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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.24 no.3 Lisboa set. 2017

https://doi.org/10.24950/rspmi/E/2017 

EDITORIAL / EDITORIAL

 

Incerteza e Curiosidade: Acerca de Cada Doente

Uncertainty and Curiosity: About Each Patient

J. Vasco Barreto

Editor associado

Hospital Pedro Hispano, ULS de Matosinhos, Portugal

 

“Ironically, only uncertainty is a sure thing. Certainty is an illusion”1

A maneira como nos relacionamos com a informação médica tem sofrido grandes mudanças. Comecei o internato em 2001. Nessa altura, eu e o meu orientador fazíamos uma visita semanal à biblioteca para escolher bons artigos das revistas de referência (tínhamos um cartão para fotocópias self-service). Quando nos assaltavam dúvidas sobre questões de fundo, íamos buscar o Harrison, o Cecil e o Oxford, calcorreávamos capítulos e tabelas, comparávamos datas de edição e muitas vezes acabávamos ainda insatisfeitos. O Serviço tinha dois ou três computadores sem internet, que utilizávamos sobretudo para processar texto (fazer notas de alta informatizadas era moderno). Desde então, estima-se que o conhecimento médico tenha pelo menos crescido oito vezes.2Hoje ninguém fotocopia artigos, ninguém lê tratados. E, perante a ameaça de uma dúvida, a nossa mão já desbloqueou o smartphone e começou a deambular por um qualquer oráculo imaterial. É mais prático, mais rápido, mais ecológico - mas continuamos a chegar ao fim do dia insatisfeitos, porque é da natureza da actividade médica ter dúvidas, ficar com dúvidas, conviver com elas.

Os congressos servem para um conjunto de coisas importantes, como sejam o estabelecimento e reforço de redes de contactos, de projectos, de ideias; a exposição pública do trabalho dos Serviços; a construção identitária da própria especialidade. Nem tudo é ciência, num congresso. E, mesmo quando assistimos a uma sessão mais puramente teórica, nem sempre de lá saímos com mais certezas. Repare-se em duas das novas tipologias de sessão experimentadas no 23º Congresso Nacional de Medicina Interna, em Maio deste ano no Porto. Nos “Casos Clínicos Interactivos”, perguntas abertas eram lançadas à audiência e depois comentadas por um painel de peritos; a maior parte das vezes não havia apenas uma resposta certa e os comentadores raramente concordavam entre si.
Nos “Encontros com o Perito”, o lema era “traga as suas dúvidas e leve outras incertezas”.

Também no 23º Congresso, pudemos ouvir grandes figuras da Ciência e da Medicina, que não nos deixaram mais sossegados. Alexandre Quintanilha fez-nos questionar sobre algumas novidades das biociências e os limites da sua aplicação ao serviço do bem-estar humano. Jerome Groopman e Pamela Hartzband, autores de vários livros sobre raciocínio e decisão clínica, fizeram uma interessantíssima demonstração sobre como as decisões clínicas são tanto melhores quanto mais bem adaptadas ao perfil psicológico de cada doente, relativizando a importância de “cumprir as guidelines”.

Na verdade, quando nos debruçamos mais sobre este assunto descobrimos que, no mundo real, só cerca de metade das nossas decisões são consistentemente baseadas na evidência.3 Nas próprias guidelines, apenas um terço das recomendações são baseadas em evidência de qualidade; e mais de um terço dos ensaios clínicos tem debilidades metodológicas.4 O que nos sobra, então?

Avisou-nos Osler, há mais de 100 anos,5 mas também muito recentemente Arabella Simpkin, que em Medicina pisamos muitas vezes o território da incerteza. Esta autora refere, num artigo de perspectiva de Novembro de 2016,1 que tolerar a incerteza e ser curioso em relação ao desconhecido são duas das chaves para a sobrevivência da profissão médica. Diz mais: uma vez que no Século XXI uma boa parte das nossas tarefas rotineiras será executada por computadores, o papel do médico será cada vez mais desempenhado nas “áreas cinzentas”, onde teremos que saber ajudar os nossos doentes a viverem com a incerteza (do diagnóstico, do tratamento, do prognóstico).

Esta digressão sobre incerteza e sobre o Congresso Nacional transportou-me até um dos episódios mais marcantes da minha vida profissional: o meu encontro com Lawrence Weed em 2011, por ocasião do 17º Congresso. Nessa altura, tínhamo-lo convidado para vir falar, pensávamos nós, sobre registo médico orientado por problemas (RMOP, ou POMR), que o próprio tinha “inventado” em 19686 e que a escola do Hospital de Santo António seguira quase religiosamente nas décadas seguintes.7 Mas Weed, aos 87 anos, tinha outra agenda, uma vez que tinha acabado de escrever um livro – extremamente provocatório – chamado Medicine in Denial,8 em que colocava em causa o papel tradicional do médico e explicava até à exaustão a razão de ser da sua “segunda invenção”: os Problem-Knowledge Couplers(PKC), uma ferramenta informática que, alimentada por uma base de dados de milhares de doentes e por evidência continuamente actualizada a partir da literatura médica, seria capaz de nos ajudar no diagnóstico e nas decisões terapêuticas com uma capacidade que a nossa memória, sem acessórios, nunca poderia alcançar. Discutimos alguns destes assuntos durante os jantares do congresso, mas o cenário era evidentemente o mais adverso a uma conversa profunda que se pode imaginar, a ponto de, para quebrar o gelo, eu ter chegado a fazer uma pergunta sobre a nossa gastronomia e receber um olhar espantado e uma resposta vaga, de recurso, sobre astronomia. Talvez, para o padrão de sociabilidade que é devido nos corredores do networking, eu fosse ainda demasiado ingénuo e ele já demasiado fraco de ouvidos. E talvez por isso, para meu privilégio, trocámos ainda uma meia dúzia de e-mails depois do congresso. Weed queria saber que impacto tivera em Portugal. Não resisto a transcrever uma passagem do texto que lhe mandei:

(…) I have always worked in a problem-oriented matrix. I am so used to it I don’t even conceive working otherwise. And POMR teaches us the importance of tolerating ambiguity, the necessity of dealing with imprecise symptoms and syndromes instead of feeling the urge of forcing a diagnosis.(…) Many times I finish my notes with “P) Analgesics; I’m going to study.”. (…) One of these days I was invited to a make a conference about community-acquired pneumonia, in which I was asked to review the treatment options for outpatients. After revisiting the major points of discussion and the differences between American and European guidelines, I ended with this idea: “don’t forget that every patient is unique, or at least very rare – he represents 0.000000014% of the world population – but he is in front of you and he needs a good evaluation, a wise decision and your most effective communication skills”.

Em 2015, Weed já não se sentiu capaz de corresponder ao meu convite para escrever um artigo na nossa revista. No entanto, a ele e a outros mestres tenho a agradecer terem-me ajudado a tolerar a incerteza, terem-me ensinado a conviver com a incerteza e mesmo a cultivá-la com boas perguntas.

Nota: Já depois de escrito este Editorial, o Prof. Lawrence Weed faleceu, em 3 de Junho, aos 93 anos.

 

Referências

1.Simpkin AL, Schwartzstein tolerating uncertainty – the next medical revolution? N Engl J Med. 2016;375:1713-5.

2.Densen Challenges and opportunities facing medical education.Trans Am Clin Climatol Assoc. 2011;122:48-58.         [ Links ]

3.Ernst How much of general practice is based on evidence? Br J GenPract.2004;54:316.         [ Links ]

4.McAlister FA, van Diepen S, Padwal RS, Johnson JA, Majumdar SR. How evidence-based are the recommendations in evidence-based guidelines? PLoS Med. 2007; 4:e250.         [ Links ]

5.Bean RB, Bean WB. Sir William Osler: aphorisms from his bedside teachings and writings. New York: Henry Schuman;1950.         [ Links ]

6.Weed Medical Records that guide and teach. N Engl J Med. 1968;278:593-600, 652-7.         [ Links ]

7.Barreto JV, Paiva O registo clínico orientado por problemas. Rev Port Med Int. 2008;15:201-6.         [ Links ]

8.Weed LL, Weed L. Medicine in Denial. Philadelphia: CreateSpace Independent Publishing Platform;2011.         [ Links ]

 

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