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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.4 Lisboa dez. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/original/90/4/2018 

ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

Morrer num Serviço De Medicina Interna: As Últimas Horas de Vida

Dying in Internal Medicine Wards: The Last Hours of Life

Sara Machado1, Paulo Reis-Pina2,3, Ângela Mota1, Rui Marques1

1Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Coimbra, Portugal
2Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal
3Unidade de Cuidados Paliativos, Casa de Saúde da Idanha, Sintra,Portugal

Correspondência

 

RESUMO

Introdução: A longevidade crescente e o aumento das doenças crónicas justificam o número de doentes com necessidades paliativas nos serviços de Medicina Interna. O internista deve estar capacitado para assegurar cuidados de conforto no fim da vida dos doentes que assiste. O objectivo do estudo foi analisar a terapêutica realizada e os exames complementares de diagnóstico (ECD) solicitados nas 48 horas antes do óbito.

Métodos: Estudo retrospectivo observacional, com análise de 100 óbitos consecutivos (de doentes com “indicação para não reanimar”) ocorridos no Serviço de Medicina Interna durante um ano.

Resultados: A duração do internamento foi de 9,4 ± 7,9 dias, a idade de 86,5 ± 9,9 anos, sem diferenças de género. Verificou-se que 71,0% dos doentes tinha, pelo menos, um ECD pedido. Dos ECD constavam análises sanguíneas (54,0%), hemoculturas (17,0%), radiografias (19,0%), ecografias (8,0%) ou tomografia axial computorizada (2,0%). Foram prescritos: nebulizações (76,0%), antibioterapia (74,0%, sendo 44,6% de largo espectro), heparina de baixo peso molecular (71,0%), analgésicos não opióides (53,0%), entre outros. Em 28,0% dos casos não havia qualquer analgesia prescrita. A taxa de prescrição de opióides foi de 19,0%.

Conclusão: É urgente a necessidade de mudança de paradigma na assistência de doentes vulneráveis. A medicina não deve ter sempre um fulgor curativo, porém deve permanentemente cuidar, respeitando os valores culturais, clínicos e éticos da relação médico-doente. O internista deve nos doentes em fim de vida melhorar o seu controlo sintomático e evitar o recurso a ECD inapropriados e sem qualquer benefício acrescido para a pessoa humana.

Palavras-chave: Administração dos Cuidados ao Doente; Cuidados Paliativos; Cuidados Terminais; Hospitalização; Medicina Interna; Obstinação Terapêutica

 


 

ABSTRACT

Introduction:The increasing longevity and number of chronic diseases justify the number of patients with palliative needs in Internal Medicine services. The internist should be able to ensure comfort care at the end of life of the patients he is attending. The study objective was to analyze the therapy performed and complementary diagnostic tests (CDT) requested within 48 hours before death.

Methods: Retrospective observational study with 100 consecutive deaths (from patients with “do not resuscitate indication”) occurring in the Internal Medicine Service for a year.

Results: The length of stay was 9.4 ± 7.9 days, the age 86.5 ± 9.9 years, with no gender differences. It was found that 71.0% of patients had at least one CDT application. CDTs included blood tests (54.0%), blood cultures (17.0%), radiographs (19.0%), ultrasound scans (8.0%) or computerized axial tomography (2.0%). They were prescribed: nebulizations (76.0%), antibiotic therapy (74.0%, being 44.6% broad spectrum), low molecular weight heparin (71.0%), nonopioid analgesics (53.0%), among others. In 28.0% of cases there was no prescribed analgesia. The opioid prescription rate was 19.0%.

Conclusion: There is an urgent need for a paradigm shift in the care of vulnerable patients. Medicine should not always have a healing glow, but it must always take care, respecting the cultural, clinical and ethical values of the doctor-patient relationship. The internist should in end-of-life patients improve their symptomatic control and avoid the use of inappropriate CDTs without any added benefit to the human person.

Keywords: Hospitalization; Internal Medicine; Medical Futility; Palliative Care; Patient Care Management; Terminal Care

 


 

Introdução

A longevidade crescente e o incremento das doenças crónicas conduziram a um aumento significativo do número de doentes que não se curam. O modelo da medicina curativa ou “agressiva” não se coaduna com as preferências deste tipo de doentes, cujas necessidades são frequentemente esquecidas.1

Estima-se que atualmente cerca de 60% - 65% dos óbitos em Portugal ocorre em ambiente hospitalar.2 A morte hospitalar aumentou em média 0,8%/ano, de 44,7% a 61,7% de 1988 a 2010, respectivamente. A tendência é aumentar até 2030 (em 27,7% a 52,1%), sobretudo nos doentes com mais de 85 anos.3 Muitos doentes falecidos em contexto hospitalar deveriam ter beneficiado de cuidados paliativos (CP).4

Segundo o Observatório Português de CP encontram-se 50% de doentes paliativos nos internamentos dos hospitais públicos nacionais, isto é, com um prognóstico de vida inferior a 1 ano. Sabe-se que 62,3% dos doentes paliativos estão internados em serviços de Medicina Interna (SMI), sendo estes resultados preliminares de 11 instituições de saúde portuguesas.5

Os CP definem-se como uma resposta ativa aos problemas decorrentes da doença prolongada, incurável e progressiva. Os CP combinam ciência e humanismo e centram-se na importância da dignidade da pessoa ainda que doente, vulnerável e limitada, aceitando a morte como uma etapa natural da vida que, até por isso, deve ser vivida intensamente até ao fim.6 O artigo 58.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CDOM) diz que os CP, “com o objectivo de minimizar o sofrimento e melhorar, tanto quanto possível, a qualidade de vida dos doentes, constituem o padrão do tratamento nas situações de doenças avançadas e progressivas e a forma mais condizente com a dignidade do ser humano”.7

Num estudo transversal dirigido a 50 profissionais (18 médicos; 32 enfermeiros) de um SMI de um hospital central, 68% afirmou que os doentes internados morriam em considerável sofrimento.8 As necessidades dos doentes “paliativos” vão contra a cultura e a filosofia das instituições de agudos, cujo lema é curar e dar vida.

A escassez de estudos que avaliam as necessidades e os cuidados prestados a doentes em fim de vida (FDV) em Portugal justificou a realização deste estudo. Os objetivos estabelecidos foram: a) documentar os exames auxiliares de diagnóstico (ECD) solicitados 48 horas antes do óbito de doentes internados no SMI e com “ordem para não reanimar” (ONR); b) analisar, nestes doentes, a terapêutica em curso por grupos farmacológicos e a sua adequação, tendo em vista que a morte era esperada.

Material e Métodos

Estudo retrospectivo, observacional, abrangendo 100 óbitos ocorridos no SMI de um hospital central, em 2015. Os dados foram recolhidos do processo clínico, do sistema de prescrição hospitalar e do programa SClinic©.

Os critérios de inclusão foram: óbitos consecutivos ocorridos no SMI; doentes internados no SMI há mais de 48 horas; o processo clínico continha uma ONR explícita. Foram excluídos os óbitos de casos acompanhados pelos investigadores. As variáveis estudadas foram: idade, género, proveniência do doente, duração do internamento, diagnóstico principal, fármacos prescritos, procedimentos invasivos e ECD nas 48 horas antes da morte (48 HAM).

Os dados relativos a variáveis quantitativas são sumariados através da média e do desvio padrão ou através da mediana e amplitude inter-quartil. Para variáveis qualitativas os dados recolhidos são sumariados através de frequências absolutas e/ou frequências relativas. Toda a análise estatística foi levada a cabo através do software IBM SPSS Statistics 22©.

Resultados

As características gerais da amostra resumem-se na Tabela 1.

As idades variaram de 44 a 106 anos com uma média de 86,5 ± 9,9 anos; 66,0% dos casos tinha entre 78 a 93 anos. Não houve predomínio de género. Verificou-se que 42,0% era proveniente de instituições sociais, incluindo lar ou na rede nacional de cuidados continuados integrados. Metade dos doentes foram internados 7 dias antes do óbito, com tempos de internamento de 2 a 41 dias.

Os diagnósticos principais foram: doenças infecciosas (66,0%), das quais 84,8% envolvendo o tracto respiratório e 9,1% o urinário; neoplásicas (14,0%), nomeadamente do fígado; respiratórias (10,0%), mormente a doença pulmonar obstructiva crónica; cardiovasculares (3%); gastro-intestinais (2,0%); genito-urinárias (2,0%); do sistema nervoso central (2,0%) e vasculares periféricas (1,0%).

Relativamente à quantidade de ECD solicitados (Tabela 2), 71 doentes (71,0%) tinham pelo menos um pedido nas 48 HAM, havendo 17 doentes (17,0%) com 3 a 5 exames. Somente em 29,0% (n = 29) dos casos não havia ECD. Quanto ao tipo de ECD (Fig. 1), as análises clínicas eram requeridas em mais de metade da amostra.

 

 

 

 

Na revisão da terapêutica em curso antes do óbito (Fig. 2) constatou-se que mais de 70% dos doentes tinha nebulizações (brometo de ipratrópio, salbutamol e budesonido) (n = 76), hepa- rinas de baixo peso molecular (HBPM) (n = 71) e/ou antibióticos prescritos (n = 74). Em 44,6% (n = 33) dos doentes sob antibioterapia foram usados antibióticos de largo espectro, nomeadamente, piperacilina/tazobactam (n = 24), meropenem (n = 8) e vancomicina (n = 6). As outras opções (56,8%) foram: amoxicilina/ácido clavulânico, azitromicina, ceftriaxona, clindamicina, metronidazol, levofloxacina, doxiciclina, gentamicina, ampicilina, cefuroxima, cefotaxima, ciprofloxacina, cotrimoxazol, cloranfenicol e ceftazidima. De entre os corretores iónicos encontrou-se NaCl 0,9%, NaCl 0,9% com dextrose a 5%, NaCl 0,45%, polieletrolítico glicosado, lactato de Ringer e cloreto de potássio endovenoso (EV). No grupo de “outros” estavam incluídos: finasterida ou tansulosina (n = 5), ferro (n = 2), estatinas (n = 2) e alopurinol (n = 2).

 

 

No que concerne à analgesia em curso (Fig. 3), 28,0% dos doentes não tinha qualquer prescrição, nem de forma fixa nem de recurso, não somente nas 48 HAM, mas durante toda a estada no SMI. A analgesia envolvia não opióides (53%), mormente paracetamol, metamizol magnésico, naproxeno e ibuprofeno; e adjuvantes (47%). Destes, 19% eram cortico-esteróides, 14% anticonvulsivantes (gabapentina, valproato de sódio, levetiracetam, fenobarbital), 11% ansiolíticos (alprazolam, bromazepam, diazepam, midazolam, clonazepam) e 3% antidepressivos (mirtazapina e paroxetina). Somente 19% fazia opióides, quer fracos (tramadol, somente) quer fortes. Acrescenta-se que 5% tinha analgesia apenas de recurso, pro re nata, vulgarmente “SOS”. Os opióides fortes foram usados por via transdérmica (buprenorfina ou fentanil) em 27,3% dos casos. A morfina foi usada em 85% por via EV, em 8,6% per os (2/3 por sonda nasogástrica) e em 6,4% dos casos por via subcutânea.

 

 

Na Fig. 4 descrevemos os procedimentos em curso nas 48 HAM. Todos os doentes tinham um acesso EV e 89% (n = 89) fazia oxigenoterapia (55 por óculos nasais, 19 por máscaras de Venturi, 12 por máscaras de alto débito, 2 por catéter nasal e um por máscara facial). A alimentação artificial esteve indicada em 61% (n = 61) dos casos.

 

 

Discussão

Neste estudo constatou-se que num conjunto de 100 doentes com ONR, internados num SMI, 71% realizou pelo menos um ECD nas 48 HAM. Neste período foram prescritas nebulizações (76%), antibioterapia (74%) e HBPM (71%). Os opióides foram prescritos de modo regular a 19% e em SOS a 5% dos doentes. Não foi prescrita qualquer analgesia em 28% dos casos.

A OBSTINAÇÃO DIAGNÓSTICA E TERAPÊUTICA

Nesta amostra, sete em cada dez doentes fizeram pelo menos um ECD antes do óbito. Esta constatação fez excursar as seguintes inquietações éticas:
i) Que respostas pretende um médico obter de um ECD que, por um lado, possa ser “útil” para a tomada de decisão ético-clínica de um doente com uma ONR e que, por outro lado, possa ser “benéfico” para a pessoa humana nas 48 HAM?
ii) Que informação vital aportará um ECD que possa ter impacto no desfecho clínico de um doente em processo de morrer e já indicado já como “não salvável”?
iii) Na ponderação dos factos foi invocado o princípio da não maleficência ou o da proporcionalidade de meios?

O artigo 5.º do CDOM alerta que “são condenáveis todas as práticas não justificadas pelo interesse do doente ou que pressuponham ou criem falsas necessidades de consumo”. Como explicar então que em 17% dos casos estavam pedidos mais de 3 ECD, por doente?

Estes achados não são raros. Em Portugal, num estudo retrospetivo levado a cabo num SMI de um hospital central confirmou-se que em 125 óbitos de doentes a receber CP, 23% realizou ECD (endoscopia alta, tomografia axial computorizada, cintigrafia). Nos 8 dias antes da morte, 17% tinha um cateter venoso central e 74% fez pelo menos um antibiótico.9

A literatura internacional refere que os ECD inapropriados são solicitados em 33-50% dos doentes com ONR,10 reflexo do paradigma atual dos cuidados de saúde centrados na doença e na cura. Em doentes em FDV, a administração de antibióticos, fármacos ou tratamentos cardiovasculares, digestivos ou endócrinos, ocorre em 38% dos casos [11% - 75%]. No que reporta à diálise, radioterapia, transfusões ou outros tratamentos de suporte, em média, a indicação é de 30% [7% - 77%].10 A Lei n.º 52/2012 de 5 setembro, conhecida como a “Lei de Bases dos CP” indica que a obstinação diagnóstica e terapêutica se refere aos procedimentos que são desproporcionados e fúteis, no contexto global de cada doente, sem qualquer benefício para o mesmo, e que podem, por si próprios, causar sofrimento acrescido. De igual modo, o parecer n.º 59/2010 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) afiança que é considerada boa prática médica e ética a recusa da obstinação terapêutica, isto é, a não realização de tratamento fútil ou obstinado.

NÃO RECONHECIMENTO DO PROCESSO DE MORRER

Nas 48 HAM, um doente está em pleno processo de morrer. A dificuldade no reconhecimento da agonia é repetidamente apontada na literatura como levando a abordagens inapropriadas quer ao nível das atitudes quer da intervenção terapêutica.11,12

O reconhecimento da agonia pode ser difícil, mas existem sintomas/sinais bem descritos que indiciam o seu início.11

Num estudo prospetivo (9 semanas consecutivas), observacional, com doentes internados num SMI de um hospital central, registaram-se 32 óbitos. Constatou-se dificuldade no reconhecimento da agonia, identificada em apenas 10 doentes. Mesmo nestes, somente em metade ocorreu a suspensão de terapêutica fútil, de alimentação entérica e de antibióticos. Os restantes mantiveram toda a terapêutica até ao óbito, o que significou a realização de terapêutica inapropriada (p.e., albumina, ferro, ácido acetilsalicílico, omeprazol, sinvastatina, alopurinol, multivitamínicos e tansulosina).13

A PRESCRIÇÃO DE ANTIBIÓTICOS NO FIM DA VIDA

O que se espera ao prescrever de novo ou manter um antibiótico num doente em processo de morrer, 48 HAM? Prolongar a vida? Mais de 7 em cada 10 doentes vulneráveis tinham um antibiótico em curso, sendo que em 42% dos casos se tratava de um fármaco de largo espectro. Algumas investigações demonstraram que a prescrição de antimicrobianos a doentes em FDV não era suportada por sintomas clínicos que indicassem uma infeção bacteriana.14-16 É importante pesar o custo-benefício, sobretudo no que diz respeito ao aumento de resistência aos antibióticos, uma ameaça de saúde pública. Há autores15,16 que salientam que, na maioria dos casos, a vida é prolongada sem qualquer conforto. Cabe ao clínico decidir se a antibioterapia será mais benéfica do que investir em CP adequados e de qualidade. Ademais, não se podem escamotear os riscos a que se expõe um doente terminal, tais como: os efeitos adversos do antibiótico em causa, as infeções por Clostridium difficile, a sobrecarga de volume, as interações medicamentosas, entre outras. Todos estes podem contribuir para o prolongamento do sofrimento face a uma morte inevitável.

O CONTROLO SINTOMÁTICO INADEQUADO

Apesar do excesso de terapêutica nestes doentes podemos concluir que houve uma escassez de fármacos para controlo sintomático, mais uma vez suportando uma medicina com intuito curativo e não paliativo.

Evoca-se o artigo 58.º do CDOM: “nas situações de doenças avançadas e progressivas cujos tratamentos não permitam reverter a sua evolução natural, o médico deve dirigir a sua acção para o bem-estar dos doentes”.

Vários estudos têm demonstrado o inadequado controlo sintomático em doentes em FDV, quer na patologia neoplásica, quer na não neoplásica, apesar deste controlo constituir um elemento fundamental no conforto. Os hospitais de agudos têm pouca uniformização de cuidados prestados a doentes em FDV, existindo por vezes inadequação dos mesmos, dificuldade na abordagem das famílias e na tomada de decisão das medidas adequadas.9

Num estudo transversal feito com 18 médicos e 32 enfermeiros de um SMI de um hospital central, 98% mencionou que os doentes necessitavam de um melhor controlo sintomático; 68% afirmou que os doentes morriam no hospital em considerável sofrimento.8

Há uma década, um estudo italiano (realizado em SMI de 40 hospitais de agudos com 370 doentes falecidos) revelou que mais de 70% dos doentes tinha sintomas de grande intensidade, nomeadamente dor e dispneia, nas 72 HAM e que o uso de analgésicos era muito escasso.17

Um estudo português recente com 64 doentes (com pluri-patologia e com critérios para CP), internados num SMI de um hospital central, concluiu que era preocupante a ausência de avaliação de sintomas nos registos médicos.18

Num estudo nacional que avaliou sintomas/sinais nos 20 dias antes da morte num SMI verificou-se que a dispneia era prevalente. Outros presentes eram: delirium, confusão mental, broncorreia, febre, dor e vómitos.9

Um estudo prospetivo realizado num SMI de um hospital central constatou que 102 doentes (54 com cancro e 48 com patologia não oncológica) tinham necessidades paliativas. Havia uma prevalência significativa de sintomas intensos (69%), mormente a dor (53%), náuseas/vómitos (47%), anorexia (47%), obstipação (39%), dispneia (36%), cansaço (35%), ansiedade (34%), depressão (33%), sonolência (28%), agitação psico-motora (21%) e insónia (12%). O número médio de sintomas por doente foi de quatro. No cancro predominava a dor e as náuseas/vómitos; nos doentes não oncológicos abundava a dispneia e a sonolência.19 No entanto, os doentes terminais com insuficiência cardíaca, DPOC, insuficiência renal, VIH/SIDA e doenças neurodegenerativas podem ter níveis de dor semelhantes aos doentes com cancro.20

Num estudo prospetivo, descritivo e transversal, 26 médicos assistentes de um SMI indicaram os domínios que os doentes/cuidadores mais valorizam na prestação de cuidados. O domínio mais nomeado foi o alívio sintomático (88,5%), seguido das condições físicas do internamento (50%) e da necessidade de “não se sentirem uma sobrecarga para os cuidadores” (31%).21

A PRESCRIÇÃO DE OPIÓIDES PARA A DOR

Relativamente ao tratamento da dor, houve alguma inércia terapêutica refletida na análise dos analgésicos. Por um lado, 28% dos doentes não tinha qualquer analgesia; por outro lado, apenas 16% tinha opióides fortes na sua terapêutica. Tendo em conta as guidelines de CP, a tipologia de doentes em FDV e ainda a opioidofobia existente em Portugal,23 poderá inferir-se que houve uma sub-prescrição de opióides que garantisse um adequado alívio da dor.

Num estudo retrospetivo, foram analisados os processos clínicos de 285 óbitos num SMI de um hospital central. A população era idosa, dependente, com diagnósticos principais de doenças não oncológicas (acidentes vasculares cerebrais, demência e doenças respiratórias). A morte era esperada em 73% das situações, porém apenas 44% estava integrado em CP. A dor era avaliada principalmente no cancro, com analgesia administrada em 77% dos casos. Nos doentes em CP, 42% fez opióides. De modo geral, 54% dos doentes com dor foi medicado com opióides.9

Num estudo realizado num SMI de um hospital central, com 50 profissionais de saúde, cerca de 55% desconhecia as regras de utilização e titulação dos opióides; 38% não considerava os opióides fortes no tratamento da dor moderada.8

A PRESCRIÇÃO DE OPIÓIDES PARA A DISPNEIA

Neste momento há evidência robusta e significativa que suporta a utilização de opióides na insuficiência cardíaca ou respiratória para alívio da dispneia e da dor.24

Na dispneia refratária, o recurso a doses regulares de opióides constitui a medida de tratamento de primeira linha, e pode controlar tanto a dispneia como a tosse, também muito frequente nestes doentes.24 Num estudo já citado, realizado num SMI, 20% dos profissionais (n = 50) afirmava que os opióides eram contra-indicados no alívio da dispneia na doença pulmonar obstrutiva crónica.8

Quando há reconhecimento no processo clínico de agonia, a tomada a decisão vai no sentido da adopção de medidas de conforto, havendo prescrição de morfina se necessário para controlo sintomático, nomeadamente da dor e dispneia.13

A PRESCRIÇÃO DE FÁRMACOS ESSENCIAIS

Da lista essencial de fármacos sugeridos pela International Association for Hospice & Palliative Care (IAHPC) para o FDV constam opióides, neurolépticos, benzodiazepinas e antimuscarínicos. A OPCARE 9, um projeto europeu que pretende otimizar os cuidados FDV, também suporta que todos os doentes deveriam ter como fármacos básicos um opióide, benzodiazepina, antipsicótico e antimuscarínico.25 No nosso estudo documentou-se que apenas 11 doentes faziam benzodiazepinas, 3 levomepromazina, 3 butilescopolamina e 9 outros fármacos.

As secreções respiratórias constituem um fenómeno muito frequente e potencialmente grave à medida que a doença progride. Na fase mais avançada, em que o doente está muito debilitado, promovem um agravamento do quadro.24 O recurso a anticolinérgicos tem evidência comprovada, nomeadamente, o brometo de ipratrópio em suspensão e a butilescopolamina injectável por via subcutânea.25

UM PROGRAMA PRECOCE DE ATENÇÃO AO DOENTE EM FIM DE VIDA

Num estudo exploratório, qualitativo, com abordagem fenomenológica, foram entrevistados 11 enfermeiros de um SMI sobre os cuidados prestados a doentes terminais. Os participantes identificaram que a cooperação inter/multidisciplinar é deficiente e impacta a qualidade dos cuidados.26

Os cuidados em FDV teriam maior qualidade se a comunicação entre todos os membros da equipa de saúde fosse sempre eficaz, se trabalhassem todos para os mesmos objetivos, envolvendo o doente e família, se os tratamentos curativos fossem interrompidos no início do processo de morrer (ou nunca iniciados, especialmente quando fúteis), e se os médicos encarassem a morte como um processo natural e não um reflexo direto da sua competência ou mesmo como uma falha pessoal.27

O recente estudo de clusters, aleatorizado e controlado, o “Care Programme for the Last Days of Life” (CAREFuL), cujos outcomes primários passaram pelo conforto, controlo sintomático, cuidados de enfermagem e apoio aos familiares, veio sugerir que a implementação precoce de um CAREful poderá melhorar os cuidados de FDV nos distintos internamentos hospitalares.28

A FORMAÇÃO EM MEDICINA PALIATIVA

Todos os hospitais devem desenvolver programas específicos que garantam que as necessidades básicas de doentes paliativos sejam identificadas e asseguradas em tempo útil (PEDCP 2016).

Os cuidados prestados no fim de vida exigem formação de pessoal técnico e devem constituir um indicador de desempenho dos sistemas de saúde.9

Será, portanto, urgente implementar ações de formação específica em Medicina Paliativa para os Internistas dos Hospitais de Agudos, no sentido de permitir a difícil transição, nestas situações específicas, de um modelo de tratamento focalizado na cura para um modelo de paliação sintomática e de intervenção global no sofrimento.29,30

Será necessário otimizar o treino dos médicos que cuidam de doentes em fase final da sua vida, no sentido de adotar medidas de conforto e suspensão de terapêutica fútil, definida como qualquer intervenção que já não beneficia o doente, não atinge um objetivo válido, pode ser prejudicial e consome recursos desnecessários.31 Um estudo realizado em enfermarias gerais hospitalares defendeu a utilização sistemática de um impresso onde se registassem as medidas e as intervenções consideradas inapropriadas para cada doente.

A decisão era facilitada por sessões formativas e a consultadoria de um profissional especializado em CP. Concluiu-se que assim havia uma melhoria nas discussões de FDV e nas deliberações de ONR, uma diminuição de medidas e tratamentos desnecessários, nomeadamente antibióticos, e um aumento de analgesia adequada.32

Conclusão

Neste estudo verificou-se que nas 48 HAM, perante a irreversibilidade da situação clínica, não foram ajustados os objetivos dos cuidados às verdadeiras necessidades dos doentes em FDV, não foi sempre privilegiado o conforto e evitada a obstinação terapêutica.

Este estudo fortemente indica que é urgente a formação mandatória em Medicina Paliativa, uma alocação de recursos de modo proporcional e a criação de protocolos de controlo sintomático em doentes em FDV. Só deste modo é que a morte daqueles que estão ou foram internados no SMI pode ser, hoje e sempre, digna.

 

Referências

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Correspondência:Sara Machado sarabranmac@gmail.com
Serviço de Medicina Interna, Centro Hospitalar Tondela-Viseu, Viseu, Portugal
Av. Rei D. Duarte, 3504-509 Viseu

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Direito à Privacidade e Consentimento Informado: Os autores declaram que nenhum dado que permita a identificação do doente aparece neste artigo.

Proteção de Seres Humanos e Animais: Os autores declaram que não foram realizadas experiências em seres humanos ou animais.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

Confidentiality of data: The authors declare that they have followed the protocols of their work center on the publication of data from patients.

Protection of human and animal subjects: The authors declare that the procedures followed were in accordance with the regulations of the relevant clinical research ethics committee and with those of the Code of Ethics of the World Medical Association (Declaration of Helsinki).

 

Recebido: 16/05/2018

Aceite: 12/09/2018

 

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