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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia  no.tematico9 Porto Dec. 2019

https://doi.org/10.21747/08723419/soctem2019a4 

ARTIGOS

Azares, riscos e culpas: representações sobre os acidentes de trabalho da construção civil na imprensa portuguesa (1996-2017)

Misfortunes, risks and mistakes: representations of construction workers’ accidents in the Portuguese press (1996-2017)

Malheurs, risques et fautes : représentations des accidents des ouvriers du bâtiment dans la presse portugaise (1996-2017)

Desgracias, riscos y culpabilidad: representaciones del operario de la construcción en la prensa portuguesa (1996-2017)

Bruno Monteiro1, Carla Aurélia de Almeida2

1 Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

2 Departamento de Humanidades da Universidade Aberta Instituto de Sociologia da Universidade do Porto

 

Endereço de correspondência

 


RESUMO

No presente texto, analisamos o modo como nas notícias da imprensa portuguesa se constroem e transformam as representações sobre os acidentes de trabalho na construção civil. A partir da sua vinculação a uma pluralidade de perspetivas, tenta-se compreender as estratégias discursivas aqui mobilizadas. Tendo por base um corpus de 1218 notícias coletadas num arquivo sindical, para um período temporal compreendido entre 1996-2017, procedemos a uma crítica sociológica em combinação com uma análise semântica e pragmática dos discursos produzidos.

Palavras-chave : imprensa escrita; representações; estratégias discursivas; perspetiva.

 


ABSTRACT

In this text, we analyse how the current events in the Portuguese press construct and transform the representations of labour accidents in the construction sector. From an attachment to a plurality of perspectives, we seek to understand the discursive strategies mobilized here. On the basis of a corpus of 1218 news items collected in a trade union archive, we carried out, between 1996 and 2017, a sociological critique in combination with a semantic and pragmatic analysis of the speeches produced.

Keywords : written press; representations; discursive strategies; perspective.

 


RÉSUMÉ

Dans ce texte, nous analysons la manière dont l’actualité de la presse portugaise construit et transforme les représentations des accidents de travail dans l’industrie du bâtiment. A partir d’un attachement à une pluralité de perspectives, on cherche à comprendre les stratégies discursives mobilisées ici. Sur la base d’un corpus de 1218 nouvelles provenant d’une archive syndicale, nous avons procédé, entre 1996 et 2017, à une critique sociologique en combinaison avec une analyse sémantique et pragmatique des discours produits.

Mots-clés : presse écrite; représentations; stratégies discursives; perspective.

 


RESUMEN

En el presente texto analizamos la forma en que la prensa portuguesa construye y transforma las representaciones del accidente de trabajo en la construcción. Desde su apego a una pluralidad de perspectivas, tratamos de entender las estrategias discursivas que aquí se han movilizado. A partir de un corpus de 1218 noticias recogidas en un archivo sindical, durante un período de tiempo comprendido entre 1996 y 2017, se procedió a una crítica sociológica en combinación con un análisis semántico y pragmático de los discursos producidos.

Palabras claves : prensa escrita; representaciones; estrategias discursivas; perspectiva.

 


1. Introdução

No presente texto1, analisamos o modo como em notícias da imprensa portuguesa se constroem e transformam as representações sobre os acidentes de trabalho na construção civil. A partir da sua vinculação a uma pluralidade de perspectivas (representantes patronais e empresários, sindicalistas, colegas de trabalho ou familiares, inspetores de trabalho e técnicos de segurança, entre outros), procurar-se-á compreender as estratégias discursivas aqui mobilizadas. Tendo por base um corpus de 1218 notícias recolhidas no arquivo do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Construção e Madeiras, Mármores e Pedreiras, Cerâmicas e Materiais de Construção de Portugal, num período temporal entre 1996-2017, procedemos a uma crítica sociológica em combinação com uma análise semântica e pragmática dos discursos produzidos a respeito de casos singulares de acidentes de trabalho. A descrição da construção dos eventos relatados permite destacar a heterogeneidade enunciativa que decorre não só da intersubjetividade inscrita no discurso (Fonseca, 1992: 263), consubstanciada na dimensão acional e enunciativa do ato de dizer instituído entre locutor e alocutário, mas também a que resulta da ocorrência de diferentes vozes citadas ou deixis interdiscursiva (Fonseca, 1992: 264) com a integração de uma “dimensão citacional, por inscreverem no discurso de um locutor o discurso, real ou fictício, de um outro locutor – individual ou colectivo” (Fonseca, 1992: 269). No âmbito da sociolinguística, adotámos como enfoque analítico a descrição, do ponto de vista semântico e pragmático, dos objetivos ilocutórios visados no discurso de um conjunto de notícias e que têm como ato perlocutório convencer o leitor. Procuraremos assim realizar uma análise da discursivização (Fonseca, 1992: 316) do que é dito, levantando, na materialidade da escrita, os valores ideológicos subjacentes ao discurso produzido. Do mesmo passo, os contributos da sócio-antropologia permitem situar as estratégias discursivas que são usadas para enquadrar o acidente ocorrido, designadamente o processo de alegação das responsabilidades e a interpretação das sequências causais do acontecimento, como arena de luta para o sistema de agentes ocupados com a representação legítima das causas de acidentes de trabalho (vd. Lenoir, 1980: 81). Por via das “mediações” operadas por estes agentes ao longo do processo desencadeado com este acontecimento, a noção de acidente de trabalho surge como “uma categoria de construção da realidade social”, que tem o seu conteúdo dependente das lutas em torno do seu sentido mais do que do simples registo dos dados imediatos dos sentidos (Lenoir, 1980: 82, 77). Por outras palavras, os relatos de acidente são engendrados situacionalmente num determinado contexto sócio-histórico por agentes sociais que têm pretensões a impor uma definição legítima do acidente a partir do seu ponto de vista particular, dotados portanto de distintos “interesses expressivos” e desiguais “capacidades de expressão” (Bourdieu, 1981, 4). Do ponto de vista metodológico, no presente texto, a atenção dada aos argumentos desenvolvidos por uma pluralidade de locutores, com o objetivo de descrever e explicar o mundo do trabalho da construção e os acidentes de trabalho que aqui ocorrem, alterna com a objetivação sociológica dos lugares ocupados por locutores que se investem e se orientam dentro do sistema de enquadramento ideológico e institucional deste sector de atividade.

2. Programa de pesquisa: estratégias discursivas e interesses expressivos num arquivo sindical de notícias sobre a construção

Na análise da construção do sentido no texto escrito é conhecida a importância da estruturação do discurso, ou discursivização, que permite a abertura a diferentes rumos discursivos (Fonseca, 1992: 316) e possibilita o desenvolvimento de estratégias discursivas que concedem ao texto uma coerência interpretada em função da competência enciclopédica do leitor (ou alocutário) do texto escrito. A atribuição de coerência ao discurso é, assim, feita com base nas convenções de uso e na interpretação das sequências discursivas que são interacionalmente situadas no co(n)texto das notícias de jornais. Assim, procedemos ao levantamento de regularidades discursivas que permitem, a nível local, estudar a seleção, operada pelos participantes, das estratégias comunicativas (Gumperz, 1982) desenvolvidas no discurso institucional 2 de imprensa escrita sobre os acidentes de trabalho e, a nível global ou macroestrutural, analisar a coerência pragmático-funcional do discurso que diz respeito fundamentalmente às dimensões sequenciais dos atos ilocutórios (Fonseca, 1992: 269). Os acidentes de trabalho, em especial, como episódios de paroxismo que são, salientam as tensões subsumidas dentro deste sector de atividade: porquanto solicitam uma enunciação pública que permite situar acima do indiferenciado uma certa tomada de posição, tornando-a não só explícita mas distintiva, os referidos acidentes de trabalho obrigam a uma demarcação das mundivisões e, por isso, criam condições para uma enunciação de oposições latentes e dos princípios discriminantes a seu respeito, inclusive nos termos característicos da acusação, da denúncia ou da indignação (vd. Boltanski, 1984). A interpretação das causas ou a atribuição de responsabilidades dos acidentes relatados nestes artigos de imprensa, correspondendo a estratégias de enunciação de pontos de vista singulares e distintos sobre esse mesmo acontecimento, não chocam, antes se inscrevem como casos exemplificativos da lógica de enunciação do sistema de intervenientes que estão apostados ou mandatados para o trabalho de representação do acidente de trabalho, unidos entre eles por relações que podem ser de colusão, concorrência ou colaboração.

No quadro do trabalho desenvolvido no arquivo sindical estudado, foi possível compilar um corpus de 1218 notícias publicadas entre 1996 e 2017, tendo como critérios de inclusão o relato de eventos do universo da construção e obras públicas. A inspeção deste vasto repositório de notícias jornalísticas sobre o sector da construção em Portugal permitiu a seleção de casos particulares para a aplicação de um programa de pesquisa orientado para conhecer as tomadas de posição dos intervenientes a respeito das causas e das responsabilidades dos acidentes narrados. Aplicar uma perspetiva de análise discursiva e sócio-antropológica a um arquivo sindical específico implica ter em conta que este último se encontra definido pela aplicação de categorias de perceção derivadas de um ponto de vista particular e interessado sobre o universo da construção, i.e., o ponto de vista do sindicato. Explorar analiticamente as consequências nascidas da aplicação das categorias do entendimento sindical na construção a um tal acervo implicaria interrogar especificamente os esquemas de pensamento e de ação que informaram as operações de triagem e retenção de umas notícias em detrimento de outras; por isso, vamos sinalizar que temos consciência de que o modo de produção do arquivo constitui um expediente indispensável a este nosso exercício, ainda que essa crítica da fonte possa ser desenvolvida de maneira mais intensiva (vd. Ginzburg, 2016). Dadas as circunstâncias de produção do acervo, optámos por circunscrever a nossa análise ao estudo das estratégias discursivas e das “expectativas partilhadas” que estão associadas a esquemas interativos (Gumperz, 1980: 103-104) transplantados para a escrita da notícia a partir do aparelho citacional e que permitem abranger uma pluralidade de discursos distintos, ainda que montados pelas regras próprias da intervenção jornalística. No presente texto, por essa mesma razão, não procuraremos consolidar uma análise dos media em geral, explorando as variações entre concorrentes dentro do campo mediático ou, em sentido inverso, observando as convenções partilhadas nos relatos jornalísticos de acidentes de trabalho ou nas apresentações dos intervenientes (Florea e Rabatel, 2011). Nem iremos, por outro lado, proceder ao levantamento das mudanças históricas relatadas no sector da construção civil ao longo deste hiato temporal, em que o sector da construção conheceu alterações muito drásticas que se plasmaram seguramente sobre a hierarquia de temas «noticiáveis» dentro do campo mediático (Greer, 2007). Vamos, isso sim, incidir sobre relatos de imprensa de casos particulares que nos permitam pensar, dada a simultaneidade e a concorrência dos múltiplos discursos presentes, sobre as distintas estratégias mobilizadas para propor, sustentar e impor uma definição do acidente de trabalho. “Pensar por caso” (“ penser par cas”) sugere que, por meio da “exploração e aprofundamento de uma singularidade acessível à observação”, é possível “extrair uma argumentação de alcance mais geral” (Passeron e Revel, 2005: 8), o que significa, neste contexto, encontrar o espaço das tomadas de posição acessíveis e aplicáveis por esta pluralidade de especialistas da representação dos acidentes de trabalho.

 

 

Deste modo, nas notícias sobre acidentes na construção civil, verifica-se a materialização no discurso de uma multiplicidade de pontos de vista e de lutas em torno dos limites da definição legítima de "acidente de trabalho" e de "vítimas de desastres" (Lenoir, 1980: 81). Tratar-se-á, pois, de fazer uma análise interpretativa das estratégias discursivas que permitem aos participantes criar uma relação na situação da comunicação (Gumperz, 1989; 2001), o que Erving Goffman via como "um jogo de influência recíproca" (Goffman, 1973: 23). Verificaremos que o discurso da imprensa, que é nosso objeto de investigação, se torna um lugar de representação de uma multiplicidade de pontos de vista, por prolação transferida para o texto da notícia, mediante o uso de aspas de citação ou o mecanismo jornalístico do contraditório (por exemplo, complementando a opinião do sindicato com a opinião do patronato ou, em termos mais gerais, ouvindo a “resposta” a “queixas” ou “acusações”), tornando-se o texto assim construído num terreno de lutas que tem a sua própria autonomia e a sua própria consistência em virtude da convergência de interesses (descoincidentes e contraditórios, por vezes) que existe entre todos esses protagonistas a respeito da importância, ou necessidade, de se pronunciarem sobre a causalidade e a responsabilidade do acidente.

Neste sentido, vamos ao encontro de uma “antropologia da causalidade e da responsabilidade”, encontrando nestes artigos de imprensa uma outra via de acesso a essa modalidade de pesquisa invocada por Nicolas Dodier (1994). Pelas mútuas implicações existentes entre a “economia cognitiva” e a “economia moral” dos acidentes de trabalho, em que as interpretações, aparentemente mais lógicas, convocadas pela primeira se entrelaçam com as apreciações, sejam louvores, sejam estigmas, que a segunda inscreve, encontramos um plano de argumentação para estes locutores em que os limites dessa distinção se tornam imprecisos e, por conseguinte, em objeto de intensas disputas. Nos acidentes de trabalho, “a imputação da responsabilidade caracteriza-se pelo fechamento do julgamento sobre uma causa preponderante: a causa do acidente” (Dodier, 1994: 257), o que torna especialmente relevante ler a atribuição de causas decisivas em conjunto com a imputação de responsabilidades. Em virtude dessa tendência de derivação da responsabilidade moral a partir da causalidade basilar, “toda a pragmática dos julgamentos de responsabilidade é guiada pelo esforço dos actores para sublinhar certas cadeias causais e para aligeirar outras” (Dodier, 1994: 266). Por esse motivo, têm especial relevância as estratégias discursivas dos locutores evidenciadas no texto da notícia a respeito das causas do acidente, o que levou a submeter a informação reunida a um procedimento de análise semântica e pragmática com recurso à análise interpretativa desenvolvida por John Gumperz (2001) que se centre nas elocuções reportadas dos agentes em questão.

O estudo da construção dos acontecimentos relatados permite destacar as diferentes vozes citadas que dão a esses discursos uma heterogeneidade enunciativa e possibilitam o levantamento dos locutores que constituem vozes autorizadas para proferir o discurso. Todo o discurso é produzido a partir de um lugar interacional (Kerbrat-Orecchioni, 1988: 186) - ou posição (Goffman, 1973) - que condiciona o quadro de participação (Goffman, 1981) e as estratégias discursivas específicas que aí são realizadas. Nestes contextos interativos e interlocutivos, os participantes acionam um sistema de práticas, de convenções sociais e de regras de procedimento discursivo que organizam o fluxo temático (Goffman, 1974: 32) do discurso. No desenvolvimento dos eixos de sentido, o locutor é considerado uma voz autorizada para produzir o que diz no texto ou discurso. Com efeito, a autoridade do locutor é uma condição de validade e de eficácia para que o ato se realize, constituindo-se uma autoridade que “tem os mesmos limites que a delegação da instituição”, ou seja, de uma autoridade que se prende sempre com a “posição social” (Bourdieu, 1982: 107) do locutor e com a adequação do seu discurso às condições da enunciação. Enfim, a análise aqui proposta envolve a construção do sentido em torno do acidente de trabalho, suas causas e consequências, só que considerando não apenas a dimensão enunciativa mais restrita, mas também as questões pragmáticas, relacionais e simbólicas configuradas nestes discursos.

Daqui se impõe uma precisão sobre o acesso ao discurso, logo à representação. Nos artigos de imprensa em análise, os locutores carecem de ser reconhecidos como possuindo as competências necessárias para concretizar uma elocução autorizada e verídica sobre o acidente de trabalho, desde logo de acordo com os termos requeridos pelo aparelho de recolha e registo usado pela imprensa. A importância de uma asserção depende aqui de um empréstimo ou caução de natureza social da parte do locutor, por outras palavras, da concessão de um crédito que possui e que, portanto, transmite ao que afirma como uma espécie de garantia. São, portanto, os próprios processos de coconstrução do sentido que são visados pela descrição das vozes no discurso de imprensa: a voz do jornalista, do sindicato, dos patrões, dos inspetores do trabalho e os indícios da voz dos trabalhadores da construção através do discurso indireto do jornalista que assina o artigo do jornal. Nas palavras de Pierre Bourdieu, “o poder das palavras não é outra coisa senão o poder delegado do porta-voz, e as suas palavras – quer dizer, indissociavelmente, a matéria do seu discurso e a sua maneira de falar são, quanto muito, um testemunho e um testemunho entre outros da garantia de delegação de que ele está investido” (Bourdieu, 1982 : 105 ; tradução nossa). Os atos de discurso dependem assim do valor simbólico-institucional (Pinto, 1985) que lhes é imputado pelos interlocutores e procurar-se-á analisar a estruturação do sentido nestes discursos de imprensa escrita, remetendo para os diversos atos de discurso proferidos pelos agentes convocados nos textos e analisando assim as “lógicas sociais diversas” (Pinto, 1985: 51) que esses agentes sociais mobilizam para legitimar um ponto de vista. Pois, nas palavras do mesmo José Madureira Pinto, “não há uma lógica absoluta e intemporal, um pensamento, ou uma estética, ou uma ética universais e abstractos remetendo para uma pretensa natureza humana, há lógicas (ideo-lógicas) sociais diversas” (Pinto, 1985: 51).

3. «Pôr em causa»: pontos de vista sobre acidentes situados

Desde Paul Fauconnet, desde 1928 pelo menos, considerados como “factos sociais”, os “julgamentos de responsabilidade” sobre um acontecimento não resultam automaticamente, nem se esgotam na simples constatação dos seus fatores materiais e suas consequências diretas, “eles traduzem o sentimento que aqueles que os pronunciam têm do que é justo, moral ou juridicamente obrigatório” (Fauconnet, 2008: 34). Ao contrário do que sucede com a pesquisa científica das causas dos fenómenos naturais, sucede ocorrer uma articulação entre julgamento de facto e julgamento de valor nas circunstâncias precisas da indagação dos acidentes de trabalho.3 Diante da atribuição de uma responsabilidade, deparamo-nos com operações de ”pôr em causa” (vd. Dodier, 1994). No uso que lhe damos, esta expressão tem o duplo sentido de encontrar causas e de aplicar culpas: se existe um modo de conversão de causas em culpas, a sua relação de proporção precisa de ser estabelecida no decurso das disputas entre interlocutores sobre a natureza do acidente de trabalho, dependendo da competência e da capacidade que tenham para impor a definição mais favorável aos seus interesses ou para deslegitimar e, assim, repudiar as imputações trazidas pelos outros participantes da disputa. Por isso, um dos artigos em análise equipara o debate entre interlocutores sobre as causas de um acidente a um “jogo do empurra” entre técnicos de segurança, patrões ou trabalhadores ( Jornal de Notícias, “Obra fatídica já soava a desgraça”, 10.09.2008). Numa aplicação especialmente apropriada de uma expressão tantas vezes abusada, em última instância, resta ao tribunal aplicar uma “definição jurídica” que interrompa o mecanismo de circularidade entre causas e culpas, operando “pela lei” uma imputação de responsabilidades e de obrigações que, pese embora a alegação de neutralidade e de universalidade, aparentemente se encontra distante ou “invisibiliza” as noções de “acidente acontecido” e da experiência ”vivida” do sinistrado (Lima, 2016: 246).

A luta pela imputação da culpa torna as representações do acidente de trabalho, sobretudo quando a sua configuração de causalidade permanece em aberto, especialmente sensíveis aos âmbitos de intervenção, logo às suas bases de autoridade e de legitimidade, e aos interesses específicos que caracterizam todos os agentes implicados nessa disputa em torno da “construção social dos acontecimentos corporais” (vd. Dodier, 1986). O poder de nomeação do acidente vai ser, assim, disputado entre os interlocutores reportados pelas notícias, sugerindo eles versões concorrentes que mobilizam esquemas causais e responsabilidades morais distintas entre si. Dada a necessidade de concisão expositiva, reteremos apenas a constelação de agentes autorizados que compreende os dirigentes sindicais, os técnicos de segurança e os representantes patronais, três importantes pontos de apoio usados pela imprensa para delimitar o perímetro do debate público sobre os acidentes de trabalho.

No conjunto de casos reportados, tomemos três em consideração. No dia 12 de dezembro de 2001, a queda de um viaduto causa a morte a cinco operários perto de Almodôvar (Jornal de Notícias, “Queda de viaduto mata cinco operários”, 13.12.2001). Para o gestor da empresa, cumpridos que estavam os controlos da obra, “nada indiciava” e “nada previa” o acidente. Para o dirigente sindical, os alertas que tinham realizado meses atrás tinham sido infrutíferos: “As nossas denúncias caíram em saco roto, quando era tempo de agir. Estas mortes podiam ser evitadas”, explicava o sindicalista. Por causa de uma derrocada, em 2016, seriam dois operários a perder a vida em Lisboa (Jornal de Notícias, “Derrocada em prédio de luxo mata dois pedreiros”, 29.11.2016). O dono da empresa em que trabalhavam as vítimas articula o cumprimento de obrigações com a influência do acaso: “Está tudo seguro, mas estas coisas são imprevisíveis”. A respeito deste acidente, o sindicato lançava publicamente o vaticínio pessimista de que “muitos [trabalhadores] irão morrer em obras de reabilitação urbana”. Para o sindicato, a razão prende-se com a relevância de “empresas clandestinas” nestas iniciativas, dado que elas descartam a disponibilização de “meios de protecção individuais e colectivos” aos trabalhadores. Para contrariar esta situação, o sindicato ativou uma “campanha” de sensibilização contra os acidentes de trabalho, alegando que não contou com o apoio dos serviços públicos de inspeção do trabalho. Por sua vez, o inspetor de trabalho admitia que “não existem acidentes por acaso”. Neste caso, salienta a “instabilidade”, um critério material que se prende com o respeito pelas “normas de segurança” indispensáveis. No início do novo século, a queda de um andaime provocara a morte de um operário durante a construção de uma ponte ( O Primeiro de Janeiro, “Detetadas falhas de segurança”, 14.08.2002). O inspetor de trabalho destaca os desvios às normas de segurança: “Não há condições de segurança nem no acesso à obra, nem no local de trabalho”. Para o representante sindical, o acidente “podia ter sido evitado”, sendo que o “trabalho precário” contribui para provocar estas situações.

Recusando uma essencialização das vozes em presença, nestes relatos encontramos reportórios discursivos que, embora veiculados de maneira privilegiada por determinados interlocutores, servem sobretudo para estabelecer categorias de entendimento dos acidentes, todas elas com os seus princípios de explicação e as suas implicações de culpabilidade. Nestes relatos, a natureza das causas destacadas para caracterizar um acidente é solidária da modalidade de responsabilidade que se pretende indiciar, consolidando uma vinculação entre as causas situadas e os juízos de valor. Nos acidentes “imprevisíveis”, como os acima percecionados pelos representantes patronais, encontramos o destaque concedido ao acaso e ao azar, em combinação com tentativas de neutralização da culpa pela alegação do cumprimento das obrigações. Para os acidentes “evitáveis”, temos o concurso de riscos técnicos ou desvios aos planos de segurança, como ocorre nos relatos de técnicos e inspetores de segurança e, num outro patamar, entre os relatos de sindicalistas, que optam por destacar sobretudo a precariedade e a clandestinidade.

Noutras situações, podemos encontrar alegações de “assassinato” na argumentação dos agentes sindicais: existência de dolo, pelo reiterado incumprimento das regras de segurança, privação das condições de trabalho ou exploração desmesurada dos trabalhadores, torna estes acidentes em atos de vontade homicida (por exemplo: “Sindicato denuncia ‘autênticos trapezistas’ nas obras”, Jornal de Notícias, 06.09.2000), com destaque concedido a “pseudo-empresas” e “engajadores” que sobrevivem nas franjas da legalidade e da regulação. Detetámos, assim, três importantes operadores de explicação e imputação dos acidentes de trabalho: o azar, o risco e a culpa. Embora trazidos com prioridade por distintos interlocutores, estas noções concentram uma nuvem de significados que pode ser perspetivada com mais detalhe mediante a análise linguística. Podemos complexificar esta nossa análise, acrescentando esta descrição dos usos possíveis dessas noções. Uma análise semântica do termo “azar” revela que este tem uma causa indeterminada do evento, remetendo para o acidente que ocorre, tendo o sujeito do evento os traços semânticos [- Intencional] e [- Ativo]. Já a noção de “risco” assinala a possibilidade de acidente e a causa provável de algo mau poder acontecer e, por isso, o sujeito que corre o risco é [+ Ativo] e [+/- Intencional]. Relativamente à noção de “culpa”, verificamos que há a deteção de uma causa explícita do acidente e o acidente ocorreu. O papel temático é de Agente e é [+ Ativo] e [+ intencional] ou [+ Vontade].

Deste modo, nas marcas do discurso de imprensa, e no contexto das estratégias discursivas, encontramos a semântica do "azar", do "risco” (na voz dos patrões) e a noção implícita de "culpa" atribuída não só aos patrões e responsáveis pela obra (na voz do sindicato), mas também encontramos pistas ou indícios para a “culpa” que é atribuída aos trabalhadores da construção (na voz dos patrões), assistindo-se ao “(…) entrecruzar de discursos algo contraditórios (…) e outras visões parciais sobre desastres e mortes nos locais de trabalho” (Pinto, 2007: 29).

4. Pôr o acidente no seu sítio: o acontecimento linguistico no acidente relatado

Ter em conta as condições locais da atividade narrativa no discurso de imprensa requer uma dupla referência: ao ambiente sequencial do discurso e às questões interativas, negociadas à medida que a troca avança, o que é descrito no discurso relatado. A narrativa sobre o acidente de trabalho é contada através do número de mortos e da descrição das causas prováveis que são atribuídas às culpas e aos agentes culpados. Remi Lenoir (1980) explica-nos que, "legalmente definido pela sua natureza súbita (na sua ocorrência) e imediata (na lesão que causa), um acidente de trabalho raramente é considerado como parte de uma história" (Lenoir, 1980: 22). A história da vítima não é contada na maioria dos relatos de imprensa do corpus estudado, salvo exceções. No presente texto, de maneira a potenciar a legibilidade das estratégias discursivas, optámos por selecionar de maneira privilegiada notícias que insistissem em casos concretos que apelassem a uma coexistência de múltiplas perspetivas, como acima explicámos, e que se inscrevessem sobre locais de trabalho circunscritos, como os estaleiros de construção.

Para uma exposição minuciosa de um caso concreto, em cumprimento da nossa opção por uma atenção aos marcadores linguísticos usados nas descrições dos acidentes de trabalho, selecionamos uma notícia que versa sobre um dia repleto de acidentes de trabalho no distrito de Viseu ( Jornal de Notícias, “Viseu. Sete operários feridos em trabalho. Muitos acidentes registados ontem no distrito”, 18.8.2000). O evento é relatado numa narrativa e a morte é relatada na terceira pessoa, ou seja, a morte do Outro4 . Estamos assim perante o constante uso da terceira pessoa em expressões indefinidas: “Ontem o dia não podia ser mais azarento, no distrito de Viseu, em matéria de acidentes de trabalho. Às primeiras horas da manhã, em Silgueiros, cinco operários da construção civil viram abater-se, sobre si, a placa da casa que estavam a construir. No final da tarde, praticamente ao mesmo tempo, um jovem era electrocutado na Barragem de Varosa, em Lamego”. Este uso de uma terceira pessoa destaca a falta de definição da identidade dos trabalhadores: “Os acidentados residiam nas imediações de Viseu”.

Com efeito, a notícia é encerrada com uma declaração sem a determinação da identidade dos “acidentados”: “Fonte do hospital admitiu que a situação era grave, embora não tenham sido adiantados mais pormenores, tão pouco as identidades dos trabalhadores acidentados”.
Por outro lado, a definição de causas do acidente não é clara, havendo um constante uso de "amaciadores rituais" (Kerbrat-Orecchioni, 2005: 210; tradução nossa) ou mitigadores, que constituem, segundo Fraser (1980), "uma forma mais suave de afirmar” (Fraser, 1980: 349; tradução nossa): “Os operários procediam na altura ao enchimento da placa, que alegadamente não terá aguentado com o peso do cimento”. O advérbio de modo “alegadamente” constitui um “amaciador ritual” ou atenuador do valor ilocutório do ato de discurso de asserção, permitindo o enfraquecimento dos direitos e deveres associados ao valor ilocutório deste ato (“juridismo ilocutório”, segundo Ducrot, 1972), reduzindo assim as obrigações epistémicas da pessoa que produz a afirmação (Caffi, 2000: 92-93). Este procedimento discursivo cria assim um efeito de distanciamento em relação ao que é dito, permitindo que o acidente relatado seja descrito através do uso de asserções com uma modalidade epistémica no domínio do incerto.

5. O trabalho no plural: os “imaginários sociais” sobre os contextos e os trabalhadores da construção

Não existem acidentes sem acidentados, nem sem cenários de ocorrência. As atitudes tomadas diante do sinistro acompanham de perto as valorizações dos contextos de trabalho da construção e, de maneira solidária por vezes, do próprio caráter das vítimas reais ou potenciais. Olhando para a pluralidade de valorizações avançadas sobre os contextos em que decorre o trabalho de construção e, por vezes de maneira consubstancial, sobre o caráter dos trabalhadores que o realizam, conseguimos insinuar-nos por entre os “imaginários sociais” (Taylor, 2010) criados a respeito da construção civil. Abdicando de considerar a massa de registos da cultura popular sobre o “trolha” e sobre “andar nas obras”, os relatos registados nestas notícias permitem perceber que os termos usados para valorar os contextos e os trabalhadores da construção civil correspondem a uma “polinomásia” que, como salientava Leo Spitzer (1955), ao mesmo tempo que deriva, acentua a pluralidade de pontos de vista tidos pelos agentes sociais que aspiram a uma tutela prática, ideológica ou institucional sobre o sector da construção. Por aplicação desta visão do perspetivismo ao universo da construção, a “instabilidade e variedade dos nomes” – e a “variedade de explicações” convocadas para eles – corresponde a esta simultânea transposição para o artigo de imprensa de relatos que “destacam os diferentes aspetos sob os quais pode aparecer a personagem em questão às demais [personagens implicadas]” (Spitzer, 1955: 135; tradução nossa). Aliás, se tais relatos evidenciam que “o mundo pode aparecer distinto aos distintos personagens”, é unicamente porque variam “as perspetivas sob as quais [eles] veem o mundo” (Spitzer, 1955: 144; tradução nossa).

Podemos destacar duas notícias retiradas de momentos distintos da incidência de acidentes de trabalho em Portugal. No zénite do sector da construção, em 2000, as caracterizações sobre a natureza do trabalho da construção permitiam sinalizar a existência de distintos princípios de interpretação dos acidentes entre os principais interlocutores, a saber: inspetores de trabalho, empresários do sector e representantes sindicais. ( O Comércio do Porto, “Tristes recordes”, 23.08.2000). Depois de um inventário das causas dos acidentes a partir das suas circunstâncias imediatas (“quedas em altura”, “soterramentos”, …), abre-se um espaço de enunciação em que os interlocutores exprimem as suas interpretações a respeito do crescimento dos acidentes de trabalho. Para os inspetores do trabalho, “ainda não entrou na mente dos construtores que a atividade é perigosa”, “encara-se a prevenção como uma chatice e vai havendo esperança de que não aconteça nada de mal”. Apesar das coimas, prevalece um “deixa andar” em termos de normas de segurança, que permanecem estranhas aos modos de gestão vigentes das empresas e que chegam a ser vistas pelos empresários como um custo suplementar. São destacados os riscos inerentes a esta atividade, os procedimentos técnicos desadequados e uma cultura de administração sustentada em negligência e credulidade. Ouvindo o dirigente sindical, além da sua suspeição de que os números reais dos acidentes estão subavaliados nas estatísticas oficiais, vemos que a informalidade e a clandestinidade contribuem decisivamente para o desfecho negativo do sector da construção: “Há pessoas que dizem ser patrões e nem alvará têm, ou seja, há uma invasão de patrões clandestinos nacionais que trabalham sem ter sequer a carteira profissional do sindicato”. Por via desta distinção de “patrões clandestinos” (ou, noutros momentos, “pseudo-patrões”), o sindicalista estabelece um contraste com os “empresários”, “penalizados” em termos concorrenciais: “Há quem diga que para se ser trabalhador da construção civil basta ter músculo, mas é preciso muito mais”, acrescenta em contraste com estigmas muito disseminados sobre o trabalhador da construção e sugerindo uma revalorização social e simbólica desta ocupação. Por outro lado, as transformações do sector significaram a dissolução dos modos de recrutamento e de reprodução da mão-de-obra anteriormente prevalecentes, com a consequência da cooptação de “serventes que trabalham sem saber as técnicas”, o que chegar a acarretar que as crianças se tornem “presas fáceis” destas redes de recrutamento. Da dupla ausência de regulação sobre os protagonistas empresariais e o sistema de treino e contratação de mão-de-obra, um papel que o sindicato aparentemente poderia cumprir enquanto instância de mediação e de certificação, decorre um vazio de responsabilização alargado para os acidentes de trabalho. Por seu turno, o dirigente empresarial salienta um reverso das interpretações que apenas responsabilizam os patrões. Para ele, “muitas vezes são os próprios trabalhadores a desrespeitar as regras”. Por isso, os acidentes, “independentemente de haver todo o cuidado”, são inevitáveis para tais protagonistas. As características inerentes do trabalhador da construção atuam como pré-condições do incumprimento que explicam a ocorrência de acidentes: são ignorantes e inconscientes (“não têm a noção do risco”, “não é raro vermos andaimes, que cumprem com as regras, e os homens optam por descer como os macacos”), são temerários para demonstrar a sua masculinidade (“há uma vontade de afirmar o machismo, mostrar que são homens de barba rija”), realizam uma sobrestimação das competências profissionais (“estavam convencidos que percebiam muito disso, desafiaram o risco”), são propensos aos consumo do álcool em excesso e marcados por deficiências biológicas (“muitas vezes, os trabalhadores têm desordens psíquicas e físicas por virem de famílias de pais alcoólicos”).

Encontraremos mais tarde, em 2006, o abaixamento do número de acidentes ser explicado por motivos que apelam a ordens de valor que parecem permanecer em consonância com os pontos de vista dos distintos protagonistas ( Jornal de Notícias, “Acidentes mortais na construção estão a diminuir”, 23.06.2006), ainda que agora em sentido positivo para explicar essa diminuição dos sinistros. Numa altura em que a conjuntura económica do sector dava sinais de uma desaceleração, que viria a desencadear, pouco depois, uma situação dita de “crise”, vemos os inspetores de trabalho a servirem-se de um “vocabulário de motivos” – i.e. um modo de expressão e gestão da experiência usado por um grupo para estruturar e apresentar discursivamente certos comportamentos (Mills, 1940: 904) – que exibe sinais de estabilidade da sua interpretação da realidade dos acidentes de trabalho ainda que agora com um tom otimista. Para explicar a evolução positiva, encontramos, primeiro, “a mudança de perceção que os trabalhadores e os empregadores têm sobre o problema”. Depois, vemos salientadas as virtudes da técnica e das suas personificações, designadamente as que derivam de “uma melhoria dos equipamentos de segurança” e da “profissionalização de um conjunto de técnicos que trabalham nas empresas e com os trabalhadores”. Para os dirigentes sindicais, uma larga medida dos acidentes que resistem a desaparecer acoitam-se em “estaleiros com empreiteiros sem formação para trabalhar no sector”. O sucesso explica-se, por sua vez, pelo desenvolvimento das “ações pedagógicas” que o sindicato conduziu em cooperação com entidades públicas e com “empresas idóneas”. Permanece, portanto, a visão que cinde o universo empresarial entre “empresas cumpridoras” e “pseudo-empresas” que, “não possu[indo] estrutura, nem formação”, escapam ao regime de regulação do sector. Da parte do sindicato, permanece ainda a pressão sobre a inspeção do trabalho, sobre quem repousa o ónus de cumprir com o seu papel fiscalizador junto de empresas renitentes a adotar os padrões de segurança exigidos. Ao otimismo tecnicista dos inspetores do trabalho soma-se, assim, a economia moral do sindicato que destrinça as práticas empresariais; ambas, porém, convergem num consenso iluminista sobre as vantagens das soluções pedagógicas.

6. Notas finais: uma composição polifónica e um silêncio muito notado

A leitura das notícias selecionadas permitiu-nos perspetivar os modos de construção e gestão do sentido nos discursos sobre os acidentes de trabalho, considerando os eixos argumentativos delineados. As marcas linguístico-discursivas enunciadas tomam o seu valor pleno assim que as lemos em articulação com o sistema de intervenientes que compete em torno da definição legítima de acidente de trabalho. Estas práticas discursivas consubstanciam-se em estratégias discursivas que veiculam interesses expressivos distintos e que insistem nas modelações da representação do acidente mais consentâneas com os pontos de vista adotados por tais intervenientes. Nos termos de Pierre Bourdieu (2001), ”a palavra ou, a fortiori, o dito popular, o provérbio e todas as formas de expressão estereotipadas ou rituais são programas de perceção e as diferentes estratégias, mais ou menos ritualizadas, da luta simbólica de todos os dias (…) contêm uma certa pretensão à autoridade como poder simbolicamente reconhecido de impor uma certa visão do mundo social, quer dizer, das divisões do mundo social” (Bourdieu, 2001 : 156). Enquanto expressões de lutas pela autoridade de designação e determinação de um acidente de trabalho, as intervenções registadas pelas notícias correspondem a tomadas de posição de um conjunto de intervenientes sobre os acidentes de trabalho que, por via da sua representação do mundo do trabalho da construção, visam questionar ou conservar a própria realidade assim representada no que concerne às hierarquias de estatutos, às convenções de apreciação moral ou às sequências de acontecimentos do sector da construção.

Nestas notícias, encontramos vocabulários de motivos que são articulados pelas distintas estratégias discursivas que, trazidas pela imprensa ao espaço público, exprimem a perspetiva e o posicionamento de uma pluralidade de intervenientes apostados (porque interessados) em controlar o desfecho da interpretação do acidente de trabalho. Num sentido livre, estes artigos são composições polifónicas – com vozes ao desafio e dissonantes, acrescentamos. Dentro do tema que nos ocupa, a imposição de uma mundividência em detrimento de uma outra, ou contra ela, a respeito da ocorrência de um acidente de trabalho sugere a necessidade de olhar para as arenas em que se disputam interpretações propostas por diversos porta-vozes, apoiados em competências e posições que os habilitam a assumirem essa atitude ou que são, pelo menos, implicitamente consagrados pelo destaque concedido pelo acesso ao espaço público da imprensa. Vimos, neste texto, como as notícias de imprensa analisadas são precisamente espaços de luta em que as definições engendradas por esses intervenientes autorizados ou mandatados concorrem entre elas para se imporem como legítimas e verídicas e, em contrapartida, deslegitimar e contestar as versões alternativas do acidente de trabalho. Em sentido inverso, os atores que estão destituídos de poder de representação, a começar pelas próprias vítimas dos acidentes, são usualmente marginalizadas, senão totalmente silenciadas, dentro dos mecanismos de produção de sentido sobre o acidente de trabalho. De novo, vemos repetido o princípio que Patrick Champagne encontrava para explicar por que a produção da imagem pública das classes populares surgia tantas vezes por meio de uma delegação, quando observava que a massa “anónima, diversa, heteróclita, atrapalhada e contraditória” não suscitava o interesse da imprensa escrita por contraposição com os porta-vozes, sempre acessíveis aos contatos dos jornalistas e sempre disponíveis a comunicar nos termos requeridos (Champagne, 1984: 41; tradução nossa).

Do longo percurso de especialização que marcou a história das ciências sociais tirou-se muitas vezes a constatação de uma crescente incomunicabilidade ou incompreensão entre as disciplinas originadas, entretanto, dentro desse universo científico. Sem que as disciplinas tenham que abdicar do património de conhecimento e dos instrumentos de pesquisa que desenvolveram, entretanto, pela constituição de problemáticas específicas, existem oportunidades para um diálogo crítico mais intenso que permita separar desses progressos epistemológicos e metodológicos o lastro de sofisticação técnica e convenções artificiais que impedem uma frutuosa interdisciplinaridade. Neste texto, por trás do palco concedido à análise sobre as representações dos acidentes de trabalho, tivemos todo um outro enredo a desenrolar-se nos bastidores: as oportunidades para a estimulação intelectual entre a sociologia e a sociolinguística.

 

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Endereço de correspondência Bruno Monteiro. Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n, 4150-564, Porto, Portugal. Email: bjrmonteiro@gmail.com

Carla Aurélia de Almeida (autora de correspondência). Endereço de correspondência: Delegação Porto da Universidade Aberta, Rua do Amial, 752, 4200 – 055, Porto, Portugal. Email: calmeida@uab.pt

 

Artigo recebido em 29 de julho de 2019. Publicação aprovada em 15 de outubro de 2019.

 

Notas

1 O presente artigo foi elaborado no âmbito das atividades do projeto de investigação “Novos terrenos para a construção: mudanças no campo da construção em Portugal e seu impacto nas condições de trabalho no século XXI” (PTDC/IVC-SOC/5578/2014-016621), desenvolvido no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, entre 2016 e 2019, e financiado por fundos nacionais através da FCT/MEC (PIDDAC) e cofinanciado pelo FEDER – Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional através do COMPETE – Programa Operacional Fatores de Competitividade. Beneficiando do quadro de discussão entre a equipa dos investigadores do projeto, uma primeira versão deste estudo foi discutida no colóquio internacional “Classes sociales, comparaisons et migrations Portugal / France”, realizado nas instalações do CNRS – Pouchet, na cidade de Paris, França, em 20 de junho de 2019 e no colóquio internacional, “Breaking Ground for Construction: Changes in the Field of Construction in Portugal and their Impact on Working Conditions in the 21st Century”, realizado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto nos dias 4 e 5 de julho de 2019.

2 Sobre a distinção entre discurso “institucional” e discurso “mundano”, cf. Boden e Zimmerman (1993).

3 Este colapsar entre domínios usualmente tratados de maneira estanque (como a oposição entre razão e sentimentos, ou entre causa e autoria) surge claramente expresso nesta obra de Paul Fauconnet, escrita há praticamente cem anos: “Quando o homem procura a causa dos fenómenos da natureza, é por curiosidade especulativa ou antes, e sobretudo, para alargar o seu império sobre as coisas. Mas a procura dos autores, das pessoas concebidas como causas, responde a outras necessidades: ela é sempre suscitada, em última análise, pelo desejo de aplicar uma sanção ou, pelo menos, de atribuir uma remuneração. (…) Se a noção de causalidade científica pode tornar-se puramente intelectual, vazia de todo o conteúdo emocional, o julgamento que atribui um resultado a um autor parece ser sempre, em certa medida, um julgamento de valor, implicando uma apreciação ou uma depreciação, uma atitude de aprovação ou desaprovação, em suma, sentimentos” (Fauconnet, 2008: 260-261; tradução nossa).

4 Sobre o uso ritual da terceira pessoa nas notícias dos media, cf. a este propósito Florea e Rabatel (2011:9).

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