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Medicina Interna

versão impressa ISSN 0872-671X

Medicina Interna vol.23 no.4 Lisboa dez. 2016

 

PONTOS DE VISTA / POINTS OF VIEW

Cara Sépsis-3, Lamentamos Dizer-lho, Mas Não Gostamos de Si

Dear Sepsis-3, we Are Sorry to Say, But we do Not Like You

AH Carneiro1, J Andrade-Gomes2, P Póvoa3,4

1Departamento de Medicina, UCI e Urgência, Hospital da Luz Arrábida – Luz Saúde, Vila Nova de Gaia, Portugal

2Unidade de Cuidados Intensivos, Hospital da Luz – Luz Saúde, Lisboa, Portugal

3Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, Hospital de São Francisco Xavier, Lisboa, Portugal

4NOVA Medical School/Faculdade de Ciências Médicas, Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa, Portugal

Correspondência

 

RESUMO

Os autores analisam as recentes propostas de alteração das definições de sépsis e de choque séptico, publicadas na JAMA e exprimem os seuspontos de vista preocupados com as propostas da task force da Sepsis-3 em seis questões fundamentais: Discordam do divórcio do conceito e definição de sépsis do de infeção, Discordam da eliminação do conceito de systemic inflammatory response syndrome (SIRS) e da supressão do conceito de SIRS associado a causas não infeciosas; Discordam da utilização de definições diferentes para doentes na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) e fora da UCI; Discordam da escolha do sequential organ failure assessment (SOFA) para definir sépsis; Discordam do facto de as definições Sepsis-3 atrasarem o diagnóstico e por consequência puderem comprometer o tratamento precoce dos doentes com sépsis; Ficam surpreendidos por as definições Sepsis-3 se não terem associado às revisões das recomendações Surviving Sepsis Campaign, que se esperam para 2016.

Palavras-chave: Choque Séptico; Consenso; Sépsis; Síndrome de Resposta Inflamatória Sistémica.

 


ABSTRACT

Authors have reviewed recent JAMA publications changing sepsis and septic shock definitions and they express their point of view and concern with Sepsis-3 task force proposals, stressing six relevant points: disagreement with the divorce of the sepsis concept with infections definition and concept; disagreement with the elimination of systemic inflammatory response syndrome (SIRS) concept and with the suppression of the concept of non-infectious SIRS origin; disagreement with the proposal of two sepsis definitions, one for the ICU and the other for remaining ambiance; disagreement with the selection of sequential organ failure assessment (SOFA) to define sepsis; disagreement with the fact that Sepsis-3 can delay the diagnosis and consequently compromise early proper treatment; surprised by the independent publication of Sepsis-3 task force definitions without link to the Surviving Sepsis Campaign recommendations expected for 2016.

Keywords: Consensus; Sepsis; Shock, Septic; Systemic Inflammatory Response Syndrome.

 


Introdução

A JAMA publicou recentemente três artigos1-3 subscritos por uma task force promovida pelas European Society of Intensive Care Medicine (ESICM) e Society of Critical Care Medicine (SCCM), nos quais os autores propõem novas definições para a sépsis e para o choque séptico, a que chamaram Sepsis-3. Essa task force (adiante referida como tfS3) é composta por 19 especialistas em cuidados intensivos, infeciologia, cirurgia e pneumologia selecionados pelos seus dois coordenadores Mervin Singer (ESCIM) e Clifford S. Deutschman (SCCM).1 Sustentam os autores que a iniciativa se justifica porque:

  • As definições anteriores se focam demasiado na inflamação1 e que esse entendimento;
  • É enganador porque é um modelo que assume que há um continuum da sépsis grave para o choque séptico1;
  • É inadequado porque os critérios de SIRS (systemic inflammatory response syndrome) são demasiado sensíveis, mas pouco específicos1;
  • E que as definições e terminologias referindo sépsis, choque séptico e disfunção de órgão são incongruentes o que gera relatos de incidência e mortalidade discrepantes.1
  • A motivação da task force

    Atualizar as definições de sépsis e de choque séptico,1 desenvolver uma classificação standard que facilite a atividade clínica, a investigação e o relato estatístico dos dados2 e avaliar os critérios clínicos utilizados na identificação de doentes com suspeita de infeção e risco de desenvolver seleis.3

    O pressuposto

    A tfS3 assume que o fator precipitante da sépsis é a infeção, mas não se debruçou sobre a sua definição/caraterização, porque essa tarefa não constava do seu caderno de encargos. Assumiu que na sépsis a resposta do organismo é desregulada e definiu desregulação pela presença de disfunção de órgão(s). Assumiu que quando a resposta adaptativa não é complicada se chama infeção.1

    As propostas da task force

  • Sépsis deve ser definida como disfunção de órgãos causada pela resposta desregulada à infeção1;
  • Operacionalização clínica aumento de = 2 pontos no SOFA (sequential organ failure assessment) que se associa a 10% de aumento da mortalidade hospitalar1;
  • Choque séptico é um subgrupo da sépsis com alterações circulatórias, celulares e metabólicas particularmente profundas com risco de morte maior do que o da sépsis1;
  • O choque séptico reconhece-se pela necessidade de vasopressores para obter PAM =65 mmHg e lactato sérico > 2 mmol/L (>18 mg/dL) na ausência de hipovolémia e tem mortalidade > 40%1;
  • A task force chamou a estas definições Sepsis-3 (S3), propondo que os critérios definidores de sépsis de 19916 fossem referidos como Sepsis-1 (S1), e os de 2015 como Sepsis-2 (S2), reforçando a importância de atualizações futuras.1 Assumiu que estas definições e critérios clínicos deveriam substituir as anteriores por terem “… maior consistência para estudos epidemiológicos e ensaios clínicos e facilitarem o reconhecimento precoce e o tratamento a tempo dos doentes com sépsis ou em risco de desenvolverem sépsis…”1

    Neste processo avaliaram a construct validity e predictive validity do SIRS, do SOFA e do LODS (logistic organ dysfunction system)1,3 explorando registos eletrónicos das bases de dados da surviving sepsis campaign (2005-2010; n = 28 150), da University of Pittsburgh Medical Center (20102012; n = 1 309 025), e do Kaiser Permanente Northern California (2009-2013; n = 1 847 165). Fizeram análises com regressão multivariada utilizando as 21 variáveis dos critérios Sepsis-2,5 selecionando doentes com “suspeita de infeção” identificados por terem colhido produtos para estudos microbiológicos e feito tratamento com antimicrobianos dentro de um intervalo temporal contado a partir das colheitas.1 Essa análise concluiu que a presença de duas das três seguintes manifestações clínicas:

  • Alterações mentais
  • Pressão arterial sistólica < 100 mmHg
  • Frequência respiratória >22/minutos Identifica os doentes com suspeita de infeção que têm pior prognóstico1(definido como maior mortalidade e mais tempo de internamento em UCI).
  • Sumariados os pontos mais relevantes das propostas da tfS3, passemos agora ao comentário e análise de alguns aspetos dessas propostas.

    Porquê o título: Cara Sépsis-3, lamentamos dizer-lho, mas não gostamos de si

    Em 1997 Jean Louis Vincent7 expressou a sua posição sobre o conceito de SIRS (systemic inflammatory response syndrome) escolhendo para título de um dos seus editoriais uma frase que ficou célebre Dear SIRS, I’m sorry to say that I don’t like you. Depois de analisarmos as propostas da tfS3, quisemos repetir, com outro sentido, uma frase com idêntico significado Dear Sepsis 3, we are sorry to say that we don’t like you, por três níveis de questões:

    A. As questões conceptuais

  • A tfS3 afirma que a sépsis é a resposta desregulada à infeção e operacionaliza essa definição pelo reconhecimento de disfunção de órgão definida pelo aumento de = 2 pontos no SOFA score.1

    O problema: Esta definição não é fundamentada, com dados que sustentem que quando há disfunção de órgão a resposta é desregulada e quando não há é regulada. Sabe-se hoje, que a resposta à infeção cursa com a ativação simultânea de: inflamação / anti-inflamação, coagulação / anti-coagulação, adrenérgico / colinérgico, libertação / frenação de hormonas de resposta ao stress, …, num equilíbrio balanceado pelo peso relativo de cada um deles12-16 e dependente do estado funcional prévio desse doente. É um comportamento descrito pela teoria do caos que, por definição, assenta em relações de equilíbrio / desequilíbrio, estabilizáveis enquanto a reserva orgânica for capaz de controlar a resposta à agressão.

    A disfunção de órgãos de novo ou agravada é indicador de gravidade e não de diagnóstico, tal como preconiza a Sepsis-2.4 Assumir que só há sépsis quando há disfunção de órgão, sabendo que o processo fisiopatológico é um continuum, empurra o diagnóstico da sépsis para fases tardias, com risco de atrasar o reconhecimento e tratamento, o que, a verificar-se, agravará a mortalidade. O estado prévio da função de cada órgão é determinante na resposta e pode ser “desregulado” logo à partida.

  • A tfS3 definiu choque séptico como subgrupo da sépsis em que há presença simultânea de vasopressores por hipotensão resistente à reposição adequada de fluidos e hiperlactacidemia.1

    O problema:

    A disfunção cardiocirculatória é a mais grave das disfunções na sépsis, porque se associa a maior mortalidade e porque afeta todos os órgãos e tecidos. Contudo, com os critérios tfS3 o doente pode estar a necessitar de níveis elevados de aminas vasopressoras e evidenciar má perfusão periférica, mas se o lactato estiver < 2 mmoL/L “não tem choque séptico” ao passo que um outro com dopamina 4 microg/kg/min e lactato de 3 mmoL/L, pelos critérios tfS3, está em choque séptico. Nesta perspetiva a exigência simultânea dos dois critérios não é garantia de especificidade, mas é garantia de diagnóstico tardio. É difícil aceitar que atrasar o reconhecimento do choque séptico é correto, como demonstra a tfS31 ao evidenciar que quanto mais critérios de gravidade (hipotensão resistente ao volume, uso de vasopressores e lactato elevado) estiverem presentes pior é o prognóstico. Assumir que um estado de hiperlactacidemia elevada não é choque séptico só porque a reserva fisiológica desse doente ainda lhe permite ter a pressão arterial em valores “ditos normais” é um erro que aumenta a mortalidade desses doentes, muitas vezes jovens com sépsis fulminantes em fase precoce.

  • A tfS3 escusou-se a discutir a correlação da infeção como causa da sépsis com a alegação de que o seu mandato não incluía a apreciação da infeção.1
  • O problema: É difícil discutir uma entidade nas suas formas mais graves (sépsis e choque séptico) ignorando a causa e as formas menos graves (“infeção”). O sucesso do tratamento depende do reconhecimento precoce da doença, o que implica que atrasar significa aumentar a morbi-mortalidade. A boa prática clínica atual assume que reconhecer a infeção e estratificar precocemente a sua gravidade, prevenir e suportar as disfunções de órgão e tratar a causa (infeção) são os pilares do estado da arte e a tfS3 ignora ostensivamente este pressuposto.

  • A tfS3 ignorou e considerou inútil o conceito de SIRS (systemic inflammatory response syndrome) por ser excessivamente sensível e pouco específico;1
  • O problema: os indicadores do SIRS são mais sensíveis do que específicos, mas há uma correlação linear entre o nº de critério de SIRS e a mortalidade independentemente da patologia causal.17,18 A tfS3 argumenta que a maioria dos doentes hospitalizados têm manifestações SIRS, o que é previsível já que não devem ter sido hospitalizados por estarem saudáveis. É bom que os sinais de alerta sejam avaliados para verificar se traduzem ou não agravamento e/ ou complicações. Ignorar as manifestações precoces é esperar que surjam as disfunções graves. O SIRS socorre-se prioritariamente de manifestações clínicas que podem ser identificados por todos e em qualquer lugar. Esta questão é tão relevante que JL Vincent et al,19 depois de publicadas as definições tfS3, tiveram necessidade de reforçar a importância do conceito de SIRS na prática clínica, pela importância que têm no reconhecimento precoce.

    A tfS3 comparou o desempenho do SIRS com o SOFA e o LODS para definir gravidade, o que surpreende porque o conceito de SIRS não foi concebido para ser utilizado como índice de prognóstico, apesar de a sua AUC na avaliação da tfS3 ser comparável à do SOFA e do LODS.

  • A tfS3 ignorou e excluiu das suas definições as situações não infeciosas que se exprimem por SIRS e /ou disfunção de órgãos, por vezes com quadros clínicos graves e até potencialmente fatais, que são indistinguíveis da sépsis;
  • O Problema: há entidades como a pancreatite, trauma grave, queimado, doença neoplásica, doença autoimune, …, que se manifestam com quadros clínicos similares à sépsis incluindo as manifestações da SIRS e disfunções de órgão. Todas têm maior probabilidade de se complicarem com infeção o que exige diagnóstico diferencial criterioso, para definir a estratégia terapêutica mais adequada. Pelo exposto não se percebe que a tfS3 ponha em causa um conceito tão estruturante como o SIRS / sépsis de etiologia infeciosa ou não infeciosa, sem dedicar a necessária atenção à análise dos conceitos e às implicações da revisão desses conceitos.

  • A tfS3, estabeleceu as definições de sépsis e choque séptico com o objetivo de restringir esses diagnósticos às formas mais graves de sépsis.1
  • O problema: A tfS3 propôs conceitos para diagnósticos tardios e ignorou as estratégias para o reconhecimento e tratamento precoces da sépsis, opção que surpreende no ano em que se aguardam as novas recomendações SSC (surviving sepsis campaign). A estratégia SSC, pelo contrário, prioriza o reconhecimento e tratamento precoces, pelo que é difícil encontrar razões clínicas que justifiquem e sustentem a posição da tfS3.

  • O primeiro parágrafo do texto de definição dos conceitos da “tfS3”1 assinala que “… a sépsis é um problema de saúde pública major, representando $20 biliões (5,2%) nos custos hospitalares nos EUA em 2011.8,9 A incidência da sépsis está a aumentar refletindo o envelhecimento da população com mais comorbilidades, o aumento de diagnósticos e, nalguns países, a existência de codificações associadas a reembolsos favoráveis. Estimativas conservadoras indicam que a sépsis é a principal causa de morte e de doença grave em todo o mundo …” e que “…os sobreviventes da sépsis têm perturbações cognitivas, físicas e psicológicas prolongadas com significativas implicações socias e nos cuidados de saúde ...”10 bem como aumento da mortalidade tardia.11
  • O Problema: Percebe-se que o controlo de custos seja uma preocupação, mas não se percebe que influencie os critérios de classificação da doença, deslocando a definição para as formas mais graves quando os maiores ganhos em saúde são obtidos com o diagnóstico e tratamentos precoces.

    As questões metodológicas

    A tfS3 promoveu discussões interativas, quatro presenciais e outras por e-mail, revisões sistemáticas da literatura, consensos pelo método de Delphi (para definição de conceitos)2 e interrogação de bases se dados de registos eletrónicos, incluindo utilização de scores de disfunção de órgãos.3 Completado o processo o texto final foi circulado por sociedades científicas, 31 das quais o subscreveram.1

    A task force optou por utilizar o SOFA na definição da sépsis

    O SOFA é um índice de disfunção de órgão, que avalia seis sistemas /aparelhos e está estruturado em tabela de duas entradas com pontuações de 0-4 que se deduzem da gravidade das disfunções desses órgãos.20 O SOFA é utilizado em algumas UCI e não é utilizado fora das UCI.

    Na sépsis o mais importante é o reconhecimento e estratificação de gravidade precoces, que se faz maioritariamente fora das UCI (urgências, enfermarias, instituições pré-hospitalares, …).1-3 Por isso se o critério de diagnóstico for o SOFA o diagnóstico atrasa-se o que é uma má opção.

    Quatro dos critérios do SOFA obtêm-se das análises, um é definido pela resposta ao tratamento (pressão arterial) e só o Glasgow é clínico, mas de difícil avaliação em doentes a fazer medicamentos que interferem com o nível da consciência. A escala de Glasgow avalia a resposta ocular, motora e verbal, o que está validado para TCE, trauma e doentes com lesão neurológica. Na sépsis as manifestações mais precoces e com valor diagnóstico na disfunção neurológica aguda, são perturbações cognitivas, desorientação, depressão da consciência / agitação e excecionalmente convulsões,21 que são alterações mentais habituais nas síndromes associadas ao delirium, o que torna o critério do SOFA ainda menos adequado para o diagnóstico precoce da disfunção neurológica na sépsis.

    A task force criou um novo indicador que designou por qSOFA

    O tratamento estatístico das bases de dados utilizadas nestes estudos identificou três critérios clínicos1-3: frequência respiratória >22/minutos, pressão arterial sistémica <100 mmHg e alterações mentais que se relacionaram com maior mortalidade e internamento prolongado na UCI. O achado de critérios clínicos significativos no diagnóstico da sépsis é uma boa notícia, mas saber que esses critérios são valorizados para identificar os doentes com pior prognóstico e não para identificar a sépsis precocemente, é uma má notícia.

    A tfS3 apelidou este indicador de quick SOFA (qSOFA), apesar de nenhum dos seus itens ser critério SOFA,1 o que é mais um fator de confusão. Apesar de ambos terem o mesmo “apelido”, são entidades diferentes e de famílias diferentes.

    A tfS3 preferiu o termo alterações mentais por ter reservas ao Glasgow para a construção deste indicador, o que é coerente com o comentário sobre delirium feito no ponto anterior.1

    A tfS3 valorizou o qSOFA por este não exigir resultados de análises e ser de utilização mais fácil fora das UCI.1 Não tem qualquer sentido que para a mesma doença o critério de diagnóstico seja diferente na UCI e fora da UCI.

    A valorização do lactato

    A tfS3 concluiu que o valor do lactato sérico, quando presente, se correlaciona de forma linear com a mortalidade e estabeleceu o valor de 2 mmol/L2 como cut off para valorizar a lactacidemia.2 Se é assim, é difícil entender a revogação da recomendação SSC2012 que indexa o tratamento do choque séptico à correção da lactacidemia quando esta estiver elevada.

    C. A consistência das definições na prática clínica

    Um dos argumentos centrais da tf da S3 é a defesa de definições precisas para qualificar a investigação. Contudo, quando utilizou “critérios precisos” na interrogação das bases de dados da University of Pittsburgh Medical Center [12 hospitais – n = 5984] de 2010-12 e do Kaiser Permanente Northern California [20 hospitais – n = 54135] de 2009-20131 revelou discrepâncias espantosas:

  • Mortalidade dos doentes com hipotensão + vasopressor + lactato > 2 mmol/L (18 mg/dL): Pittsburgh 54% Kaiser 35% (1,5 vezes menos)
  • Mortalidade dos doentes com hipotensão sem vasopressor e lactato < 2 mmol/L (18 mg/dL): Pittsburgh 25,2% Kaiser 18,8%, (1,4 vezes menos)
  • Mortalidade dos doentes com lactato >2 mmol/L (18 mg/ dL) sem hipotensão: Pittsburgh 17,9% Kaiser 6,8%, (2,6 vezes menos)
  • Mortalidade dos doentes com sépsis: Pittsburgh 20% Kaiser 8%, (2,5 vezes menos)
  • Sendo estes dados obtidos dos registos eletrónicos de dois centros universitários do mesmo País,1 com culturas científicas idênticas, surpreende que o mesmo doente tenha 1,4 a 2,6 vezes mais probabilidade de morrer com a mesma doença num centro do que no outro. A tfS3 assume que a utilização do lactato nos doentes com sépsis é diferente nos dois centros e muito baixa em Pittsburgh, mas não comenta estes factos.

    Expectativas para o futuro breve

    Como sustenta John Marshall,22 a sépsis é um constructo que inclui a causa (infeção) e as consequências (resposta do organismo à agressão e disfunção de órgãos) e por isso os critérios de diagnóstico devem relevar pelos menos quatro questões essenciais:

  • Reconhecer as manifestações da infeção em fase precoce, o que exige atenção ao foco identificado ou possível, para se poder tratar adequadamente e prevenir a disfunção de órgãos;
  • Nos doentes com infeção suspeita ou confirmada, estratificar a gravidade para identificar os que têm maior risco de disfunção de órgãos e intensificar a monitorização da sua evolução;
  • Identificar precocemente os que têm disfunção de órgãos e maior risco de morte para intervir precocemente e inverter a evolução desfavorável;
  • Identificar precocemente os doentes em risco de disfunção de órgãos de causa não infeciosa.
  • Ora isto é muito diferente da estratégia que a “tf da S3” adotou e, pelo contrário, muito mais próximo da proposta S2.

    Espera-se que as recomendações SSC 2016 possam corrigir os erros identificados e recuperar a confiança na estratégia SSC que documentadamente se associou ao decréscimo consistente da mortalidade por sépsis na última década e meia.23

    Notas Finais

  • A publicação de novas definições de sépsis e choque séptico, desligadas das recomendações SSC, dissociadas da discussão da infeção, desvalorizando o diagnóstico precoce e excluindo as manifestações inflamatórias sistémicas de etiologia não infeciosas, geraram enorme e justificada confusão e desconfiança;
  • A opção pelo SOFA para diagnóstico da sépsis na UCI e do qSOFA para a sépsis fora das UCI é um retrocesso que contradiz o que foi feito até hoje pela SSC em que se tentou unificar estratégias. Confusões destas são graves porque têm implicações no início do tratamento correto;
  • A opção por um critério de gradação e monitorização de disfunções de órgão como o SOFA, para diagnosticar sépsis em alternativa à lista binária da Sepsis-2, pode dificultar e atrasar o reconhecimento com risco de aumento de mortalidade, pelo que é uma má opção.

     

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    Correspondência: António H. Carneiro - amhcarneiro@gmail.com
    Departamento de Medicina, UCI e Urgência, Hospital da Luz Arrábida – Luz Saúde, Vila Nova de Gaia, Portugal

     

    Conflitos de Interesse: Os autores declaram a inexistência de conflitos de interesse na realização do presente trabalho

    Fontes de Financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo

    Recebido:02.09.2016

    Aceite:19.10.2016

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