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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.4 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/CC/88/4/2018 

CASOS CLÍNICOS / CASE REPORTS

É Possível Reduzir a Duração da Antibioterapia na Endocardite?

Is It Possible to Reduce the Length of Drug Therapy in Endocarditis?

Marli Cruz1, Rui Carneiro1 , Miguel Corte1, João Coutinho2, Nuno Pardal Oliveira2, António H. Carneiro1

1Departamento de Medicina, UCI e Urgência, Hospital da Luz – Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal
2Serviço de Cardiologia, Hospital da Luz, Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

A endocardite é uma doença caracterizada pela sua elevada mortalidade. O tratamento preconizado nas recomendações engloba, muitas vezes, o uso simultâneo de vários antibióticos por um longo período. Frequentemente, os doentes afetados por esta doença têm várias comorbilidades associadas, que limitam o uso dos antimicrobianos recomendados. O presente caso clínico descreve um doente com endocardite que pelas suas patologias e limitações orgânicas foi impedido de fazer um tratamento prolongado para a endocardite, todavia com cura documentada, apesar do esquema terapêutico de curta duração.

Palavras-chave: Antibacterianos/administração e dosagem; Endocardite/tratamento; Infecções Estafilocócicas/tratamento; Resultado do Tratamento; Staphylococcus epidermidis

 


 

ABSTRACT

Endocarditis is a disease characterized by its high mortality. The treatment recommended in the guidelines often involves the simultaneous use of several antibiotics for a long period. Often, patients affected by this disease have several associated comorbidities, which limit the use of recommended antimicrobials. The present case describes a patient with endocarditis who, due to his pathologies and organic limitations, was prevented from comply a prolonged treatment for endocarditis, nevertheless he achieved a documented cure, despite the short-term treatment regimen.

Keywords: Anti-Bacterial Agents/administration and dosage; Endocarditis/drug therapy; Staphylococcal Infections/drug therapy; Staphylococcus epidermidis; Treatment Outcome

 


 

Introdução

A endocardite foi descrita pela primeira vez enquanto entidade clínica, no fim do século XIX, por William Osler,1 todavia a primeira referência a esta doença data do século XVI.2

Apesar da mortalidade associada à endocardite ter vindo a diminuir, ainda continua a ser uma doença com alta taxa de mortalidade e com muitas complicações associadas.1-3

Tem a característica única de ser “o único exemplo de infeção no qual as defesas do hospedeiro não desempenham nenhum papel e a terapêutica antimicrobiana tem que ser bactericida e prolongada para atingir uma cura”.4

O tratamento de curta duração das endocardites não está contemplado na maioria das recomendações e literatura que faça referência a esta opção é escassa.

Caso Clínico

Um homem de 61 anos com adenocarcinoma gástrico localmente avançado e carcinomatose peritoneal, em tratamento de quimioterapia com intuito paliativo, foi internado por hemorragia digestiva alta complicada de choque hemorrágico com ponto de partida na lesão maligna. Trata-se de um doente com cardiopatia valvular, com próteses mecânicas em posição aórtica e mitral, implantadas há vários anos, hipocoagulado. Tem como antecedentes: hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2, doença renal crónica estadio 3 e fibrilhação auricular permanente. Um ecocardiograma recente mostrava dilatação da aurícula esquerda (54 mm), dilatação ligeira da aurícula direita, função sistólica do ventrículo esquerdo e direito preservadas, com próteses mecânicas aórtica e mitral normofuncionantes.

A estabilização inicial passou por suporte transfusional e por radioterapia hemostática sem mais evidência de hemorragia, com boa evolução clínica e laboratorial.

Uma semana após a admissão, apresentou febre e sinais de infeção do cateter venoso central (CVC), pelo que foi removido. Nas hemoculturas (HC) (2 de sangue periférico, 1 de CVC) foi isolado Staphylococcus epidermidis multirresistente. Iniciou antibioterapia com piperacilina/tazobactam e vancomicina.

Realizou ecocardiograma transtorácico (Fig 1) que evidenciou “vegetação subaórtica subjacente ao folheto mitral anterior com dimensões de 9x4 mm” e gradiente ventrículo esquerdo/ aorta (VE/Ao) máximo de cerca de 70 mmHg.

 

 

Concluiu-se por diagnóstico de endocardite infeciosa definitiva, segundo os critérios modificados de Duke5 (1 critério major: presença de vegetação no ecocardiograma; 3 critérios minor: doença cardíaca estrutural – predisposição; febre; hemoculturas positivas que não cumpriam os requisitos para critério major), ajustando-se a antibioterapia para esquema triplo (vancomicina, rifampicina e gentamicina em dose ajustada à função renal). Evoluiu com apirexia, a partir do quarto dia de tratamento, e normalização dos marcadores inflamatórios analíticos.

Por aparecimento de icterícia e alteração da função hepática suspendeu a rifampicina, ao sexto dia de tratamento. Devido ao agravamento progressivo da função renal, com diminuição do clearance de creatinina inicial de 50 mL/min para valor inferior a 30 mL/min, também foi suspensa a gentamicina. Posteriormente interrompeu a vancomicina, ao décimo dia de internamento, após decisão de suspensão da antibioterapia de forma permanente. Devido ao mau estado geral e às comorbilidades foi excluída a possibilidade de tratamento cirúrgico.

Teve alta ao 25º dia de internamento, apirético e com normalização dos marcadores inflamatórios analíticos. Manteve-se estável, sem recidiva de sintomas. Foi reavaliado 5 semanas após o início do evento infecioso com repetição de HC, que foram negativas e, do ecocardiograma (Fig 2) que documentou ausência de imagens sugestivas de vegetações ou abcessos e gradiente VE/Ao máximo de cerca de 30 mmHg.

 

 

Discussão

A endocardite associada a próteses valvulares é uma das formas mais graves, traduzindo-se numa elevada mortalidade, que pode atingir valores de 40%.3,6

Nas recomendações europeias e americanas5,7 está preconizado que o tratamento de endocardites causadas por Staphylococcus em doentes com válvulas protésicas deverá ser agressivo, podendo incluir cirurgia, sendo recomendado5 um tratamento antibiótico triplo, de longa duração, com 6 semanas de vancomicina mais rifampicina e 2 semanas iniciais de gentamicina. Apesar desta recomendação, o nível de evidência científica dos estudos é de fraca qualidade (1C).

A referência a antibioterapia de curta duração no tratamento da endocardite infeciosa, na literatura médica, é escassa. Num estudo prospetivo realizado em Espanha,8 foi documentado que o tratamento de endocardites associadas a dispositivos com antibioterapia de curta duração (1-3 semanas) é tão eficaz quanto um regime convencional (4-6 semanas). Ficando a ressalva de que todos os dispositivos foram removidos. Neste artigo, aproximadamente, 39% dos casos de endocardites foram provocadas por Staphylococcus coagulase negativos.

Neste caso, o tratamento de curta duração foi imposto pelo estado clínico do doente, todavia, a avaliação em ambulatório evidenciou HC negativas, ausência ecocardiográfica de vegetações ou sinais de disfunção de prótese e marcadores inflamatórios normalizados.

Este caso clínico leva-nos a refletir sobre a possibilidade de, pelo menos em alguns casos específicos, diminuir a duração de tratamento das endocardites mantendo a eficácia.

Seria útil a realização de estudos randomizados que poderiam ensaiar e comparar tempos de antibioterapia para estas situações de elevada complexidade clínica.

 

Referências

1. Parize P, Mainardi JL. Les actualités dans l’endocardite infectieuse. Rev Med Interne. 2011; 32: 612-21. doi: 10.1016/j.revmed.2010.10.007.

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3. Cresti A, Chiavarelli M, Scalese M, Nencioni C, Valentini S, Guerrini F, et al. Epidemiological and mortality trends in infective endocarditis, a 17year population-based prospective study. Cardiovasc Diagn Ther. 2017; 7: 27-35. doi: 10.21037/cdt.2016.08.09.         [ Links ]

4. Thompson RL, Wright AJ. General principles of antimicrobial therapy. Mayo Clin Proc. 1998; 73: 995-1006.         [ Links ]

5. Habib G, Lancellotti P, Antunes MJ, Bongiorni MG, Casalta JP, Del Zotti F, et al. 2015 ESC Guidelines for the management of infective endocarditis: The Task Force for the Management of Infective Endocarditis of the European Society of Cardiology (ESC). Endorsed by: European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS), the European Association of Nuclear Medicine (EANM). Eur Heart J. 2015; 36: 3075-128. doi: 10.1093/ eurheartj/ehv319.         [ Links ]

6. Borde JP, Sitaru G, Kopp WH, Ruhparwar A, Ehlermann P, Lasitschka F, et al. Heart transplantation as salvage therapy for progressive prosthetic valve endocarditis due to methicillin-resistant Staphylococcus epidermidis (MRSE). J Cardiothorac Surg. 2016; 11: 100. doi: 10.1186/s13019016-0505-0.         [ Links ]

7. Baddour LM, Wilson WR, Bayer AS, Fowler VG, Jr., Tleyjeh IM, Rybak MJ, et al. Infective Endocarditis in Adults: Diagnosis, Antimicrobial Therapy, and Management of Complications: A Scientific Statement for Healthcare Professionals From the American Heart Association. Circulation. 2015; 132: 1435-86. doi: 10.1161/CIR.0000000000000296.         [ Links ]

8. Ferrera C, Vilacosta I, Fernandez C, Sarria C, Lopez J, Olmos C, et al. Short-course antibiotic treatment is as effective as conventional antibiotic regimen for implantable electronic device-related infective endocarditis. Int J Cardiol. 2016; 221: 1022-4. doi: 10.1016/j.ijcard.2016.07.143        [ Links ]

 

 

Correspondência:Marli cruz marli.cruz@hospitaldaarrabida.pt
Departamento de Medicina, UCI e Urgência, Hospital da Luz – Arrábida, Vila Nova de Gaia, Portugal
Praceta Henrique Moreira, 150 - 4400-346 Vila Nova de Gaia

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Direito à Privacidade e Consentimento Informado: Os autores declaram que nenhum dado que permita a identificação do doente aparece neste artigo.

Proteção de Seres Humanos e Animais: Os autores declaram que não foram realizadas experiências em seres humanos ou animais.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Protection of human and animal subjects: The authors declare that the procedures followed were in accordance with the regulations of the relevant clinical research ethics committee and with those of the Code of Ethics of the World Medical Association (Declaration of Helsinki).

 

Recebido: 30/05/2017

Aceite: 09/08/2017

 

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