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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.39  Porto jun. 2020

https://doi.org/10.21747/08723419/soc39a2 

ARTIGOS

O campo da cultura na América-Latina e o caso da Ditadura Militar Brasileira: questões de autonomia, tradição e modernidade

The cultural field in Latin America and the case of the Military Dictatorship in Brazil: issues regarding autonomy, tradition and modernity

Le champ de la culture en Amérique Latine et le cas de la Dictature Militaire Brésilienne : questions d’autonomie, de tradition et de modernité

El campo de la cultura en América Latina y el caso de la Dictadura Militar Brasileña: cuestiones de autonomía, tradición y modernidad

Pedro Menezes

Instituto de Sociologia da Universidade do Porto Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Endereço de correspondência

 


RESUMO

O artigo objetiva analisar o campo cultural latino-americano, salientando dois traços marcantes desse espaço: 1) sua pouca autonomia, caracterizada por uma forte dependência das artes em relação ao Estado e ao mercado, quadro esse que promove tanto um apagamento da linha que dividiria a cultura entre “alta” e “baixa”, quanto a consequente fusão desses dois polos em um mesmo e indiferenciado todo; 2) a conflituosa harmonia entre as ideias de tradição e modernidade. Para ilustrar essas duas dinâmicas, o texto se debruça sobre um estudo de caso: o período da ditadura militar brasileira (1964-1985) e o triângulo Estado-mercado- artistas, naquela época forjado.

Palavras-chave: América Latina; Ditadura militar brasileira; campo cultural

 


ABSTRACT

The article intends to analyze the Latin-American cultural field, emphasizing two of its relevant characteristics: 1) its fragile autonomy, characterized by a strong dependence of the arts on both the State and the market, which results not only in the fading of the line that supposedly would divide culture in “high” and “low”, but also in the fusion of these two poles into the same, undistinguished whole; 2) the conflictual harmony between the ideas of tradition and modernity. In order to demonstrate both dynamics, the text brings into focus a case study: the Brazilian military dictatorship period (1964 -1985) and the State- market-artists triangle forged at the time.

Keywords: Latin America; Brazilian military dictatorship; Cultural field.

 


RÉSUMÉ

L’article vise à analyser le champ culturel latino-américain, en mettant en évidence deux caractéristiques marquantes de cet espace : 1) sa faible autonomie, caractérisée par une forte dépendance des arts par rapport à l’État et au marché, un cadre qui favorise à la fois une suppression de la ligne qui diviserait la culture entre “haute” et “basse”, et la fusion conséquente de ces deux pôles en un ensemble identique et indifférencié ; 2) l’harmonie conflictuelle entre les idées de tradition et de modernité. Pour illustrer ces deux dynamiques, le texte se concentre sur une étude de cas : la période de la dictature militaire brésilienne (1964-1985) et le triangle État-marché-artistes, forgé à l’époque.

Mots-clés: Amérique latine; Dictature militaire brésilienne; Champ culturel.

 


RESUMEN

El artículo tiene como objetivo analizar el campo cultural latinoamericano, destacando dos características sobresalientes de este espacio: 1) su débil autonomía, caracterizada por una fuerte dependencia de las artes en relación al Estado y al mercado, un marco que promueve tanto la eliminación de la línea que dividiría la cultura entre “alta” y “baja”, como la consiguiente fusión de estos dos polos en un mismo e indiferenciado conjunto; 2) la armonía conflictiva entre las ideas de tradición y de modernidad. Para ilustrar estas dos dinámicas, el texto se centra en un estudio de caso: el período de la dictadura militar brasileña (1964-1985) y el triángulo estado-mercado-artistas, forjado en ese momento.

Palabras clave: América Latina, Dictadura militar brasileña; Campo cultural

 


1. Introdução

Esse artigo analisa o campo cultural latino-americano, salientando dois traços marcantes desse espaço: 1) sua pouca autonomia (Bourdieu, 1996), caracterizada por uma forte dependência das artes em relação ao Estado e ao mercado, quadro esse que promove tanto um apagamento da linha que acreditadamente dividiria a cultura entre “alta” e “baixa”, quanto a consequente fusão desses dois domínios em um mesmo e indiferenciado todo; 2) a conflituosa harmonia entre as ideias de tradição e modernidade. Após o exame desses dois elementos centrais do campo cultural na América Latina, o texto partirá para um estudo de caso que evidencia essa articulação: o período da ditadura militar brasileira (1964-1985) e o triângulo Estado-mercado-artistas que na altura surgiu (Canclini, 2011; Ortiz, 2006 e 2012; Ridenti, 2014). De um ponto de vista analítico, o artigo almeja promover um cruzamento entre a teoria bourdiesiana da autonomização dos campos (Bourdieu, 1996) e o pensamento de sociólogos que se dedicaram à questão da cultura na América Latina, notadamente Renato Ortiz, Nestor Garcia Canclini e Marcelo Ridenti. Por último, nas considerações finais, proporei uma inversão da seta que regula a relação entre teoria e empiria. Sendo assim, ao invés de me esforçar para descobrir o que os conceitos revelam do objeto, tentarei entender o que a paradoxal feição do campo cultural latino-americano diz sobre os textos que a tematizam.

2. O problema da autonomização dos campos na sociologia de Pierre Bourdieu

A questão da autonomia dos campos foi profundamente analisada na obra de Pierre Bourdieu (1996 e 2009). Criando um modelo circular entre as disposições subjetivas formadoras das agências e as posições objetivas relativas às estruturas, o autor define o campo como um jogo com regras em que o está em jogo são as próprias regras do jogo que se joga. Sendo assim, vence o jogo o jogador que conseguir a proeza de definir as regras do jogo, ou seja, o oponente capaz de ser também o árbitro da disputa que ele mesmo está disputando. Só ascende a essa posição vitoriosa de participante e juiz da partida aquele que reúne quantidade suficiente de capital: espécie de moeda ou quantum de poder desigualmente distribuído entre os membros daquela arena. Essa cifra simbólica assimetricamente partilhada entres os diferentes atores de um campo – ou, mais precisamente, a crença que recursivamente dela emana e que nela é depositada – regula e hierarquiza as relações no interior do campo, gerando efeitos de prestígio, que coroam como dominantes os que acumulam grande porção desse bem escaço, e auras de carência, que marginalizam como dominados os pouco providos de capital (Bourdieu, 2009).

O problema bourdiesiano da autonomia do campo está intimamente ligado à ideia de capital: quanto mais um campo estiver organizado de acordo com o capital produzido nas lutas internas àquele campo, mais autônomo ele é; inversamente, quanto mais um campo se deixa sistematizar por capitais de outros campos que o invadem, menos autonomia ele tem. Sendo assim, como o nível de autonomia de um campo depende de quanto capital nativo há nele (e como sempre há algum tanto desse dinheiro local em circulação), logo, nenhum campo é totalmente autônomo ou completamente heterónomo, não fazendo sentido, portanto, falar em “campos autônomos” e “não autônomos”, mas sim em “campos mais ou menos autônomos”. Mesmo que operasse apenas com o próprio capital, ainda assim um campo não poderia se dizer completamente autônomo, pois o princípio da homologia entre os campos faz com que eles se espelhem, ainda que não se toquem, de modo que uma mudança de posição no interior de um dado campo autônomo pode gerar uma mudança simétrica na posição equivalente de outro campo autônomo. Dito de forma definitiva, a autonomia de um campo não é um estado absoluto em que se está ou não se está, mas um grau relativo que pode ser maior ou menor, a depender da quantidade de capital próprio ordenando as relações dentro daquela batalha (Bourdieu, 1996). Um exame da problemática da cultura na América Latina pelo prisma da teoria bourdiesiana da autonomização dos campos revela duas características principais desse objeto: primeiro, tem-se aqui um campo bastante heterónomo; segundo, nota-se que a relação entre tradição e modernidade, diálogo caro à vida simbólica de qualquer lugar, ganha contornos muitos próprios no continente (Canclini, 2011; Ortiz, 2006 e 2012; Ridenti, 2014). Aproximando Bourdieu de autores que pensaram a América Latina, tentaremos compreender essas duas marcas do campo cultural daquele lugar.

3. Campo cultural latino-americano: a questão da autonomia

Olhando para a questão da cultura na América Latina a partir de Bourdieu, pode-se dizer que há aqui um campo muito pouco autônomo, pois, historicamente, essa área sempre se deixou regular mais pelo capital oriundo de outros campos do que pelo capital dentro dela própria cultivado. Eis a tragédia fáustica da cultura nos trópicos: por fracassar em produzir grandes quantidades do seu capital, o campo cultural latino-americano precisou abrir suas portas para a invasão do capital de outros campos. Esses outros campos estavam prontamente dispostos a socorrer o campo da cultura, mas a um preço: os outros campos investiram seus próprios capitais no campo cultural carente de capital interno e, em troca, a cultura sacrificaria parte de sua autonomia e mediaria seus próprios anseios com as demandas dos seus patrocinadores; demandas essas que, por vezes, eram diametralmente opostas aos fins perseguidos pelo campo cultural que patrocinavam (Canclini, 2011; Ortiz, 2006 e 2012; Ridenti, 2014). Conforme dito anteriormente, a autonomia não é um estado fixo em que o campo está dentro ou fora, mais uma faixa em que ele pode se situar mais acima ou mais abaixo, a depender da razão entre capital interno e externo a regula-lo, e é por sempre haver alguma quantidade de ambos naquele espaço que um dado campo nunca consegue ser totalmente autônomo ou totalmente heterônomo (Bourdieu, 1996). Sendo assim, retomando a questão latino-americana, seria incorreto afirmar que o campo cultural trocou toda a sua autonomia pelo capital de outros campos, ou seja, que a cultura abriu mão de sua liberdade pelo investimento de outras áreas, que desse jeito passaram a tiranizá-la e direcioná-la para seus próprios objetivos. Ao invés desse ventriloquismo, o que se deu foi uma tensa articulação entre as regras internas da arte e as ambições desses investidores externos. Dito de maneira clara: a cultura na América Latina teve mecenas, mas não agiotas. Dentre os muitos fiadores desse campo dependente, dois se destacam como sendo seus principais avalistas: o Estado e o mercado ampliado de bens simbólicos, serviços e entretenimento sustentado pelos meios de comunicação de massa, ou seja, aquilo que Adorno e Horkheimer chamaram de “indústria cultural” (2006).

Um paralelo entre Europa e América Latina revela a incipiente autonomia do campo cultural da ex-colônia em comparação com o da sua antiga metrópole. Para Bourdieu (1996), uma fração das artes europeias conseguiu assumir a forma de um campo de produção e consumo restritos relativamente autonomizado do Estado e do mercado porque foi bem sucedida em criar uma “sociedade de artistas” (Bourdieu, 1996: 75): espécie de cooperativa ou sindicato quase independente que não precisa da atenção e do financiamento externos do Estado e do mercado porque internamente todos acumulam as funções de produtor e consumidor das obras nascidas dentro daquele universo autocontido, fechando-se assim um circuito em que cada um é simultaneamente colega de profissão, rival e plateia dos demais. Paradoxalmente baseada em relações tanto de mutualismo quanto de competitividade, a sociedade de artistas é uma comunidade de autores que funciona da seguinte maneira: encerrado o círculo de membros, todos os artistas se comprometem a adquirir o bem simbólico produzido por cada um deles, de modo que cada um conta com o amparo dos demais e, em contrapartida, devolve a esses outros o mesmo apoio incondicional que deles recebeu. Sendo assim, embora nenhum artista isoladamente tenha a capacidade de se bancar, o conjunto formado por todos consegue assegurar a subsistência de cada um. Desse modo, ainda que o dinheiro de fora não entre, o dinheiro de dentro circula, o que é suficiente para garantir ao menos que os artistas mantenham suas atividades. A sociedade de artistas não ambiciona crescer ou se voltar para fora de seus muros, mas tão somente continuar existindo, continuar sendo a condição de possibilidade para si mesma ao operar como o todo que sustenta as partes que o sustentam. Além dessa finalidade prática relativa à segurança financeira do grupo, a sociedade de artistas desempenha a função simbólica de proporcionar uma espécie de zona segura para as experimentações e ousadias dos autores. Quer dizer, na sociedade de artistas cada criador tem a certeza e a tranquilidade de que se encontra entre iguais, podendo assim dar vazão à sua obra sem constrangimento, pois sabe que os outros estarão se permitindo o mesmo. O comportamento que fora daquele espaço seria estigmatizado como extremo e radical, dentro dele é a praxe, a etiqueta encorajada, exigida e premiada. Por cumprir essa dupla função prática e simbólica, a comunidade de artistas é o único ambiente em que os criadores se sentem plenamente livres, em todos os sentidos do termo, como Bourdieu esclarece no trecho as seguir:

“Mas a sociedade dos artistas não é apenas o laboratório onde se inventa essa arte de viver muito particular que é o estilo de vida do artista, dimensão fundamental da empresa de criação artística. Uma de suas funções principais e, no entanto, sempre ignorada, é ser para si mesma o seu próprio mercado. Ela oferece às audácias e às transgressões que os escritores e os artistas introduzem, não apenas em suas obras, mas também em sua existência, ela própria concebida como uma obra de arte, a acolhida mais favorável, mais compreensiva.” (Bourdieu, 1996: 75)

Ainda que uma larga faixa da vida cultural europeia se desenvolva em parceria com o governo e a indústria do entretenimento massificado, também é certo que uma acreditada “elite” da cultura do continente sobrevive à maneira da sociedade dos artistas de Bourdieu, ou seja, de forma autossustentável, alheia aos chamados da política e da multidão. Essa aristocracia da arte pela arte, livre do Estado e do mercado, é justamente a fação que conseguiu atingir o nível necessário de autonomia para poder legitimamente se considerar e ser considerada um campo cultural de fato. Essa diferença entre um campo cultural significativamente autônomo e uma produção dependente do Estado e do mercado é a mãe de todas as diferenças, quer dizer, é a distinção que, de maneira circular, gera e toma como pressuposto a crença em uma linha que dividiria a cultura entre “alta” e “baixa”, “erudita” e “popular”, “restrita” e “ampliada”, “pura” e “impura” ou quaisquer outros pares de opostos socialmente fabricados que, ao se naturalizarem, passam a ser aceitos como verdades universais (Bourdieu, 2007).

Se a cisão europeia entre, de um lado, um campo cultural suficientemente autonomizado do Estado e do mercado e, do outro lado, um circuito de produção dependente desses dois segmentos lastreia a fé no corte entre uma cultura “verdadeira” e uma “falsa”, logo, inversamente, a falta de uma separação entre essa realeza estética livre do Estado e do mercado e uma plebe espiritual deles necessitada também extinguiria tanto a fenda que aliena a cultura “legítima” da “ilegítima”, quanto esses próprios dois extremos, que, sem um fosso intransponível a afastá-los, acabariam por se ver reduzidos a um mesmo e indistinto monólito cultural. Foi justamente isso que aconteceu na América Latina, continente em que o mundo da arte, todo ele, falhou em realizar essa fotossíntese europeia, quer dizer, em instaurar esse sistema adiabático capaz de transformar a cultura em um “subcampo da produção restrita, onde os produtores têm como clientes apenas outros produtores, que são também seus concorrentes diretos” (Bourdieu, 1996: 246), precisando então se abrir para o Estado e o mercado. Como o Estado e o mercado se espalharam por todos os aspetos da cultura latino-americana, não há no continente nem a separação entre uma nobreza artística autonomizada desses segmentos e uma periferia simbólica a serviço deles, e nem a divisão que dessa resulta entre uma arte “sagrada” e uma “profana”. A bem da verdade, deve-se admitir que, mesmo que não haja na América Latina uma diferenciação entre um polo autonomizado do Estado e do Mercado e outro a eles subordinado, posto que toda a cultura precisa contar com esses outros dois campos, o certo é que, com algum esforço, até se pode ver um esboço da bifurcação entre uma cultura tida como “sofisticada” e outra classificada como “mundana”. Porém, ao contrário do que se dá na Europa, em que a “grande” cultura corresponde à parcela do campo cultural autonomizada do Estado e do mercado e a cultura “vulgar” diz respeito ao estrato do campo controlado por esses outros dois campos, na América Latina os dois lados do par “alta/baixa” cultura encontram-se em um campo, todo ele, mediado pelo capital do Estado e do mercado. A maior prova disso pode ser encontrada no fato de que mesmo os artistas laureados com a arbitrária insígnia da “autêntica” cultura latino-americana voaram nas asas da máquina burocrática estatal e dos meios de comunicação de massa, seja indiretamente recebendo o patrocínio e a publicidade desses veículos, seja diretamente trabalhando em seus quadros, como demonstra a grande quantidade de artistas imortalizados no olimpo das artes locais que eram funcionários públicos ou empregados de grandes conglomerados de comunicação. Quer dizer: na América Latina é possível depender do Estado e do mercado massificado e ainda assim compor o cânone da “genuína” cultura do continente; um evidente sintoma de heteronomia que seria tido como uma aberração por um campo cultural mais autonomizado, como é o europeu. Apenas para ficarmos no caso brasileiro, pode-se identificar esse tipo ideal (Weber, 2009) de artista anfíbio em figuras como Machado de Assis, o patrono da literatura nacional e fundador da Academia Brasileira de Letras que também era funcionário público, ou Dias Gomes, dramaturgo membro dessa mesma academia que escreveu tanto a peça cuja adaptação para o cinema venceu a Palma de Ouro de Cannes em 1962, quanto telenovelas de enorme audiência exibidas no horário nobre do maior canal de televisão do país (Ortiz, 2006; Ridenti, 2014).

Canclini analisou bem essa diferença entre o campo cultural europeu e o latino- americano. De acordo com o autor, enquanto na Europa há uma divisão mais percetível entre um polo de produção especializado (com menos lucros imediatos, porem mais prestigiado culturalmente) e um polo de circulação ampliado (mais rentável, contudo simbolicamente menos “distinto”), na América essas duas metades se confundem, sendo mais difícil ver a suposta separação entre “legítimo” e “comercial”, “espiritual” e “pecuniário”, “arte” e “mercado”. Diz o autor:

“[Na Europa] cria-se, deste modo, um duplo espaço cultural. De um lado, o de circulação restrita, (…), espaço em que se desenvolvem a literatura e as artes; de outro, o circuito de ampla difusão, protagonizado nas primeiras décadas do século XX pelos jornais, que iniciam a formação de públicos maciços para o consumo de textos (…). [Na América Latina] durante muitas décadas posteriores, os escritores não puderam viver da literatura, tendo que trabalhar como docentes, funcionários públicos ou jornalistas, o que criava relações de dependência do desenvolvimento literário com relação à burocracia estatal e ao mercado de informação de massa.” (Canclini, 2011:68 e 69)

Analisada a fraca autonomia do campo cultural latino-americano, partamos para seu outro elemento fundante: a maneira como esse espaço concilia os conceitos opostos de tradição e modernidade.

4. Campo cultural latino-americano: a questão tradição/modernidade

Além da pronunciada heteronomia – revelada em uma sujeição da arte ao Estado e ao mercado que contribui tanto para o embotamento da acreditada fronteira que dividiria a “alta” da “baixa” cultura, quanto para a consequente fusão desses hemisférios –, outra característica muito própria do campo cultural latino-americano é o tratamento que lá recebeu a díade tradição/modernidade. Historicamente tomadas como ideias antagônicas, na América Latina “tradição” e “modernidade” coexistem e até se implicam mutuamente, ora a tradição auxiliando a modernidade, ora a modernidade se prestando ao papel de força motriz da tradição. O fato de não haver aqui uma pura repelência não quer dizer que exista uma simples afinação. Na verdade, o mais certo seria considerar que, na América Latina, “tradição” e “modernidade” convergem e divergem ao mesmo tempo, compondo esse delicado oximoro (Ortiz, 2015) que caracteriza o campo cultural do continente.

As causas desse paradoxal concerto remetem à relação que o binômio tradição/modernidade estabelece com a ideia de “identidade nacional”. Enquanto na maioria dos países a noção de identidade nacional repousa na tradição e toma a modernidade como uma ameaça a essa identidade, já que a modernidade empurraria o país para longe da tradição que abriga a identidade, na América Latina o conceito de identidade nacional está intimamente ligado à modernidade, de modo que a modernidade não seria lida como um risco para a identidade nacional, mas como sua cúmplice, pois levaria o país ao encontro dela. Isso implica que, nos outros lugares em que a identidade nacional abraça a tradição e recusa a modernidade, essa identidade seria entendida como uma joia bem acabada protegida pelo passado do país. Já no caso latino-americano, em que a identidade nacional aponta também para a modernidade, a identidade não poderia ser tomada como esse tesouro resguardado pelo passado, mas como um projeto inacabado a ser concretizado no futuro (Canclini, 2011; Ortiz, 2012). Essa crença de que a identidade nacional dos países latino-americanos não seria uma ontologia encerrada no passado tradicional, mas uma promessa a ser cumprida no futuro modernista, tem suas origens nos discursos pseudocientíficos do século XIX acerca do continente. Inspirados pela doutrina do determinismo biológico e climático e por um darwinismo social enviesado, muitos autores dedicados ao problema da identidade na América Latina conduziram seu “raciocínio” para a mesma lacônica sentença: guardadas as devidas nuances, desde o primeiro manual de história do Brasil (Martius, 1991) até obras mais recentes, a maioria desses trabalhos acreditava que, por causa dessa miscigenação de raças e desse clima tropical, a formação de uma identidade nacional seria impossível. Enquanto o sangue e o meio representavam o berço da pátria dos xenófobos, na América Latina, ao menos para esses autores evolucionistas, esses potenciais sustentáculos da nação eram justamente o grande óbice da construção da identidade nacional. Com a ruína desses alicerces tradicionais do passado, disseminou-se a crença de que só quando os ventos da modernidade soprassem para o futuro superaríamos esses males de origem e teríamos uma identidade nacional de fato. O trecho de Ortiz resume essas teorias: “O ideal nacional é, na verdade, uma utopia a ser realizada no futuro, ou seja, no processo de branqueamento da sociedade brasileira. É na cadeia da evolução social que poderão ser eliminados os estigmas das ‘raças superiores’, o que politicamente coloca a construção de um estado nacional como meta e não como realidade presente” (Ortiz, 2012: 22).

Assim, o projeto de modernização dos países latino-americanos e a busca por essa tal identidade nacional passaram a se entrelaçar, não sendo exagerado dizer que os dois processos viraram um só; uma síntese que Ortiz ilustrou com a máxima: “só seremos modernos se formos nacionais” (Ortiz, 2006: 34). Assim como Ortiz no que se refere ao Brasil, Canclini sublinha o mesmo diálogo entre nacionalidade e modernidade quando trata da experiência mexicana: “O modernismo cultural, em vez de ser desnacionalizador, deu o impulso e o repertório de símbolos para a construção da identidade nacional. (…) Depois da Revolução mexicana, vários movimentos culturais realizam simultaneamente um trabalho modernizador e de desenvolvimento nacional autônomo” (Canclini, 2011: 81). O encantamento dos países latino-americanos com a modernidade, derivado da fé de que seria ela a chave para a descoberta das suas respectivas identidades nacionais, foi justamente o que pôs a modernidade em contato com seu avesso: a tradição. Isso se deu porque o interesse latino-americano na modernidade era bastante seletivo. Dito de forma alongada, o que se passou foi que, obedecendo aos vaticínios evolucionistas, a América Latina colocou em marcha o plano de se modernizar para forjar uma identidade. Entretanto, nessa sanha de se modernizar para saber quem de fato era, o continente aceitou a modernidade apenas enquanto um discurso ou uma ideologia (Mota, 2014), mas não enquanto uma realidade objetiva, que permanecia sendo a tradicional. Por abraçar somente o texto modernista, mas continuar aceitando o contexto tradicional, a América-Latina acabou criando esse cenário disjuntivo em que as ideias progressistas do iluminismo, da razão, do liberalismo, da igualdade, do livre comércio, da ode à maquina etc. se difundiram em uma sociedade escravocrata, rural, desindustrializada, com economia baseada na produção de matéria prima, taxas de analfabetismo enormes, e relações de poder altamente personalizadas estribadas na força e no compadrio1.

Enquanto na Europa a ideia de modernidade refletia o estado presente da sociedade, na América Latina a palavra não encontrava nenhum lastro na realidade, pelo contrário: era constantemente frustrada por uma paisagem profundamente arcaica. Se aceitarmos o pressuposto de Canclini de que “modernidade” se refere tanto um discurso modernista quanto a um processo técnico de modernização, então podemos afirmar que na Europa havia o discurso e o processo, enquanto no América Latina só se via a narrativa, mas não o ambiente; quadro esse que o autor definiu como um “modernismo sem modernização” (Canclini, 2013), posto que o modernismo não passava de uma “ideia fora do lugar”, para citar a feliz expressão que Schwarz (2012) usou para se referir à refração que tipos humanos de romances ambientados na Europa burguesa sofreram quando usados em novelas que se passavam um Brasil escravocrata. Essa assimetria entre Europa e América fez com que a modernidade cumprisse funções muito diferentes em cada um dos lugares: referendado e espelhado por um entorno moderno, o discurso modernista europeu apontava para o presente, agindo assim como um reflexo ou diagnóstico de seu tempo. Enquanto isso, desmentido por um cenário tradicional, o discurso modernista dos trópicos se via impedido de referenciar o contemporâneo, por isso mirou o futuro, cumprindo o papel não de um registro, mas de uma profecia, uma meta, um vir-a-ser que “não se situa junto à concretude do presente, mas se desvenda enquanto virtualidade” (Ortiz, 2012: 138). Resgatando Schwarz para pensar especificamente o caso brasileiro, Ortiz afirma que, no país, “o modernismo é uma ideia fora do lugar que se expressa como projeto” (2006: 32). Essa é a diferença básica entre o modernismo europeu e latino-americano durante o século XIX: no primeiro caso, retrato de uma sociedade presente; no segundo caso, promessa de uma sociedade futura. Uma teleologia que, quando finalmente se cumprisse, revelaria a identidade nacional dos países do continente. Esse curto-circuito latino-americano entre um discurso modernista ventilado em uma sociedade tradicional, que fez latifundiários caudilhos que usavam mão de obra escrava em suas monoculturas de matéria-prima citarem conceitos iluministas e teorias do liberalismo burguês escritas para explicar a urbanização e a revolução industrial europeia, foi o que gerou esse centauro tradição-modernidade que caracteriza o campo cultural latino-americano até os dias de hoje. Como bem resumiu Canclini: “Hoje concebemos a América Latina como uma articulação mais complexa de tradições e modernidades (diversas, desiguais), um continente heterogêneo formado por países onde, em cada um, coexistem múltiplas lógicas de desenvolvimento” (Canclini, 2011: 28).

Roma, drama do diretor mexicano Alfonso Cuarón vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2019, ilustra bem essa relação ao mesmo tempo simbiótica e canibal entre tradição e modernidade. A cena de abertura do filme mostra empregadas domésticas indígenas lavando um piso de típicos azulejos mexicanos e, refletida nessa água imunda, um avião cruza os céus da capital do país, como se a modernidade latino-americana só se deixasse ver projetada no anteparo da tradição do continente. O piso é o da apertada garagem da casa dos patrões, onde o novo Ford importado da família só cabe com muita dificuldade, simultaneamente sendo amassado pelas paredes estreitas, mas também arrancando partes delas, da mesma forma que o progresso estrangeiro tentando entrar na rígida moldura da história local. A meu ver, as duas facetas aqui analisadas são as principais características do campo cultural latino-americano: 1) a limitada autonomia, representada por uma dependência da arte em relação ao Estado e ao mercado que borra a linha que dividiria a cultura entre “alta” e “baixa”, plasmando esses reinos em um só continuum, 2) a fraternidade predatória entre tradição e modernidade. A seção seguinte será dedicada a um estudo de caso do que acredito ser a realização máxima e o exemplo mais bem acabado dessas duas características do campo cultural latino- americano aqui discutidas: a relação da ditadura militar brasileira com a cultura do país.

5. Ditadura militar brasileira e campo cultural nacional: o triângulo Estado-mercado- artistas

No senso comum, existe a crença de que Estado, mercado e artistas seriam inimigos naturais com interesses antagônicos: o Estado, com sua máquina burocrática hipertrofiada, desejaria engolir todas as atividades; o mercado, inspirado pelo liberalismo econômico, fugiria do controle estatal com o objetivo de lucrar cada vez mais; e os artistas, esses espíritos sensíveis e contestadores, ensejariam uma obra livre que denunciasse a tirania de ambos. Por mais disseminada que seja essa prenoção, a realidade dos fatos é mais complexa do que esse imaginário sugere, como prova a experiência da ditadura militar brasileira (1964 – 1985) (Ortiz, 2006 e 2012). Durante aquele período, o campo cultural não se organizou nem da maneira acima descrita, nem da maneira oposta, ou melhor, não se organizou nem de um jeito nem de outro, mas se serviu de ambos, mesmo que sejam inversos. Colocando em termos claros, pode-se dizer que, na época do governo militar, Estado, mercado e artistas nem puramente rivalizavam, nem apenas se ajudavam, mas duelavam e cooperavam simultaneamente, firmando um tenso arranjo que conseguiu a proeza de se equilibrar na própria instabilidade justamente porque transformou forças diruptivas em novas formas de vínculo: as arestas desse triangulo separaram e conectaram os seus vértices ao mesmo tempo. Olhemos par cada um deles.

5.1 Estado

O governo militar estabeleceu com a cultura uma relação ambivalente de apoio na forma e controle do conteúdo: por um lado, o regime implementou todas as medidas técnicas e institucionais para que pudesse florescer no Brasil um mercado massificado de produção e consumo de bens e serviços simbólicos (apoio na forma); mas, por outro lado, o mesmo governo capaz de fazer esse investimento também censurava, perseguia, exilava, prendia, torturava e matava os criadores egressos desse parque industrial de arte e entretenimento que a própria ditadura ajudou a erigir (controle do conteúdo). Nesse contexto, “o Estado deve, portanto, ser repressor e incentivador das atividades culturais” (Ortiz, 2006: 116), um paradoxo definido por muitos sociólogos e sociólogas como uma “modernização conservadora”2 (Dias, 2008; Ortiz, 2006; Ridenti, 2014) ou, simplesmente, uma “moderna tradição brasileira” (Ortiz, 2006).

Segundo Ortiz,
“A expansão das atividades culturais se faz associada a um controle estrito das manifestações que se contrapõem ao pensamento autoritário. (…) O movimento cultural pós-1964 se caracteriza por duas vertentes que não são excludentes: por um lado se define pela repressão ideológica e política; por outro, é um momento da história brasileira onde mais são pr oduzidos e difundidos os bens culturais. Isto se deve ao fato de ser o próprio Estado autoritário o promotor do desenvolvimento capitalista na sua forma mais avançada” (Ortiz, 2006: 115).

Ridenti segue esse mesmo raciocínio quando afirma que “O processo da revolução burguesa – na sua especificidade autoritária e dependente, numa sociedade com desenvolvimento desigual e combinado, como a brasileira, em que o atraso é estruturalmente indissociável do progresso, o arcaico inseparável do moderno – seria coroado com o movimento de 1964” (Ridenti, 2014: 36). Dentre as principais medidas técnicas e institucionais que a ditadura militar tomou para forjar esse mercado cultural, bem como os acontecimentos que se deram em decorrência desse investimento, podemos citar: em 1965, a criação da Empresa Brasileira de Telecomunicações (EMBRATEL) e a entrada do Brasil no INTELSAT, o sistema internacional de satélite; em 1966, a criação do Conselho Federal de Cultura, do Conselho Nacional de Turismo, da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (EMBRATUR), do Instituto Nacional de Cinema (INC), e a definição de um política nacional de turismo; em 1967, criação do Ministério das Telecomunicações, do Sistema Nacional de Turismo e a realização do I Encontro Oficial de Turismo Nacional; em 1968, realiza-se a I Reunião dos Conselhos Estaduais de Cultura; em 1969, é criada a Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME); em 1970 o Ministério de Educação e Cultura (MEC) passa por uma reforma administrativa que cria em sua burocracia interna novos órgãos voltados para a cultura, como o Departamento de Assuntos Culturais (DAC); em 1972, há a criação da Telecomunicações Brasileiras S.A (TELEBRÁS) e o I Congresso da Indústria Cinematográfica Brasileira; em 1973, o DAC lança o 1° Plano de Ação Cultural; em 1975 inaugura-se a Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) e o Centro Nacional de Referência Cultural, o primeiro Plano Nacional de Cultura é publicado, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro é lançada, realiza-se o I Encontro Nacional dos Dirigentes de Museus, e a EMBRAFILME é ampliada, absorvendo as competências do INC, que por essa razão é extinto; em 1976 são fundados o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), a Empresa Brasileira de Comunicação – Radiobrás e é realizado o I Encontro Nacional de Cultura; em 1979 o DAC é elevado ao estatuto de Secretaria de Assuntos Cultuais, cria-se a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a Fundação Pró-Memória e se realizam o I Seminário Nacional de Artes Cênicas e o I Encontro Nacional de Artistas Plásticos Profissionais. (Ortiz, 2006). Mas, certamente, a mais relevante de todas essas medidas foi a criação de um sistema de comunicação de micro-ondas – iniciado em 1968 e completado em 1970, quando chega à Amazônia – “que viabiliza a aproximação de todos os cantos do país” (Dias, 2008: 55) “permitindo a interligação de todo o território nacional” (Ortiz, 2006: 118).

Em paralelo a essas medidas de estímulo burocrático e tecnológico à cultura, crescia também o aparato de repressão cultural e política da ditadura, que sufocava o conteúdo produzido pelo campo que o próprio governo ajudou a criar. No dia 13 de dezembro de 1968 é publicado o Ato Institucional 5 (AI-5), resolução do governo militar que radicaliza e escancara a violência do Estado ditatorial. Dentre as muitas medidas repressivas está a institucionalização da censura de obras culturais. É em meio a esses sinais trocados que o mercado massificado de bens e serviços simbólicos e a indústria da arte e do entretenimento se desenvolvem no Brasil.

5.2 Mercado

Com o apoio técnico e institucional do Estado, o comércio da cultura no Brasil muda de nível: abandona-se uma fase aventureira baseada no faro, no instinto e no amadorismo otimista de pioneiros impulsivos que se confundem com suas próprias empresas (Assis Chateuabriand seria o tipo ideal weberiano [2009] mais bem acabado desse empresário), e se inicia um período de maior racionalização, especialização, profissionalização e modernização controlado por figuras impessoais que delegam funções e desaparecem atrás do próprio império midiático (caso de Roberto Marinho) (Ortiz, 2006: 135). Para adotar o tom da Escola de Frankfurt, pode-se dizer que a cultura brasileira passa a aceitar a lógica sistêmica da economia, convertendo-se em uma “indústria cultural” de fato (Adorno & Horkheimer, 2006). Os dados da época comprovam que o mercado reagiu à injeção do Estado: em 1964, havia 32 empresas de televisão no Brasil, dez anos depois passam a ser 75. Essa subida foi fundamentalmente conduzida pelas novelas: foram lançadas 195 entre 1963 e 1969, fazendo do Brasil a nona audiência mundial de televisão em 1975. O cinema mostra a mesma curva ascendente: entre 1957 e 1966, o Brasil produziu, em média, 32 longa-metragens por ano. Apenas entre 1967 e 1969, esse número salta para 50. Só em 1975 são lançados 89 filmes e em 1980, 103. O número de espectadores nos cinemas brasileiros também cresce: de 203 milhões em 1971 para 250 milhões em 1976. O mercado editorial passa de 43,6 milhões de livros editados em 1966 para 245,4 milhões em 1980, e de 104 milhões de exemplares de revistas em 1960 para 500 milhões em 1985 (Ortiz, 2006). No mercado fonográfico, as vendas também explodiram: a venda de toca- discos cresceu 813% entre 1967 e 1980 e o lucro das empresas fonográficas, entre 1970 e 1976, aumentou 1375%. (Dias, 2008; Morelli, 2009). O setor cresceu 7% em 1970, 19% em 1971 e 26% só no primeiro semestre de 1972 (Morelli, 2009). Segundo a Associação Brasileira de Produtores de Discos, se em 1966, 5.5 milhões de discos foram vendidos no Brasil, a cifra passou para 52.6 milhões em 1979 (Vicente, 2014), ano em que o Brasil passou a ocupar o 6° lugar no ranking do mercado de discos, tendo saltado oito posições em uma década (Morelli, 2009). Na publicidade, assiste-se à mesma tendência: 152 milhões de cruzeiros são investidos no setor em 1964 (0,8% do Produto Nacional Bruto), sendo que 12 anos depois esse valor passa para 12,6 bilhões (1,28% do Produto Nacional Bruto). Em 1974, o Brasil é o sétimo mercado de propaganda do mundo, superando países como a Itália, a Holanda e a Áustria. Esse é um período em que várias universidades públicas e privadas abrem cursos de publicidade: Universidade de São Paulo em 1966, Álvares Penteado em 1967, Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1968, ISCM em 1969. É nessa altura também que surgem as associações de profissionais da área: Associação Brasileira de Anunciantes em 1961, Conselho Nacional de Propaganda em 1964, Federação Brasileira de Marketing em 1969; bem como os institutos de pesquisas mercadológicas: Mavibel em 1964; Ipsem e Nopem em 1965; Gallup, Demanda e Simonsen em 1967; Ipape, Audit-TV e Sercin em 1968; Nielson e LPM em 1969; e Grande Parada Nacional em 1973 (Ortiz, 2006; Vicente, 2014). Na fotografia, também se vê a mesma tendência: se o país tinha apenas 7.921 fotógrafos em 1950 e 13.397 em 1960, após o golpe militar os números passaram para 25.452 em 1970 e 48.259 em 1980 (Ortiz, 2006). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o número de domicílios brasileiros com aparelhos de rádio era de 4.776.300 em 1960, 10.383.763 em 1970 e 19.203.907 em 1980, e com aparelhos de televisão 62.919 em 1960, 4.250.404 em 1970 e 14.142.924 em 19803.

Enquanto isso, a ditadura militar declarava guerra aos mesmos criadores que ela havia ajudado a criar com seu investimento técnico e institucional no campo da cultura, selando com o mercado da arte e do entretenimento o estranho pacto de apoio formal e controle conteudístico acima mencionado. A indústria tinha a plena consciência que devia sua expansão ao governo militar, por isso subservientemente tolerava a intolerância da ditadura e considerava a censura das obras uma espécie de contrapartida justa que os generais cobravam em troca de tanto investimento no setor. Prova disso é o protocolo de autocensura que a TV Globo e a TV Tupi assinam em 1973, comprometendo-se a censurar internamente suas próprias produções antes de submetê-las à censura oficial do Estado.

Ensanduichados entre mercado e Estado, eles: os artistas.

5.3 Artistas

Os artistas que abertamente criticavam a ditadura militar e por ela eram perseguidos produziam suas obras amparados pelas empresas privadas ou estatais que cresceram por conta do investimento técnico e institucional do governo no campo da cultura. “No princípio dos anos 1970”, afirma Ridenti,

“sob o governo Médici, quando se consolidou o processo de modernização conservadora da sociedade brasileira, a atuação dos artistas de esquerda foi marcada por certa ambiguidade: por um lado, a presença castradora da censura e a constante repressão a quem ousava protestar, que implicou a prisão, o exílio e até mesmo a morte de alguns deles; por outro lado, cresceu e consolidou-se uma indústria cultural que deu emprego e bons contratos aos artistas, inclusive aos de esquerda, com o próprio Estado atuando como financiador de produções artísticas e criador de leis protecionistas aos empreendimentos culturais nacionais” (Ridenti, 2014: 286).

Ainda segundo esse autor, a paradoxal inimizade íntima entre ditadura e indústria cultural era tão explícita que a estratégia empregada pelos artistas de esquerda para combater essa “modernização conservadora” foi uma espécie de “tradicionalismo revolucionário”4, quer dizer: por um lado, a improvável aliança entre Estado e mercado usava a teleologia do progresso como meio de atingir um futuro reacionário; por outro lado, os artistas de esquerda propunham um retorno a uma suposta essência original do povo, acreditando que essa matriz virginal seria libertária. Se, para a diarquia Estado-Mercado, o passado conservador era o fim da história para onde o progresso nos levaria; para os artistas o futuro revolucionário estava inscrito no ADN da natureza humana, razão pela qual sonhavam com o “porvir do passado” (Canclini, 2011) e, à maneira do Angelus Novus de Paul Klee analisado por Walter Benjamin5, tentavam “escovar a história a contrapelo” (Benjamin, 1985: 225). Contudo, essa não era uma luta entre duas frentes que se chocavam, mas entre dois círculos concêntricos: o tradicionalismo revolucionário dos artistas era exercido no cerne da máquina tecnocrática da modernização conservadora engendrada por Estado e mercado.

“A derrota política de 1964 e o avanço da indústria cultural cobravam seu preço para a sobrevivência dos artistas. Aqueles ligados à música popular – diretamente vinculados à indústria fonográfica e à televisão – parecem ter sido dos primeiros a ver que não teriam como escapar do mercado”. (Ridenti, 2014: 117)

É a isso que Canclini se refere quando fala que “a arte do ocidente, confrontada com as forças do mercado e da indústria cultural, não consegue sustentar sua independência.” (2011: 89) Guardadas as devidas mudanças, as linhas mestras do triângulo Estado-mercado-artistas continuaram balizando o campo da cultura no Brasil até o mandato do atual Presidente da República, um confesso admirador da ditadura que, seja por ironia do destino ou dialética hegeliana, vem sucateando o legado que herdou do regime totalitário que tanto idolatra. Mas isso já foge ao escopo desse estudo de caso. Para os fins desse artigo, gostaria de demonstrar apenas como o triângulo Estado- mercado-artistas, conjurado durante a ditadura militar brasileira, exemplifica os dois eixos centrais do campo cultural latino-americano aqui discutidos: a pouca autonomia (que aproxima a arte do Estado e do mercado, derruba a muralha que separaria uma cultura “boa” de outra “ruim” e mescla essas áreas antes tidas como imiscíveis), e a interdependência belicosa entre um passado tradicional conservador e um futuro moderno revolucionário.

6. Considerações finais

Retomando o raciocínio que abre o texto e o acompanhou até aqui, esse artigou intentou explorar dois traços marcantes do campo cultural latino-americano: primeiro a sua baixa autonomia, evidenciada em uma dependência das artes em relação ao Estado e ao mercado, que turva a fronteira entre o que seriam a “alta” e a “baixa” cultura, unindo esses dois planos em uma única e indivisível totalidade; segundo, a espinhosa convivência entre as ideias opostas de tradição e modernidade. Para ilustrar essas dinâmicas, tratei a relação da ditadura militar brasileira com o campo cultural do país como um caso heurístico capaz de desvelar essas duas características. Para uma visão crítica, essas duas idiossincrasias do campo cultural latino-americano poderiam representar uma fraqueza ou um defeito e, de fato, poucas leituras seriam capazes de se distanciar dessa conclusão negativa. Todavia, ainda que esse artigo concorde com a acusação de que a situação do campo cultural latino-americano é um tanto dramática, nessas considerações finais eu gostaria de analisar não essa limitação, mas essa crítica a ela. Essas críticas ao campo cultural latino-americano parecem ter um ponto em comum: um bourdiesianismo apressado veria aí um campo em busca de autonomização (Bourdieu, 1996); uma leitura habermasiana diagnosticaria que esse é um típico caso de modernidade inacabada (Habermas, 2000), e muitas outras análises entenderiam a cultura latino-americana como um processo em curso, em vias de, caminhando para, quase, no meio do caminho… enfim, todas essas são críticas a uma suposta “incompletude” da América-Latina, como se o continente estivesse em uma transição para se transformar em algo pronto. Mas o que a América Latina se tornaria ao final dessa odisseia? A resposta me parece óbvia: a Europa. Falando de forma direta, o elemento que todas essas críticas compartilham é um evolucionismo teleológico que considera a América Latina tardiamente “presa” em um estágio transitório que a Europa já teria superado há muito tempo, como se o presente da ex-colônia fosse um retrato do passado da antiga metrópole. Quer dizer, tem-se nessas críticas mais uma teoria europeia do suposto “atraso” latino-americano em atingir o fim da história, ou seja, uma narrativa do fracasso do continente em cumprir sua missão histórica: tornar-se a Europa. Não quero aqui fazer um elogio ufanista da América Latina. Pelo contrário: assim como as críticas europeias acima evocadas, quero também fazer uma crítica à América Latina, mas outra crítica; uma crítica que passa pela crítica da crítica europeia à América Latina. A crítica europeia da incompletude latino-americana é ineficiente porque, por mais que soe come uma crítica do centro à periferia, ela me parece mais um perdão da Europa a seu próprio passado colonial. Digo isso porque, no fundo, a teoria da incompletude latino-americana é otimista, já que reduz todos os problemas a uma questão de tempo, como se ainda não fosse tarde demais, como se no fim tudo fosse ficar bem, como se os males da colonização não fossem irreversíveis e um dia todos celebraremos juntos, como uma grande e próspera Europa.

Hipocritamente me servindo do recurso que acabei de condenar, concluo: a crítica europeia ao campo cultural latino-americano quase acertou. Ela acerta ao diagnosticar o aspecto contraditório desse campo, mas erra ao ver nessa monstruosidade uma etapa passageira. Isso não é o que nós ainda somos, mas o que nós sempre fomos. Quer dizer: a fraca autonomia do campo cultural da América Latina e a convivência entre tradição e modernidade passaram por um processo de requalificação no continente, deixando de ser vistas como fraquezas a serem superadas para se descobrirem enquanto singularidades que precisam ser afirmadas. Sendo assim, ao contrário do que sugere a crítica à pretensa incompletude da América Latina, aumentar a autonomia e apartar tradição e modernidade não seria corrigir os supostos “defeitos” da cultura latino-americana, mas negar os traços diferenciais da vida simbólica daquele lugar. Com essa afirmação, não quero fazer uma defesa substancial e valorativa da cultura latino-americana, mas apenas definir em que termos acredito que o debate deva se assentar e sublinhar a natureza desses elementos aqui em discussão: gostando ou não, a heteronomia do campo cultural latino-americano e o imbricamento entre tradição e modernidade não são “erros” passageiros que precisam ser ajustados, mas particularidades com a qual precisamos nos mediar. Não é por ser disjuntivo e assimétrico que um cenário está inacabado. Por vezes, essa estranheza é como o quadro de fato é. É a isso que Canclini (2011) e Bhabha (2013) se referem, cada um a sua maneira, quando definem a cultura das ex-colônias como híbrida: não se trata de um hibridismo de “partes” ou “elementos” (nesse sentido todas as culturas são híbridas), mas de lógicas, dinâmicas, temporalidades. Aquilo que no centro do capitalismo está dividido em diferentes campos (o Estado, o mercado, a cultura, etc.) ou em diferentes épocas (o passado tradicional conservador e o futuro moderno redentor, a história atrás de nós e o progresso à nossa frente), na América Latina se confunde, amalgamando- se e digladiando ao mesmo tempo. Para esses autores, ser pós-colonial não é retornar ao estágio anterior à colonização nem atingir o ponto em que ela será vencida, mas analisá-la da perspetiva do colonizado. Ou seja, não se trata de apagar nem de superar a colonização, mas de encará-la do ponto de vista de quem a sofreu, “tocar o futuro pelo lado de cá”, como diz Bhabha (2013). Seguindo esse raciocínio, ver a heteronomia do campo cultural e o casamento entre tradição e modernidade na América Latina não como uma falha a ser consertada, mas como um dado com o qual temos que lidar – ou melhor, não como uma incompletude, mas como um diagnóstico – é se definir e definir a questão global da colonização nos termos latino-americanos, é exibir um ponto de vista a um só tempo periférico e cosmopolita, é ser pós-colonial.

Foi exatamente isso o que a América Latina fez com seu campo cultural: ao invés de contornar uma dificuldade, fez dela o seu traço diferencial. Convertendo problemas em potencialidades e obstáculos em virtudes, o campo cultural latino americano transformou um ecossistema hostil em um habitat natural e fez da fragilidade que impediria seu nascimento a própria condição de possibilidade em que ele se assenta. O campo cultural da América Latina, com sua parca autonomia e seu diálogo entre tradição e modernidade, não está incompleto, mas pronto. Ele não é uma etapa, mas o resultado do “encontro” de um programa expansionista europeu com os elementos nativos. Foi isso o que fizemos com o que foi feito de nós. Se, por um lado, é verdade que a Europa conquistou a América, também é certo que, por outro lado, ela precisou adaptar sua vitória às limitações do território subjugado. Obviamente, tem-se aqui um jogo desleal, mas, ainda assim, um jogo. Esse é o tímido e insuficiente preço que o colonizador precisa pagar ao colonizado: toda narrativa que se globaliza o faz refratando nos contextos locais em que penetra (Hall, 2013). É por isso que mesmo os projetos de homogeneização produzem alguma heterogeneidade, pois o sentido de um discurso nunca é totalmente definido por quem o profere, mas sempre ressignificado e distorcido por quem o ouve, e ainda que só haja uma boca a falar, são muitos os ouvidos a escutá-la. Cada um do seu próprio jeito.

 

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Pedro Menezes. Doutorando do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Porto, Portugal). Bolseiro de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal (FCT). Referência da Bolsa: SFRH/2018/140040. Endereço de correspondência: Via Panorâmica, s/n 4150-564, Porto, Portugal. Email: pedromenezes89@gmail.com

 

Notas

1 “Encontramos no estudo da heterogeneidade cultural uma das vias para explicar os poderes oblíquos que misturam instituições liberais e hábitos políticos autoritários” (Canclini, 2011: 19)

2 Segundo Dias, essa é uma “expressão utilizada por MARTINS, L. Pouvoir et développement économique. Paris: Anthropos, 1976, p. 22, inspirando-se na expressão de Barrington Morre para designar o processo de substituição da economia agrário-exportadora pela industrial por meio de um pacto entre Estado e classes dominantes” (Dias, 2008:81).

3 Fonte: Censos demográficos do IBGE dos respetivos anos.

4 A expressão exata usada por Ridenti (2014) é “romantismo revolucionário”, mas adapto aqui para “tradicionalismo revolucionário” para que fique mais clara a simetria invertida com a “modernização conservadora” de seus opositores.

5 “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter -se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende -se em suas asas com tanta forca que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.” (Benjamin, 1985: 226)

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