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Sociologia

versión impresa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.38  Porto dic. 2019

https://doi.org/10.21747/08723419/soc38a1 

ARTIGOS

Descodificar as paredes da cidade: da crítica à gentrificação ao direito da habitação no Porto

1 Inês Barbosa, 1, 2João Teixeira Lopes

1 Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

2Faculdade de Letras da Universidade do Porto Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

 

Endereço de correspondência

 


RESUMO

No Porto a intensificação da turistificação caminha lado a lado com a gentrificação, reorganizando, a um ritmo vertiginoso, a composição social da urbe. Este artigo é o resultado de uma pesquisa autónoma, enquadrada na sociologia visual e na “sociologia andante”. “Andar” assume-se aqui como uma forma de imersão, exploração e descodificação da cidade. Em nove meses recolhemos uma centena de manifestações visuais, dispersas pelo território. As imagens reunidas traduzem um discurso polifónico, estando subjacentes diversos agentes, destinatários e reivindicações. Porém, todas elas expressam uma crítica comum relativamente ao rumo que a cidade tem vindo a tomar no plano urbanístico, social e político.

Palavras Chave : gentrificação; resistência; manifestações visuais

 


ABSTRACT

In Porto the intensification of touristification goes hand in hand with gentrification, reorganizing, at a breakneck pace, the social composition of the city. This article is the result of an autonomous research, framed in visual sociology and sociology of walking. “Walking” is assumed here as a form of immersion, exploration and decoding of the city. In nine months, we collected a hundred visual displays, scattered throughout the territory. The gathered images translate a polyphonic discourse, underlying several agents, receivers and demands. Although all of them express a common critique regarding the direction that the city has been taking in the urban, social and political aspects.

Keywors : gentrification; resistance; visual manifestations

 


RÉSUMÉ

À Porto l’intensification du tourisme va de pair avec la gentrification, réorganisant, à un rythme effréné, la composition sociale de la ville. Cet article est le résultat d’une recherche autonome, encadrée en la sociologie visuelle et la «sociologie de la marche». “Marcher” est supposé ici comme une forme d’immersion, d’exploration et de décodage de la ville. En neuf mois, nous avons collecté une centaine de productions visuelles, dispersées sur tout le territoire. Les images recueillies traduisent un discours polyphonique, avec plusieurs agents, destinataires et demandes sous-jacents. Cependant, tous expriment une critique commune quant à la direction que la ville a prise dans le aspects urbain, social et politique.

Mots-clés : gentrification; résistance; manifestations visuelles.

 


RESUMEN

En Oporto la intensificación del desarrollo turístico va de la mano con la gentrificación, reorganizando, a un ritmo vertiginoso, la composición social de la ciudad. Este artículo es el resultado de una investigación autónoma, marcada en sociología visual y "sociología ambulante". Aquí se asume "Andar" como una forma de inmersión, exploración y decodificación de la ciudad. En nueve meses, recolectamos cien exhibiciones visuales, diseminadas por todo el territorio. Las imágenes reunidas traducen un discurso polifónico, con varios agentes, receptores y demandas subyacentes. Sin embargo, todos ellos expresan una crítica común sobre la dirección que la ciudad ha estado tomando en el plan urbano, social y político.

Palabras clave : gentrificación; resistência; manifestaciones visuales.

 


Introdução

Ao invés das narrativas que encaram as cidades como “pátrias” ou como comunidades unificadas, homogéneas e consensuais, partimos de um conceito de urbe como espaço social tenso, segmentado por diferenças, desigualdades e disputas. Se assim não fosse, teria vencido a distopia de uma narrativa unificada, absoluta e excludente, em que o poder seria uma espécie de soma-zero. Essa narrativa, ainda que eventualmente doce e até cativante, serviria os interesses das classes dominantes, no afã de transformar o seu modo de relação com a urbe numa universal panaceia de relações sociais hierarquizadas em sistemas de classificação através dos quais cada um incorporaria o seu lugar no mundo. O presente artigo estuda a emergência de contra narrativas, que surgem nos interstícios pouco ocupados e na fímbria de espaços liminares, exprimindo e radicalizando diferentes visões de cidade, em temas como a turistificação, a gentrificação e o fachadismo cultural. Estas contra narrativas são indissociáveis de uma imagética própria, através da produção, mais espontânea ou mais organizada, mais individual ou mais coletiva, de uma contra-visualidade. Não se pense, contudo, que este é um combate entre iguais. A governação e as classes dominantes difundem com astúcia e ampla reverberação no senso comum a ideia de um destino grandiloquente, moldado por um patriotismo de cidade que despoticamente impõe um storytelling de glorificação do rumo que a urbe trilha, uniformizando, num misto de força e sedução, as apropriações do espaço urbano. Além do mais, sustentam-se num percurso já longo em que a evolução das “cidades do capitalismo avançado apostadas na revitalização das suas áreas centrais torna legítimo pensar na reabilitação urbana como estratégia global de recentramento político e económico das cidades e de reconfiguração do seu papel enquanto palcos de extração de valor” (Queirós, 2007: 113).

Por outro lado, a domesticação dos atores públicos e privados, oferecendo ampla visibilidade aos inefáveis proveitos deste destino de turismo generoso e negócio generalizado, torna quase impensável discutir as regras do jogo, uma “bizarria cujos riscos as cidades não estão dispostas a correr” aos olhos do poder instalado (Idem). O governo das cidades, numa tendência cada vez mais global, reprime, enquadra e/ou absorve as forças dissidentes, à luz da imperiosa vitória do urbanismo genérico e da cidade de serviços, coreografada e encenada. A sua estratégia consiste no cansaço e no desgaste do olhar, que “toma nota e não vê”, como escreveu a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, pela banalização do estereótipo e da inevitabilidade da cartilha turística. Nos últimos anos, o tema da habitação voltou a preencher a agenda mediática, política e académica (Antunes et al, 2019). Não só não deixaram de existir os problemas clássicos, como a falta ou degradação da habitação social ou a existência de população, maioritariamente cigana, a viver em acampamentos sem o mínimo de condições básicas1 , como somos hoje confrontados com novos desafios, provocados, em grande medida, pela especulação imobiliária e pela desregulação do turismo.

"No Porto, urbanização capitalista e desigualdade urbana caminharam, desde cedo, a par e passo" (Queirós, 2007: 91) A história da cidade e do país evidencia os ciclos, tensões e embates que têm sido travados pelo direito à cidade. No período industrial, o aumento drástico da população nos centros urbanos levou à construção em massa de ilhas2 , sem condições de salubridade, com o objetivo de acomodar (e controlar) a classe operária. Em 1910, logo após a Implantação da República, foi publicada a Lei do Inquilinato que visava proteger os arrendatários, controlando o valor das rendas e restringindo os despejos. Por essa altura, surgiram também os primeiros bairros de habitação social no Porto, atingindo o seu pico durante o Estado Novo (Matos, 1994) e dando início ao processo de expulsão das classes baixas para as periferias. Com a revolução de Abril de 1974, o problema da habitação ganhou visibilidade na praça pública. Durante o PREC, ocupações e modelos participados de gestão do espaço urbano - em particular o projeto S.A.A.L.3 - pressupunham, precisamente, o retorno dos pobres ao centro da cidade. Nos anos oitenta, dá-se novo retrocesso nas políticas urbanísticas, assistindo-se ao desenvolvimento da periferia e a uma viragem para o setor imobiliário e o crédito bancário. Em 1994, com a atribuição pela UNESCO, do estatuto de Património Mundial da Humanidade ao centro histórico do Porto, verifica-se uma reconfiguração da cidade, assente sobretudo nos eixos do turismo, cultura e património. Com a entrada no governo local da coligação de direita, em 2002, a reabilitação urbana da baixa e a aposta no turismo adquire novo fôlego, concomitantemente com processos de limpeza e erradicação da marginalidade das ruas. (Queirós, 2007; 2016) O Porto passa a ser vendido como uma cidade moderna, europeia, cosmopolita. A gentrificação entra no universo vocabular dos portuenses. Desde 2012 - coincidindo com o período de crise e austeridade em Portugal - o Porto passa a ser visto como destino turístico de eleição, recebendo sucessivas distinções e inúmeros visitante4 .

Um estudo recente mostra que, entre 2011 e 2018, as propriedades listadas na Airbnb, no Porto, passaram de 100 para mais de 11 mil (Fernandes et al, 2018). Apesar desta velocidade sem precedentes, a administração local e nacional não dispõe ainda de meios eficazes de regulação, fiscalização e monitorização. (Calor e Magarotto, 2019) A intensificação da turistificação caminhou lado a lado com a gentrificação, uma vez que os investimentos imobiliários em edificado degradado e ocupado pelas classes populares proporcionam um rent gap que aumenta exponencialmente o valor das casas e terrenos, expulsando os habitantes para lugares que não desejam e recompondo, a um ritmo vertiginoso, a composição social da urbe. Assim se, por um lado, este processo contribuiu para a reabilitação urbana; para a criação de postos de trabalho e para a revitalização de parte do comércio e serviços; por outro lado, deparamo-nos com a concorrência desleal entre estabelecimentos turísticos; o encerramento de espaços associativos e do comércio tradicional; a precarização do emprego ligado ao sector; e, principalmente, o aumento do preço da habitação, afetando, não apenas as classes populares e a população envelhecida, mas também a juventude e uma franja significativa das classes médias. Nos tempos que correm, a habitação - direito consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição da República Portuguesa - tem-se vindo a transformar, cada vez mais, num bem de consumo a que nem todos têm capacidade de aceder. É por este direito que se travam disputas: no debate político, nas ruas, nas paredes.

1. Nota metodológica: sociologia andante e a descodificação da cidade

A cidade é indissociavelmente constituída pela mediação que se estabelece entre práticas, discursos e representações. Desde tempos imemoriais que as narrativas e os conflitos se expressam por imagéticas, autênticas condensações de sentido e comunicação. Dito de outro modo, tais imagens são práticas espacializadas e inscrevem na geografia os conflitos de uma sociedade desigual. Os documentos visuais que aqui analisaremos são uma expressão, também, das inusitadas formas através das quais ação e pensamento se unem através da linguagem gravada no texto urbano. Desse modo, carregam uma pulsão para vencer qualquer ideia de “patriotismo de cidade” (Delgado, 2007) e apostam tudo na transição e na transação, caraterísticas distintivas de espaços públicos. Assim, questionam a legitimidade de qualquer pretenso monopólio sobre as visões da cidade e suas imagens e, através do seu simbolismo, convocam identificações e repulsas, ativismos e comunalidades, vontade de comunicar e de produzir efeitos nos outros. A recolha decorreu entre abril e dezembro de 2019 com um único critério: fotografar qualquer manifestação visual pública relacionada com o direito à cidade e à habitação: cartazes, autocolantes, grafitties, pichagens, stencils, etc. Sendo registos produzidos fora do âmbito de qualquer intencionalidade de pesquisa, a utilização destas imagens enquadra-se na mobilização de métodos não interferentes (Lee, 2003), uma vez que, na génese de tais documentos, não existe uma relação social de pesquisa do tipo observador/observado, escapando, por isso, a potenciais construções de honra ou prestígio social. Enquanto exercício de sociologia e etnografia visual (Harper, 1988; Pink, 2013), a captação destes registos exige uma contextualização espácio-temporal e, em particular, uma relação densa com o momento histórico e o feixe de relações sociais em que intervém. Esse vaivém entre a imagem e o contexto confere inteligibilidade e sentido aos documentos visuais, abrindo, em diálogo com a perspetiva teórica, um estimulante campo de indagação (Becker, 1995).

Muitos fenómenos e dinâmicas urbanas conflituais, assim o entendemos, podem ser melhor interpretados sociologicamente através das imagens fotográficas, captadas ou construídas para efeito de pesquisa, desde que entendidas como ferramentas de acesso às estórias que indivíduos e grupos contam a respeito de si próprios e das cidades onde vivem. É este o desafio a que nos propomos. Durante nove meses, calcorreamos as ruas do Porto, à maneira de um flâneur5 , explorando os seus recantos, seguindo por caminhos inesperados, prestando atenção ao que não se oferece à vista desarmada, estranhando a cidade como se ela fosse outra que não a nossa. De olhos postos nos muros, mas também nos postes e caixas de eletricidade, nos portões das garagens, nos vidros das casas por vender. Sem destino, mas com intenção: ouvir o que as paredes nos dizem sobre a recente crise da habitação e sobre a gentrificação. Trata-se aqui de uma sociologia andante (Lopes, 2007; Ingold & Vergunst, 2008; Brown & Shortell, 2015), metodologia que vem beber de autores clássicos como Michel de Certeau, Walter Benjamim ou Guy Debord. Nessa perspetiva, "andar" assume-se enquanto método de investigação, uma forma de imersão e exploração da cidade que possibilita captar e interpretar os seus sinais. No entender de Léfébvre (1996), a cidade emite e recebe mensagens que devem ser descodificadas a partir de uma análise em diferentes planos e dimensões, de modo a dar conta das ideologias, das hierarquias, das interações, dos discursos, das práticas quotidianas, dos ritmos, da sua pulsão. A descodificação e tradução da mensagem urbana é, porém, criativa, subjetiva, parcial, porque depende da formação do investigador, do seu posicionamento político e da sua experiência6 . (Canevacci, 2004:37)

2. Que espaço? Breve digressão sobre a mediação dos terceiros espaços

Partiremos de uma conceção de cidade enquanto espaço-tempo que supera a ilusão fetichista denunciada por Lefèbvre (2000), isto é, avessa às conceções apriorísticas, puras, abstratas, reificadas e absolutas de um espaço-rei ignorante das suas concretizações, usos e apropriações. Deixar falar as práticas sociais não significa que ignoremos a materialidade do espaço, os seus pesados constrangimentos e as suas esperançosas possibilidades. Ao invés, entraremos na lógica dialética da mediação que estuda os processos de construção da espacialidade, em que tanto o espaço como os agentes que nele inscrevem as suas práticas se transformam mutuamente, um sendo a condição e o produto do outro. Assim, será pertinente a relação fecunda e comunicante entre o espaço percebido (conjunto de incrustações físicas e materializadas que impregnam as práticas espaciais, simultaneamente forma e processo), o espaço produzido (as representações do espaço que se encontram nas intencionalidades de experts e burocratas que planeiam, racionalizam e modificam, mas também a imaginação das utopias e dos ativismos contra-hegemónicos e, de um modo geral, as ideologias teóricas e práticas que nos permitem pensar o espaço) e, finalmente, o espaço vivido, ou terceiro espaço, na aceção de Soja (1996). Chamamos a atenção para este último, o locus da interseção quotidiana das práticas, fazendo constantes sínteses e mediações entre o objetivo e o subjetivo, a estrutura e a ação, a realidade e a imaginação, o existente e a potencialidade, os constrangimentos e as margens de liberdade, enfim, a experiência que nos permite pensar as quotidianas concretizações das regras e recursos da estrutura (Giddens, 2000). O terceiro espaço é a perspetiva que abre pistas à interpretação da cidade como algo mais do que um urbanismo de formas fixas (a-espaciais e a-históricas), “uma força impulsora que afeta todos os aspetos de nossa vida” (Soja: 2000), um quadro onde sociologia, história, antropologia e geografia se cruzam no repensar crítico das condições materiais que, no tardo capitalismo, forjam a diferença que o espaço faz.

A sua singularidade pode ainda ser percebida mediante o conceito de sinekismo (Soja: 2000) através do qual ganham centralidade as relações sociais lubrificadas pela cidade, enquanto economia e sociedade de aglomeração e proximidade, onde uma dada e heterogénea dinâmica sócio-espacial se forma, criando uma particular configuração de interdependências. Os espaços públicos ganham especial centralidade na ótica dos terceiros espaços, uma vez que, pela sua intersticialidade, possuem a potencialidade de desafiar os usos monolíticos, estandardizados e comercializados do urbanismo liberal, quer na sua vertente especializada, elitista e modernista, quer nas suas feições populistas de teor pós-moderno, quer ainda nas suas declarações monumentais, dirigistas e barrocas. Neles, a contra-hegemonia favorece a localização da esfera pública, esse conceito tão abstrato e desespacializado que Jürgen Habermas (1986) propõe como avatar da razão dialógica, crítica, argumentativa e comunicativa.

Deste modo, enquanto espaços-tempo de materialização da esfera pública, excitam a politização das práticas sócio-espaciais, alargam as alamedas do debate e, nesse (re)fazer perpétuo, contestado e conflitual, evidenciam os limites da cidade-empresa e desocultam as encenações da cidade mentirosa (Delgado, 2007). Como veremos neste texto, não há espaços sem contra espaços, usos que dispensem contra-usos (Leite, 2004), barreiras que excluam a sua permanente porosidade, embate e negociação.

3. O Porto não se vende e o povo não se rende": imagens e discursos da contestação

Em nove meses de deambulação pela cidade, recolhemos uma centena de manifestações visuais insurgentes, dispersas em vários locais e fazendo uso de diferentes meios: stencil, autocolante, marcador, spray, tinta, entre outros. No esforço de as interpretar, procuramos descortinar - dentro do possível - o seu emissor, o seu recetor e a sua mensagem. Numa leitura transversal, é-nos evidente que as imagens reunidas traduzem um discurso polifónico, pois nelas estão subjacentes diversos agentes, destinatários e reivindicações, ainda que todas expressem uma crítica comum relativamente ao rumo que a cidade tem vindo a tomar no plano urbanístico, social e político. Tendo presente que a grande maioria dos registos são anónimos, as reflexões que aqui apresentamos estão mais próximas de deambulações interpretativas do que de afirmações irrefutáveis. Contrariamente à grande maioria dos estudos sobre arte urbana, os autores destas inscrições não se parecem limitar ao segmento etário jovem. Também não aparentam estar circunscritos a determinada classe social, espelhando a heterogeneidade que atravessa a luta pelo direito à habitação no Porto. De facto, entre os grupos sociais mais afetados pela gentrificação está a população envelhecida, intimada a abandonar as suas casas no centro urbano, ainda que, por lei, tenham o direito a manter-se nelas; a população com rendimentos reduzidos que, não tendo a salvaguarda dos contratos vitalícios, é despejada e encaminhada para bairros sociais e/ou zonas menos prestigiantes do Porto; os jovens - estudantes ou precários - que não têm rendimentos suficientes para suportarem uma casa sozinhos e que se vêm na condição de partilhar casa ou até mesmo quarto; e, por fim, alguns segmentos da classe média trabalhadora - com ou sem família a cargo - cujos baixos salários ou ausência de um vínculo laboral estável lhes impede de pagar um aluguer ou um empréstimo bancário7 .

Entre a centena de imagens analisadas, encontramos quatro grandes críticas - necessariamente imbricadas - que, aqui, expomos por ordem de maior para menor expressão. São elas, a crítica à turistificação e à inversão de prioridades; à perda de identidade e essência portuense; aos despejos e à segregação socioespacial; e, por fim, à corrupção e especulação. Essas críticas são dirigidas aos responsáveis políticos (em particular, ao presidente da Câmara Municipal), aos proprietários e senhorios, aos especuladores e agentes imobiliários e, por fim, aos próprios turistas. Para além de diversos meios plásticos, as mensagens possuem também diferentes estratégias discursivas. Destacamos o uso do humor e da ironia; da emoção e empatia; da provocação e intimidação. Analisamos, de seguida, os quatro eixos da crítica à gentrificação e pelo direito à habitação, tendo em conta esses aspetos.

3.1. Crítica à turistificação e à inversão de prioridades

Dentro das imagens recolhidas, sobressai a crítica ao fluxo excessivo de turistas e ao crescimento de negócios a eles destinados, na cidade do Porto, contrapondo com as necessidades da população, nomeadamente no que se refere à habitação. Em muitos dos muros que fotografámos repetiu-se a menção ao “povo”, terminologia que parecia datada nas últimas décadas, em Portugal. "Habitação ao povo com rendas para nós sem roubo", "Um povo sem habitação", "Habitação para o portuense", "Direito à habitação: todos!", "Porto dos portuenses" são muitas as variantes encontradas pela cidade. A referência a esse conceito reflete uma necessidade de distinguir entre a população que reside e o turista que visita. A mensagem escrita em letras garrafais numa parede, na Rua do Bonjardim - “O Porto está bonito, mas não é para o meu guito” - aponta nitidamente essa distinção, denunciando o crescimento das disparidades sociais: a cidade atrai cada vez mais turistas, mas torna- se inacessível aos seus residentes que não têm poder de compra para usufruir e apropriar-se dela plenamente. Há, portanto, uma crítica à inversão de prioridades: primeiro deveriam estar os portuenses, só depois os turistas. Num outro exemplo, encontramos cartas dirigidas aos turistas, denunciando os despejos dos residentes do centro da cidade a favor do AirBnB ou as rendas elevadas comparativamente aos salários dos habitantes locais. Escritas em inglês, para que possam ser lidas por uma grande percentagem de pessoas, as cartas apoderam-se dos símbolos e até mesmo dos contactos da agência oficial de turismo, de forma a conferir-lhes credibilidade ou, pelo menos, chamar a atenção de quem lê. O uso da fórmula de saudação "Dear Tourist" e o emprego de perguntas ou afirmações diretas - "Está a ficar num lindo apartamento renovado listado no AirBnB?" ou "Pergunta ao teu recepcionista como é que ele/a vive" - parece ter como objetivo, por um lado gerar empatia e por outro responsabilizar os turistas, provocando sentimentos de culpa ou comiseração.

Entre frases irónicas - “love the tourists”, "Tourist only, locals not allowed on this area”, “Hey look, I am not a hotel yet” e outras mais intimidatórias - “Fuck Tourists!”, “Fora AirBnB”, “Tourists go home!”, passando por outras de cariz mais emotivo, como “Ó turista, não me compres o meu ninho”, a mensagem é clara, assim como o “inimigo”: os grandes responsáveis pelas transformações urbanas na cidade são os turistas que a visitam, ocupando espaços e serviços, anteriormente, destinados aos residentes. Face isso, os autores denunciam a complacência e cumplicidade ativa dos responsáveis políticos do município. “Deixa-te de turistas, meu FDP [filho da puta]”,“Rui, vai dar banho ao turista!” são alguns dos exemplos de mensagens diretamente dirigidas ao presidente da Câmara Municipal do Porto. O impacto da turistificação na vida dos cidadãos e cidadãs parece bastante evidente. Numa colagem, encontrada num viaduto, junto à Foz, podia-se ver uma rua repleta de turistas acompanhada da figura do desenho-animado Sandoku e da frase "Deixem-nos respirar"!, sugerindo a exaustão provocada pelo contacto permanente com a multidão de pessoas nalgumas ruas centrais do Porto.

 

 

Na figura 1, podemos ver um stencil, fotografado na zona do Bonfim, onde encontrámos muitas outras manifestações visuais. Recentemente, considerado pelo “The Guardian”, como um dos dez bairros mais “cools” da Europa (distinção essa imediatamente celebrada em Portugal8 ), o Bonfim é associado à juventude, à vida cultural e criativa, às lojas e galerias independentes, em parte devido à proximidade à Faculdade de Belas-Artes. Muitos outros espaços, não mencionados pelo jornal britânico, emergem nessa zona, tais como a Sede do Praça da Alegria, o restaurante “clandestino” da Filó ou a Praça dos Poveiros, espaços ocupados pelo circuito alternativo e artístico do Porto. Contrariamente à tese defendida no “The Guardian” - de que a subida das rendas no centro do Porto fez com que muitas pessoas, sobretudo jovens, se tenham deslocado para essa freguesia - os últimos números apontam para uma subida drástica no Bonfim, na ordem dos 47%9 . Recorrendo ao trocadilho com “weapon of mass destruction”, o stencil associa o turismo a uma forma de destruição massiva da cidade. A bomba colocada no centro, parece simbolizar o “tic-tac” de uma situação urgente. Outro trocadilho encontrado mais do que uma vez foi “Hostil not Hostel”, remetendo para as circunstâncias hostis provocadas pela presença, cada vez mais ostensiva, de hostéis e outras modalidades de alojamento turístico.

3.2. Crítica à perda de identidade e da essência portuense

Associada ao retorno da palavra “povo”, está a crítica à extinção da “essência portuense”, sendo uma das que mais ocupa os registos coletados, aspeto também presente noutras manifestações culturais: como músicas, filmes ou performances10 . Utilizando metáforas, trocadilhos ou a subversão de imagens publicitárias ou municipais, os seus autores criticam a perda de identidade provocada pela intensificação do turismo. O autocolante "O Porto já não são tripas", disseminado em vários lugares da cidade, é talvez o exemplo mais paradigmático. Valendo-se das “tripas à moda do Porto” servidas nos tascos típicos, a expressão alude à destruição das tradições populares, substituídas por pratos gourmet servidas espaços semelhantes aos de outras cidades europeias gentrificadas. Aquilo que é único e especial no Porto desaparece. O slogan "Make Porto Podre again", criado por um coletivo anónimo e divulgado em vários formatos (autocolantes, cartazes, tags, faixas) teve também um alcance significativo, tendo inclusive sido referido numa das edições da Time Out, conhecida agenda de eventos. Na figura 2 , deparamo-nos com duas páginas da revista que, para além de referências aos "negócios à moda do Porto", como a coleção de t-shirts da fundação Serralves ou os sabonetes naturais Só Sabão, inclui uma menção ao coletivo que colocou este “manifesto à solta” em vários locais da baixa, com o propósito de "contestar a realidade vigente e emergente do Porto".

 

 

As expressões provocadoras "Porto Morto", "Morto: Best European Gentrification" ou, simplesmente, "Morto" projetam também a extinção da cidade genuína. Foram criadas a partir de uma recomposição da imagem publicitária do município, Porto, ponto11 , marca estabelecida no no decorrer de um plano estratégico de promoção do turismo. Paradoxalmente, no Manual de Identidade12 publicado pela Câmara, os responsáveis políticos afirmam que a marca surgiu com o propósito de espelhar não só o seu património ou a sua nova tendência cosmopolita, mas também a “alma portuense”, as suas gentes, a sua capacidade de resistência, a mítica cidade-invicta. O slogan "Porto Morto" granjeou também alguma projeção pública e mediática, ao ponto de merecer uma intervenção do presidente Rui Moreira, em 201713 . Indignado com expressão, o edil expressou publicamente o seu desagrado e apresentou queixa contra autor desconhecido. Num post no facebook, lançou acusações duras, associando esse ato à proximidade das eleições autárquicas:

"Não conheço os autores que se dispuseram a produzir numa gráfica milhares deles. Não conheço quem os financia nem qual o fim que perseguem. Podemos presumir que isto tem a ver com as eleições e são meus adversários. Ou achar que não, e que são, simplesmente, cobardes que nada têm a fazer ao dinheiro. Em qualquer dos casos, quem o faz odeia o Porto. E odeia uma marca que procura maltratar por puro ódio e por aversão ao sucesso. (…) Esta é a nossa marca. Made in Porto. Adorada no Mundo, odiada, por cá".

Em resposta a declarações como essas, outro stencil difundiu-se pela cidade: "A cidade não é uma marca, ponto." Nestes exemplos, o Porto é associado às tradições, àquilo que é popular e autêntico, ao "Porto podre" e abandonado, mas verdadeiro dos tempos idos, numa espécie de romantização da pobreza e da marginalidade. Não podemos deixar de refletir se este discurso de idealização e valorização da identidade do Porto e da sua população, associado ao crescimento da turistofobia, não corre o risco de acionar discursos xenófobos. Em período de ascensão de políticas conservadoras e de extrema direita, não deixa de ser preocupante esta recente tendência por ideais identitários (regionalistas ou nacionalistas), numa defesa contra os estrangeiros que "invadem" a cidade invicta.

3.3. Crítica aos despejos e à segregação socioespacial

Na figura 3, podemos ver a figura de um homem sobreposta por um testemunho pessoal. Trata-se de um fragmento de uma composição de grandes dimensões, colada em cima de uma parede grafitada. Ladeando-o estão duas mulheres com os rostos tapados pelas mãos.

 

 

O homem tem nome, data de nascimento e de morte, elas são anónimas. A fotografia foi tirada no Passeio das Virtudes, um dos pontos turísticos da cidade, com vista para o rio Douro, onde regularmente se juntam, residentes e estrangeiros, para assistir ao pôr do sol, beber umas cervejas ou ouvir música em colunas portáteis. Ao contrário da grande maioria das manifestações visuais coletadas durante a pesquisa, esta tem uma autoria. Trata-se de um projeto em curso de um fotógrafo, Itay Peleg e de uma jornalista independente Cláudia Vidal, divulgado na página virtual “O Porto Não se Vende”. “Olhos fechados” é um conjunto de colagens fotográficas espalhadas pela cidade. O homem que deu o mote para o projeto chama-se Joaquim Lapa, residente do Passeio das Virtudes, falecido em dezembro de 2018, com 76 anos, de ataque cardíaco, alegadamente devido aos despejos. No texto inscrito na parede, lê-se um relato na 1ª pessoa: “Moro nesta casa desde que nasci. Recebi uma carta que dizia que o meu contrato terminava, não sabia que ia ter de sair este ano. Desde que a recebi não ando sossegado, o meu estado de saúde piorou, às vezes acordo de madrugada porque sonho que me batem à porta para me mandar sair. É uma vida inteira a morar aqui, conheço a rua de olhos fechados.” Noutras imagens disseminadas pela cidade, podemos ver o mesmo rosto do homem acompanhado de perguntas incisivas: “Quanto custa uma vista para o rio? A habitação é um direito ou um investimento? Quem tem direito a morar no centro da cidade? É mais importante uma cidade onde se vive ou uma cidade onde se lucra?” Em baixa, a inscrição “Responda ao senhor Lapa, Passeio das Virtudes, nº 57, 2º andar.” O impacto deste projeto é irrefutável ao incentivar a resposta a estas perguntas e o seu envio para a morada de alguém que já morreu. Na página pessoal de Cláudia Vidal, esta explica que conheceu o senhor meses antes deste falecer, quando estava a escrever sobre gentrificação14 . Explicando o teor do projeto, a jornalista diz: “O Porto está de olhos fechados. Não quer ver que lentamente, a cidade se esvazia. Que lentamente se torna numa cidade onde se lucra, e não onde se vive. Mas nós vemos os moradores. E vemos o senhor Lapa: está na rua onde sempre morou, e na porta que era sua.” O fotógrafo enfatiza a ligação emocional entre o homem e o lugar onde viveu: ele “chorou, riu, produziu vida e amor dentro daquelas paredes”, “tornando-se ele próprio e a sua casa uma mesma paisagem, inseparável”. O objetivo do projeto é, pois, “dar visibilidade aos moradores que o Porto não quer ver. Para os trazer de volta ao centro da cidade e ao espaço público.” Outros exemplos da crítica aos despejos e à segregação socioespacial é o graffitti “(des)alojamento local” ou os slogans escritos em faixas no centro histórico, nas zonas mais afetadas pela gentrificação: “O meu nome é Maria, fui para a periferia” ou “Nasci na Vitória, posso morrer na Vitória?” Os testemunhos e histórias pessoais, a utilização de nomes próprios, e as referências à morte, parecem ter como objetivo sensibilizar quem lê as mensagens, gerando proximidade e empatia.

3.4. Crítica à corrupção e especulação

Por fim, outra das críticas presentes nas manifestações visuais recolhidas é a da corrupção e da especulação, ainda que com um peso menor que as anteriores. “Proibido especular”, “Airbnb mafia”, “Hotel mafia”, “senhorios corruptos” são algumas das frases escritas pelas paredes da cidade. "Portopólio" (fig.17), um autocolante espalhado por vários locais é outro exemplo de subversão. Simulando um jogo de monopólio, com o subtítulo "edição burguesa", caricatura o presidente Rui Moreira, de cartola e bengala em punho, acompanhado da legenda "vendido/sold out", associando-o diretamente à especulação imobiliária. É uma crítica, pois, ao jogo viciado e clandestino, à ganância e aos lucros acima das pessoas. A especulação surge assim como uma espécie de “inimigo” vago e difuso enquanto a corrupção é associada a rostos concretos, de dirigentes políticos ou dos proprietários. Na Rua dos Mercadores - situada junto à Ribeira - encontrámos mais de uma dezena de grafittis, todos escritos de uma forma semelhante, sugerindo um mesmo autor. "Senhorios corruptos", “Senhorios chulos”, "Lutamos pelas nossas casas", "Despejos não", ocupam toda a dimensão das portas e paredes de casas em ruínas e espaços devolutos, numa rua escura e apertada, onde praticamente só passam turistas, subindo e descendo de mapa na mão. Com uma importância que remonta ao período medieval - tendo sido um dos principais eixos de comunicação da cidade - a rua foi, em tempos, umas das zonas mais ricas da cidade, onde se concentravam os melhores estabelecimentos e a vida aristocrata. Enfrentando, desde cedo, problemas de conservação das casas, a Rua dos Mercadores é também símbolo dos processos de requalificação urbana associados à intensificação do turismo e ao despejo da população autóctone.

 

 

Se estas imagens nos dão conta da raiva e indignação do autor, a insistência com que se usa as paredes para comunicar é visível num outro exemplo, também sobre especulação. Num taipal junto ao Palácio do Bolhão lê-se: “Especulador é uma carraça, a cidade vira carcaça”. Em baixo, entre parêntesis, o mesmo autor escreveu “apagam, volto a escrever”. O conteúdo da frase e a superfície onde foi escrita não será coincidência. O taipal esconde a cratera deixada pelas obras inacabadas do Quarteirão da Casa Forte15, situação que se mantém há alguns anos, envolta numa teia nebulosa de informações. O emprego de trocadilhos e rimas é mais uma vez a estratégia usada, associando a figura do especulador a um parasita que, em última análise, destruirá a cidade, transformando-a num cadáver.

 

 

O stencil “O Porto não se vende” - que deu nome a um coletivo, a manifestações e a um documentário16 - é também uma mensagem de resistência à transformação da cidade num negócio. Na rua das Fontainhas, encontramo-lo em dois contentores de lixo, junto com a inscrição “O tempo de agir é ontem”. Muitos outros resquícios de cartazes foram encontrados no Porto, num vaivém entre o que se escreve espontaneamente nas paredes e a sua tradução para cartazes, autocolantes, faixas ou grafittis, colados na parede para anunciar os momentos de protesto. Entre setembro de 2017 e setembro de 2018, contabilizaram-se sete episódios (concentrações, manifestações, marchas) com maior ou menor adesão. Desde então, não se assistiu a um nenhum evento similar e a generalidade dos coletivos desfez-se17 . Os cartazes são agora memórias das disputas que se têm travado, reservando-lhes a possibilidade de poderem de inspirar as próximas.

4. Espaço público: arena disputada e heterotopias realizadas

"Escrevemos nas paredes porque nas paredes o povo comunica" lê-se num muro na rua da Formiga, numa das freguesias - Campanhã - que é parente pobre de um Porto cada vez mais projetado para os seus visitantes. Quem nos leva lá é Margarida Castro Felgas, arquiteta ativista que há dez anos se dedica a organizar tours pela cidade esquecida18: as fábricas e terrenos abandonados, os circuitos que não aparecem nos mapas, os lugares onde a oposição aconteceu. Junto dessa inscrição, o slogan "Lula Livre" - remetendo para o internacionalismo das lutas - é rasurado para que, afinal, sejamos todos livres. Ao lado, um outro traçou o tag "Team Podre". Este é um exemplo daquilo que procurávamos, andando pela cidade.

 

 

As contra-visualidades, com as quais nos fomos deparando, atuam como um grito que se expressa nas paredes, que se ressignifica pela ação dos outros, que é riscado, rasgado, adulterado, desgastado pelo tempo, numa contínua emenda, como vozes que se sobrepõem produzindo ruído. O ruído é por vezes silêncio, quando as paredes escritas são pintadas de branco, num gesto de anulação ou até censura, produzida pelo município, por empresas ou indivíduos detentores desses espaços. A natureza efémera das manifestações visuais é contrariada pela desobediência e pela insistência, como pudemos comprovar: “Apagam, volto a escrever”. Em muitas circunstâncias, os seus autores desafiaram a lei, colando cartazes ou escrevendo frases em lugares de afixação proibida. Para Ricardo Campos - que tem aprofundado estas práticas, no contexto português - os grafittis e pichagens são "armas expressivas" marginais, "sem lugar na cidade disciplinada", "linguagens de resistência, de afronta, de crítica ou simples gozo, desafiando as convenções e a ordem visual da paisagem urbana", desempenhando "funções de natureza estética, política, ideológica ou cultural, ao abrigo do espaço público de comunicação mais democrático: a rua. (Campos, 2012: 75) Há nestas expressões, não apenas um impulso comunicativo, mas também uma intenção "subversiva, informal ou ilegal, que lhe confere uma condição singular no ecossistema comunicacional urbano" (idem, 2008:3) e uma oportunidade de dar palco aos sem-poder: os/as pobres, os/as jovens, o povo. Tal como nos anos que se seguiram à revolução, as palavras de ordem gritadas nas manifestações são transpostas para as paredes e vice-versa. Se em tempos se cantou "Casas sim, barracas não / as casas são do povo, abaixo a exploração"19 , hoje slogans como "Não aos despejos, resistência popular"; "Assembleia Popular, Vitória é nossa" ou "Minha casa me abriga, minha casa, minha briga" ecoam nos megafones e nos muros. A experiência multi-sensorial e corporizada da cidade torna-se evidente: numa mesma praça, pelos mesmos motivos, ouve-se, lê-se, sente-se. Essa transposição é particularmente visível no cartaz de divulgação da Marcha LGBT+ do Porto de 2019. Procurando conferir à marcha uma dimensão interseccional, o poster inclui demandas feministas, antirracistas, estudantis e pelo direito à habitação: "O Porto não se rende e o orgulho não se vende", "a cidade está catita mas não é pra nossa guita", "machistas, racistas, fascistas não passarão", "amo quem quiser tenha o género que tiver", "pagar para estudar, democracia a falhar ", "mexeu com uma, mexeu com todas" ou "Marielle, presente" preenchem o espaço cénico, junto com bandeiras e símbolos diversos. Na verdade, a questão da habitação - sendo neste momento um problema generalizado - torna particularmente vulneráveis determinados grupos sociais: as mulheres, as pessoas racializadas, imigrantes, estudantes, etc. Nesse sentido, apesar de não existir atualmente movimentação significativa e organizada em torno do direito à habitação no Porto, expressa-se que a luta não está esquecida, atravessando outros grupos ativistas.

Os muros do Porto trouxeram para a praça pública o debate sobre o direito à habitação e o direito à cidade. Recorrendo a autocolantes, stencils, tintas, colagens ou grafittis - de maior ou menor dimensão, maior ou menor qualidade estética - os seus autores ou autoras usaram paredes, postes e janelas de casas devolutas para brandir as suas críticas e desafiar os discursos dominantes. Nas suas mensagens estão contidas as aspirações e inquietações da população, ora sensibilizando e denunciando, ora mobilizando outros e outras para uma mesma disputa. Nas mensagens, que procuramos descodificar, encontramos críticas à turistificação e à inversão de prioridades na satisfação das necessidades da população; críticas à perda de identidade e de uma suposta autenticidade do povo portuense. Críticas também aos despejos e à segregação socioespacial e, por fim, críticas à corrupção e à especulação. Nesse sentido, elas são também um reflexo de uma possível articulação ou combinação entre as duas dimensões da crítica ao capitalismo enunciadas por Boltanki & Chiappello (1999). Por um lado, uma crítica social, assente nas desigualdades sociais, na opressão, no direito material à habitação. Por outro, uma crítica estética, firmada numa reclamação de autenticidade e na contestação aos valores do capitalismo (egoísmo, ganância, corrupção), baseada num direito imaterial à cidade, enquanto espaço de expressão livre e criativa dos seus habitantes. Mais ou menos simbólicas ou diretas, mais ou menos espontâneas ou organizadas, estas manifestações visuais fizeram uso de diferentes estratégias: o humor e a ironia, a emoção e a empatia, a provocação e a intimidação. Nas entrelinhas destas mensagens, encontramos também alguns dilemas e paradoxos, como a ténue linha entre xenofobia e turistofobia, a apropriação de slogans subversivos pelo marketing ou o papel dos artistas na gentrificação das cidades. Aspetos que merecem uma investigação mais continuada e profunda. Em todo o caso, a centena de manifestações visuais que, durante nove meses, encontramos na cidade do Porto, são expressões de cidadania insurgente, desordenando, ressignificando e desafiando uma visão de cidade mercado. Estes signos, impregnados de discursos, servem pois para expressar e clarificar reivindicações e indignações, enquanto poderosas ferramentas que dão sentido ao protesto político (Kasanga, 2014).

Elas marcam o território, povoando-o de memórias coletivas, traçando uma história de resistência, instigando novas oposições. São também um barómetro das tensões que se dão neste embate, revelando contradições entre centro e periferia, residente e viajante, proprietário e inquilino, governantes e população. O palco destas contra-visualidades é a rua: o lugar por onde andamos para regressar às nossas casas, onde nos deslocamos para os nossos empregos, onde nos reunimos nos tempos de lazer, onde nos manifestamos por mais e melhor justiça. São, portanto, mensagens permanentes e quotidianas. A vitalidade de um espaço público reside, nesta linha, na sua potencialidade para estabelecer mediações, trânsitos, ligações e conflitos: entre visões do mundo e interesses contraditórios; entre assentamento e movimento; entre “dentro” e “fora”; entre o espaço imediatamente presente e espaços ausentes; entre margens e centro. Assim, os espaços públicos com virtualidades contra-hegemónicas não se deixam capturar por barreiras fixas e imutáveis (Massey, 1993). Eles são, então, constituídos e constituintes de relações sociais e, por isso, irredutíveis a simplificações identitárias e portadores de impulsos multivocais, glocais e híbridos, locus privilegiado de terceiras culturas (Featherstone, 1997), aquelas que se formam como algo mais do que um somatório ou uma mistura eclética, na e pela diferença, resultado conflitual e provisório de interações tensas, “articuladores, espécies de rótulas ou nós que combatem a tendência para a cidade esquartejada, pericial, hiperespecializada, social e culturalmente segregada” (Lopes, 2007).

As políticas do espaço são tradução da busca pelo reconhecimento da diferença, evidenciam as condições para uma interculturalidade real (de classe, género, etnia, orientação sexual), necessariamente conflitual, que não seja mera festividade brandizada, ocasião celebratória ou encenação da condescendência do poder. Do mesmo modo, transportam uma prática rebelde, não domesticada, simultaneamente pessoal e pública, poética e política, insurgindo-se contra a ideia da disciplina e vigilância dos corpos (Foucault, 2000) ou, ainda, contra as visões outorgadas de cidadania. Ao reivindicarem uma voz – e o direito e legitimidade de falarem no seu tempo, espaço e modo – cravam um espinho na cidade temática e estandardizada e acumulam uma experiência e memória para além da tirania da hegemonia. O poder é uma totalidade que fecha o discurso, controlando as práticas através da sua previsibilidade convencional e da imposição simbólica de uma narrativa que ignora explicita ou dissimuladamente a alteridade. Ao invés, as dinâmicas sinuosas, oblíquas, feitas de apropriações e inversões de sentido, jogando com a surpresa e a polissemia, criam uma “consciência do olhar” (Sennett, 1991), que se demora e se surpreende; abrem interpretações, questionando e difundindo leituras alternativas. Em certo sentido, são heterotopias práticas e realistas, colocações “absolutamente outras”, “contestadas e invertidas”, “espécie de utopias efetivamente realizadas” (Foucault, 1995), que nos obrigam a ter em conta diferentes mundos da vida e a repelir qualquer colete de forças de homogeneidade. Em suma, abrem a possibilidade de outra des)ordem no espaço, para além do sistema de classificações e diferenciações hegemónico e binário. São uma forma de fazer lugar, ocupando os espaços vazios da cidadania (Lopes, 2007: 79). Descodificar a cidade estará, portanto, também nesta subtileza de saber ler e escutar os seus muros.

 

Referências bibliográficas

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Endereço de correspondência Inês Barbosa (autora de correspondência). Investigadora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Porto-Portugal). Endereço de correspondência: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto. Portugal. Email:inesbarbosa83@gmail.com

João Teixeira Lopes. Docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Porto-Portugal). Investigador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Porto-Portugal). Endereço de correspondência: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto. Portugal. Email: jlopes@letras.up.pt

 

Artigo recebido em 3 de julho de 2019. Aprovado para publicação em 25 de novembro de 2019.

 

Notas

1 https://www.portaldahabitacao.pt/opencms/export/sites/portal/pt/portal/habitacao/levantamento_necessidades_habitacionis/Relatorio_Final_Necessidades_Realojamento.pdf

2 Ilhas são bairros clandestinos construído nas traseiras dos prédios, durante o período industrial, no Porto.

3 SAAL é a abreviatura de Serviço de Apoio Ambulatório Local, um projeto que envolveu arquitetos e cidadãos em processos participativos de reabilitação urbana com um forte impacto na cidade do Porto.

4 Em 2012, 2014 e 2017, Melhor Destino Europeu" (European Consumers Choice); em 2013, Melhor Destino de férias na Europa" (Lonely Planet); 2015 Top 10 polos turísticos (the Guardian); 2018, Melhor destino europeu e segundo melhor mundial (Culture Trip).

5 A figura do flâneur (vadio, errante, investigador da cidade), explorada pelo escritor francês Charles Baudelaire, influenciou grandemente o trabalho de Walter Benjamim.

6A co-autora deste artigo - responsável pelo trabalho empírico - tem vivenciado vários dos problemas relacionados com a habitação aqui referidos e tem participado em grupos ativistas, em manifestações e debates públicos.

7 Algumas notícias: https://www.jn.pt/economia/interior/habitacao-no-porto-esta-55-mais-cara-10491863.html https://observador.pt/2019/03/15/100-familias-sao-despejadas-todos-os-anos-pelas-camaras-de-lisboa-e-porto/ https://www.tsf.pt/sociedade/interior/portugueses-saem-tarde-da-casa-dos-pais-mas-nao-e-porque-nao-querem-9409614.html

8 https://www.theguardian.com/travel/2020/feb/08/10-of-the-coolest-neighbourhoods-in-europe-paris-berlin-rome

https://www.publico.pt/2020/02/10/fugas/noticia/bonfim-porto-bairros-cool-europa-guardian-1903565

9 https://eco.sapo.pt/2019/07/25/precos-das-casas-disparam-em-marvila-bonfim-brilha-no-porto/

10 Por exemplo, a música Porto Arder, dos Grito! https://www.youtube.com/watch?v=RVcLHq7Ku34

11 https://noticias.up.pt/marca-porto-ponto-distinguida-como-a-melhor-da-europa/

12 http://www.cm-porto.pt/assets/misc/documentos/Logos/01_Manual_14_digital_2017.pdf

13 https://observador.pt/2017/08/07/morto-em-vez-de-porto-camara-apresenta-queixa/

14 https://www.opendemocracy.net/en/can-europe-make-it/gentrification-in-porto-will-city-turn-into-hotel/

15 https://www.publico.pt/2020/01/13/local/noticia/projecto-quarteirao-casa-forte-reprovado-cultura-norte-1900209

16 "Porto is not for sale", http://www.acordesdequinta.com/2019/01/docs-porto-is-not-for-sale-de-laura.html

17 Em junho de 2019, surgiu o Grupo de Apoio à Habitação que se reúne regularmente no espaço auto-gerido A Gralha. Até agora não organizou nenhum protesto público.

18 https://theworsttours.weebly.com/

19 Canção do GAC (Grupo de Ação Cultural), https://www.youtube.com/watch?v=PTuRPA4ySrE

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