SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 número3Relações da Medicina Interna com as Especialidades de Orgão ou Sistema em PortugalA Medicina Interna no Interior, na Segunda Década do Século XXI: Obstáculos ou Oportunidades? índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.25 no.3 Lisboa set. 2018

https://doi.org/10.24950/rspmi/Opinao/139/3/2018 

ARTIGOS DE OPINIÃO / OPINION ARTICLES

Termos e Conceitos na Relação Clínica

Words and Concepts in Clinical Relation

António H. Carneiro1, Rui Carneiro1, Catarina Simões2

1Departamento de Medicina, Urgência e UCI, Hospital da Luz Arrábida, Porto, Portugal
2Enfermeira Cuidados Paliativos, Hospital da Luz Arrábida, Porto, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

A relação é o elemento mais diferenciador da prática clínica. A comunicação é o elemento mais relevante no estabelecimento da relação. Ouvir, perguntar, esclarecer e debater são elementos centrais na relação e exigem que a linguagem seja compreensível e o mais adequada possível à cultura dos participantes. As recentes discussões sobre as práticas em fim de vida demonstraram que profissionais de saúde, da comunicação social e a maioria dos cidadãos utilizam termos incorretos, atribuem-lhes significado incorreto e relacionam-nos com conceitos incorretos. A comunicação é a base da relação clínica e nesse delicado contexto confundir conceitos e/ou utilizar termos errados ou equívocos é má prática. Os autores assumem a necessidade de um debate profundo sobre termos e conceitos a utilizar na comunicação em português, pelo que revêm alguns dos que consideram fundamentais e de clarificação e apreciação mais urgente.

Palavras-chave:Atitude Perante a Morte; Comunicação; Cuidados Paliativos; Eutanásia; Tomada de Decisões.

 


ABSTRACT

 

Clinical relation is the most differentiating element in clinical practice. Communication is the most relevant element in the establishment of a relationship. Listening, asking, clarifying and debating are essential elements to build a relationship but they demand the use of proper words adjusted to the participant’s culture. Recent discussions about end of life issues showed that health care professionals, media and most of the citizens use incorrect words, with inappropriate meanings, incorrectly related to wrong concepts. In this context and assuming that communication is the basis of the good clinical relation it is urgent to clarify concepts and proper words for current practice to spare misunderstandings and wrong decisions. Authors have assumed the need of profound debate on proper words and correct concepts in clinical practice and current communication in Portuguese, so this text pretends to contribute to that clarification.

Keywords:Attitude to Death; Communication; Decision Making; Euthanasia; Palliative Care.

 


 

Introdução

A comunicação é o elemento mais transformador na experiência de estar doente. Comunicar é mais do que transmitir informação – é gestão adequada de emoção, que é securizadora quando inclui uma estratégia comunicacional verbal e não verbal entendida de forma simétrica pelas partes envolvidas.

Quando lidamos com situações de elevada complexidade, em particular se há risco de morte, dominam as emoções, que podem ser bem lidadas se os intervenientes tiverem comportamento adequado e utilizarem linguagem correta. Se a terminologia não for correta e/ou os conceitos invocados forem equívocos ou mesmo incorretos, a comunicação pode não esclarecer sendo, pelo contrário, motivo de desinformação e conflito. A comunicação é a base da relação clínica e nesse delicado contexto confundir conceitos e/ ou utilizar termos errados ou equívocos é má prática.

No atual contexto em que a sociedade discute questões relacionadas com o fim de vida, importa que os envolvidos utilizem termos e conceitos de forma criteriosa, contribuindo para um tempo de deliberação esclarecedor e para a tomada de decisões esclarecidas e prudentes. Neste texto revemos termos e conceitos úteis e necessários nessas reflexões.

Reflexões iniciais…

Por definição, se alguém procura ajuda de profissionais de saúde expõe-se ao outro em condição de necessidade, que pode expressar vulnerabilidade (suscetibilidade de ser ferido).1 Nalgumas situações a pessoa é autónoma e independente, noutros casos o contexto é de dependência com ou sem compromisso da capacidade de exercer a sua autonomia. O contexto é determinante para que a resposta se adeque ao nível e tipo de solicitação, como acontece nas situações de fim de vida e de preparação para a morte.

Há situações limítrofes que incluem o suporte artificial da vida biológica, mas a dimensão social e relacional está presente em todos os casos. O nível de dependência e sofrimento percebido pode ser de tal forma relevante que a pessoa sinta a sua integridade e dignidade ameaçadas ou mesmo diminuídas. As situações de fim de vida previsível são uma das etapas deste processo. Deste enquadramento sobressaem três reflexões:
1. Para pensar o sentido da vida não é necessário estar a morrer, basta o confronto com doença incapacitante / debilitante que limita a pessoa na sua dimensão funcional, relacional ou na duração expectável da sua vida. O tempo é igual para todos, o que está ao nosso alcance é fazer opções e definir prioridades na ocupação do tempo que nos foi concedido, como sustentam, Nevidjone BM e Mayer DK.2 Quando as circunstâncias da vida tornam a pessoa vulnerável é importante construir um plano individual e integrado de cuidados3 ajustado às necessidades concretas e atuais;
2. A metodologia mais ajustada para conseguir esse objetivo é a que foi desenvolvida pelos Cuidados Paliativos alicerçada na comunicação adequada, no controlo eficaz dos sintomas, na parceria entre equipa de saúde e família com as quais se vão ajustando expectativas e necessidades concretas;
3. Nos casos em que se antecipa a aproximação da morte o plano individual e integrado de cuidados deve considerar essa possibilidade, conhecer em tempo oportuno os desejos da pessoa e ajustar procedimentos à sua vontade expressa.

Os termos e os conceitos

Selecionamos termos e conceitos, de utilização frequente procurando dar-lhe o sentido e o significado mais preciso e adequado à nossa cultura e à língua portuguesa (Tabela 1).

1. CUIDADOS PALIATIVOS
Na definição da Organização Mundial da Saúde,3 são a abordagem que melhora a qualidade de vida dos doentes e suas famílias confrontados com problemas associados a doenças que ameaçam a vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, com recurso à identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros sintomas físicos, psicológicos e espirituais.

De uma forma mais atualizada são a resposta estruturada da Medicina moderna, atuando de forma interdisciplinar, nas várias causas do sofrimento humano relacionado com doenças graves, sejam elas agudas, crónicas, terminais ou reversíveis. Intervêm mitigando o desconforto físico, psíquico e social independentemente do prognóstico.

Neste entendimento quando o profissional de saúde se confronta com a solicitação da pessoa em condição vulnerável (e não só no fim da vida) deve integrar a família e a equipa de saúde para otimizar a comunicação, o controlo dos sintomas e a gestão de expectativas. O bom acompanhamento da pessoa em condição vulnerável depende do sucesso deste tipo de abordagem.3

2. FIM DE VIDA
O conceito de fim de vida é frequentemente confundido com a situação de últimas horas ou dias de vida, quando o doente está em processo ativo de morte com deterioração rápida da sua condição clínica. O processo de fim de vida inicia-se quando é percetível que o doente pode morrer num período estimado de 6-12 meses, ainda que este processo possa prolongar-se. Reconhece-se quando há progressão da doença de base, com redução da resposta aos tratamentos e aumento da fragilidade e dependência. O Gold Standards Framework4 é um dos instrumentos que auxilia o clínico a tomar consciência desta condição. O processo de fim de vida pode ser curto se o processo é agudo irreversível e fatal, mas não ocorre na morte súbita (a morte surpreende a vítima no seu estado clínico habitual).

3. PLANO INDIVIDUAL E INTEGRADO DE CUIDADOS (PIIC)
É mais do que um documento, é um processo através do qual é descrito e operacionalizado, de forma facilmente acessível e inteligível como se articulam os tratamentos com o suporte do doente e da família. É o produto da convergência entre os objetivos do cuidar e a melhor forma de os operacionalizar no espaço e no tempo, conhecendo-se os interlocutores e as responsabilidades inerentes. O PIIC é uma reconciliação de múltiplos planos criados para responder às múltiplas necessidades e diretamente às necessidades específicas no momento adequado. Utiliza princípios antecipatórios de cuidados (plano para crise). O planeamento é centrado no doente como indivíduo, circunstanciado ao seu valor intrínseco de ser humano com relevância histórica e irrepetível, reflete as suas preferências e diversidade e projeta no futuro (curto ou longo prazo), as necessidades antecipadas, acauteladas e colmatadas por uma equipa interdisciplinar. O tratamento e suporte implementados são flexíveis, carecem de reavaliação regular da eficácia / efetividade e ajustam-se à mudança de estado do doente / família, sensível a novas necessidades. Consubstancia o modelo da Medicina do Acompanhamento e de Suporte (Catarina Simões e Rui Carneiro em pubicação).

Neste entendimento o PIIC é um obstáculo à obstinação terapêutica e um instrumento essencial para otimizar os cuidados centrados no doente e triangulados no valor relacional da solicitação, da solicitude e da empatia (Tabela 2).

4. FUTILIDADE
A utilização de termos corretos com significado claro e preciso é a base da comunicação civilizada e sensível porque os termos revelam e anunciam conceitos. Em contexto de doença grave esse imperativo é ainda mais importante, dada a sensibilidade e vulnerabilidade dos intervenientes nem sempre preparados para compreender o que se lhes diz, quer pela ansiedade da circunstância quer pela (i)literacia prévia. A escolha das palavras apropriadas para comunicar com as pessoas deve provir da linguagem corrente (dicionário de Língua Portuguesa) e não do jargão dos profissionais de saúde. Assim, fútil significa (1) que tem pouco ou nenhum valor, insignificante, vão ou (2) que dá muita importância a coisa inúteis, superficiais ou sem valor; leviano; frívolo; pouco profundo.5 Futilidade é a qualidade do que tem pouco ou nenhum valor ou carácter de quem dá muita importância ao insignificante e inútil; frivolidade; superficialidade, bagatela.5

A vida das pessoas, os seus anseios, sofrimento e angústias não podem ser tratados como futilidades.

Como sustenta Engelhardt […] O conceito de futility é frequentemente invocado para não enfrentar com clareza o dever de incluir na avaliação parâmetros relacionadas com a probabilidade de sucesso, custos, esperança de vida e qualidade de vida quando se têm de tomar decisões relacionadas com opções terapêuticas a propor a doentes / famílias, como se devem estabelecer as políticas de triagem / internamentos em cuidados intensivos, como e quando estabelecer por escrito as decisões de não reanimar e como condicionar o acesso a tratamentos de elevado custo e limitada rendibilidade6 […].

Designar como fútil e futilidade situações e procedimentos que envolvem pessoas em situação frágil e vulnerável é um erro comunicacional grave e má prática. Como sustenta Engelhardt6 “… é uma fuga à responsabilidade clínica de quem prescreve …”. Há tratamentos com indicação e outros sem indicação. Alguns dos que em determinado momento estavam indicados podem deixar de o estar pelo que devem ser suspensos e nada disto é fútil. Justificar este erro comunicacional com o facto de outros cometerem o mesmo erro é inaceitável e má prática.

Sugere-se a eliminação do termo fútil da adjetivação de tratamento e cuidados que devem ser qualificados como proporcionados ou desproporcionados / adequados ou inadequados.

5. SUPORTE ARTIFICIAL DE FUNÇÕES VITAIS (SAFV)
Há funções vitais autónomas (circulação, respiração e excreção) e volitivas (nutrição e reprodução). A tecnologia atual permite substituir várias funções vitais (coração, pulmões, rins, pâncreas, …) com medicamentos e aparelhos que suportam a vida artificialmente. Muitos destes tratamentos implicam a violação da integridade física, constituindo aquilo que o código penal português7 refere como ofensas à integridade física. Contudo o código penal também estabelece que “… As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física…”.7 As intervenções / procedimentos referidos só estão despenalizados se tiverem essa intenção. Os tratamentos não valem por si só, são ou não legítimos se estiverem de acordo com a leges artis, pois em caso contrário podem tornar-se ilegítimos. Neste preceito a Lei, a Deontologia, a Moral e a Ética coincidem.

6. DECISÃO DE “NÃO INICIAR SUPORTE ARTIFICIAL DE FUNÇÕES VITAIS (SAFV)” E DE “SUSPENDER SUPORTE ARTIFICIAL DE FUNÇÕES VITAIS”
Os procedimentos / tratamentos para SAFV são prescrições médicas e por isso têm de ter indicação apropriada à condição atual do doente, estar associados a um plano de execução datado, ter um plano de monitorização da evolução e dos resultados em linha com o que foi prescrito e ter a duração planeada em função dos resultados esperados. Quando se não verifique ou se deixe de verificar a “… intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar a doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental …”7 o suporte artificial das funções vitais, não deve ser iniciado ou deve ser suspenso, sob pena de ser considerados ofensa à integridade física.

Na prática clínica há situações curáveis e outras que não têm cura, mas têm tratamento indicado e justificado em determinado contexto. Se houver alteração do contexto e deixarem de ter indicação devem ser suspensos ou não iniciados pois é ética, legal e deontologicamente reprovável manter ou prolongar tratamentos não indicados / injustificados. Em termos éticos e legais, a suspensão de um procedimento terapêutico é equivalente à abstenção em iniciá-lo. Há contextos em que a informação é insuficiente e são tomadas decisões em benefício do doente (emergência, urgência, …) que podem ter de ser suspensas se novos dados permitirem concluir que são desproporcionados em risco / benefício para a condição atual dessa pessoa.

7. OBSTINAÇÃO TERAPÊUTICA / ENCARNIÇAMENTO TERAPÊUTICO
São práticas excessivas face à condição atual do doente, ao estado da arte e às expectativas de alívio do sofrimento. Há tratamentos agressivos e com risco para o doente que foram justificados pela natureza e gravidade da doença e por isso estiveram indicados. Contudo, se a situação evoluiu a ponto de já não se esperarem benefícios substantivos, esses mesmos tratamentos podem passar a ser inadequados (quimioterapias excessivas, cirurgias excessivas, antibioterapia excessiva, exames injustificados, …) Nesta eventualidade o sofrimento infligido deixa de ter justificação, por não ser conforme ao estado da arte e por isso poder ficar sob a alçada penal, além de ser deontológica, moral e eticamente reprovável.

8. DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE

É um conceito introduzido pela Lei nº 25/2012,8 que estabelece que

“… 1. - As diretivas antecipadas de vontade (DAV), … são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.

2. - Podem constar do documento de diretivas antecipadas de vontade as disposições que expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante, nomeadamente: a) Não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais;
a) Não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais;
b) Não ser submetido a tratamento fútil, inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico e de acordo com as boas práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte;
c) Receber os cuidados paliativos adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada, incluindo uma terapêutica sintomática apropriada;
d) Não ser submetido a tratamentos que se encontrem em fase experimental;
e) Autorizar ou recusar a participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos …”.8

A DAV é um contributo para a reflexão sobre os desejos e intenções da pessoa, em pleno exercício de autonomia, quando manifesta a sua vontade. Contudo, é produzida fora do contexto e da circunstância em que se vai aplicar, o que gera problemas que devem ser sempre considerados:

1. A aplicação da DAV justifica-se quando a circunstância clínica atual coincide com a que foi previamente tipificada e explicitada;
2. A DAV é manifestada fora de contexto, pelo que a pessoa pode mudar de ideias sem ter atualizado a sua DAV - é imprescindível considerar a possibilidade de o subscritor ter mudado de ideias;
3. Determinações como “Não ser submetido a tratamento de suporte artificial das funções vitais” podem ser desajustadas e inaceitáveis face à circunstância concreta: necessidade de fazer uma cirurgia para salvar a vida, apenas porque o subscritor não percebeu o que declarou ou não foi informado do significado do termo aqui referido. Uma coisa é ficar dependente de meios artificiais de suporte vital para vida, outra é ser submetido transitoriamente a SAFV para salvar a vida ou curar / tratar doença com a intenção de devolver essa pessoa a uma vida idêntica à que tinha antes da ocorrência;
4. Importa, pois, saber que a Lei prevê que “… São juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito, as diretivas antecipadas de vontade… que determinem uma atuação contrária às boas práticas …”,8 critério médico suportado na leges artis.

A DAV não se deve restringir ao formalismo do exercício da autodeterminação fora de contexto, deve servir para que as equipas de saúde conheçam e honrem a vontade dos seus doentes.

TESTAMENTO VITAL

A Lei nº 25/2012 que cria a DAV introduz também o conceito de Testamento Vital: “… A presente lei estabelece o regime das diretivas antecipadas de vontade (DAV) em matéria de cuidados de saúde, designadamente sob a forma de testamento vital (TV), regula a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV)…”.8

A designação Testamento Vital (TV) é particularmente infeliz porque essa manifestação de vontade nem é testamento nem é vital, é uma adaptação simplificada da terminologia anglo-saxónica do living will. A noção de Diretiva Antecipada de Vontade (DAV) é adequada para expressar o que se pretende, é um termo correto, com significado claro. Em português, testamento é um documento legalmente registado para execução literal depois da morte do seu autor. DAV é uma diretiva (indicação sobre a maneira de proceder em determinada situação), antecipada (fora do contexto) que exprime a vontade (do manifestante) sobre o que pretendia que acontecesse consigo, em vida, nas condições que julgou desejáveis em situação imaginada. É o contrário do que significa a palavra testamento (ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou parte deles).

A bem da clarificação dos termos e conceitos utilizados na comunicação, a designação “testamento vital” devia ser substituída pela fórmula correta: Diretiva Antecipada de Vontade.

10. RESSUSCITAÇÃO E REANIMAÇÃO

Reanimação cardiorrespiratória (RCR) é o termo utilizado para referir procedimentos destinados a recuperar o funcionamento dos sistemas respiratório e cardiocirculatório em caso de paragem cardiorrespiratória (PCR) ou na iminência de PCR.

Se nestas condições o tratamento correto não for instituído a tempo a pessoa morre, por isso a reanimação exige equipas treinadas, que têm de atuar de forma precisa, coordenada e rápida. Em caso de PCR a probabilidade de retorno da circulação espontânea decresce à razão de 7%-10% por cada minuto que passa sem tratamento eficaz. As células de cérebro começam a morrer cerca de 4-5 minutos depois da circulação e a oxigenação cerebral pararem.9

Em caso de PCR há três intervenções que salvam vidas: (1) a prontidão e eficácia no reconhecimento precoce, o pedido de ajuda de imediato e a chegada, a tempo, da ajuda qualificada; (2) o início imediato de suporte básico de vida eficaz (manter a circulação e oxigenação) e (3) a desfibrilhação rápida e segura dos ritmos desfibrilháveis. Se a equipa de reanimação não atua eficazmente no intervalo entre a PCR e a morte o resultado é um insucesso.

No “Grande Dicionário da Língua Portuguesa”, 1981, edição da Sociedade de Língua Portuguesa10 lê-se que reanimação, significa a ação ou efeito de reanimar ou reanimar-se, ou seja, restabelecimento das funções vitais em indivíduos com morte aparente. Ressuscitar significa fazer voltar da morte à vida, fazer ressurgir, fazer reviver; voltar da morte à vida.10

Na nossa cultura, o termo ressuscitação é sinónimo de ressurreição o que neste contexto, está errado e confunde conceitos porque: (1) ressuscitar (trazer para a vida pessoas que morreram) é coisa que a Medicina não faz; (2) deturpa a noção de que o tempo de resposta em caso de PCR é escasso (minutos), o que se não for bem compreendido atrasa o tempo de resposta. Em português o termo ressuscitação confunde-se com ressurreição o que, em comunicação com uma família angustiada, é um erro comunicacional grave.

Sugerimos banir, em definitivo, o termo ressuscitação, neste contexto, usando sim o vocábulo reanimação.

11. A DECISÃO DE NÃO REANIMAR (DNR)

Quando a condição do doente e/ou a evolução da doença antecipam a morte como desfecho inevitável, a prioridade passa a ser acompanhamento em fim de vida, centrado no alívio dos sintomas, no conforto e na dignidade da pessoa em consonância com os seus desejos expressos. Se a sobrevivência e recuperação do doente não é expectável, os procedimentos traumatizantes, como as técnicas de reanimação cardiorrespiratória não devem ser instituídos. Neste caso mandam as boas práticas que se determine que em caso de PCR se não iniciem nem se tentem manobras de reanimação, ou seja, assume-se que:
• Decisão é o culminar do processo deliberação (reflexão e ponderação em que todos ficam a saber o que todos pensam), assumida por quem de direito sobre a condição de um doente concreto (decisão médica, porque decorre do conhecimento do diagnóstico / prognóstico) num momento determinado, válida para a situação e circunstâncias em que foi assumida. Pode ser revogada, se as circunstâncias mudarem e o justificarem.
• Não iniciar nem simular ou fazer apenas parte do processo de reanimação, “para fazer parecer aos circunstantes que se não deixou de intervir sobre o doente”;
• Reanimar manobras de reanimação cardiorrespiratória.

A prescrição da DNR deve estar acessível à equipa de cuidados desse doente, o que é uma obrigação e critério de boa prática. A ausência de prescrições de DNR em doentes que as devem ter é marcador de má prática.

A prescrição de DNR só se aplica à paragem cardiorrespiratória, não incide sobre nenhuma outra decisão médica como o uso de antibióticos, fluidos, suporte de função vital de órgão. Se a prescrição inclui outras decisões de não iniciar e / ou suspender procedimentos, cada uma dessas decisões deve dar origem a processo de deliberação e registo da decisão, autónoma da DNR, se bem que potencialmente interrelacionadas.

12. SEDAÇÃO PALIATIVA

Institui-se para induzir um estado de redução de ansiedade, que, dependendo da profundidade da sedação pode reduzir igualmente a reatividade ou o estado de consciência. A sedação não visa a redução da dor, apenas as manifestações que decorrem da ansiedade, da perceção do meio envolvente e, eventualmente das manifestações de angústia. O alívio da dor é um processo autónomo da sedação paliativa e requer medicamentos apropriados para esse fim.11

Há doentes em fase terminal de doença grave, progressiva e incurável, com sintomas que provocam grande desconforto, nos quais a redução da ansiedade, da angústia e a própria perceção de sintoma pode ser uma forma de alívio, com o objetivo de proporcionar conforto e preservar a dignidade da pessoa até ao fim da vida. É suscetível de ser aplicada em caso de sintomas refratários aos tratamentos prévios (dispneia, delirium, agitação, hemorragia, vómitos incoercíveis, …) em doentes com grande sofrimento, pelo que, por definição, só pode ocorrer quando as intervenções para controlo do sintoma em causa falharam. A intenção é o alívio do sintoma ou sofrimento refratário e não abreviar a morte e se usada de forma apropriada, constitui uma opção terapêutica útil e eticamente justificada. O sintoma “refratário” deve ser distinguido do sintoma de difícil controlo, pelo que é recomendado o envolvimento de uma equipa de cuidados paliativos caso se verifique indicação para sedação paliativa.11

A sedação paliativa, tal como qualquer outra opção de tratamento, não deve ser usada de forma abusiva ou indevida.12 É abusivo se for utilizada para, de forma intencional, abreviar a vida. A intensidade da sedação deve ser proporcional à intensidade do sofrimento.13 Pode ser um procedimento contínuo ou por períodos, de acordo com os objetivos do ato médico. O seu uso é indevido se não estiverem reunidas as indicações para a sua utilização: ausência de sintomatologia refratária; utilização de fármacos que não estão indicados ou em doses desproporcionais ao efeito pretendido; ausência de avaliação adequada para identificar causas reversíveis ou tratáveis para o sofrimento. É igualmente má prática se for recusada a um doente com sofrimento refratário e que pode beneficiar da sedação.11

13. DUPLO EFEITO
O conceito de duplo efeito foi introduzido na discussão ética por S. Tomás de Aquino e assume que há procedimentos e intervenções que têm ou podem ter dois tipos de consequências: as desejadas e as indesejáveis (para-efeitos). Assim há intervenções instituídas com a intenção de aliviar o sofrimento grave e incontrolável que em determinadas situações podem ter efeitos indesejáveis que se sobrepõem ao efeito terapêutico desejado.12

14. MORTE

A morte clínica é definida de forma imprecisa nos dicionários de língua portuguesa atuais, pelo que neste texto definir-se-á como:

Paragem cardiorrespiratória irreversível - a PCR é reversível em casos em que a reanimação cardiorrespiratória é iniciada em tempo oportuno e executada de forma correta. A ocorrência de PCR (por si só), não define morte sendo necessário estabelecer-se que é irreversível.

Morte do tronco cerebral – desde que há capacidade para suportar artificialmente funções vitais passou a ser possível manter a circulação, a oxigenação e a homeostasia em pessoas cujo cérebro está irreversivelmente danificado e sem expectativa de recuperação. Por essa razão a legislação portuguesa13 Lei n.º 141/99 de 28 de Agosto estabeleceu um segundo critério de morte: “… cessação irreversível das funções do tronco cerebral…”, clarificando ainda que “… A verificação da morte é da competência dos médicos…”, nos termos da lei e que “… Cabe à Ordem dos Médicos definir, manter atualizados e divulgar os critérios médicos, técnicos e científicos de verificação da morte…”.13

O conceito de morte do tronco cerebral foi inicialmente estabelecido para permitir a colheita de órgãos de pessoas que morreram com funções vitais suportadas artificialmente. Em clarificação ulterior esclareceu-se que o conceito é extensivo a todas as mortes do tronco cerebral e impõe a cessação do SAFV, excetuado o período que decorre da verificação da morte do tronco cerebral à colheita de órgãos para transplante (para salvar vidas), quando tal estiver indicado.

15. EUTANÁSIA

O termo eutanásia tem sido utilizado para referir "... o ato intencional de proporcionar a alguém uma morte indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável ou dolorosa...".14

Mas o termo foi profusamente conspurcado com prefixos e adjetivos (ortotanásia, cacotanásia, mistanásia, distanásia, ativa, passiva, voluntária, involuntária, …) que confundem e deturpam o seu significado. Neste texto limitar-nos-emos à definição etimológica (do grego) onde eutanásia significa: Eu “boa” e tanásia “morte”,16 sem mais comentário.

Sugerimos que se utilize o termo eutanásia para referir o seu conceito de etimológico. Aos cenários nos quais o doente solicita a morte chamar-lhe-emos morte provocada a pedido.

16. MORTE PROVOCADA A PEDIDO DO PRÓPRIO

A morte provocada a pedido do próprio é assunto da agenda pública, discutindo-se se é ou não legitimo reconhecer que uma pessoa peça ajuda formal para terminar a sua vida em situações específicas e altamente escrutinadas que deverão incluir obrigatoriamente quatro critérios:
a) Ser portadora de doença incurável avançada (com comprovação clínica);
b) Estar enquadrada num modelo de acompanhamento clínico que lhe proporciona os tratamentos ajustados à sua condição e que são dirigidos ao controlo da doença e do sofrimento que esta lhe provoca. O pedido não pode ser justificado por ausência de acesso aos melhores tratamentos para a sua condição;
c) Referir que tem sofrimento intenso e não aliviável pelos tratamentos e acompanhamento adequados e disponíveis e por isso pretender provocar a sua morte;
d) Estar ciente de si, estar informado de tudo o que se relacione com a sua situação e, por isso, em condições de exercer a sua autonomia. Nesse contexto, assumir reiteradamente (em conformidade com o que para o efeito estiver legalmente estabelecido) que pretende que a morte lhe seja provocada por ter sofrimento insuportável, e (comprovadamente) não aliviável pelos procedimentos / intervenções prévias.

As correntes de pensamento que defendem que a vida é inviolável recusam esta possibilidade. Outros entendem que nas condições referidas a pessoa pode ter o direito de terminar a sua vida por considerar que o sofrimento é intolerável e/ou por já não ser possível aliviar esse sofrimento, com os recursos atualmente disponíveis.

Para os que aceitam a morte provocada a pedido pelo próprio (no contexto referido) o processo pode ser concretizado pelo próprio (com recurso a meios medicamente disponibilizados) ou por outra pessoa que executa os procedimentos letais.

Neste entendimento o termo morte provocada a pedido pelo próprio é claro não gera equívocos semânticos e exclui formal e definitivamente qualquer morte provocada sem ser a pedido expresso, reiterado e informado por pessoa em condições de exercer a sua autonomia e portadora de doença incurável e evolutiva.

Suicídio

Significa tirar a sua própria vida; matar-se.15 Para os profissionais de saúde, a perceção de que alguém se tentou suicidar ou que há risco de suicídio, ativa uma sucessão de intervenções para impedir a todo o custo a morte dessa pessoa. Assume-se em geral que o ato é irrefletido, provocado em contexto passional, praticado em momento de desespero ou motivado por padecimento psiquiátrico e por isso a ação imediata deve ser a de impedir a todo o custo a concretização do suicídio e corrigir / eliminar a causa.

O contrário acontece nas situações atrás designadas como morte a pedido do próprio (que alguns designam por suicídio assistido), pelo que neste entendimento o termo suicídio não deve ser utilizado na discussão da morte provocada a pedido do próprio.

18. MORTE ASSISTIDA

Em português este termo significa: as•sis•tir (latim assisto,-ere, colocar-se junto de, parar junto de, estar presente).15 Tem como significados:(1) estar presente; ser testemunha ou espectador, presenciar; (2) estar presente para auxiliar ou acompanhar, ajudando ou socorrendo.

A morte assistida, entendida nestes termos, é desejável e recomendada em todos os casos e com todas as pessoas, por isso designar morte provocada a pedido do próprio por morte assistida, é um grave erro de comunicação que não tem qualquer sentido, em primeiro lugar porque não são sinónimos e em segundo lugar porque todas as boas mortes devem ser acompanhadas e assistidas.

Conclusão

O uso de jargão médico e a utilização de estrangeirismo de significado incorreto na língua portuguesa dificultam a comunicação, arriscam-se a deteriorar a relação e por isso são má prática.

Acreditam os autores que a relação é central no processo terapêutico e que, para ser eficaz, tem de se apoiar numa terminologia que refira conceitos corretos e creem que esta proposta de terminologia precisa, com significado claro na linguagem corrente, contribui para a comunicação eficaz, para a responsabilização de quem prescreve e de quem aplica as prescrições.

 

Referencias

1. Neves MC. Sentidos da vulnerabilidade [acedido maio 2018] Disponível em: http://www.bioetica.catedraunesco.unb.br         [ Links ]

2. Nevidjon BM, Mayer DK. Reflections from a career in oncology nursing. Nurs Econ. 2012;30:148-52.         [ Links ]

3. World Health Organization. WHO Definition of Palliative Care [acedido Maio 2018] http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en/,         [ Links ]

4. The gold standard framework - http://www.goldstandardsframework.org.uk/contact-us         [ Links ]

5. Dicionário de língua portuguesa da Porto Editora [acedido em Abril 2018] Disponível em: http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/futilidade         [ Links ]

6. Engelhardt HT Jr. Rethinking Concepts of Futility in Critical Care. Houston: Center for Medical Ethics and Health Policy at Baylor College of Medicine; 1996.         [ Links ]

7. Código Penal. Artigo 150.º -Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos        [ Links ]

8. Assembleia da República. Lei n.º 25/2012. Diário da República n.º 136/2012, Série I de 2012-07-16        [ Links ]

9. Nolan JP, Hazinski MF, Aickin R, Bhanji F, Billi JE, Callaway CW, et al. 2015 International Consensus on Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency
Cardiovascular Care Science with Treatment Recommendations. Resuscitation. 2015;95:e1-31. doi: 10.1016/j.resuscitation.2015.07.039        [ Links ]

10. Grande dicionário de Língua Portuguesa. Lisboa: edição da Sociedade de Língua Portuguesa; 1981.         [ Links ]

11. Cherny N, Radbruch L. European Association for Palliative Care recommended framework for the use of sedation. Palliat Med. 2009;23:581-93. doi: 10.1177/0269216309107024.         [ Links ]

12. Randall F, Downie R. End of Life Choices, consensus and controversy. Oxford: Oxford University Press; 2010.         [ Links ]

13. Assembleia da República. Lei n.º 141/99. Diário da República n.º 201/1999, Série I-A de 1999-08-28.         [ Links ]

14. Wikipédia acedida a 30 de abril 2018. [acedido em abril 2018] Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Encyclopaedia_Britannica         [ Links ]

15. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013. [acedido em abril 2018] Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/eutan%C3%A1sia        [ Links ]

 

Correspondência: António H. Carneiroamhcarneiro@gmail.com
Departamento de Medicina, Urgência e UCI Hospital da Luz Arrábida; Porto, Portugal
Praceta Henrique Moreira, 150, 4400-346 Vila Nova de Gaia

 

Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho.

Conflicts of interest: The authors have no conflicts of interest to declare.

Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo.

Financing Support: This work has not received any contribution, grant or scholarship.

 

Recebido: 29/06/2019

Aceite: 17/07/2018

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons