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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.36  Porto Dec. 2018

https://doi.org/10.21747/08723419/soc36a1 

ARTIGOS

Desvendando a praxe: desafios de uma incursão etnográfica

Unveiling praxe: challenges of an ethnographic approach

Dévoiler praxe: les défis d’une incursion ethnographique

Desvendando praxe: desafíos de una incursión etnográfica

Inês Maia

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

 

Endereço de correspondência

 


RESUMO

A praxe é um fenómeno central no quadro das sociabilidades estudantis universitárias. Estudámos a sua eficácia socializadora, como principal mecanismo de integração, a partir de dois estudos de caso na Universidade do Porto. Esboçamos, neste artigo, uma reflexão em torno desse processo de pesquisa, salientando os desafios da incursão etnográfica em que este se ancorou. Problematizando, em particular, a observação como técnica, concluímos acerca da sua pertinência: como meio de tonar inteligíveis as dimensões do fenómeno; por ter permitido o confronto entre práticas declaradas e práticas observadas; pela riqueza ao nível da apreensão de práticas e significados atribuídos.

Palavras-chave : praxe; etnografia; observação

 


ABSTRACT

Praxe is a central phenomenon in the framework of the university student rules of sociability. We studied its ability to interact socially, as the most important mechanism of integration, based on two case studies of Oporto University. We outline in this article a reflection about this research process, highlighting the challenges of the ethnographic incursion into which it is anchored. Using observation as a technique, we concluded about its relevance: as a means of making the dimensions of the phenomenon intelligible; allowing the confrontation between stated practices and observed ones and the richness in understanding practices and its meanings.

Keywords : praxe; ethnography; observation

 


RÉSUMÉ

Praxe est un phénomène central dans le cadre des sociabilités étudiantes universitaires. Nous avons étudié son efficacité de socialisation, comme le principal mécanisme d’intégration, sur la base de deux études de cas à l’Université de Porto. Nous décrivons, dans cet article, une réflexion sur ce processus de recherche, en soulignant les défis de l’incursion ethnographique dans lesquels elle était ancré. En posant les questions sur l’observation en tant que technique, nous concluons sur sa pertinence : comme un moyen de rendre intelligibles les dimensions du phénomène; pour permettre la confrontation entre les pratiques déclarées et les pratiques observées; par la richesse au niveau de l’appréhension des pratiques et des sens attribués.

Mots-clés : praxe; etnographie; observation

 


RESUMEN

Praxe es un fenómeno central en el marco de las sociabilidades estudiantiles universitarias. Hemos estudiado su eficacia socializadora, como principal mecanismo de integración, a partir de dos estudios de caso en la Universidad de Oporto. En este artículo esbozamos una reflexión en torno a este proceso de investigación, resaltando los desafíos de la incursión etnográfica en que éste se ancló. Problematizando, en particular, la observación como técnica, concluimos acerca de su pertinencia: como medio de tonar inteligibles dimensiones del fenómeno; por haber permitido la confrontación entre prácticas declaradas y prácticas observadas; por la riqueza al nivel de la aprehensión de prácticas y significados atribuidos.

Palabras clave : praxe; etnografía; observación

 


1. Introdução1

A praxe é hoje um fenómeno dominante no meio universitário português, central no quadro de sociabilidades estudantis. Propusemo-nos pensar este fenómeno, no contexto organizacional onde toma lugar, a universidade, e privilegiando como principal ângulo de análise a integração dos estudantes aí recém-chegados, pelo papel hegemónico que a praxe desempenha hoje nesse processo. Estudámos, então, a praxe a partir das perspetivas dos seus atores, num exercício de problematização do fenómeno segundo os seus discursos, compreendendo as suas experiências imediatas e a narrativa que constroem sobre essas.

Dedicámo-nos ao estudo deste fenómeno em contexto universitário portuense, centrando-nos em dois estudos de caso, a saber, as Faculdades de Engenharia (FEUP) e de Letras (FLUP), ambas integrantes da Universidade do Porto.

Não se pretendendo um registo detalhado das diferentes fases e operações teórico-metodológicas que definiram a pesquisa, este texto propõe uma reflexão em torno da incursão etnográfica em que esta se ancorou. Ponderamos os desafios inerentes a esta opção metodológica, com especial destaque para a observação como técnica de recolha e tratamento de informação privilegiada – dos obstáculos encontrados aquando do primeiro confronto com o terreno às oportunidades descortinadas pelo próprio exercício etnográfico. Recorremos, sempre que considerado pertinente, a notas de terreno ilustrativas.

2. Breve contextualização: o estudo do fenómeno da praxe

Apesar de explorado em diferentes trabalhos, enquadrados por inúmeras disciplinas e com objetivos, níveis de análise e metodologias mobilizadas muito distintas, o fenómeno da praxe em Portugal tem sido objeto pouco estudado. Destacamos a tese de mestrado de Ribeiro (2001) sobre estas práticas na Universidade do Minho, os artigos de Frias (2000, 2003, 2004) e os mais recentes contributos de Estanque (2016) e do estudo nacional coordenado por Lopes e Sebastião (2017). De apontar, ainda, a publicação de vários artigos que, de formas diferentes e com níveis de aprofundamento também distintos, proporcionam contributos sobre o fenómeno. Acrescentam também pistas trabalhos centrados noutros objetos de estudo – a título de exemplo, sobre a resistência do movimento estudantil durante o Estado Novo (Frias, 2004; Cardina, 2008a e 2008b) ou sobre o universo académico coimbrão (Cruzeiro, 1979; Frias, 2000 e 2003; Estanque, 2008) - onde se encontram menções às práticas praxistas ou ao universo mais amplo das sociabilidades estudantis universitárias.

Neste exercício de enquadramento do objeto de estudo, questionou-se ainda a pertinência de tentar situar conceptualmente a praxe.

Segundo Cruzeiro (1979), o termo praxe, do ponto de vista etimológico, designa prática ou execução de uma ação, tendo sido difundido na língua portuguesa através do vocabulário jurídico, dizendo respeito a práticas de um processo organizadas segundo determinada regulamentação. Assim, é de realçar que se associou desde logo a este conceito, ou mais precisamente, às práticas a que se referia, uma conotação normativa. A praxe diria então respeito a uma prática regulada, ao modo como se deve proceder e marcada, ainda que com margens de variação, por um certo grau de formalização. A mesma autora defende que o núcleo da praxe é a relação entre quem praxa e é praxado (veteranos-caloiros) e o seu âmbito toda a vida académica. Dias e Sá (2013) recuperam esta dupla aceção, que comporta uma noção mais específica de praxe e outra mais ampla, como uma espécie de modus vivendi característico dos estudantes. Para Ribeiro (2001), o conceito de praxe subdivide-se em três significados: a praxe como o conjunto de atividades a que os caloiros são sujeitos pelos doutores, numa relação de submissão-dominação; a praxe como o ciclo ritual que vai do início do ano letivo até ao Enterro da Gata (no caso da Universidade do Minho); a praxe como representação das tradições e usos da Academia. Frias define a praxe com um conjunto de tradições académicas, composta por “diversas humilhações, mais ou menos ritualizadas, que os estudantes mais antigos (…) impõem aos mais novos”, afirmando que esta se refere igualmente a “brincadeiras por vezes violentas, a comportamentos lúdicos e paródicos” (Frias, 2003:82). Tavares afirma a este respeito que, “(…) apesar da praxe dos caloiros parecer assumir uma multisignificância, poderíamos [defini-la] como um conjunto de actividades que os doutores (…) planeiam e executam junto dos caloiros (…), em que a relação dominação-submissão está explicitamente presente” (Tavares, 2008:371).

Frias (2003) defende para o estudo da praxe a mobilização do conceito de fenómeno social total (Mauss, [1950] 2011). Compreende estes fenómenos como aqueles que exprimem em simultâneo e de uma só vez todos os tipos de instituições (religiosas, jurídicas, morais, políticas, familiares, económicas, estéticas). No caso do fenómeno em estudo, esta proposta de leitura parte da assunção da praxe como um “fenómeno complexo e multiforme [que] participa do ritual, do lúdico, do festivo, do jurídico, do económico, do artístico, do político; associa práticas, objectos, uma gíria, insígnias, gestos, palavras, literaturas, formas gráficas, elementos sonoros; implica inúmeros indivíduos, grupos, entidades e organismos” (Frias, 2003:82). A partir da proposta teórica de Durkheim, podemos ainda compreender a praxe como uma instituição social, “no sentido em que corresponde a um conjunto de crenças, de ideias e modos de conduta estabelecidos e partilhados pela sociedade” (Estanque, 2016: 95).

3. A etnografia como modo de apreensão do real: questões metodológicas

A opção por uma metodologia de cariz qualitativo prendeu-se, essencialmente, com o objetivo de explorar um fenómeno dinâmico, onde os sujeitos e as suas subjetividades devem ser ponderados de forma contextualizada e compreendidos como parte de um todo. Foi ancorada nesta conceção, da importância dos atores, dos seus comportamentos e das interpretações que deles fazem, e assumindo a praxe como complexa e multidimensional, que se colocou a pertinência de uma incursão etnográfica – a abordagem privilegiada para a compreensão do fenómeno de forma holística (Silva e Pinto, 1986; Báztan, 1995; Magnani, 2002; Guerra, 2006; Melhuus, 2010; Bryman, 2012; Duneier, 2014).

A partir da proposta de Magnani (2002), sistematizamos alguns dos principais pressupostos da etnografia: (1) pela especificidade do conhecimento proporcionado, permite captar dimensões dos fenómenos, que passariam despercebidas se estudadas exclusivamente a partir de um olhar macro social; (2) a experiência etnográfica implica obrigatoriamente efeitos sobre o investigador – este não apreende apenas os significados que os atores atribuem às suas ações, devendo, pelo contrário, ser capaz de, ao compreendê-los e descrevê-los segundo os seus termos, atestar a sua lógica e incorporá-los de acordo com os seus instrumentos teórico-metodológicos; (3) supõe o pressuposto de que investigador e investigado participam de um mesmo plano – ambos são dotados dos mesmos processos cognitivos que lhes permitem uma compreensão mútua, independentemente da distância que possa marcar os seus universos culturais; (4) a etnografia não se reduz a uma técnica, nem deve ser entendida como um conjunto de procedimentos – mobilizando várias técnicas e ancorando-se em diversos procedimentos, consoante as exigências de cada pesquisa, a etnografia é um modo de aproximação e apreensão do real. Soma-se a esta noção o pressuposto da totalidade, que, sucintamente, é apontado pelo autor nos seguintes termos: “uma totalidade consistente em termos da etnografia é aquela que, experimentada e reconhecida pelos atores sociais, é identificada pelo investigador, podendo ser descrita em seus aspectos categoriais: para os primeiros, é o contexto da experiência, para o segundo, chave de inteligibilidade e princípio explicativo” (Magnani, 2002:20). Por sua vez, “a natureza da explicação pela via etnográfica tem como base um insight que permite reorganizar dados percebidos como fragmentários, informações ainda dispersas, indícios soltos, num novo arranjo” (Magnani, 2002:17), arranjo esse que não é a reprodução direta do investigado, nem aquele com que o investigador iniciou o processo de pesquisa. Este novo arranjo é a articulação de ambos – suscitado pelo do investigado, mas menos preso às particularidades da sua realidade concreta; aprofundado o do investigador, que soma à sua proposta inicial a experiência no terreno. É deste modo que Magnani defende a etnografia como um olhar de perto e de dentro, capacitada para refletir dimensões excluídas dos enfoques que seriam, por oposição, de fora e de longe.

No caso da nossa pesquisa, releva clarificar que não se tratou de etnografia no sentido pleno do termo, dado não termos cumprido uma das suas premissas básicas – a longa permanência do investigador no terreno. Deste modo, dedicámo-nos a um exercício ou incursão etnográfica2. Privilegiámos ainda assim procedimentos consensualmente centrais da etnografia (Baztán, 1995): prioridade ao contacto direto no terreno, a entrevista e a observação3 como técnicas privilegiadas, recurso à fotografia e ao registo sistemático das práticas observadas, elaboração de estudos de caso e de retratos dos atores, estudo de discursos mas também de formas de comunicação não verbal. Além disto, no cumprimento de outra exigência do exercício etnográfico, o processo de pesquisa foi marcado pela flexibilidade e articulação de tarefas, consequência também das características próprias do fenómeno.

Como apontado acima, delimitou-se a pesquisa à FEUP e à FLUP. Importa mencionar que inicialmente se somariam a estas duas Faculdades, a Faculdade de Belas Artes (FBAUP)4, não tendo sido, contudo, possível a condução deste terceiro estudo de caso por motivos que discutiremos adiante.

Considerando singulares as características de cada contexto, não nos conduzia nenhuma intenção de comparação direta entre estes. Dedicámo-nos, portanto, a dois estudos de caso (Coller, 2000), assumindo o valor intrínseco de cada um, mas deslindando na descoberta destes exemplos particulares as regularidades dos modos de funcionamento e das lógicas da praxe. Procurámos, com estes exemplos, uma representatividade social , que permitisse encontrar conclusões pertinentes e fundamentadas sobre o fenómeno em si (Guerra, 2006); trata-se de uma representatividade analítica, que se obtém através do estudo de um caso apropriado ou elucidativo ao tipo de discussão teórica a que nos propomos (Coller, 2000). Ou ainda, de acordo com a proposta de Magnani, “trata-se de uma totalidade empiricamente definida, mas que, capaz de ter os elementos que os estruturam reconhecíveis como padrões, pode ser descrita, formalizada, constituindo um modelo mais geral. Aponta para uma lógica que transcende o contexto original, com poder descritivo e explicativo” (Magnani, 2002:25).

Do ponto de vista das técnicas de recolha e tratamento de informação, elegemos a entrevista semi-directiva como instrumento privilegiado, opção metodológica sobre a qual não nos debruçaremos neste texto. Dado o carácter do fenómeno em estudo e a lógica etnográfica com que encarámos esta pesquisa, a observação impôs-se como outra técnica incontornável (Peretz, 2000). Movia-nos o objetivo de encontrar dados com significado sociológico, passíveis de recolha, classificação e análise, compreendendo a observação como o meio mais profícuo para a recolha desta informação em contextos tendencialmente fechados, muito regulamentados ou institucionalizados, que apresentam ao mundo exterior uma imagem rigorosa e bem estudada de si (inclusivamente dissimulada), como é o caso do objeto em estudo.

4. Uma incursão etnográfica

4.1 O confronto com o terreno e a observação entre obstáculos e potencialidades

Anteviam-se dificuldades no plano do trabalho de campo, que os primeiros contactos confirmariam. A praxe tem uma estrutura tendencialmente fechada, é uma prática muito regulamentada internamente e vive intensamente do pressuposto de que só quem a experiencia, a poderá compreender, características que se encontram hoje claramente acentuadas, reflexo do processo de mediatização de que o fenómeno foi alvo nos últimos anos. Partimos, por isto, para o terreno cientes dos entraves que nos poderiam vir a ser colocados. A desconfiança perante os reais objetivos da pesquisa que tentávamos conduzir, a par do desejo de fechamento perante qualquer olhar exterior, fruto da convicção de que a «verdadeira praxe» tem vindo a ser deturpada por quem a tenta perceber «a partir de fora», revelaram-se obstáculos difíceis de ultrapassar e, num dos casos, intransponível. Foi o caso da praxe da FBAUP, terceiro estudo de caso ao qual nos queríamos ter dedicado e que trazemos a esta reflexão como exemplo das dificuldades que o estudo deste fenómeno comporta.

Importa notar que nunca tendo sido despoletado um confronto explícito por parte dos representantes da casa praxista em causa (de singularizar inclusivamente o primeiro interlocutor, um dos principais impulsionadores da praxe naquele contexto, que apresentou disponibilidade e abertura), as conversas estabelecidas foram marcadas pela desconfiança em relação ao objeto de estudo desta pesquisa e ao interesse particular por aquele contexto. Nem o facto do meu contacto com estes estudantes ter sido estabelecido precisamente por esse impulsionador da praxe naquele contexto suavizou o confronto – vinha referida por uma figura de referência naquele universo, mas continuava a representar uma «ameaça». A disponibilidade desses estudantes rapidamente passou a estar circunscrita a apoios que viéssemos a precisar, mas que não envolvessem o estudo do fenómeno naquele contexto. A resistência era clara, verbalizada e sustentada nos seguintes argumentos: o facto do fenómeno ser muito recente na FBAUP não permitiria aos seus intervenientes falar de regularidades; trata-se de um contexto onde a praxe é muito criticada pela maioria da comunidade (professores, estudantes e órgãos de gestão), o que inibiria a partilha de testemunhos por medo de represálias; receio de que a informação partilhada viesse a ser deturpada; a crença convicta de que não seria possível tirar conclusões acerca do fenómeno naquele contexto.

A praxe na FBAUP desapareceu, deste modo, do nosso leque de possibilidades investigativas pois percecionámos a inevitabilidade do insucesso: o acesso estava negado por parte de quem se encontrava em lugares cimeiros da hierarquia, o que facilmente influenciaria a disponibilidade de outros estudantes, sobretudo tendo em conta o facto de este ser um contexto em que a prática se encontra circunscrita a um grupo muito reduzido (segundo os próprios, estariam a participar na praxe apenas 8 estudantes primeiranistas). Como partilha Estanque, dando nota da sua incursão numa fábrica de calçado, as dúvidas e especulações que, por vezes, nascem em torno do investigador e do trabalho que se encontra a desenvolver não devem ser menorizadas – “é o momento em que aquilo que os «observados» vêem é mais significativo do que o próprio olhar do «observador»” (Estanque, 2002:71); é o momento em que se revela um muro que, em alguns casos, se pode tornar intransponível. Foi o caso.

Outro dos obstáculos encontrados aquando das primeiras incursões diz respeito à observação. A praxe tende a ocorrer em locais isolados, para onde os estudantes se deslocam com esse objetivo definido, onde a nossa presença é notada e serve de propósito à alteração de comportamentos. Problematizando adiante a centralidade da observação (particularmente, da observação participante) no quadro de uma etnografia, devemos reter por agora que, tendo sido nosso intuito não interferir nas atividades, nem criar situações de confronto com quem nestas participava, optámos por observar apenas as que decorriam em espaços públicos expostos (a título de exemplo, à porta da FLUP, nas imediações da FEUP ou em jardins e praças públicas da cidade) e cerimónias simbólicas do universo em estudo (cortejos da latada e da queima das fitas, monumental serenata, missa da bênção das pastas, imposição de insígnias). Não obstante, importa registar que, mesmo em espaços públicos como os mencionados, se se encontrassem poucos transeuntes, éramos facilmente alvo de algum tipo de reconhecimento.

Mencionemos, ainda, que foi solicitado de forma direta aos representantes das casas praxistas com quem foi possível estabelecer contacto (incluindo ainda os da FBAUP) que fosse aberta a possibilidade de aproximação ao terreno, de forma a que apreendêssemos a praxe naquilo que é a sua dimensão mais regular ou rotineira (o chamado «dia de praxe», que habitualmente se traduz numa tarde de atividades com regularidade semanal). A resposta foi sempre negativa, sustentando-se em dois tipos de argumentos: o desejo de não expor os estudantes praxados a um olhar exterior e a inevitável incompreensão por parte de quem se «encontra de fora» acerca dos reais objetivos das atividades. De referir ainda que, apesar de negativas, as respostas começavam invariavelmente com um “não me importava nada de te deixar assistir, mas…” ou “não temos nada a esconder, mas…”, o que espelha a compreensão da necessidade de uma certa sofisticação ao nível dos argumentos – os praxistas não podem, assim, ser acusados de negar o acesso às atividades sem justificação; eles escudam-se no argumento de que estão apenas a proteger os seus.

Como apontámos acima, a observação participante, eleita como técnica incontornável em qualquer processo etnográfico, não se colocou no quadro desta incursão, dado nunca nos termos encontrado na posição de coatores. Esta «opção», se é que se pode atribuir alguma capacidade de decisão a respeito desta questão, impôs-se por duas ordens de razões. Antes de mais, porque participar do fenómeno em posição de ator ou coator implicaria ser praxada (o que não se colocava de todo, dado não ser estudante de 1.º ano, nem me encontrar em situação equivalente) ou praxar (o que também não era uma hipótese, dado que, para se praxar é necessário, antes de mais, ter sido praxado, requisito que não possuía). Somar-se-iam a estas questões de cariz prático, outras de ordem ética, que, por nem sequer se terem colocado, não importa endereçar.

Deste modo, diríamos ter conduzido, segundo Fernandes (2002), observações diretas distanciadas e em situação de anonimato – não sendo, contudo, este anonimato pleno, no sentido em que, de algum modo, era feita a nossa identificação como «elementos estranhos». Importa aqui compreender que aos obstáculos de acesso colocados logo aquando do confronto com o terreno, somou-se recorrentemente o claro desconhecimento acerca da observação como técnica de investigação, geralmente assumida como meio de ajuizar moralmente o observado a partir dos valores do observador. Continuaram, portanto, a ir sendo colocados entraves a uma observação que não sendo participante, exigia, ainda assim, proximidade no espaço e algum nível de interconhecimento. Compreendida a perda substancial de informação que tal terá implicado, estando convictos da existência de práticas só passíveis de apreender através da observação, assumiu-se a opção de não entrar em confronto directo com nenhum praxista, pois antevíamos a colocação posterior de mais entraves à pesquisa, o que poderia ter implicado consequências irreversíveis.

Assim sendo, observaram-se atividades de praxe nas imediações das instituições de ensino superior e em locais públicos e expostos, reuniões informais para a preparação de atividades e cerimónias de cariz oficial. As observações realizadas encontraram-se ancoradas numa grelha de pesquisa observacional composta pelas seguintes categorias de análise: (I) atividade/cerimónia a observar; (II) indivíduos; (III) espaço; (IV) atividades; (V) símbolos; (VI) vestuário (e outros acessórios); (VII) dimensão verbal e cânticos; (VIII) dimensão física e o corpo; (IX) consumo de álcool; (X) interações; (XI) violência e poder. Em todas as categorias de análise foram tidas em atenção variações ao nível do género e do lugar ocupado na hierarquia da praxe5. As categorias foram construídas de modo a serem amplas, de maneira a poderem ser aplicáveis, e suficientemente flexíveis, à diversidade de situações de praxe com que potencialmente nos depararíamos. De reter, ainda, o duplo estatuto que deve marcar as categorias de análise no quadro de uma pesquisa etnográfica – surgem a partir do reconhecimento da sua presença empírica, num exercício muitas vezes anterior à chegada do investigador ao terreno, mas podem também nascer (ou as existentes sofrer alterações) fruto do que vai sendo suscitado pelo próprio trabalho etnográfico.

A observação revelar-se-ia fundamental especialmente a três níveis: (1) como potenciadora da captação de manancial informativo próprio, ao qual não se acedeu através de outras ferramentas; (2) pela capacidade de despertar novas pistas ou de nos elucidar a respeito de outras já descortinadas; (3) por proporcionar o confronto entre práticas declaradas e práticas observadas. Não foram ignoradas as dificuldades interpretativas que a polissemia das ações sociais comporta, contudo, entendemos que a análise da componente performativa da praxe apenas é concretizável a partir de exercícios de observação, não sendo os discursos produzidos sobre esta suficientemente elucidativos.

Ao longo do processo de pesquisa foi sendo mantido um registo do trabalho de campo. Recorreremos a excertos deste material para uma reflexão transversal, direcionada particularmente sobre a dimensão correspondente às observações – o que nos contam sobre este exercício de pesquisa?; que elementos importa reter?; em última análise, que oportunidades e obstáculos se encontraram implicados na mobilização desta técnica?

4.2. Quando a observação permite conhecer dimensões singulares

A praxe é uma experiência única no sentido em que aquela que é vivida é percecionada como distinta de todas as outras, mas também no sentido em que é irrepetível, um marco da passagem pelo Ensino Superior e definidora da experiência académica (Lopes e Sebastião, 2017). A praxe é ainda única pelas experiências que proporciona e pelas relações que permite estabelecer, que os estudantes acreditam que ficarão para sempre na sua memória. É também considerada única pela própria capacidade de transformar quem nela participa, sendo recorrente os estudantes partilharem que a praxe os ajudou a contrariar a timidez e inibição que os caracterizava, ajudando-os a tornarem-se mais extrovertidos, confiantes e com maior capacidade de iniciativa.

Esta intensidade com que a praxe é vivida traduz-se em experiências de efervescência coletiva, identificada por Durkheim como “uma espécie de electricidade” que, em contexto ritual, “vai ressoar, sem resistência, em todas as outras consciências, largamente abertas às impressões exteriores, [servindo] cada uma delas de eco às outras”, contribuindo para “a intensificação do estado que se manifesta” e da constituição de “uma certa ordem que permita o concerto e os movimentos de conjunto” (Durkheim, 2002: 225-226). Aquele conceito coloca-se como lente valiosa para a compreensão de cerimónias observadas, com especial destaque para os cortejos da latada ou da queima das fitas, ritos que podem eles mesmos ser avaliados como momentos de performance ritual (Ribeiro, 2001) determinados por esta efervescência coletiva. São momentos quase carnavalescos, de clara encenação e exposição pública ostensiva. Vividos de forma substancialmente intensa, são ritos de reforço da identidade grupal e simultaneamente de reforço do orgulho individual de pertença àquela comunidade. As observações permitiram aceder a esta dimensão do fenómeno de um modo fortemente expressivo e bastante singular6.

Observação do cortejo da latada - 30 de outubro de 2016 “O desfile é ensurdecedor. Ao barulho das músicas entoadas aos gritos, soma-se o barulho das latas que os caloiros trazem penduradas em si, os caixotes em que batem, os carrinhos das compras que fazem deslizar ruas abaixo… (…) Descem a Rua dos Clérigos a correr, aos gritos e a agitar as latas. Ensurdecedor. Ambiente de êxtase.” Observação do cortejo da queima das fitas – 9 de maio de 2017 “É possível ouvir, através das canções e gritos entoados, a habitual e constante exaltação à praxe e a competição/rivalidade entre casas praxistas e faculdades. Nota-se, talvez de forma mais evidente do que em qualquer outro momento observado, um aprofundamento desta última dimensão – a Faculdade de Medicina faz inúmeras referências ao facto de serem Medicina do pólo de S. João, num corte evidente face ao Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS); os estudantes de 1.º ano da Faculdade de Engenharia arrancam uma faixa do Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP), que se encontra pendurada na fachada de um prédio.” “Não há momentos de silêncio ou acalmia: canta-se, grita-se,… É, ainda assim, indiscutível a excecionalidade do caso da Faculdade de Engenharia - enorme mancha humana, são centenas de estudantes, gritam de forma ensurdecedora ininterruptamente, correm e saltam. Os trajados que seguem em pé no carro alegórico (supõe-se que os praxistas que compõem o conselho de veteranos) são os principais animadores. Com especial destaque para um deles (supõe-se que o dux facultis), que remete para a figura de um maestro – com gestos simples, e muitas vezes discretos, dirige a enorme massa humana, que segue as suas instruções escrupulosamente.” “É uma experiência vivida nos seus extremos do ponto de vista emocional – se para muitos é o primeiro cortejo, momento pelo qual se tinha esperado com entusiasmo e ansiedade e é vivido com a alegria do cumprimento das expectativas, para muitos outros o cortejo marca o final de um ciclo, sendo vivido entre o orgulho e a nostalgia antecipada.”

Compreendendo que a dimensão performativa para que estes excertos nos remetem corrobora a noção da praxe como encenação – podemos observar a representação de papéis claramente definidos, num jogo com regras estipuladas e consensualmente partilhadas – importa recordar que não estamos perante uma mera brincadeira, pois a performance ritual define-se precisamente pela eficácia da ação simbólica, pela capacidade de construir e contar uma narrativa que encerra nas suas fronteiras o que se faz e como se faz, num claro exercício de poder sobre os indivíduos e sobre o mundo (Ribeiro, 2001).

A praxe vive ainda num espaço de ambiguidades e tensões, oscilando, não poucas vezes, entre aquilo que, à primeira vista, poderiam mesmo ser consideradas contradições. Um destes exemplos, e como apontado por Lopes e Sebastião (2017), encontra-se no facto de a praxe se alimentar por um lado, do segredo, mas, simultaneamente, da espectacularização. Se o segredo “é uma aura que se cria para acentuar a relação com o mito da tradição e reforçar a dimensão grupal e identitária” (Lopes e Sebastião, 2017:233), (partilhava uma das entrevistadas: “a praxe é uma coisa que fica com quem está em praxe, o que acontece em praxe, fica em praxe”), ele só ganha significado perante a exposição pública da praxe. Por outras palavras, é porque o fenómeno se expõe publicamente de forma espetacularizada em determinados momentos (latadas, cortejos, serenatas, etc.), que existe espaço para o segredo (e o secretismo) noutros; se a intensa exposição da praxe demarca quem nela está de quem nunca esteve ou estará, a simultânea aura de secretismo que sobre ela paira acentua esta demarcação, aprofundando um sentimento de pertença a quem integra o grupo. A incursão etnográfica, e particularmente a observação, descortinaram esta ambiguidade.

Esta ambiguidade característica do fenómeno, comportou ainda consequências ao nível do trabalho de campo - tanto nos deparávamos com o total fechamento da praxe sobre si, sendo-nos negado o acesso à maioria das atividades, ou vendo-nos obrigados a optar por não observar, como, de repente, a praxe se apresentava à cidade, de forma burlesca, festiva e eufórica, num exercício de ostensiva exposição; se tantas vezes foi necessário recuar porque reconhecida como «elemento estranho», noutros era uma entre milhares; de situações em que era impensável fotografar, para outras em que raro era encontrar quem não o estivesse a fazer. O excerto seguinte ilustra bem um destes cenários espetacularizados e de exposição e, do ponto de vista investigativo, de facilidade de acesso:

Observação Cortejo da Queima das Fitas – 9 de maio de 2017 “As ruas por onde passa o cortejo estão repletas de pessoas, ainda antes deste começar. Dezenas, e depois centenas, de pessoas posicionam-se rapidamente nas escadas do Tribunal, no Jardim da Cordoaria, na zona dos Clérigos, para verem passar o cortejo. (…) A assistir estão, claramente, muitas famílias (desde crianças a idosos); jovens que querem ver os amigos passar; estudantes há muito graduados que desejam, curiosos, ver o carro da sua faculdade; praxistas mais velhos que tencionam ver ao mais novos; transeuntes curiosos; turistas com dificuldade em perceber o que se passa (entre a surpresa e o fascínio). (…). Muitas fotografias. A maior parte dos estudantes fotografa-se em ambiente de festa. Muitos familiares procuram o melhor local para fotografar, onde ficam até passar o carro alegórico com o seu familiar. É muito frequente ver finalistas saírem do cortejo para que as famílias os fotografem e se fotografem com eles. O momento é de orgulho e parece fundamental registá-lo.”

4.3. Quando a observação clarifica e abre caminhos

A praxe tende a viver fechada sobre si, alimentando-se, em grande medida, da lógica de um espaço-tempo suspenso que vive sob dinâmicas próprias. São, aliás, muito raros os momentos ou as dimensões do fenómeno que espelham reflexão sobre o mundo exterior. Uma das exceções foi encontrada no cortejo da queima das fitas, onde se observou que os carros alegóricos tendem a ser ilustrados com sátiras à conjetura sociopolítica do país (referências ao desemprego jovem ou ao desinvestimento no Ensino Superior) ou em alusão a problemas específicos de cada instituição (falta de condições materiais e humanas, questões de cariz pedagógico). A observação desvendou assim uma nova pista, neste caso, uma dimensão que parecia alheia a este fenómeno.

Além de abrir caminhos, a observação permitiu a clarificação de outras pistas interpretativas. A praxe é vivida com a intensidade de uma experiência única, de carácter irrepetível. Atente-se numa certa aura mística que alguns estudantes associam a esta ou na própria noção, exposta nestes moldes por um estudante entrevistado, de que a praxe torna a vida académica «mítica». Destaquemos, ainda, a «essência» ou o «sentido» a que alguns se referem quando falam da praxe ou a associação direta desta a uma aventura ou à própria vida. A praxe afigura-se um espaço-tempo que exalta o momento e a intensidade das sensações que proporciona, colocando o futuro (e as preocupações a este associadas) numa espécie de pausa. Vive-se de forma entusiástica um ritual que bloqueia momentaneamente a vida, construindo-se experiências com uma intensidade à altura deste pressuposto.

Apesar de marcar indelevelmente o fenómeno, esta dimensão era dificilmente aferível através dos testemunhos partilhados – é frequente os estudantes referirem sentimentos que consideram intraduzíveis ou intransmissíveis a quem não viveu a experiência. Neste sentido, a observação apresentou-se como imprescindível no sentido em que nos elucidou mais claramente, em particular no que respeita aos significados que os estudantes atribuem a momentos simbolicamente marcantes das suas experiências, nem sempre facilmente compreensíveis em situação de entrevista ou conversa informal. A observação da monumental serenata da queima das fitas, rito simbolicamente determinante da experiência em praxe, é um exemplo elucidativo da singularidade desta técnica.

Observação monumental serenata da semana da queima – 6 de maio de 2017 “São observados muitos primeiros “traçar da capa”. Esses momentos são vividos com grande solenidade e emoção. Vêem-se padrinhos/madrinhas e afilhados a chorar, abraçados, sobretudo no final. É frequente as famílias dos caloiros encontrarem-se próximas e, depois do ritual terminar, abraçam-se aos filhos/filhas. Vêem-se muitos familiares emocionados e a tirar muitas fotografias, especialmente depois da capa traçada. Depreende-se a partir da intensidade com que os caloiros vivem este momento, a que se soma a das suas famílias, o peso simbólico, antes de mais, de trajar pela primeira vez, e, em última análise, do traje em si.” “Vêem-se estudantes a chorar enquanto ouvem as tunas tocar. Conversas que se vão ouvindo fazem perceber que se tratam de finalistas e que a emoção advém do facto de aquela vir a ser última vez.”

4.4. Quando a observação questiona práticas declaradas

Se se entende a observação como técnica capaz de potenciar manancial informativo próprio, no caso do objeto em estudo, a observação permitiu-nos também o confronto entre as práticas declaradas pelos atores do fenómeno, sobretudo em contexto de entrevista, e as práticas que fomos observando no terreno. O confronto (e as contradições) colocaram-se de forma evidente, particularmente, em duas dimensões: o consumo de álcool e o exercício/esforço físico presente nas atividades.

As conversas estabelecidas no terreno e, posteriormente, as entrevistas, espelharam consonâncias a respeito do consumo de álcool em contexto de praxe. A totalidade dos estudantes entrevistados e a esmagadora maioria daqueles com que se foi conversando assumem esta como uma «não-questão». Reiteram que o álcool não tem lugar na praxe corrente e que nas restantes situações de festa e convívio (que alguns alertam que nem pode ser considerada praxe) cada um consome o que entende. Os estudantes de 1.º ano, caloiros na hierarquia da praxe, tendem a defender-se reproduzindo uma frase ouvida em praxe - “Caloiro não bebe” – e, de uma forma geral, todos parecem defender a inexistência de situação de consumo considerado excessivo. Deparámo-nos com cenários diferentes, como atestam os seguintes excertos:

Observação Cortejo da Queima das Fitas – 9 de maio de 2017 “A presença de álcool é evidente desde cedo. Antes do desfile começar foi desde logo possível observar muitos estudantes (trajados e não trajados) com latas e garrafas de 1L de cerveja. (…) Álcool a circular abundantemente – passa das mãos dos estudantes em cima dos carros alegóricos para os que se encontram a secundá-los e vice-versa. (…). É a primeira vez que observo caloiros a consumir bebidas alcoólicas em situação de praxe – em quantidade bastante assinalável. (…). À medida que os carros alegóricos iam passando, os estudantes iam deixando para trás um rasto de sujidade – rapidamente as ruas se encheram de milhares de garrafas e latas pelo chão (…) É evidente, com o avançar da tarde, o número crescente de estudantes alcoolizados.”

Outra categoria posta em confronto diz respeito à presença de exercício/ esforço físico em contexto de praxe, mais especificamente nas atividades que os mais novos são colocados a executar. É comum os estudantes defenderem que a sua praxe é sobretudo “mental”, compreendendo-a deste modo pela centralidade que a aprendizagem ocupa nesta, marcando assim a distinção em relação a uma praxe “física”, avaliada como menos importante. As observações permitiram-nos, contudo, aferir da presença destas, inclusivamente em momentos considerados festivos, como é o caso do cortejo da queima das fitas.

Observação Praxe - Jardim da Cordoaria – 22 de setembro de 2016 “Durante o período de observação (aproximadamente uma hora), os caloiros são colocados inúmeras vezes de “gatas”, havendo momentos em que só estão com as mãos e os joelhos apoiados no chão.” Observação Praxe - Imediações da FEUP – 5 de abril de 2017 “Óbvia centralidade de atividades de cariz físico: flexões, saltos, agachamentos” Observação Cortejo da Queima das Fitas – 9 de maio de 2017 “Na maioria dos casos, os caloiros são apenas postos a cantar e/ou gritar. A exceção encontra-se na praxe de Direito, que assim se distingue das demais, em que os caloiros são postos a fazer flexões inúmeras vezes ao longo do trajeto.”

Importa ter em consideração que esta discrepância encontrada entre práticas e discurso não é alheia ao recente processo de mediatização de que o fenómeno foi alvo, sendo frequente os praxistas evidenciarem a necessidade de contrariar a imagem negativa socialmente construída em torno do fenómeno, retirando importância, ou mesmo negando a existência, do que facilmente poderia ser avaliado negativamente. O consumo de álcool e as práticas de exercício/esforço físico encontram-se nesta categoria.

5. A mediatização do fenómeno: outros desafios e soluções

Este processo de pesquisa obrigava à leitura contextualizada do fenómeno na realidade em que toma lugar, ponderando ainda os diferentes fatores exógenos que sobre ela exercem efeitos. O mais evidente e desafiante destes fatores foi o processo de mediatização de que o fenómeno foi alvo. Tê-lo em consideração foi relevante a dois níveis: por um lado, porque a praxe se tornou familiar para a generalidade das pessoas e cresceu sobre ela um conjunto de perceções externas que importa conhecer e, por outro, porque tal processo comportou consequências diretas sobre esta incursão.

Antes de mais, a importância das perceções externas. Quando Velho (1987b) discute o cariz relativo da noção de familiar (bem como a necessidade de o estranhar), alerta para uma complexidade que importa transpor para esta reflexão – se, por um lado, a comunicação de massas torna familiar determinados temas e objetos, sobretudo pela frequência e intensidade com que os aborda, contribuindo assim para criar uma sensação de familiaridade com esses, por outro lado, essa familiaridade, ainda que assente em noções essencialmente estereotipadas, deve ser entendida como contributo valioso para a construção de conhecimento científico. A praxe torna-se familiar na sequência da mediatização de que foi alvo, passando a existir uma sensação de familiaridade generalizada em relação ao fenómeno - proliferam opiniões que devem pesar na reflexão que esboçamos sobre a praxe, porque, ainda que sem pretensões científicas, essas perceções espelham de algum modo um certo tipo de apreensão da realidade.

Por outro lado, a mediatização do fenómeno comportou consequências sobre a pesquisa, pelo tipo de processo em que esta se ancorava – de proximidade regular com os atores do fenómeno, de forma contextualizada no terreno onde conduzem as suas ações. Se, aquando das primeiras incursões nos deparámos com um desejo de fechamento evidente, a desconfiança nunca desapareceu totalmente do quadro de relações. Como é sabido, a figura do investigador é central num exercício etnográfico e, neste caso específico, quem investigava personificava aqueles que «de fora» tentam perceber a praxe (exercício que os praxistas acreditam não ser concretizável). Tendo sido praticamente impossível cortar com o esquema dicotómico predominante nos seus quadros mentais - «nós» e «eles» –, era recorrentemente evidente que o facto de estarmos perante um fenómeno mediatizado transportava consequências – os praxistas tendem a considerar que a sua imagem atual é negativa e que qualquer trabalho dedicado à praxe servirá o propósito de corroborar essa representação.

Por tudo isto, foram surgindo inquietações que implicaram a tomada de opções. Antes de mais, a revelação do meu estatuto de estudante de sociologia, que se encontrava a desenvolver uma pesquisa no âmbito da sua dissertação de mestrado, impôs-se sempre, quer por questões éticas e deontológicas, quer por se ter entendido ser o caminho mais profícuo à conquista da confiança dos atores do fenómeno. Nestes cenários de pesquisa, a exposição de alguns elementos da identidade pessoal do investigador revela-se fundamental num processo que é, essencialmente, de interconhecimento (Estanque, 2002). A exposição desses elementos facilitou os contactos, tal como o facto de partilhar a faixa etária com estes estudantes e de me enquadrar num universo, a Universidade, ao qual também pertencem.

Neste jogo constante entre revelar o necessário e não me expor excessivamente, colocou-se outra opção, relacionada com a divulgação dos objetivos da pesquisa. Tendo ficado claro desde cedo, que a apresentação da praxe como objeto de estudo tende a suscitar surpresa, curiosidade, mas, particularmente, desconfiança, optou-se por, nas palavras de Estanque (2002), jogar na ambiguidade – divulgar o suficiente para clarificar o trabalho que nos encontrávamos a desenvolver, contudo sem entrar em detalhes potencialmente comprometedores.

6. Notas conclusivas

Tentámos com a reflexão aqui esboçada ponderar os desafios com que nos deparámos no quadro de uma incursão etnográfica dedicada ao estudo do fenómeno da praxe. Desafios esses que, longe de meros obstáculos iniciais, atravessaram todo o processo de pesquisa, tornando-se dele inseparáveis.

Não obstante, se os desafios se colocaram, por vezes, sob a forma de obstáculos e situações de confronto, esta incursão etnográfica foi-se delineando também através de oportunidades próprias desta forma de estar no terreno: (1) as observações exploratórias cedo nos despertaram para indicadores de análise pertinentes, para a necessidade de ir reajustando opções metodológicas e para a centralidade de estar de forma atenta no terreno (incluindo para ouvir conversas pelos corredores e bares das faculdades, potenciadoras, por si só, de dados valiosos); (2) as inúmeras conversas informais permitiram quer a obtenção de informação sobre a praxe em cada contexto, quer o estabelecimento de contactos no terreno, sem os quais a pesquisa não se teria concretizado; (3) a presença no terreno permitiu algum domínio sobre a linguagem própria do fenómeno, mobilizada pelos seus atores, o que facilitou e desinibiu conversas com estes, dado que cremos ter diminuído, deste modo, a sensação de estarem a falar com «alguém de fora»; (4) a presença em momentos simbólicos fortíssimos permitiu compreender dimensões do fenómeno inatingíveis de outro modo.

Como fomos explorando neste texto, a observação por si só, como técnica privilegiada, revelou-se substancialmente rica – além de tonar mais inteligível a dimensão performativa do fenómeno, permitiu o confronto entre práticas declaradas e práticas observadas. Deste modo, a observação estimulou a identificação de lapsos e contradições, a clarificação de práticas e a compreensão de significados atribuídos, aproximando-nos da complexidade do fenómeno e das justificações dos atores sobre o mesmo. A observação suscitou, ainda, pelo manancial informativo que foi desvendando, novas pistas e exercícios constantes de questionamento a partir do real observado, numa lógica de indução científica.

Em suma, este processo de pesquisa, indelevelmente determinado pelos desafios da etnografia como modo de apreensão da realidade, fica igualmente marcado pela necessidade de pensar e repensar rumos traçados, num exercício de reconfiguração permanente – de abordagens, de formas de estar no terreno, de pensar o próprio fenómeno e os seus atores.

 

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Endereço de correspondência Inês Maia. Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: inesmaia949@gmail.com

 

Artigo recebido em 20 de janeiro de 2018. Aprovado para publicação em 28 de julho de 2018.

 

Notas

1 A reflexão esboçada neste artigo tem origem numa pesquisa desenvolvida pela autora no âmbito da sua dissertação de Mestrado em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

2 Esta incursão etnográfica ocorre entre o início de setembro de 2016 e o final de maio de 2017.

3 Tende a ser consensual a noção de que, em etnografia, a observação deve ser participante. Discutiremos adiante as opções tomadas a este respeito.

4 Entendeu-se pertinente o estudo da praxe na FBAUP pela especificidade da apropriação e manifestação do fenómeno nesse contexto. Entre outras características, suscitou curiosidade o facto de ser uma prática recente (o ano letivo de 2010/2011 foi o primeiro que contou oficialmente com praxe própria) e de ser percecionada uma dinâmica de oposição generalizada ao fenómeno nesse contexto.

5 Para mais detalhes acerca da hierarquia da praxe, consultar, por exemplo, Ribeiro (2001) ou Estanque (2016).

6 Os excertos apresentados são retirados dos registos elaborados durante o trabalho de campo. Todas as ruas e edifícios identificados referem-se à cidade do Porto.

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