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Medicina Interna

Print version ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.27 no.1 Lisboa Mar. 2020

https://doi.org/10.24950/Guidelines/Consensus/1/2020 

GUIDELINES / Consensus

 

Alimentação na Demência Avançada: Documento de Consenso da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e da Associação Portuguesa de Nutrição Entérica e Parentérica

Feeding in Advanced Dementia: Consensus Report from the Portuguese Society of Internal Medicine and Portuguese Enteral and Parenteral Nutrition Society

 

Ana Pessoa1,2
https://orcid.org/0000-0002-6881-1657

Paulo Almeida3,4
https://orcid.org/0000-0002-4879-559x

Ricardo Marinho2,5,6
https://orcid.org/0000-0001-7091-3911

Sofia Duque4,7
https://orcid.org/0000-0001-9273-5650

Teresa F. Amaral2,8
https://orcid.org/0000-0002-3998-6730

João Pinho2,9
https://orcid.org/0000-0002-3047-2848

Mariana Santos2
https://orcid.org/0000-0003-0161-4568

Elga Freire5,10
https://orcid.org/0000-0002-4081-8312

Lino Mendes2,11
https://orcid.org/0000-0002-7237-6272

Lèlita Santos6,12,13
https://orcid.org/0000-0002-0761-5097

Aníbal Marinho2,6,14
https://orcid.org/0000-0002-9160-8649

João Gorjão Clara4,15
https://orcid.org/0000-0003-4553-6928

João Araújo Correia5,13
https://orcid.org/0000-0002-6742-39000

 

1Serviço de Medicina, Centro Hospitalar do Médio Ave, Vila Nova de Famalicão, Portugal

2Associação Portuguesa de Nutrição Entérica e Parentérica

3Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar do Baixo Vouga, Aveiro, Portugal

4Núcleo de Estudos de Geriatria, Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

5Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar e Universitário do Porto, Porto, Portugal

6Núcleo de Estudos de Nutrição Clínica, Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

7Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, Lisboa, Portugal

8Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação, Universidade do Porto, Porto, Portugal

9Serviço de Nutrição, Centro Hospitalar do Médio Ave, Vila Nova de Famalicão, Portugal

10Núcleo de Estudos de Medicina Paliativa, Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

11Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa, Lisboa, Portugal

12Serviço de Medicina, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal

13Sociedade Portuguesa de Medicina Interna

14Serviço de Medicina Intensiva, Centro Hospitalar e Universitário do Porto, Porto, Portugal

15Hospital CUF Descobertas, Lisboa, Portugal

 

Resumo:

A demência é uma síndrome neurológica de agravamento progressivo, sem cura, cuja prevalência tem vindo a aumentar devido ao envelhecimento da população. Existe um grande desconhecimento entre profissionais de saúde e cuidadores relativamente à melhor abordagem da alimentação nos doentes com demência avançada. Dado não existirem recomendações nacionais acerca deste tema, foi elaborado um documento de consenso da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna e da Associação Portuguesa de Nutrição Entérica e Parentérica que explicita as orientações existentes relativas à abordagem dos problemas alimentares nos doentes com demência avançada.

A demência avançada é uma condição terminal em que deve ser privilegiado o conforto do doente, frequen-temente acamado, incapaz de comunicar verbalmente e com dificuldade na alimentação. Nesta população, a literatura atual não recomenda o uso de alimentação por sonda (nasogástrica, nasojejunal, gastrostomia percutânea ou jejunostomia percutânea), que está associada a maior risco de infeção, maior utilização de meios de contenção e desenvolvimento de úlceras de decúbito. Como alternativa, recomenda-se a alimentação por via oral de acordo com a tolerância e vontade do doente (alimentação de conforto). Do ponto de vista ético e legal, é legítimo não proceder à artificialização da alimentação na fase terminal da demência caso este procedimento seja contrário aos valores da pessoa e não se objetivem benefícios. Esta decisão deve ser tomada após discussão multidisciplinar incluindo o doente (se possível), representante legal, cuidadores, família e equipa de profissionais de saúde envolvidos, elaborando um plano individual de cuidados que permita a tomada de decisões no melhor interesse do doente.

 

Palavras-chave: Cuidados Paliativos; Demência; Enve-lhecimento; Idoso; Ingestão de Alimentos; Métodos de Alimentação.

 

Abstract:

Dementia is a progressive neurological syndrome without cure whose prevalence is increasing due to population ageing. There is a lack of knowledge among healthcare professionals and caregivers regarding the best feeding approach in patients with advanced dementia. As there are no national recommendations on this subject, a consensus report from the Portuguese Society of Internal Medicine and the Portuguese Enteral and Parental Nutrition Society was made, clarifying existing guidelines regarding the approach of eating difficulties in these patients.

Advanced dementia is a terminal condition where patient comfort should be the goal. These patients are usually bedbound, have limited ability to communicate verbally and have difficulty eating. In this population, current literature does not support tube feeding (nasogastric tube, nasojejunal tube, percutaneous gastrostomy or percutaneous jejunostomy feeding), which is associated with higher rates of infection, greater use of chemical and physical restraints and development of pressure ulcers. As an alternative, careful hand feeding should be offered (comfort feeding). From an ethical and legal standpoint, it is acceptable not to use tube feeding in the terminal phase of dementia if it is against patient values and offers no benefits. This decision should be made using a multidisciplinary approach including the patient (if possible), legal representative, caregivers, family and healthcare professionals, in order to establish an individual care plan allowing decision making in the patient’s best interest.

 

Keywords: Aged; Aging; Dementia; Eating; Feeding Methods; Palliative Care.

 

Introdução

Com o envelhecimento da população, a prevalência de demência tem vindo a aumentar. Segundo o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) de 2017, Portugal é o quarto país da OCDE com maior prevalência de demência – cerca de 20 pessoas por 1000 habitantes.1

A demência é uma síndrome neurológica de agravamento progressivo e sem cura.2-5 A atrofia de regiões cerebrais envolvidas na regulação do apetite e do comportamento alimentar, a inflamação cerebral e as alterações patológicas do sistema olfativo contribuem para o desenvolvimento de anorexia, esquecimento de comer, incapacidade para reconhe-cer e selecionar adequadamente os alimentos, incapacidade de cozinhar, usar talheres ou mastigar eficazmente.6 Assim, com a evolução da doença observa-se recusa alimentar, disfagia3,6,7 e perda de peso.2,6

A demência evolui em diferentes fases, existindo um grande desconhecimento entre profissionais de saúde e cuidadores relativamente à melhor abordagem da alimentação nos doentes com demência avançada.7 Estudos sugerem que compreender o prognóstico e complicações da demência diminui o número de intervenções de benefício questionável e com impacto no bem-estar do doente, nomeadamente terapêutica endovenosa, hospitalização e colocação de sonda para alimentação.2,8 Deste modo, conhecer esta patologia, os consequentes problemas alimentares e o melhor modo de os abordar é fundamental para prestar os melhores cuidados a esta população. Existem várias orientações internacionais publicadas sobre o tema.6, 9-11 No entanto, não existem recomendações nacionais que facilitem a comunicação entre profissionais de saúde, doentes, cuidadores e família. Assim, é objetivo deste documento explicitar as orientações existentes relativas à abordagem dos problemas alimentares nos doentes com demência avançada.

 

Termos e conceitos

De modo a tornar a comunicação objetiva, clarificam-se de seguida alguns conceitos utilizados ao longo deste documento:

 

Demência (perturbação neurocognitiva major)

A demência ocorre quando há evidência de declínio da capacidade cognitiva envolvendo um ou mais domínios cognitivos, nomeadamente atenção, aprendizagem e memória, linguagem, função visuoespacial, função executiva e cognição social. Adicionalmente, os défices cognitivos interferem necessariamente nas atividades de vida diária e não ocorrem exclusivamente no contexto de delirium nem no contexto de outro distúrbio mental (como por exemplo depressão ou esquizofrenia).12

 

Demência avançada

É difícil determinar o ponto em que a demência avançada se manifesta, pois a sua evolução é contínua e progressiva, e varia com o ambiente, comorbilidades e doença aguda.3 Ao longo do curso da doença podem ocorrer episódios autolimitados de declínio cognitivo mais rápido em contexto de doença aguda ou agudização de doença crónica (delirium sobreposto a demência), após os quais o retorno ao estado basal pode ou não acontecer.3 Apesar destas particularidades, a deterioração cognitiva acentuada da demência avançada condiciona a capacidade funcional dos doentes. Estes estão frequentemente acamados e totalmente dependentes para as atividades básicas e instrumentais da vida diária, apresentam incapacidade (que poderá ser total) de comunicar verbalmente e dificuldade na alimentação (anorexia e falha de refeições, incapacidade para se alimentarem sozinhos, recusa alimentar e/ou disfagia).2 O estado de desnutrição e fragilidade daqui decorrente facilita o desenvolvimento de múltiplas complicações, como a instalação ou agravamento de imobilidade e úlceras de pressão, agravamento da dependência funcional e aumento do risco de complicações infeciosas, com a consequente elevada taxa de mortalidade que caracteriza esta fase.2,10,13

 

Disfagia

A disfagia refere-se à dificuldade nas fases iniciais da deglutição (disfagia orofaríngea) ou à sensação de passagem obstruída entre a boca e o estômago (disfagia esofágica).14 A disfagia orofaríngea é a mais comum na demência,14 e pode resultar na acumulação do bolo alimentar na boca (não ha-vendo deglutição) e/ou aspiração.6

 

Terapêutica médica nutricional

A terapêutica médica nutricional inclui suplementação nutricional oral, nutrição entérica e nutrição parentérica.15 Os suplementos nutricionais orais são alimentos especialmente formulados ou processados para otimizar o estado nutricional dos doentes quando a dieta culinária não é suficiente. Estes alimentos são fornecidos como líquidos prontos a beber, cremes ou suplementos em pó.15 A nutrição entérica consiste em terapêutica nutricional administrada por sonda (vide alimentação por sonda). A nutrição parentérica consiste na administração de nutrientes através de acesso venoso central ou periférico.15 Tradicionalmente, a nutrição entérica e parentérica era designada por nutrição artificial, embora este termo esteja a cair em desuso.

 

Hidratação artificial

A hidratação artificial consiste no fornecimento de água ou eletrólitos por qualquer via que não a oral (sonda nasogástrica, sonda nasojejunal, gastrostomia percutânea ou jejunostomia percutânea, via intravenosa ou via subcutânea).11

 

Alimentação por sonda

A alimentação por sonda inclui alimentação administrada via sonda nasogástrica, sonda nasojejunal, gastrostomia percutânea ou jejunostomia percutânea.15 As recomendações internacionais não fazem distinção entre os diversos tipos de sonda relativamente à sua indicação nos doentes com demência avançada. Neste sentido, as recomendações contidas neste documento referem-se de igual forma à sonda nasogástrica, sonda nasojejunal, gastrostomia percutânea e jejunostomia percutânea.

 

Alimentação de conforto

A alimentação de conforto refere-se à alimentação fornecida ao doente, por via oral, respeitando a sua vontade e tolerância.6,10,16 O objetivo é maximizar conforto e não aporte nutricional, pelo que a perda ponderal e a desnutrição que daí podem advir, embora não ideal, são consistentes com as preferências e o melhor interesse do doente.16 Não é o mesmo que dieta zero, pois continuam a ser fornecidos alimentos ao doente, ainda que em pouca quantidade.

 

Abordagem dos problemas alimentares na demência avançada

As recomendações internacionais existentes atualmente baseiam-se em opiniões de peritos e trabalhos empíricos que utilizam dados observacionais ajustados para potenciais confundidores e vieses de seleção. Não existem ensaios randomizados que comparem os benefícios e complicações da alimentação por sonda versus alimentação por via oral devido à dificuldade em desenhar estudos eticamente aceitáveis, tendo em consideração a vulnerabilidade da população-alvo.10 As recomendações que se seguem são baseadas nas recomendações internacionais existentes.

 

Via de alimentação e tipo de dieta

 

1. A literatura atual não recomenda o uso de alimentação por sonda em doentes com demência avançada

A evidência científica disponível não mostrou benefício na alimentação por sonda.17,18 Esta está associada a aspiração traqueobrônquica recorrente de conteúdo alimentar, agitação, maior uso de medidas de contenção física e farmacológica, maior utilização de cuidados de saúde por complicações relacionadas com a sonda (infeção, obstrução, exteriorização), desenvolvimento de úlceras de pressão, sialorreia (por estimulação local pela sonda) e desconforto.6,9-11,19 Um dos efeitos secundários mais comuns da alimentação por sonda é a pneumonia/pneumonite de aspiração em até 58% dos doentes.9,20,21 Esta resulta da aspiração de secreções orais21 e da alteração da peristalse, com incapacidade de contração do esfíncter esofágico inferior e consequente refluxo de alimentação líquida,3,18 que é fornecida em maior quantidade por esta via em relação ao que seria possível apenas por via oral. Com efeito, estudos que comparam a mortalidade de doentes com demência avançada com ou sem sonda não mostram diferenças.3,6,17 Um estudo que avaliou as causas de admissões hospitalares de doentes institucionalizados com demência avançada mostrou que 47% das transferências para o hospital foram devidas a complicações relacionadas com a sonda (nomeadamente exteriorização e obstrução).22

 

2. Como alternativa, recomenda-se a alimentação por via oral de acordo com a tolerância e vontade do doente, isto é, alimentação de conforto

Em doentes com demência avançada, a alimentação por via oral apresenta resultados tão bons ou melhores do que a alimentação por sonda relativamente a mortalidade, pneumonia de aspiração, estado funcional e conforto.9,10 Doentes com demência avançada que são alimentados por via oral apresentam menor risco de pneumonia de aspiração e mortalidade do que os doentes alimentados por sonda.9 O objetivo é assim evitar procedimentos agressivos ou indutores de stress para o doente. A alimentação de conforto permite também desenvol-ver uma relação mais próxima com o doente, mostrando maior cuidado para com a pessoa e estimulando a sua autonomia.3

A alimentação de conforto pode não colmatar as necessidades nutricionais do doente e estar associada à perda ponderal, desnutrição e fragilidade física. No entanto, a nutrição artificial em indivíduos com demência avançada não demonstrou melhorar o seu bem-estar ou sobrevida.6,9,10 Deste modo, a prioridade é respeitar as preferências do doente e evitar intervenções agressivas e sem benefício, pelo que a alimentação de conforto deve ser encarada como uma intervenção no melhor interesse do doente. Esta não corresponde a dieta zero/jejum, negligência ou privação de alimentos, pois continuam a ser fornecidos alimentos ou suplementos nutricionais orais ao doente, ainda que em pouca quantidade, de acordo com a sua vontade e tolerância. Na situação de fim de vida é pouco provável os doentes terem fome ou sede, e um aporte oral mínimo pode ser o suficiente para dar conforto.3 Neste sentido, devem ser evitados procedimentos que tragam mais desconforto do que benefício, situação prevista no artigo 4º do Decreto Lei nº 31/2018 de 18 julho de 2018.23

 

3. Caso se opte pela colocação de sonda para alimentação, a sua indicação deve ser periodicamente revista

A alimentação por sonda na demência avançada deve ser uma exceção.5,6 No entanto, esta pode ser equacionada nos casos em que surgem dúvidas acerca do seu benefício.5,6 Nestes casos, a colocação da sonda deve ser uma decisão mutuamente aceite entre família, cuidador, doente (caso mantenha capacidade de expressar a sua vontade, que deve ser tida em conta, ainda que não tenha capacidade de decisão) e profissionais de saúde, podendo ser necessária a discussão com outros clínicos, nomeadamente a Equipa Intra-hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos (EIHSCP) ou a Comissão de Ética.5 Se se optar por uma prova terapêutica, a família, cuidadores e profissionais de saúde devem discutir e rever periodicamente o plano de cuidados e o prognóstico. A sonda deve ser retirada quando o objetivo de tratamento deixa de ser atingido.6,10,11 A alimentação por sonda pode ser descontinuada como qualquer outra terapêutica médica se não se observar benefício ou se este já não for esperado.6

 

4. Não estão recomendadas restrições alimentares em doentes com demência avançada

As restrições alimentares limitam as escolhas possíveis e o prazer de comer, podendo limitar o aporte alimentar e assim aumentar o risco de desnutrição. Além disso, as dietas restritivas (em sal, açúcar, gorduras) parecem tornar-se menos eficazes com a idade.6 De igual modo, a suplementação de nutrientes não está recomendada por rotina na prevenção/tratamento da demência. A estes doentes deve ser oferecida uma dieta a gosto, dando preferência a alimentos mais energéticos6 ou fortificando a dieta com alimentos naturais (usando por exemplo azeite, natas, manteiga, ovos, óleo de coco, leite em pó sem lactose, queijo skyr), de modo a aumentar a densidade energética e proteica da refeição.24 A suplementação nutricional oral pode também ser benéfica em doentes que não atingem as necessidades nutricionais apenas com alimentação culinária.6

 

Abordagem prática

Em termos práticos, a abordagem destes doentes deve incluir:

1. Esclarecimento do doente, família e cuidadores sobre a doença e sua evolução

A abordagem do doente com demência deve ser multidisciplinar, incluindo o doente ou seu representante legal, cuidadores, família e outros prestadores de cuidados ou profissionais de saúde.4-6,10,25 A família e o doente/representante legal devem ser informados de forma simples e compreensível acerca da progressão natural da demência e do seu prognóstico, incluindo os problemas alimentares na fase terminal.5,10 O objetivo é permitir uma discussão o mais precoce possível do plano individual de cuidados,25 que deve ficar registado no processo clínico do doente e incluir as medidas a tomar quando surgirem problemas com a alimentação.5 Para este objetivo pode ser útil estabelecer diretivas antecipadas de vontade. É importante esclarecer que a demência avançada é uma situação terminal,4 e que a perda de capacidade de comer e beber faz parte do processo de morte e não implica sofrimento.13 A evidência científica mostra que doentes em estado vegetativo permanente não sentem fome ou sede.13 Adicionalmente, doentes terminais não parecem ter muita fome e comem em pouca quantidade. O maior desconforto é sede, que pode ser controlado com hidratação fracionada, cubos de gelo e bons cuidados orais com hidratação da boca.6

 

2. Avaliação do doente

As recomendações feitas neste documento referem-se exclusivamente a doentes com demência avançada. O diagnóstico e definição desta fase devem ser feitos de acordo com os critérios clínicos discutidos anteriormente (vide Termos e Conceitos), se necessário com o apoio de Neurologia ou Psiquiatria. No caso de existirem dúvidas após a avaliação clínica pode ser útil estimar o prognóstico do doente através do score ADEPT (Advanced Dementia Prognostic Tool).26 No entanto, devemos ter em conta que a capacidade preditiva desta ferramenta é modesta,26 pelo que o plano de cuidados deve ser individualizado e não guiado apenas por este resultado. Assim, para facilitar a avaliação do doente, considera-se que este poderá ser elegível para não colocação de sonda se a sua mortalidade estimada aos 6 meses for superior a 50%, isto é, se apresentar uma pontuação ≥ 16,1 (Tabela 1). Tendo em consideração a complexidade da abordagem da demência avançada, deve ser sempre ponderada a discussão conjunta com a EIHSCP.5 Dado tratar-se de doentes complexos, aconselha-se também a abordagem do doente de acordo com a Avaliação Geriátrica Global, incorporando no plano de cuidados equipa médica, nutricionista, enfermeiro, terapeuta da fala e assistente social.

3. Correção de causas reversíveis de diminuição de aporte alimentar

A etiologia da desnutrição nesta população é multifatorial, e por vezes não relacionada diretamente com a demência. Na presença de um doente com demência avançada e recusa alimentar ou disfagia deve proceder-se a uma abordagem multidisciplinar com o objetivo de excluir ou tratar causas reversíveis de dificuldade na alimentação.3,6 Algumas das possíveis causas e intervenções estão explicitadas na Tabela 2. A correção destas causas pode melhorar o aporte nutricional do doente e evitar que a questão da alimentação por sonda se coloque.

4. Determinação da via de alimentação

A opção de via de alimentação a utilizar (oral versus sonda) deve ser individualizada e, como referido anteriormente, baseada numa discussão multidisciplinar. Caso existam dúvidas acerca da melhor escolha para o doente, pode-se optar por uma prova terapêutica.5,6 Adicionalmente, intercorrências agudas reversíveis que pareçam impedir ou dificultar o aporte oral podem justificar temporariamente a colocação de sonda para alimentação.6 Em qualquer dos casos, a decisão de colocar sonda deve ser mutuamente aceite, podendo ser útil envolver outros clínicos, nomeadamente a EIHSCP e/ou a Comissão de Ética, e definir um plano individual de cuidados.5 Mesmo doentes sem capacidade de decisão têm o direito de expressar a sua vontade, que deve ser tida em conta.11 Se se optar por uma prova terapêutica, o plano de cuidados e a indicação da sonda devem ser periodicamente revistos, procedendo-se à sua remoção caso deixe de se observar benefício.6,10,11

 

5. Otimização do aporte alimentar por via oral

O aporte alimentar por via oral pode ser otimizado utilizando diferentes abordagens (Tabela 3). É fundamental adotar uma abordagem centrada no doente10 respeitando as preferências alimentares individuais. Adaptar o ambiente durante as refeições, minimizando as distrações,3,6,9,10 e posicionar corretamente o doente a fim de diminuir o risco de aspiração são algumas medidas úteis. O reforço da higiene oral é ainda outra medida que poderá reduzir a sensação de sede e otimizar o conforto durante a alimentação.

Pode ser consultado na Fig. 1 um resumo da abordagem alimentar ao doente com demência avançada.

Considerações éticas

A abordagem dos problemas alimentares em doentes com demência avançada é difícil e controversa. O início ou manutenção de nutrição artificial é visto nalgumas culturas como um direito humano básico e não um procedimento médico. Nestes casos, a decisão de manter a alimentação por via oral pode ser considerada inaceitável pelo receio de acelerar o processo de morte. No entanto, a evidência científica mostra que a alimentação por sonda não prolonga a sobrevida na fase final da demência.6,17 Deste modo, várias sociedades científicas internacionais emitiram pareceres relativamente a este tema. A European Society for Clinical Nutrition and Metabolism (ESPEN) refere que a hidratação e nutrição artificiais são intervenções médicas e não apenas fornecimento básico de hidratação e alimentação, pelo que em doentes com demência avançada a prioridade deve ser alimentação de conforto.11 A American Society for Parental and Enteral Nutrition (ASPEN) acrescenta que os profissionais de saúde não são eticamente obrigados a oferecer hidratação e nutrição artificial se considerarem que os riscos da intervenção são superiores aos benefícios, aconselhando uma discussão multidisciplinar envolvendo o doente e família de modo a ser atingido um consenso.13

Dada a controvérsia envolvida nesta questão, aquando do desenvolvimento deste documento foi solicitado um parecer ao Núcleo de Estudos em Bioética da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.27 Como conclusão deste parecer, é referido que se deve promover a nutrição artificial nas fases terminais dos doentes com demência “nos casos em que se esteja a proceder de acordo com os valores do doente e se fique com a convicção de que se melhora o bem-estar e o sofrimento do doente”. No entanto, tal não deve ser feito “se o procedimento é contrário aos valores da pessoa e se prolonga o sofrimento sem benefício para essa pessoa demente”. A melhor decisão deve ser atingida promovendo “um processo de deliberação com o doente e pessoas significativas para conhecer os factos e os valores em presença e assim identificar o que se deve fazer, e promover ativamente a elaboração de um Plano Individual e Integrado de Cuidados, em tempo oportuno, para esse doente com demência”.

 

Conclusão

A demência avançada é uma condição terminal, pelo que deve ser privilegiado o conforto do doente. A alimentação por sonda associa-se a maior risco de complicações infeciosas, maior utilização de meios de contenção e desenvolvimento de úlceras de decúbito e, portanto, não se coaduna com este objetivo de cuidados. Deste modo, o doente/representante legal, cuidador, família e profissio-nais de saúde envolvidos devem estar informados acerca da evolução e prognóstico da doença, participando na discussão do plano individual de cuidados, que idealmente deve ser estabelecido enquanto o doente está capaz de expressar a sua vontade. Isto vai permitir a tomada de decisões que respeitam a preferência e conforto do doente e promovem a otimização da alimentação por via oral. Do ponto de vista ético e legal, é legítimo não proceder à artificialização da alimentação na fase terminal da demência caso este procedimento seja contrário aos valores da pessoa e não se objetivem benefícios. Esta decisão deve ser tomada após discussão multidisciplinar incluindo o doente, representante legal, cuidadores, família e equipa de profissionais de saúde envolvidos na abordagem do doente, com a elaboração e implementação atempada de um plano individual de cuidados.

 

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Responsabilidades Éticas

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Proveniência e Revisão por Pares: Não comissionado; revisão externa por pares.

 

Ethical Disclosures

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship

Provenance and Peer Review: Not commissioned; externally peer reviewed.

 

© Autor (es) (ou seu (s) empregador (es)) 2019. Reutilização permitida de acordo com CC BY-NC. Nenhuma reutilização comercial.

© Author(s) (or their employer(s)) 2019. Re-use permitted under CC BY-NC. No commercial re-use.

 

Correspondence / Correspondência:

Ana Pessoa; ana.pessoa@chma.min-saude.pt

Centro Hospitalar do Médio Ave, Vila Nova de Famalicão, Portugal

Rua Cupertino de Miranda s/n, 4761-917, Vila Nova de Famalicão  

 

Received / Recebido: 07/01/2020

Accepted / Aceite: 31/01/2020

 

Publicado / Published: 17 de Março de 2020

 

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