos ricos nesta vitamina (frutos citrinos, tomate, espinafre, brócolos e morangos, por exemplo).5  A absorção é feita no intestino delgado numa dose dietética que habitualmente ronda os 100 mg/dia.5  As necessidades basais de um ser humano saudável são de 60 a 90 mg/dia. O ácido ascórbico está envolvido em vários processos biológicos, nomeadamente na síntese de carnitina para transporte de ácidos de cadeia longa pela membrana mitocondrial, síntese de neurotransmissor norepinefrina e de óxido nítrico, metabolismo de prostaglandinas, fator importantena atenuação da resposta inflamatória. No entanto,umadas ações mais importantes é a síntese de colagénio,  atuando  na  hidroxilização  de  dois  aminoácidos fulcrais (prolina e lisina) para a estrutura colagenosa.3,6 A inaptidão para a síntese de colagénio propicia uma cicatrização deficitária, bem como disfunção osteoblástica e fibroblástica.3,6

Os sintomas de escorbuto podem surgir após três meses de aporte deficitário de vitamina C e normalmente ocorrem quando a concentração plasmáticaé inferior a 0,2 mg/dL.2,4,7 As manifestações mais frequentes são as consequências de alteração da estrutura e fragilidade do colagénio a nível piloso, tecido conjuntivoe vasos sanguíneos. As alterações do sistema tegumentar são essencialmente a hiperqueratose folicular resultando em deformação dos pêlos no formatopatognómicode pêlos em saca-rolha. As alteraçõesda mucosa, essencialmente hipertrofia gengival, ocorre na presença de maus cuidados de higiene oral e o mecanismo implícito envolve uma inflamação crónica das gengivas, fragilidade vascular intramucosa perpetuando edema e microhemorragia da gengiva e perda de peças dentárias. A fragilidade vascular é revelada pela hemorragia perifolicular, discrasia hemorrágica com equimoses espontâneas, tendencialmente nos membros inferiores, por ação da gravidade.8 As lesões hemorrágicas são geralmente planas, mas podem coalescer eprovocar pápulas purpúricas que se podem confundir com vasculite sistémica, um dos diagnósticos diferenciais. Outros sintomas associados são astenia, artralgias, depressão, anorexia, edema periférico, sintomas sicca (securada boca e olhos) e neuropatia periférica.5,8,9 Estes sinais podem mimetizar várias doenças sistémicas, tornando a elevada suspeição e reconhecimento clínico fulcrais para evitar exames complementares e tratamentos desadequados.

O escorbuto pode-se revelar laboratorialmente com anemia e leucopenia e imagiologicamente como uma rarefação da trabeculação óssea dos ossos longos. O diagnóstico é essencialmente clínico, podendo ser confirmado com o doseamento séricoda vitamina.

O prognóstico de escorbuto é bom se identificado e tratado adequadamente com reposição da vitamina deficitária,1,2,5,6  administrando ácido ascórbico 1000 mg por via oral, duas vezes por dia durante três dias, seguido de 500 mg duas vezes por dia durante 20 dias.2 Os sintomas regridem rapidamente, num período variável entre três dias e duas semanas. Por se acreditar que é umadoença antiga e atualmente rara, o escorbuto é uma entidade clínica subdiagnosticada.

 

Conclusão

Este caso mostra a importância da elevada suspeição clínica para hipovitaminoses através de uma anamnese e semiologia rigorosa nos doentes em risco, nomeadamente doentes em situação social e económica precária. O reconhecimento atempado evita investigações etiológicas fúteis e permite um tratamento dirigido e eficaz das manifestações vastas e graves, prevenindo assim a morbilidade e mortalidade associada.

 

REFERÊNCIAS

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Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Confidencialidade dos Dados: Os autores declaram ter seguido os protocolos da sua instituição acerca da publicação dos dados de doentes.

Consentimento: Consentimento do doente para publicação obtido.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

 

Ethical Disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship

Confidentiality of Data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Patient Consent: Consent for publication was obtained.

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer  reviewed.

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.

 

Correspondence / Correspondência:

Adriana Watts Soares – adrianawsoares@gmail.com

Serviço Medicina Interna, Hospital Beatriz Ângelo, Loures, Portugal

Av. Carlos Teixeira 3, 2674-514 Loures

 

Received / Recebido: 05/12/2019

Accepted / Aceite: 03/02/2020

 

Publicado /Published: 27 de Junho de 2020

 

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