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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.37  Porto June 2019

https://doi.org/10.21747/08723419/soc37a3 

ARTIGOS

Ser (um) expatriado, numa empresa: uma obrigação, uma distinção, um parêntese

Portuguese expatriates dealing with their expatriate experience: obligation, opportunity, discontinuance

Expatriés portugais et leur expérience d’expatrié: obligation, opportunité, derangement

Expatriados portugueses y su experiencia de expatriados: Obligación, oportunidad, inconveniência

João Vasco Coelho

Centro de Investigação e Estudos de Sociologia Instituto Universitário de Lisboa

 

Endereço de correspondência

 


RESUMO

A ambivalência de representação de uma expatriação, uma prática de prestação de trabalho observável em contextos de internacionalização de empresa, constitui o horizonte de problematização da pesquisa reportada pelo presente artigo. Vinte e quatro casos individuais de expatriação observados no âmbito da internacionalização de cinco empresas dotadas de génese ou presença nacional, constituem a referência empírica da pesquisa. Enquanto experiência vivida, regista-se que ser (um) expatriado, numa empresa, corresponde a uma situação de trabalho pela qual se despoletam ou consumam motivos individuais divergentes. Três tipos de experiência individual de expatriação são, a este respeito, descritos e distinguidos.

Palavras-chave: internacionalização de empresas; expatriado; experiência.

 


ABSTRACT

The sense of ambivalence that tends to be associated with the representation of an expatriation as a contemporary work arrangement form used to anchor business internationalization processes, constitutes the problematizing axis of the research reported by this paper. Twenty-four individual experiences of expatriation observed in five different firms, born or located in Portugal, were studied. Analytical results suggest that performing work in an expatriation context can foster individual and social differentiation. Three types of expatriate experience are distinguished and described in detail.

Keywords: business internationalization; expatriate; employee experience.

 


RÉSUMÉ

L`ambivalence qui tend à être associé à la représentation de l’expatriation en tant que forme d’arrangement de travail contemporain utilisée pour ancrer les processus d’internationalisation des entreprises, constitue l’axe problématisant de la recherche rapportée dans le présent article. Vingt-quatre expériences individuelles d’expatriation observées dans cinq entreprises différentes, nées ou situées au Portugal, ont été étudiées. Les résultats suggèrent que le fait de travailler dans un contexte d’expatriation peut favoriser la différenciation individuelle et sociale. Trois types d’expérience d`expatriation sont distingués et décrits en détail.

Mots-clés : internationalisation; expatrié; expérience.

 


RESUMEN

El sentido de ambivalencia que tiende a asociarse con la representación de una expatriación como una forma de arreglo de trabajo contemporáneo utilizada para anclar los procesos de internacionalización empresarial, constituye el eje problemático de la investigación informada en este documento. Se estudiaron veinticuatro experiencias individuales de expatriación observadas en cinco empresas diferentes, nacidas o ubicadas en Portugal. Los resultados sugieren que realizar trabajo en un contexto de expatriación puede fomentar la diferenciación individual y social. Se distinguen tres tipos de experiencia de expatriados y se describen en detalle.

Palabras clave : internacionalización empresarial; expatriado; experiencia de empleado.

 


Introdução

A prestação de trabalho em contexto internacional constitui hoje um elemento- charneira na concretização de processos de transnacionalismo e co-localização da atividade empresarial. Na pesquisa reportada pelo presente artigo, uma prática de desempenho de trabalho em contexto internacional foi adotada como referente de problematização e exploração empírica: uma expatriação. Para Kraimer et al. (2012), a expatriação e a gestão de uma expatriação representam ainda uma fraqueza no universo das empresas, sendo decisivo, porém, o seu contributo para a concretização da estratégia de internacionalização de uma empresa (Black et al., 1999). Um sentido difuso de ambivalência tende a acompanhar a representação de uma expatriação enquanto regime de prestação de trabalho associado à criação e à densificação de atividades produtivas de natureza transnacional (McNulty et al., 2017). No discurso organizacional e gestionário, o acento laudatório predomina: os enunciados oficiais articulam-se no sentido de apresentar os contextos de prestação de trabalho que implicam mobilidade internacional como lugares de estímulo e de diferenciação. Importa, é assim referido, ganhar mundo,ir para fora, sair da zona de conforto. Ir para fora é apresentado como condição de prosperidade, um recurso, uma escolha desejável, tendente à otimização dos recursos detidos. Numa perspetiva individual, vivida, observa-se, ao invés, a existência de relatos de insucesso, de experiência de paradoxo, dificuldades concretas de integração e de desempenho profissional (Osland, 2000).

A divergência e a ambivalência de representação de uma prática organizacional concreta (uma expatriação) inspiraram o desenrolar da pesquisa reportada pelo presente artigo. O objetivo central da pesquisa realizada relaciona-se, neste sentido, com a compreensão do que justifica ou contribui para que a experiência individual de um quadro específico de prestação de trabalho (uma expatriação), ocorra em termos aparentemente dissonantes, constituindo, em simultâneo, um lugar de oportunidade e de fragilidade, no contexto de uma empresa. Em função deste objetivo, o foco da análise foi colocado numa perspetiva dual, procurando articular-se a perspetiva das empresas, primeiros responsáveis pela organização de práticas de internacionalização e de prestação de trabalho num contexto de expatriação, com a perspetiva dos indivíduos expatriados, coprotagonistas, em termos vividos, das mesmas. Com esta opção, visou-se reconhecer a importância e os efeitos da experiência de subjetivação individual de um contexto material de existência, retomando a aceção de Bourdieu (1989 (1977)). Com esta opção, visou-se elucidar o percebido (pelos indivíduos) pelo concebido em termos organizacionais e gestionários, definindo (as) condições de possibilidade e de inteligibilidade do vivido (e verbalizado) pelos indivíduos (Binswanger, 1971; Habermas, 1985; Dubet, 1996 (1994)).

Enquadramento Teórico

Perspetivada enquanto prática desenvolvida por uma empresa para a organização do trabalho e para a gestão dos seus recursos humanos num contexto internacional, uma expatriação é tipicamente definida como um destacamento ou uma missão internacional (international assignment , no jargão gestionário anglo- saxónico), de relevância estratégica central em diferentes projetos ou operações de internacionalização empresarial (Bartlett et al., 1991; Black et al., 1999; Brookfield GRS, 2016). Respondendo à necessidade de empresas em processo de internacionalização constituírem ou manterem múltiplos mercados e centros de produção e/ou de distribuição, uma expatriação define um regime específico de desempenho de trabalho, localizável nos domínios organizacionais contemporâneos (Caligiuri et al., 2016), de duração (longa) tipicamente convencionada, que envolve a deslocação física, internacional, por motivos laborais, de um indivíduo, tipicamente detentor de um perfil altamente especializado e/ou qualificado, uma operação de gestão de mobilidade profissional que decorre da iniciativa de um empregador, uma organização, ou por proposta/iniciativa (caucionada pela organização) do próprio indivíduo (McNulty et al., 2017).

Para Andresen et al. (2014), importa distinguir uma expatriação de outras situações que implicam ou comportam deslocação ou mobilidade física de âmbito internacional, por parte de um indivíduo. Os autores diferenciam, neste sentido, uma expatriação de uma migração e de uma deslocação ou viagem internacional. Para estes autores, o migrante delimita uma categoria que se caracteriza, como o expatriado, por um padrão de mobilidade assente na travessia de fronteiras nacionais e na mudança de local de residência habitual, distinguindo-se pelo facto da circunstância de mobilidade, em si mesma, poder não ser despoletada por motivos laborais ou profissionais. Para o viajante internacional, o principal elemento distintivo associa-se ao facto da sua mobilidade não implicar uma mudança do centro de interesses individuais ou a mudança de um local de residência habitual. É possível afirmar que a especificidade de uma expatriação enquanto prática gestionária e organizacional deriva: a) da sua génese (organizacional) e da subsistência de um enquadramento organizacional formal dos indivíduos no decurso do período de mobilidade; b) de uma noção de duração, tipicamente longa e finita (pelo menos doze meses), dos períodos de mobilidade considerados (Evans, 2002); c) de uma natureza transformacional, desenvolvimentista, associada à experiência da diferença, da distância e do desconhecido (Peiperl et al., 2007; Doherty et al., 2009; Cerdin et al., 2014); e d) da coexistência de diferentes referenciais de pertença, e da possibilidade correlativa de ocorrência de conflito e de hibridação (Black et al., 1992), em termos simbólicos e socioculturais, quer de práticas organizacionais, quer de trajetórias pessoais, familiares e profissionais.

Importa atender, a este propósito, à especificidade das condições de integração social e organizacional associadas a um quadro de expatriação, que podem ser entendidas como propícias à produção, em termos subjetivos, de paradoxo, ambivalência e contradição (Osland, 2000). O indivíduo continua a estar na empresa, ainda que fora dela. Na sua especificidade time-dependent (Hippler et al., 2015), a prestação de trabalho num contexto de expatriação, pode definir, para empresas e indivíduos, um espaço-tempo social de exceção, uma situação crítica no quadro de relações sociais rotinizadas, marcada pela produção de diferença(s) e pela suspensão temporária (ou permanente) de um quotidiano (de papéis, rotinas, relações, responsabilidades) até então rotinizado.

Diferentes autores salientam o facto de uma expatriação colocar em jogo, em simultâneo, diferentes identidades (pessoais, sociais, socioprofissionais, organizacionais) potencialmente conflituantes. Uma pertença e uma presença dupla (Black et al., 1992) emergem, neste contexto, como condição de enquadramento que particulariza a prestação de trabalho que tem lugar num quadro de expatriação: a persistência da integração organizacional veiculada por práticas institucionalmente reguladas, pode sedimentar, em certa medida, uma consciência de obrigação (Bourdieu, 2002 (1972)); o contacto e a necessidade de mediação de elementos exógenos contribui para a possibilidade de individualização da experiência das práticas formalmente instituídas. A necessidade de mediação de presenças duplas é passível de ser vivida pelos trabalhadores expatriados como um acontecimento excecional, de disrupção ou suspensão de uma rotina, de um sentido de coerência, de continuidade e segurança ontológica (Giddens, 1989 (1984)) até então existente. Neste sentido, a experiência de prestação de trabalho num quadro de expatriação pode ser apropriada pelos indivíduos expatriados como motivo de condicionamento, ou, numa perspetiva inversa, como contexto de crescimento, oportunidade de definição de um género novo, inédito, distintivo, do ponto de vista identitário. Ser ou ter sido (um) expatriado, numa empresa, pode definir, neste sentido, a possibilidade de ter uma história diferente, de poder assumir (ou não) que se tem uma história diferente, de rejeitar ou querer ver reconhecida uma história que se assume ser diferente (Osland, 2000).

Metodologia

O estudo realizado procurou articular a perspetiva gestionária e organizacional, com as perspetivas individuais relativas a experiências concretas, vividas, de prestação de trabalho referidas (pelas empresas) como constituindo uma expatriação. A estratégia de pesquisa assumiu, em função da modelação deste objetivo concreto, uma feição qualitativa, centrando-se na análise intensiva de uma seleção de campos de observação empírica. Com o uso de múltiplos contextos de análise, procurou-se ir ao encontro do sentido de parcimónia e equilíbrio que tende a enformar uma análise e problematização de caso suportada em evidências recolhidas em múltiplos contextos empíricos (Eisenhardt et al., 2007).
Atendendo ao horizonte de problematização teórica estabelecido para a pesquisa, a seleção de contextos de observação correspondeu à seleção de um conjunto de universos empresariais para a concretização da vertente empírica da pesquisa. A procura de diversidade, por um lado, e de tipicidade (de setores de atividade, de dimensão e volume de negócio, de trajetórias de internacionalização empresarial, e de práticas de expatriação de trabalhadores), por outro, enformou a necessidade de considerar múltiplos contextos empresariais, supondo a existência de heterogeneidade nos domínios perfilhados em termos analíticos. Os cinco contextos empresariais considerados como espaço de observação empírica são apresentados de modo sintético na Tabela 1 (cf. Anexo). Na identificação destes contextos, procurou atender- se à possibilidade de cada universo empresarial poder representar uma situação total, em relação à problemática em estudo (Ragin et al., 2011).

Foram empregues dois tipos de técnicas, no referente à recolha de materiais empíricos: a recolha e tratamento de fontes estatísticas e documentais secundárias, públicas ou facultadas pelas empresas consideradas pelo estudo, e a entrevista. No referente às fontes estatísticas e documentais utilizadas, o seu emprego visou localizar a realidade em estudo em termos macro. O foco das entrevistas foi duplo, em função do interlocutor considerado: a procura de caracterização das práticas de expatriação desenvolvidas num quadro de internacionalização da atividade produtiva, no caso de responsáveis de gestão de empresa; a exploração dos atributos caracterizadores de uma expatriação enquanto experiência vivida, identificando eixos de tensão eventualmente existentes entre condicionantes estruturais e orientações da ação individual, no caso de trabalhadores expatriados. Foram realizadas 37 entrevistas individuais, em regime presencial ou remoto: 13 a responsáveis de gestão de empresa, 24 a trabalhadores cuja trajetória pessoal, profissional e familiar estava a ser ou tinha sido pontuada, com maior ou menor intensidade, pela prestação de trabalho num quadro de expatriação (assim definido e referido pelas empresas). Uma caracterização geral dos 24 trabalhadores que foram entrevistados é apresentada na Tabela 2 (cf. Anexo). As entrevistas a responsáveis de gestão de empresa foram presenciais, e tiveram uma duração média de 80 minutos.

Das 24 entrevistas a trabalhadores expatriados, 13 tiveram lugar em regime remoto, via Skype ou interface análogo, sendo que em 4 destes casos o registo assegurado foi apenas áudio, por debilidades de infraestrutura de comunicação. As entrevistas a trabalhadores expatriados tiveram uma duração média de 120 minutos. A título sensibilizador, fez-se uso de um critério de saturação de informação (Strauss et al., 1998) na limitação do número de casos individuais considerado em/para cada empresa. Dada a orientação estratégica da pesquisa e o horizonte de problematização perfilhado, procurou-se constranger, de modo deliberado, o perfil dos indivíduos a entrevistar, à imagem do observado na identificação dos contextos empresariais adotados como instância de análise empírica. Cinco critérios de seleção foram partilhados com o ponto de contacto existente em cada contexto empresarial, tipicamente um gestor de recursos humanos indigitado para o cumprimento da função de regulação do acesso ao campo empírico (gatekeeping) (Shenton et al., 2004). O primeiro destes critérios diz respeito à trajetória pessoal e profissional dos indivíduos, e à intensidade, em termos relativos, de internacionalização desta trajetória. A condição presente em relação à mobilidade (expatriado vs. repatriado) definiu um segundo critério de seleção. A duração da mobilidade atual ou mais recente (em caso de regresso, de repatriação) constitui um terceiro critério: assegurou-se, a este nível, a duração longa (pelo menos doze meses de duração) descrita na literatura (Evans, 2002). O ponto de articulação biográfica (início, expansão, estagnação, desfecho de trajetória), definiu um quarto critério, e, por fim, a condição familiar (existência de filhos, de ascendentes dependentes, de família acompanhante), delimitou um último fator a considerar.

Os materiais empíricos reunidos foram objeto de análise e categorização temática com o apoio de software específico (MaxQDA v.12). Uma perspetiva dupla foi adotada na explanação dos resultados da análise dos materiais empíricos: a) a exploração de regularidades observáveis entre os diferentes contextos e casos considerados (cf. secção Resultados); e b) a discussão de aspetos particulares, salientes além das regularidades observadas (cf. secção Discussão). Na análise que se apresenta, a caracterização das práticas de expatriação em uso e da experiência individual das práticas em uso em cada contexto empresarial, é concretizada com o apoio de ilustrações empíricas procedentes do material empírico que foi recolhido, enunciados cuja função primordial é a elucidação do argumento apresentado a cada momento. Atendendo ao dever e ao compromisso de confidencialidade e de manutenção do anonimato inerente às tarefas de recolha e tratamento de informação empírica, a designação empregue na apresentação dos contextos empresariais e dos indivíduos entrevistados é de natureza fictícia.

Resultados

Na análise realizada ao corpus de 24 experiências individuais (cf. Tabela 2, para uma caracterização geral dos entrevistados) de “estar fora, pela empresa” (Nuno), num contexto de expatriação, emergiu com particular sentido de regularidade e evidência, a caracterização deste quadro de prestação de trabalho como locus de ação e de integração organizacional de acento heterogenético (Deleuze et al., 2004), pelo qual se despoletam ou consumam razões, motivos e interesses individuais divergentes. A este respeito, três fatores, de natureza organizacional ou individual, emergiram como contribuintes para a explicação das diferenças observadas: a) o sentido de difluência e desconjunção emergente das práticas materiais pelas quais as empresas procuram regular uma expatriação enquanto situação de prestação de trabalho; b) as características da trajetória pessoal, familiar e socioprofissional dos indivíduos, em particular, a longevidade da trajetória interna no contexto de inscrição organizacional da expatriação, e a exposição prévia a contextos de internacionalização e de mobilidade internacional; c) a existência de iniciativa pessoal e de procura deliberada de personalização e controlo, por parte dos indivíduos, das práticas e das regras organizacionais.

No plano empírico, observa-se que, para os indivíduos entrevistados, o contacto com as práticas de gestão de uma expatriação e, em sentido amplo, com a especificidade dos seus efeitos e implicações em termos pessoais e relacionais, se pode fazer acompanhar da procura de um sentido de integração e adscrição normativa ou, numa orientação oposta, de um sentido de reserva e de relativismo, da procura de distanciamento (social e cognitivo). Diferentes iniciativas formais de gestão aparentam contribuir para enquadrar uma expatriação como regime diferenciado de prestação de trabalho, propenso à experiência de desconjunção e difluência, por parte dos indivíduos: a existência de uma subsidiação específica, de ordem material e expressiva; uma periodização formal do desempenho de trabalho que sugere inscrição num quadro de ação de carácter temporário e reversível; a descontinuidade funcional, vivida como distante do esperado (acordado) e do até então comum; a existência de uma expectativa de regresso (a um ponto de origem), que opera como fonte de incongruência(s) e conflito potencial de interesses.

Os assim designados indivíduo-conforme e indivíduo-trajetória constituem os dois polos extremos da diferenciação observada. Estas orientações de ação definem e refletem um gradiente de valorização e de apropriação (subjetiva) de uma situação (objetiva) presente, caracterizando-se a ação individual, em termos manifestos, entre a acomodação passiva que se associa a uma consciência de obrigação (Bourdieu, 2002 (1972)) e à persistência de um sentido de integração num coletivo (indivíduo- conforme), e apropriação ativa de uma situação particular como oportunidade de exercício de autonomia pessoal, de autonomização da experiência individual da dependência de variáveis de contexto (indivíduo-trajetória). O indivíduo-em suspensão define um ponto intermédio, uma orientação de ação que se caracteriza pelo compromisso condicional, parentético, em relação à situação de expatriação, e pela procura preferencial de retração ou de preservação num reduto de relação entendido como familiar. As características específicas das três lógicas de ação individual propostas são sintetizadas na Tabela 3 (cf. Anexo).

O indivíduo-conforme: A integração por conformação a um referente externo.

A lógica de ação do indivíduo-conforme caracteriza-se pela procura de adesão a uma atribuição externa, uma orientação que se associa a um sentido de cumplicidade ontológica (Bourdieu, 1989 (1977)), a uma consciência de obrigação (Bourdieu, 2002 (1972)) estabelecida ao longo do tempo, com o trabalho e com a empresa. Nesta lógica, o objetivo da ação dos trabalhadores expatriados é, no essencial, a continuidade, assegurar a subsistência de um sentido de continuidade na relação com o contexto, uma base de reciprocidade dinâmica: em troca de um envolvimento individual sem reservas, a empresa assegura segurança (subjetiva) de emprego e progressão provável no futuro. Trata-se de uma orientação de ação observada em indivíduos (6 em 24 entrevistados) cujas trajetórias internas na empresa onde a experiência de expatriação tem ou teve lugar, se caracteriza por uma longevidade significativa:

“Esta é a explicação do 2012 se ter transformado em 2014, e o 2014 em 2016, que se transformou, entretanto, em 2017. E aqui… eu construo um horizonte: a minha atividade profissional vai acabar onde eu comecei em 1981. Em Angola. É isso que espero que aconteça. Agora tenho um horizonte. Vou cá estando, vou trabalhando… até poder. Há-de chegar um dia, que não sei qual é… vou dando o meu melhor à empresa”. (Aurélio)

Os indivíduos-conforme são expatriados, ou seja, apresentam-se como estando ou sendo expatriados, porque esse é o modo pelo qual os outros (a empresa, os representantes da empresa, em particular) os designam. O subsídio das práticas organizacionais é valorizado, neste sentido, enquanto âncora que permite a subsistência e a ratificação externa de um sentido particular de identidade pessoal:

“(O que é para si um expatriado? Um expatriado é alguém que vai para fora e que tem todos os custos pagos, transporte, casa, escola dos filhos, tudo pago pela empresa. (Considera-se uma expatriada?) No significado da palavra, sim”. (Joana) “Sou sincero, não gosto muito da palavra, mas considero-me um expatriado, e já ouvi algumas pessoas da própria empresa a dizê-la. Quando estava em Moçambique, não gostava da palavra, agora já me habituei a ela”. (Nuno)

Em termos relacionais, a lógica da reciprocidade e da solidariedade democrática (Sainsaulieu, 1985) organiza os laços sociais que são estabelecidos, combinando-se forte contribuição e forte expectativa de retribuição. Os indivíduos são e sentem-se reconhecidos na medida em que se encontram ou não integrados na comunidade, num grupo (atribuído):

“Não sei se fui a primeira, a terceira ou a quinta escolha, para mim é indiferente. Felizmente ou infelizmente, quem está agora cá sou eu”. (Nuno) “No meu caso, uma coisa que facilitou é que eu já tenho muitos anos de casa. Conheço, digamos, o core da empresa, a administração, aquelas pessoas mais antigas. Há pessoas que saem, outras que entram, mas eu fui mantendo um contacto com estas pessoas-chave, que me permitiu gerir as coisas de forma mais ágil, de acordo o mindset da empresa”. (Filipe)

O indivíduo-trajetória: A regulação personalizada, de base afinitária.

O uso ativo, personalizado, de um referente ou decisão externa como recurso subjetivo integrado ou a integrar na própria trajetória pessoal e profissional, define um eixo central de orientação da ação dos indivíduos-trajetória. Trata-se de um foco de ação de pendor individualístico e funcional, que incide sobre a possibilidade de gestão (de escolha) de motivos, de centralidades expressivas, e não sobre a pertença coletiva ou a atribuição herdada:

“Eu não procuro ter com a empresa uma grande relação de amizade. Não sinto a necessidade de fazer parte de algo. Eu represento a empresa, e sinto que o devo fazer com o melhor das minhas capacidades para não deixar a empresa ficar mal, mas não sinto que tenha uma obrigação com a empresa, ou a empresa para comigo”. (Rui) “Quando em Portugal decidi ir para a sede, assumi que ia deixar as obras. Foi um momento de viragem, de conhecimento pessoal, de reconhecimento que não tinha perfil para aquilo. Em Moçambique, houve um esforço muito grande da empresa para que eu retomasse a produção, as obras. Eu não o fiz. Não tinha perfil, não era aquilo que eu queria. Naturalmente, colhi todas as consequências associadas a esta decisão”. (Duarte)

Para estes trabalhadores expatriados (11 em 24 entrevistados), poder escolher, poder personalizar e protagonizar uma escolha, constitui um motivo central na organização das relações estabelecidas com o universo do trabalho e da empresa:

“O meu estilo de vida é uma escolha. Não é fácil, é uma escolha difícil. Acho que não consigo viver assim por muitos mais anos, mas foi o que escolhi para mim neste momento. Possivelmente, o maior driver desta escolha é talvez a ambição”. (Dinis)

Num contexto de expatriação, trata-se de uma orientação de ação que se traduz pela procura de regulação e de personalização da norma instituída a título formal, um intento que se materializa por via de uma apropriação seletiva, de pendor utilitário, das categorias formais de pertença e de referência que se encontram disponíveis. A regra e as categorias formais constituem, para os indivíduos-trajetória, uma possibilidade que se pratica (Tarde, 2007 (1893)), que se realiza à luz de interesses ou motivos individuais, por via da negociação de exceções, da ocupação, tática ou estratégica, de espaços vazios, indefinidos, “por definir” (Xavier)

“(Sente-se um expatriado?) É um termo que a empresa usa. Não o sinto propriamente. Quando fui, não o fiz com a expectativa de ficar ou de voltar a casa. Fui aproveitando as circunstâncias da vida, sem grandes expectativas”. (Duarte) “(Sente-se um expatriado?) A primeira vez, em Macau, foi uma opção minha. A segunda, foi uma opção da empresa, um convite. A palavra `expatriado´ usava-se e usa-se com vergonha na empresa, porque uma empresa verdadeiramente nunca tem expatriados”. (Enzo)

Tipicamente, no caso vertente, os indivíduos-trajetória apenas se apresentam como sendo ou tendo sido expatriados, se tal se afigurar consistente com os objetivos por si visados. Na relação com o contexto, o indivíduo-trajetória visa fazer subsistir a existência de uma escolha pessoal, a possibilidade de personalização das condições de existência proporcionadas pela empresa:

“Para mim, o fundamental (na gestão de carreira) é a necessidade de tomar ação para que as coisas aconteçam mais rápido”. (Rui)

Para os indivíduos-trajetória, há, no essencial, um “percurso” (Rui), uma “caminhada” (Duarte), isto é, uma trajetória. O foco na “caminhada”, na regulação desta, tende a secundarizar propósitos de conformação pessoal à contingência externa. Uma expatriação emerge, neste contexto, como um ato útil que justifica uma adesão situada, utilitária, ancorada numa expectativa de retorno futuro:

“(Sentiu que teve a vida em suspenso?) Não. Foi uma parte da minha caminhada. Neste momento, estou a continuar a caminhar. Independentemente do sítio onde estou, continuo a caminhar”. (Duarte) “Para mim, a minha carreira é o meu percurso, o meu percurso profissional, a minha experiência pessoal, com a qual eu concorro para um novo trabalho, por exemplo”. (Rui) “Sempre fui uma pessoa ambiciosa, profissionalmente. Em Portugal, olhando para a minha posição, o futuro era pequeno. Tinha chegado ao que considerava ser o fim da carreira técnica (…). A ideia de que tinha parado em Portugal, a expectativa de haver lá fora uma nova experiência, foram motivações”. (Isaac)

Neste sentido, procedente da exaltação de um individualismo de tipo possessivo, uma experiência de expatriação tende a ser perspetivada como uma aquisição, como um “pacote de vantagens” (Rui). Ser ou ter sido (um) expatriado é uma condição perspetivada não como um fim, mas sim como um recurso, um meio de aceder a outras situações, a novos veículos de expressão, de apresentação pessoal. Neste sentido, o globalismo e a inter-territorialidade são apresentados como atributos (de caracterização de uma trajetória pessoal, familiar e profissional) que conferem (e representam) uma condição de ação distintiva, alargada:

“Tenho vindo a perceber o mundo como sendo mais pequeno, que as distâncias são muito relativas. Basicamente, tenho vindo a perceber que consigo estar bem em todo o lado, em qualquer lugar. Tenho capacidade para me adaptar”. (Gaspar) “Eu perdi a minha casa quando vim para Portugal pela primeira vez. O meu sentido de casa é em Moçambique, foi lá que eu nasci e que me criei. A noção de casa, para mim, morreu e ficou em Moçambique. A partir daí… tudo é válido”. (Enzo)

O indivíduo-em suspensão: um compromisso condicional na relação com a situação presente

No decurso do trabalho analítico realizado, foi possível observar a existência de um conjunto de indivíduos para quem a experiência de expatriação correspondeu a um momento de descontinuidade inelutável, cujo decurso ou desfecho não foi ou não se antecipa poder ser propriamente controlado: trata-se dos assim designados indivíduos- em suspensão . Os casos individuais analisados apresentam, em termos gerais, uma reduzida internacionalização prévia de trajetória pessoal, familiar e profissional. Para 5 dos 7 casos individuais contemplados nesta notação, a experiência de expatriação representou a primeira experiência de mobilidade internacional associada à prestação de trabalho, tratando-se de uma circunstância tida como não tendo sido inteira ou propriamente visada:

“Na realidade, eu nunca me imaginei a ter uma experiência de mobilidade internacional”. (Violeta) “Ir para fora era possível, mas foi inesperado, confesso. Não procurava nada deste género. Foi um acaso. Aconteceu”. (Francisco) “Penso que nada no meu percurso influenciou a minha vinda para onde estou. Há pessoas que indicam abertamente que não se importam de viajar, de ir para fora. Há muitas empresas que precisam de ajuda, porque não podem enviar o trabalho para Portugal. O meu caso não foi exatamente assim”. (Filipa)

Trata-se, importa reter, de uma orientação apensa ou decorrente da exposição concreta a um quadro de prestação de trabalho entendido como particular (uma expatriação), que substituiu, nos casos considerados, uma orientação própria de um indivíduo-conforme, “pessoas da casa” (Carlos) cujas condições e oportunidades formais de reconhecimento interno (visado) se encontram temporaria ou permanentemente suspensas. Os indivíduos-em suspensão apresentam uma orientação da ação que se relaciona com a perceção de estagnação da trajetória profissional, ou com a existência de um sentido de forte dependência face ao contexto. À imputação, de cariz utilitário, de centralidade à experiência de expatriação pelos indivíduos-trajetória, opõe-se a sua subalternização nos indivíduos-em suspensão, que se justifica pelo desfasamento existente entre a definição de um sentido de si oriundo de uma história anterior, e as possibilidades de projeção deste no futuro. Para um indivíduo-em suspensão, ser ou ter sido (um) expatriado constitui uma situação que é apresentada como dissociada das possibilidades de controlo pessoal. A situação de expatriação é definida como “um acaso” (Francisco), o produto de “uma circunstância” (Mário). Há uma experiência de “vida suspensa” (Tiago), de “desenraizamento” (Mário). Contam-se “os dias que faltam” (Mário). Subsiste um sentido de desenquadramento, de obstaculização. Regista-se, de diferentes modos, a existência de uma “suspensão”, de uma “apneia” (Tiago):

“Acho que mudei bastante. Sinto-me outro. Noto que quando chego a Portugal, estou sempre desenquadrado. Apesar de existir um grande contacto pelas redes sociais com a família e com os amigos, pelo skype, nunca é a mesma coisa. No Malawi, no Perú, estou e estava enquadrado pelo trabalho. Conhecia toda a gente. Mas sinto que o meu lugar não é lá, estou sempre à espera de voltar a Portugal. Mas quando volto, sinto que não por dentro das conversas, do que se passa no país”. (Tiago) “Apesar do contacto, eu não estou em Portugal. Há sempre coisas que se perdem: jantares, aniversários, eventos. Aqui, não temos grande relacionamento com os locais. Acaba por não haver uma raiz – nem aqui, nem lá. É como se estivéssemos em suspenso”. (Tiago) “Há o caso de não se investir na vida aqui, por não se saber por quanto tempo se está cá, e não se investir na vida lá, por não se ter a vida lá. No meu caso é assim, não é assim para toda a gente. Há pessoas que vêm pontualmente, outras que trazem a família. Eu ainda estou a pagar a renda em Portugal. As minhas coisas ainda estão lá, na minha casa, mas não me lembro da última vez em que dormi lá”. (Filipa)

A possibilidade de controlo e de decisão individual encontra-se constrangida por um sentido de dependência (percebida) face ao contexto. Insinua-se, de modo manifesto ou dissimulado, um sentido geral de retraimento na relação com o outro:

“No Brasil, eu relacionava-me comigo mesmo. (…) A semana era de trabalho. Há pessoas que gostavam de convívio… eu também gosto, mas se tiver de ficar sozinho, não me apoquenta muito”. (Francisco) “Penso que, quando se vai sozinho, quando não se tem rede lá, se tenta criar uma rede fictícia, forçada, com os outros expatriados. (Fictícia?) São as pessoas que estão ali”. (Violeta) “Eu vivia em Coimbra. Sempre considerei que vivia em Coimbra, nunca vivi em Marrocos. Nós não tínhamos residência em Marrocos. Fomos turistas durante três anos. Vivemos três anos num hotel. Sentíamos que não fazíamos parte daquela realidade, da comunidade. Sentíamo-nos portugueses como se estivéssemos em Lisboa. Não tínhamos apetência para fazer uma vida marroquina”. (José)

A escolha individual não é visada ou não é possível. A mudança é percebida como inexequível, na situação presente:

“Quando regressei, não havia nada pensado. Absolutamente nada, zero. Esta é que é a parte mais estranha: as mudanças que foram feitas durante o alongamento do projeto”. (José)

Por esta razão, observa-se a existência de uma relação ambivalente com as políticas formais da empresa, marcada por um sentido de reserva que se pretende profilática, protetora, sugerindo que se trata de um posicionamento constituído por referência defensiva, pela procura de distanciamento, de retraimento ou de preservação resiliente, num contexto de dependência estrutural percebido como adverso:

“Cada vez mais, quem vai, vai cada vez mais sine diem, com perspetiva indefinida de regresso. Há um espectro de continuidade, de enraizamento onde se estiver. A empresa diz isto, numa ótica de enraizamento: `Temos de ser peruanos no Peru, angolanos em Angola´. Eu tenho uma dificuldade em encarar isto. Quando eu fui, quase que contava os dias que faltavam para regressar”. (Mário)

Ao invés do observado para os indivíduos-conforme e para osindivíduos- trajetória, uma expatriação não é valorizada pelos indivíduos-em suspensão como uma obrigação, um desafio pessoal ou como uma oportunidade de diferenciação. Em sentido próximo, de modo díspar ao observado para os indivíduos-trajetória, regista- se que, para os indivíduos-em suspensão, a mobilidade e a inter-territorialidade não são valorizadas como condição de ação alargada, expansiva, mas sim como condição de ação descentrada, dispersiva, como motivo de “desenraizamento” (Mário):

“Foi uma experiência. Para mim, foi sempre uma experiência de desenraizamento. Sabia, grosso modo, para o que ia, mas foi sempre para mim um desenraizamento. A expatriação, para mim, é um desenraizamento. No meu caso, consegui recuperar a minha raiz cá. Muitos têm de enraizar noutra parte. O que eu não concebo para mim. Esta é uma realidade muito comum, muito presente, hoje em dia, também nesta empresa. A realidade é esta: ou há raízes para a empresa, ou há raízes para o colaborador. A conciliação não é possível”. (Mário)

Discussão

No contexto da literatura organizacional e gestionária, os processos de internacionalização das empresas tendem a ser considerados como uma realidade homogénea, como uma inevitabilidade de efeito benigno (Costas, 2013). Trata- se de uma perspetiva de análise que influencia, em certa medida, domínios de problematização contíguos, entre os quais se salienta a mobilidade, a profissão ou a carreira internacional, ou a emergência, tomada como necessária, desejável e inevitável, de elites cinéticas, um fenómeno que se considera estar em expansão (Peiperl et al., 2007; Dickmann et al., 2011). Tende a tomar-se igualmente como inequívoca, como natural, a valorização de orientações cosmopolitas (Tung, 1998), desterritorializadas, de apego à mobilidade física, geográfica, internacional, como a que é tipicamente carreada por um processo de expatriação. Em sentido próximo, em Portugal, em empresas em processo de internacionalização, o recurso a uma expatriação tende a constituir uma resposta organizacional à necessidade de preenchimento de posições num país de destino com elevado grau de especialização, uma via de desenvolvimento pessoal e profissional ou de ingresso a numa carreira internacional, visada pelos indivíduos e/ou proporcionada pelas empresas. Em termos empíricos, é possível identificar estudos onde as práticas de expatriação surgem enformadas por um sentido de seletividade, de distintividade, dando forma à noção de que a prestação de trabalho em contexto de expatriação não é “para qualquer um” (Câmara, 2011: 59).

Os resultados da presente pesquisa apontam num sentido diverso do enunciado, salientando a possibilidade da experiência de ser (um) expatriado, numa e por uma empresa, não constituir uma realidade única, comportando variações difíceis de compaginar, de controlar, na íntegra, por uma política de empresa. Na análise realizada, a experiência (Dubet, 1996 (1994)) emerge como figura de síntese, um signo capaz de designar uma situação e um enquadramento situacional na sua especificidade e na sua globalidade, articulando elementos de contexto com atributos caracterizadores da ação individual. Falar de uma experiência constitui, para os indivíduos entrevistados, um modo de nomear um acontecimento particular, distante do que era até então (para si) comum. Registam-se diferenças, portanto, no modo de apropriação individual de uma situação particular de prestação de trabalho. E há diversidade, variação – quase infinitesimal, recuperando os termos de Tarde (2007 (1893)) – nesta diversidade: são diversos, em rigor, os nomes próprios empregues na designação das experiências vividas.

As três lógicas ou tipos de experiência individual identificadas derivam de práticas, de atividades desenvolvidas pelos indivíduos, que se declinam, em termos empíricos, em diferentes fulcros e predicados de ação: conformista, utilitária, defensiva. O indivíduo-conforme, o indivíduo-trajetória, o indivíduo-em suspensão, respetivamente. A diferenciação observada atribui uma pertinência política, substantiva, à ação dos indivíduos, que decorre da possibilidade de reorganização, em termos táticos ou estratégicos, de um contexto de ação propenso à difluência e ao paroxismo, que assinala a possibilidade de fazer corresponder uma expatriação à possibilidade de existência de “uma economia do lugar próprio” (Certeau, 1974: 116), que interroga conceções de estabilidade, de presciência, de perenidade das instituições (empresas, no caso vertente), de homogeneidade das experiências individuais dotadas de inscrição/génese institucional e organizacional, e de unicidade das práticas mantidas por instituições e pelos indivíduos, em termos sincrónicos e diacrónicos, na relação com uma situação particular de prestação de trabalho.

Em contextos empresariais específicos, a diferenciação de experiências individuais pode constituir um foco de tensão, que decorre, no essencial, de desencontros, por vezes imprevistos, por vezes ruidosos, por vezes inaudíveis, entre as necessidades organizacionais e as expectativas e motivações individuais. Esta é uma circunstância sensível, em termos relacionais e subjetivos, e a sua consideração afigura-se incontornável em termos de gestão, na medida que, para muitas empresas, os resultados de um processo de internacionalização depende do recurso bem-sucedido a práticas de expatriação de trabalhadores, e, para muitos trabalhadores, a manutenção de uma relação contratual, do desenvolvimento de uma carreira organizacional, apresenta-se condicionada, no momento presente, pela angariação (e pela demonstração) de experiência de prestação de trabalho em contexto internacional.

Conclusões

Uma expatriação define um domínio de experiência pessoal associado à prestação de trabalho num contexto internacional, que constitui um espelho e um veículo de processos contemporâneos de globalização económica. Como sugerido pelo presente artigo, estes processos têm vindo a promover a diferenciação das experiências individuais de prestação de trabalho no seio das empresas, por via da constituição de quadros de ação de acento heterogenético (Deleuze & Guattari, 2004), de onde tendem a sobressair implicações difluentes, uma circunstância resistente a intuitos de controlo unificante e encapsulamento de natureza gestionária. Como sugerido, enquanto experiência vivida, ser (um) expatriado não significa necessariamente homogeneidade e conformidade, crescimento. Há outros sentidos angulares que são promovidos: o cálculo, a estratégia, o distanciamento. O indivíduo-conforme, o indivíduo-trajetória, o indivíduo-em suspensão, respetivamente.

Ir para fora, trabalhar fora, por uma empresa é, cada vez mais, para cada vez mais indivíduos, um acontecimento frequente, visado ou não, procedente de um desejo deliberado, de uma circunstância tolerada, de uma fuga ao espectro do desemprego. Pelo indicado, importa enfatizar que são várias as formas pelas quais os indivíduos podem ir para fora, por uma empresa. Várias formas de viver e de dizer a experiência de ir para fora, de ir trabalhar para fora, por uma empresa. Nem todas as experiências individuais apresentarão um contorno plácido, dourado, sedutor. Nem todas as experiências darão lugar a relatos apocalípticos.

Pelo observado no presente artigo, importa salientar que a noção de mobilidade como oportunidade (de ganhar mundo, de sair da zona de conforto) que surge apensa, no plano do discurso gestionário e organizacional, a uma experiência de expatriação, apresenta uma face difluente, propensa à rangência, ao paroxismo, à conciliação imperfeita. A diferenciação das experiências vividas registada pela pesquisa decorre do modo de abordar esta difluência, a descontinuidade contextual que a inscrição numa situação de expatriação pode propiciar e implicar para um indivíduo. Neste sentido, é possível referir que uma expatriação define uma prática própria do seu tempo, ao fazer reverberar, num quadro de interação específico, atributos característicos da ação organizacional e socioeconómica contemporânea. A tensão, a heterogeneidade, a ambiguidade. A circulação, a fluidez, o fluxo, a contingência.

 

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ANEXOS

 

Anexo

Anexo

Anexo

 

Endereço de correspondência João Vasco Coelho. Endereço de correspondência: Edifício Sedas Nunes, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa. E-mail: vasco.jcoelho@gmail.com

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