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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.34  Porto dez. 2017

https://doi.org/10.21747/08723419/soc34aa5 

ARTIGOS

O bem-estar das crianças e dos jovens em Portugal: contributos de uma pesquisa qualitativa

The wellbeing of children and young people in Portugal: contributions from a qualitative research

Le bein-être des enfants et des jeunes au Portugal: contributions d'une recherche qualitative

El bienestar de los niños y de los jóvenes en Portugal: contribución de una investigación cualitativa

 

Magda Nico, Nuno de Almeida Alves

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Estudos e Investigação de Sociologia (Lisboa, Portugal)

Endereço de correspondência

 


RESUMO

O bem-estar de crianças e jovens adquire uma enorme centralidade contemporânea mas as dificuldades teóricas da sua definição e metodológicas da sua medição e da sua compreensão são inúmeras. Este artigo centra-se neste tema usando dados de entrevistas individuais e de grupo a um total de 45 participantes. Os resultados sublinham algumas das complexidades teóricas e metodológicas do tratamento deste tema junto de públicos jovens. Os tópicos mais ligados às práticas e quotidianos obtêm plena correspondência dos entrevistados, o mesmo não sucedeu com noções amplas e abstratas como a de bem-estar.

Palavras-chave : bem-estar; crianças; jovens; Portugal; metodologia.

 


ABSTRACT

The well-being of children and young people is of central importance in contemporary societies. But theo- retical and methodological difficulties of its definition, measurement and understanding are still numerous. This article approaches this topic using data from individual and focus group interviews to 45 participants. The results underline the theoretical and methodological complexity of studying this topic among such young people. Themes more connected to practices and to daily life obtained full correspondence by the individuals, but that did not succeed with the more abstract notions of well-being.

Key-Words : well-being; children; young people; Portugal; methodology.

 


RÉSUMÉ

Le bien-être des enfants et des jeunes est d'une importance capitale dans les sociétés contemporaines. Mais les difficultés théoriques et méthodologiques de sa définition, la mesure et la compréhension sont encore nombreux. Cet article aborde ce sujet en utilisant des données provenant des entrevues individuelles et de groupe pour un total de 45 participants. Les résultats soulignent la complexité théorique et méthodologique de l'étude de ce sujet parmi ces jeunes. Thèmes plus connectés à des pratiques et à la vie quotidienne ob- tenus pleine correspondance par les individus, mais cela n'a pas réussi avec les notions plus abstraites de bien-être.

Mots-Clés : bien-être; enfants; jeunes; Portugal; méthodologie.

 


RESUMEN

El bienestar de los niños y jóvenes es de importancia central en las sociedades contemporáneas. Pero las dificultades teóricas y metodológicas de su definición, la medición y la comprensión son todavía numerosas. Este artículo aborda este tema con datos de entrevistas individuales y de grupo con un total de 45 partici pantes. Los resultados ponen de relieve la complejidad teórica y metodológica de estudiar este tema entre estos jóvenes. Temas más vinculados a la práctica y a la vida cuotidiana obtuvieron plena correspondencia por parte de los individuos, pero lo mismo no ha sucedido con las nociones más abstractas de bienestar.

Palabras-clave : bienestar; niños; jóvenes; Portugal; metodología.

 


Introdução

O bem-estar da generalidade das populações (ou de grupos específicos como o das crianças e jovens ou idosos) é claramente assumido como um objetivo estratégico do mundo contemporâneo, tendo assumido maior ênfase nas últimas dezenas de anos no ocidente. Publicações recentes da OCDE (2015) e UNICEF (2013) dão nota disso mesmo, sublinhando, no entanto, alguma da diversidade registada nos esforços de mensuração deste fenómeno. Uma e outra instituições procuram medir o bem-estar das populações em geral ou do grupo específico das crianças através da conjugação de indicadores estabelecidos das estatísticas oficias articulados em diversas dimensões relevantes.1 A esta perspetiva genérica da mensuração do bem-estar, muito influenciada pela corrente dos indicadores sociais, opõe-se uma outra, conduzida pela comunidade académica, que ao longo dos últimos anos tem procurado, não sem alguma dificuldade, definir e medir o bem-estar no seio de grupos determinados. Destaca-se, neste âmbito, o grupo constituído pelas crianças e jovens, uma vez que níveis alargados de bem-estar (físico, psíquico e social) no seu seio constituem uma garantia do crescimento e amadurecimento saudável dos indivíduos que constituirão os futuros adultos, reforçando os objetivos de continuidade de melhoria substantiva dos índices de bem-estar das sociedades contemporâneas (Rees et al., 2012).
Essa dificuldade resulta de diversos fatores, combinando aspetos teóricos e metodológicos, e que conjugam a definição do conceito de bem-estar, o âmbito do mesmo e os aspetos operacionais de investigação com públicos sensíveis como as crianças e os jovens. Dando mais um passo para a resolução deste impasse, a Comissão Europeia, através do instrumento de financiamento Sétimo Programa-Quadro de Investigação e Desenvolvimento Tecnológico, elaborou uma chamada a projetos para o desenvolvimento de um estudo sobre a exequibilidade de um eventual Inquérito Longitudinal ao Bem-estar das Crianças e Jovens na Europa. O projeto MYWEB2 foi classificado como a melhor proposta apresentada e é de parte do trabalho desenvolvido nesse projeto, em particular do Work Package 4 – Working with Children and Young People, que resulta o material empírico utilizado neste artigo.
O trabalho sobre uma questão abstrata como o bem-estar de crianças e jovens e o respetivo entendimento que estes fazem do mesmo encerra um amplo conjunto de dificuldades, tanto no plano teórico como metodológico. O primeiro desses problemas resulta da divisão de perspetivas sobre o bem-estar existente no campo das ciências sociais, uma primeira de feição epicurista (bem-estar hedónico) que relaciona o bem-estar com o prazer e a satisfação com a vida; e uma segunda de base racionalista e aristoteliana (bem-estar eudemónico) que relaciona o conceito de bem-estar com o cumprimento de um conjunto de etapas e elementos de realização do potencial humano (Ryan e Deci, 2001). O segundo problema é de natureza operacional e remete para a mensuração do fenómeno: como deve ser medido o bem-estar? Através de medidas objetivas, mas indiretas, e, nessa medida, meramente aproximativas como o rendimento, as características do alojamento familiar, o aproveitamento escolar? Ou, por outro lado, através de medidas subjetivas como a resposta a uma escala de satisfação geral com a vida? Como se verá a postura que enquadra este artigo passa por uma combinação tanto de perspetivas como de medidas de mensuração do bem-estar de crianças e jovens.
Um último problema passa necessariamente sobre quem deve ser inquirido sobre o bem-estar de crianças e jovens. É certo que crianças e jovens atravessam diferentes patamares de desenvolvimento cognitivo e amadurecimento emocional e psicossocial ao longo do seu processo de crescimento e deste facto resultam inúmeras dificuldades de medida: do modo como se devem fazer as perguntas ao modo como se poderão construir as diferentes escalas de respostas. No entanto, é às crianças e jovens que questões sobre o seu bem-estar devem ser perguntadas e não a seus intérpretes como pais e professores. É também essa a postura que tomamos neste artigo, acompanhando de resto o movimento que entre as ciências sociais concebe as crianças e jovens como os “peritos sobre a sua própria vida e bem-estar” (Mason e Danby, 2011:185).
As definições e conceções sobre o bem-estar de crianças e jovens, obtidos a partir de um conjunto alargado de entrevistas e entrevistas de grupo efetuadas junto de um agregado socialmente diverso de crianças e jovens, serão produto da análise da terceira secção e seguintes deste artigo, onde se procederá ainda à análise dos respetivos preditores e domínios segmentados por idade, tendo em conta o enorme diferencial de detalhe e aprofundamento dos materiais obtidos.

Dificuldades teóricas e metodológicas em torno do conceito de bem-estar

Apesar da sua relevância estratégica para a implementação de políticas sociais e do interesse gerado junto de segmentos da comunidade académica, não há ainda uma definição única e consolidada do conceito de bem-estar. Na academia o conceito é usado de forma abrangente, procurando traduzir a medida da avaliação da qualidade de vida por parte dos indivíduos (Rees et al., 2010). Um dos contributos fortes para a ausência de uma definição consolidada é a divisão de perspetivas presente na comunidade académica mobilizada para o estudo e mensuração do bem-estar dos indivíduos. Uma das perspetivas corresponde à postura hedónica de bem-estar, através da qual o bem-estar é concebido como felicidade subjetiva e experiência do prazer. Parte significativa da investigação efetuada segundo esta perspetiva inclui a avaliação do bem-estar subjetivo, medido através de três elementos: satisfação com a vida, um estado de disposição positiva, e, pelo contrário, a ausência de uma disposição negativa, síntese que usualmente é entendida como felicidade. A perspetiva eudemónica, por outro lado, postula que nem todos os desejos garantem o bem-estar quando concretizados. Centrando-se na autorrealização, esta perspetiva considera o bem-estar como grau de funcionalidade plena dos indivíduos. O bem-estar psicológico (Ryff e Keynes, 1995) é então produto da combinação multidimensional de seis elementos distintos: autonomia, crescimento pessoal, autoaceitação, objetivos de vida, controlo e relacionamentos positivos.
Embora o debate entre estas duas perspetivas se mantenha ainda aceso, neste artigo será operada uma conjugação, em alguns casos mesmo hierarquização multidi-mensional de ambas, mantendo elementos da perspetiva hedónica e eudemónica, no sentido da utilização de uma conceção mais alargada de bem-estar entre crianças e jovens. Esta ideia de crescendo ou hierarquia no bem-estar ou de conquista sequencial do mesmo encontra ainda relativa equivalência em classificações provindas da psicologia sobre as necessidades humanas (Maslow, 1943).
Do ponto de vista operacional, a utilização do conceito de bem-estar depara-se ainda com um outro dualismo que tem dificultado a respetiva capacidade heurística: a opção por medidas objetivas ou subjetivas de bem-estar ou a combinação de ambas. As medidas objetivas de bem-estar são de certa forma independentes da perceção dos inquiridos acerca do mesmo, adicionando-se a essa vantagem o inconveniente de serem sobretudo medidas indiretas como o PIB per capita, o rendimento familiar, a qualificação escolar ou a esperança média de vida, como vimos anteriormente através dos exemplos da OCDE e UNICEF. Por outro lado, as medidas subjetivas de bem-estar expressam estados emotivos como avaliações, perceções ou preferências. Se as medidas objetivas são importantes, sobretudo no âmbito da influência que aspetos como o rendimento, a frequência escolar ou as características do bairro de residência podem ter relativamente à determinação do bem-estar das crianças e jovens, há, no entanto, que tomar cautelas se no processo não estamos a substituir o que queremos medir (o bem-estar das crianças e jovens) por fenómenos como a pobreza infantil ou o insucesso escolar (Pollard e Lee, 2003).
As medidas subjetivas de bem-estar de crianças e jovens obtiveram um novo impulso com a mudança de paradigma na investigação sociológica sobre a infância (Corsaro, 1997; Prout, 2005; Almeida, 2009) a partir do qual as crianças passaram a ser reconhecidas pela comunidade académica como peritos no conhecimento acerca da sua própria vida, implicando um envolvimento direto destas na investigação, a audição pela sua própria voz das suas perceções e avaliações ao invés da respetiva mediação e interpretação por meio de medidas objetivas ou pela inquirição indireta a pais ou professores. Esta corrente de investigação sobre a infância culmina, mais atualmente, na integração de crianças (e jovens) no processo de pesquisa, não os reduzindo ao mero papel de objeto de investigação, mas também como sujeito de investigação, sendo-lhes atribuído um papel na discussão e definição das questões e processos de investigação de acordo com metodologias participativas (Boyden e Ennew, 1997; Groundwater-Smith et al. 2015).
Desta forma, e apesar de eventuais problemas de medida, potenciais desvios ou divergências, é fundamental integrar medidas subjetivas na pesquisa na medida em que só estas poderão providenciar uma perceção e avaliação das reais condições de vida dos atores, vistas e entendidas pelos próprios. Assim a medida do bem-estar de crianças e jovens, bem como de outros grupos a considerar, deve ser prosseguida procurando conjugar indicadores objetivos e medidas subjetivas de bem-estar, uma vez que só através desta articulação se produzirá uma operacionalização abrangente do conceito.

Desenho metodológico3

Através do Work Package 4 – Working with Children and Young People – do projeto de investigação MYWEB procurou-se, cumprir um conjunto alargado de objetivos: selecionar um conjunto de crianças e jovens com vista ao desenvolvimento do trabalho empírico do projeto, utilizar as entrevistas individuais e de grupo com estas mesmas crianças e jovens para explorar os significados que atribuem às noções de bem-estar (procurando recolher as suas visões e opiniões acerca do seu entendimento do bem-estar e das suas diferentes dimensões, tendo em conta uma perspetiva holística), utilizar estas entrevistas individuais e de grupo para avaliar diferentes modos de recolha de dados e em particular o teste de alguns dos desafios dos processos de recolha longitudinais.
O trabalho de campo decorreu entre outubro e dezembro de 2014, tendo sido conduzido em diversas fases consoante as idades dos grupos de crianças e jovens estudados e algumas das respetivas características consideradas relevantes e utilizando como recursos metodológicos a entrevista semi-diretiva e a entrevista de grupo.
O projeto MYWEB e a execução do programa de trabalhos que deu origem a este artigo entendeu o conceito de bem-estar enquanto instrumento de captura de qualidade de vida de crianças e jovens de modo abrangente, incluindo duas dimensões: bem-estar objetivo e bem-estar subjetivo. Nesse sentido, os guiões de entrevista individuais e de grupo incluíam conjuntos de indicadores repartidos por essas duas dimensões. Do lado do bem-estar objetivo estava incluído o seguinte conjunto de questões sociodemográficas a efetuar no início da entrevista, funcionando simultaneamente como apresentação do entrevistado e warm-up: idade (grupos etários compreendidos entre os 10 e os 13 anos e entre os 16 e os 24 anos), sexo, nível de escolaridade concluído/frequentado, localidade de residência e grupo étnico (no caso dos entrevistados mais velhos, entre os 16 e os 24 era também perguntada a condição perante o trabalho, o estatuto residencial e pertença associativa). No âmbito do bem-estar subjetivo incluíam-se as seguintes questões e respetivos domínios:

  • Entendimento global e definição de bem-estar (era perguntado diretamente o que os entrevistados entendem por bem-estar e se os próprios percebem diferenças relativamente ao bem-estar entre grupos diferenciados de crianças e jovens);
  • Principais domínios e posição relativa do entrevistado face aos mesmos (os que surgissem espontaneamente, ou a família, escola, saúde, ambiente, recursos materiais – procurando ainda referências às relações familiares, com a escola e vizinhança);
  • A felicidade (o que contribui para um bom dia ou um mau dia, como se sen- tiram na semana anterior à da entrevista);
  • A satisfação geral com a vida e aspetos particulares (que correm melhor ou pior); bem-estar psicológico eudemónico (autonomia, crescimento pessoal, autoaceitação, objetivos de vida, controlo e relacionamentos positivos).4

A utilização destes instrumentos refletiu algumas das dificuldades habituais na investigação com crianças e jovens: por um lado o compreensível acanhamento em falar com adultos desconhecidos relativamente a temas com algum grau de intimidade, por outro lado, a dificuldade causada pela abordagem de um conceito abstrato como o bem-estar. Consideraram-se dois tipos fundamentais de intervenientes: jovens entre o final da adolescência e o início da idade adulta (cujos extremos se cifraram entre os 15 e 24 anos) divididos entre jovens com algum tipo de participação associativa (três entrevistas e uma entrevista de grupo com seis participantes) e jovens sem participação associativa (seis entrevistas e uma entrevista de grupo com oito participantes); crianças e adolescentes inscritos no ensino básico e secundário, combinando crianças entre os 10 e os 13 anos (quatro entrevistas e uma entrevista de grupo com cinco participantes) e adolescentes entre os 15 e os 16 anos (quatro entrevistas e uma entrevista de grupo com oito participantes). O recrutamento de participantes foi uma tarefa exigente, dados os constrangimentos do calendário escolar e a dificuldade no cumprimento de algumas quotas, especialmente no caso dos jovens com participação associativa. No total participaram no trabalho de campo 45 crianças e jovens. No conjunto, foi assegurada alguma diversidade social e residencial no âmbito da grande Lisboa, embora tal objetivo não tenha sido plenamente atingido em certos contextos de interação com os entrevistados. Em alguns casos a uniformidade social do conjunto de entrevistados ou dos participantes na entrevista de grupo era significativa implicando alguma prudência na análise dos resultados.

Desafios e especificidades metodológicas

“As crianças possuem uma visão consistente sobre o mundo que as rodeia e constituem, portanto, interlocutores competentes, informadores credíveis em estudos sobre a sociedade contemporânea”. Wall et al. (2015:105)

As entrevistas realizadas, no âmbito do projeto mais global, adquiriram implicitamente uma função exploratória. Eles permitiram a identificação antecipada de especificidades e desafios metodológicos decorrentes da inquirição, por entrevistas ou por inquérito, de jovens e sobretudo de crianças, por um lado; e da complexidade da conciliação entre o detalhe e a comparabilidade da informação recolhida sobre bem-estar das e às crianças e jovens, por outro. Apesar do consenso, e da prática já em curso em Portugal (Wall, Almeida, Vieira e Cunha et al., 2015) em torno da ideia de que as crianças devem ser ouvidas e consideradas ser crescente nos estudos sobre a infância e estar lentamente a atingir o debate público, os desafios metodológicos em desenvolver pesquisas desta natureza são ainda inúmeros e permanecem em aberto. Pela natureza do tema e pela idade dos inquiridos, as questões éticas levantadas pela interação com crianças tornaram-se de resolução mais urgente.
É certo que uma entrevista não é mais do que uma conversa com um objetivo (Ghiglione R. e B. Matalon, 1992). Mas conversar com crianças com o objetivo de obter informação comparável é um desafio que implica a reflexão crítica (1) sobre o tema da própria entrevista e (2) sobre a ordem (lógica ou de detalhe) com que se colocam as perguntas. (1) A natureza abstrata, sobretudo para as crianças, do tema do bem-estar ficou patente de várias formas: algumas crianças não entendiam as perguntas e expressaram-no explicitamente, outras não conseguiam ter uma opinião formada sobre o tema, outras davam respostas usando o mesmo tipo de vocabulário mas na verdade falando de outras coisas pouco relacionadas com a pergunta que lhes teria sido dirigida. Notámos, contudo, que o nível de entendimento - expresso consequentemente na “qualidade” das respostas – foi recorrentemente mais elevado no caso das perguntas sobre práticas, exemplos e sentimentos de bem-estar do que no caso das perguntas sobre definições e entendimento do que é, genericamente, o “bem-estar”. (2) Nesse sentido, verificámos igualmente que as divisões dimensionais, temáticas ou por domínio do bem-estar são demasiado complexas e desconhecidas pelas crianças, e portanto, a introdução de perguntas seguindo este tipo de estrutura é prejudicial à interação entre entrevistador e entrevistado e, em última instância, à qualidade e comparabilidade da informação recolhida. Uma estrutura alternativa, simplificada, seria a de separar os aspetos positivos dos negativos, e abordar os vários domínios e temáticas do “bem-estar” no âmbito de cada uma destas componentes.
Num questionário longitudinal – possibilidade que norteou o desenvolvimento do projeto que enquadra esta publicação - todas as variáveis se podem tornar “time-varying”. Mas as novas vagas de aplicação de um questionário longitudinal não podem ser simplesmente uma réplica do anterior, na medida em que o instrumento de inquirição tem que se ir adaptando e tirando proveito do crescente potencial reflexivo e de amadurecimento dos indivíduos. Contudo, alguns temas – e consequentemente variáveis – mostraram um grande potencial explicativo e variabilidade ao longo do tempo. Por um lado, a importância atribuída a grupos diferenciados de pessoas (amigos, colegas, família, etc.) para o bem-estar emocional mostra evidências de ser muito diferente na infância, adolescência, juventude e, posteriormente, no que é projetado para a vida adulta, como veremos na apresentação dos resultados. Incluir as perguntas clássicas sobre a composição e intensidade das redes sociais de apoio num estudo longitudinal permitiria finalmente e de forma inovadora, desembaraçar os efeitos idade, geração e período histórico nas transformações das redes sociais de apoio ao nível do indivíduo (Gouveia, 2014). Por outro lado, os sentimentos de pertença e a identificação tanto dos benefícios como dos inconvenientes em viver numa determinada área de residência são profundamente dependentes das especificidades habitacionais, de acessibilidade e de segurança concretas dessa mesma área. Assim sendo, seria conveniente recolher e adicionar à base de dados informação oficial e administrativa sobre as áreas de residência dos inquiridos para medir e testar a distância e a dissonância entre a satisfação émica com a residência e as condições sociais concretas que esta proporciona ou constrange ao indivíduo.

O bem-estar dito pelas crianças

Como já foi mencionado, a complexidade das repostas dadas dependeu fortemente do teor da pergunta colocada. Detetou-se, por um lado, um baixo grau de clareza, detalhe ou complexidade nas respostas dadas às questões colocadas sobre o que é ou como se compõe ou obtém o bem-estar (a definição de bem-estar), e por outro lado, um elevado grau de explicação, racionalização e exemplificação nas repostas dadas às questões relacionadas como as suas opiniões, práticas e experiências (a medição do bem-estar). Apesar da idade, estes indivíduos também demonstram a competência de situar as suas ações relativamente a si mesmos, ao seu contexto social e aos “outros”, relevando um exercício intenso daquilo a que Giddens chamou de monitoragem reflexiva da ação (1984) e um entendimento teórico do que está na base das suas atividades humanas (idem). Porém, deve ser chamada a atenção para o pouco amadurecimento desse auto-posicionamento: as crianças tendem a posicionar-se socialmente num contexto social modal (no caso português, na chamada classe média) e para caracterizar a sua experiência de vida como moderada, regular, normal, ordinária. Tal é válido mesmo nos casos de origens ou condições de existência mais baixas ou extraordinárias.
As crianças inquiridas demonstraram alguma dificuldade em definir de forma complexa o bem-estar, e maior facilidade em falar das suas experiências e emoções concretas. Assim sendo, no que se refere à definição de bem-estar, as respostas das crianças não variam de forma marcada, simplesmente bifurcando-se para um dos seguintes dois casos:
(1) O bem-estar “interior”. As crianças tendem a afirmar que bem-estar é ter tranquilidade, paz de espírito e liberdade de ação. Não ter doenças é uma justificação pontual que tende a recolher a concordância da maioria dos participantes.

Eu sinto-me bem quando vou para cama e estou sossegado. (Entrevista, João, 10 anos). Uma pessoa viver em paz, viver como ela quer, não sei. Não estarem sempre... não me vem a pala- vra... Poder ter as suas opiniões e não viver dos outros. (Entrevista, Mafalda, 10 anos)

(2) O bem-estar “exterior”. Quando se referem a este tipo de bem-estar, na maior parte das vezes as crianças estavam a referir-se à família do seu agregado doméstico, a aspetos relacionados com o ter a sua companhia, amor e apoio. Assim, apesar de assim sendo estarem a referir-se a bem-estar emocional, as crianças apontam as causas para fora da sua ação, para algo que é circunstancial, e que lhes é ou não facultado, sobre o qual não têm necessariamente controle. Vejam-se alguns exemplos.

Significa estar bem, feliz e com amor à minha volta para me sentir bem. (Entrevista, Mariana 10 anos) Estar bem com a saúde, ter amigos, e viver com quem gostamos, penso eu. (Entrevista, Maria, 10 anos).

Apesar desta aparente simples dicotomia, as crianças são capazes de identificar, através de exemplos muito concretos, contextos e características sociais responsáveis pela criação e sustentabilidade de desigualdades sociais na vivência de bem-estar. Estes preditores identificados pelas crianças são de vários níveis, do mais ao menos estrutural. A identificação de fatores produtores de desigualdades do bem-estar é, de certa forma, um exercício abstrato que implica o desenho implícito de uma causalidade. Não deixa por isso de ser surpreendente que, mesmo que recorrendo a exemplos concretos como a Guerra na Síria ou o Ébola, as crianças sejam perfeitamente capazes de situar as causas da desigualdade do bem-estar em diferentes pontos naquilo que poderia ser encarado como uma escala entre estrutura e agência. Seguem-se exemplos, dos mais estruturais aos mais individuais:

a) Contextos de Guerra

Se for num país em guerra, por exemplo a Síria, as crianças não se devem sentir muito bem. Onde não há guerras, sentem-se bem. (Entrevista, João, 10 anos)

b) Saúde

O exemplo do Ébola foi dado por Rui. (Focus Group, Rui, 12 anos)

c) Condições de vida

No pensamento se calhar não, mas se calhar há pessoas que estão piores do que eu porque umas vivem na rua, e outras até vivem em vivendas. É diferente. Há crianças que pensam muito em ter bens materiais e há outras que não. Pensam em ter pão ou comida e uma manta. (Entrevista, Maria, 10 anos)

d) Poder de Compra

Há meninos que trazem dinheiro todos os dias para ir comprar gomas. Eu não, eu trago um dia por semana. O meu pai está lá [no Brasil] para trabalhar, não é para nós gastarmos tudo. (Entrevista, Mariana, 10 anos)

e) Solidão

Quando ando na rua às vezes vejo crianças sozinhas sem ninguém ao pé delas e sinto que elas não se sentem muito bem. (Entrevista, João, 10 anos)

Os domínios do bem-estar mais referidos pelas crianças estão enquadrados no bem-estar emocional e no bem-estar social, sendo este último composto pelas relações com os familiares mais próximos – pais e irmãos – e com os amigos. Como veremos mais adiante, apesar da importância da relação com a família ser transversal a todo o curso de vida (imaginado), a posição relativa que ocupa face a outras dimensões é muito variável. As crianças tendem a referir com mais enfâse, frequência e detalhe as relações familiares do que os jovens, que tendem a valorizar mais do que as crianças os amigos e grupos de amigos.

Para me sentir bem basta me ter a minha família, ter amigos, ter saúde, não ter doenças e ter amor das pessoas, não preciso de mais nada para me sentir feliz. (Entrevista Mariana, 10 anos) Estar com a família, ter amigos, coisas que para algumas pessoas não têm nenhum significado mas para outras têm muito. (Entrevista, Maria, 10 anos)

No entanto, as relações no interior de um agregado familiar não são homogéneas. As crianças identificaram e hierarquizaram diferentes membros em termos da frequência de conflito, sendo os irmãos os mais frequentemente apontados nesse sentido. Um aspeto importante detetado nas entrevistas é o facto da maioria das crianças ter um entendimento compreensivo, emocional e empático com as decisões dos pais nomeadamente as que restringem, por agora, alguma da sua liberdade, não de expressão ou de escolha dos amigos, mas relativamente a saídas e convívios fora de casa.
Para além da família e dos amigos (com maior ênfase na juventude), outras dimensões do bem-estar foram também mencionadas, embora com menos frequência. É o caso da escola, do bairro ou das condições de habitabilidade. A escola é mencionada nas suas vertentes positiva e negativa. Do ponto de vista positivo, a escola pode ser uma fonte de bem-estar pelo motivo mais instrumental (ter boas notas) e mais contextual (é o ambiente onde emergem e se desenvolvem grande parte das amizades destas crianças). Do ponto de vista negativo, a escola pode ser uma fonte de mal-estar na medida em que nela é passado demasiado tempo, segundo estas crianças, que prefeririam passar parte desse tempo com as suas famílias.

O bem-estar dito pelos jovens

Definições e entendimentos de bem-estar segundo os jovens

De uma maneira geral, quando questionados sobre o que define o bem-estar, os jovens tendem a mencionar que significa “sentir-se bem”, “paz de espírito”, “dar-se bem com os amigos”, “dar e receber afeto” e “sentir-se bem consigo mesmo”. Apesar do bem-estar físico e do bem-estar material também terem sido mencionados, eles assumem claramente um papel secundário nestes testemunhos. O bem-estar físico é mencionado mais pelos jovens do que pelas jovens, enquanto o bem-estar material é mais mencionado por jovens de origens ou experiências sociais mais desfavorecidas, que tendem a referir de forma mais fundamentada e frequente que ter bem-estar implica necessariamente não passar por dificuldades ou privações económicas no seu quotidiano.
As definições e entendimentos dos jovens sobre o bem-estar podem ser agrupados em quatro tipos de resposta, caracterizados por seu turno por diferentes naturezas e complexidade do conceito.

Definições holísticas

Alguns dos jovens entrevistados, surpreendentemente os mais novos (cerca de 15 anos), tendem a devolver definições holísticas de bem-estar que conseguem compreender os aspetos do bem-estar mental ou psicológico, físico, e emocional ou social (receber apoio, confiança, amor, etc.). Estes são os primeiros aspetos que são mencionados em resposta à pergunta “o que é o bem-estar”.

Saúde mental e física. A saúde psicológica para estarmos bem connosco próprios. Autoestima não muito elevada mas também não muito baixa (Entrevista, Manuel, 15 anos) Estar bem psicológica e fisicamente: ter amigos e família. (Entrevista, Laura, 15 anos). O meu bem quer social, quer mental quer físico. Em que eu tenha toda a minha satisfação sem problema algum. (Entrevista, Guilherme, 15 anos) Ter pessoas que gostem de nós e gostar também delas. (Entrevista, Sara, 15 anos) Bem-estar é estar bem com as pessoas, dar-me bem com toda a gente, sentir-me bem, ser saudável, fazer o que quero. Tento fazer sempre aquilo que quero e não ir pelos outros. (Entrevista, Rodrigo, 15 anos)

Definições situadas

Há também a tendência, visível num grupo de jovens heterogéneo do ponto de vista etário, para dar respostas sobre o significado de bem-estar mais concretas, estruturais e situadas. Não foi possível identificar as características sociais ou demográficas distintivas deste grupo de indivíduos que menciona, mais do que outros grupos, a relação entre bem-estar e a satisfação de necessidades básicas.

Casa, ter comida na mesa, amigos família, acho que isso é suficiente para uma pessoa ter bem-estar. (Entrevista, Gil, 18 anos) Não passar dificuldades económicas. (Entrevista, Daniela, 18 anos) Ter uma boa alimentação, uma boa casa, não passar dificuldades. (Entrevista, Sara, 18 anos)

Definições autoevidentes

Há um terceiro grupos de jovens que, face a uma maior dificuldade em definir o “bem-estar”, acabam por dar definições do mesmo mais generalistas, redundantes ou autoevidentes, tais como:

Estar confortável, sentir-se bem. (Entrevista, Francisco, 18 anos) Alegria, felicidade, estar confortável, bem. (Entrevista, Margarida 16 anos)

Definições por camadas

Este último tipo de definições e entendimentos de bem-estar apareceu com mais frequência entre os jovens com idades mais avançadas e também nos focus groups mais do que nas entrevistas, onde os participantes tiveram uma maior oportunidade de discutir e aprofundar as várias camadas e nuances do conceito em questão. Nestas definições, os jovens fizeram questão de distinguir bem-estar de felicidade. Para estes jovens, o bem-estar é apenas a satisfação de condições de vida básicas – objetivas e subjetivas, enquanto a felicidade é um grau superior, sendo atingida de forma gradual, cumulativa ou momentânea. Tal modelo assemelha-se ao de Maslow (1943) que apresentava uma tipologia piramidal das necessidades humanas (da base para o topo): necessidades fisiológicas, relacionadas com segurança, pertença afetiva, auto- estima, e, por fim, realização pessoal. Assim sendo, para estes jovens, o bem-estar é considerado uma condição obrigatória mas não suficiente para se atingir a felicidade.

É uma a característica básica que deves ter para chegar à felicidade mas não tem nada a ver com a felicidade. (Focus Group, Pedro 17 anos) É como se o bem-estar fosse a sobrevivência. (Focus Group, Magda 18 anos) É um meio para atingir a felicidade. (Focus Group, Margarida 16 anos)

Independentemente da definição dada para o conceito do bem-estar, são três os tipos de determinantes ou preditores identificados pelos jovens para a construção e diferenciação dos processos de desigualdade no bem-estar experienciado.

(i) Condições económicas. Este foi o factor considerado mais importante, mencionado mais vezes e por mais entrevistados. A sua menção divide-se por dois aspetos distintos ainda que relacionados: o conforto e tranquilidade associados à ausência de preocupações ou privações a este nível (referindo-se portanto às condições objetivas da vida) e a tendência de alguns jovens de terem uma apresentação quotidiana de si baseada nas suas altas ou melhores condições económicas – os gabarolas. Combinando estas duas componentes, este jovens estão a reconhecer a existência não apenas de desigualdades sociais (e económicas ou sobretudo baseadas nas desigualdades económicas) mas também a existência de identidades de classe, de consumo, comportamento ou estilos de vida.

Sim, tipos os ricos, eles estão sempre no bem-estar. Para os ricos o bem-estar já é dia-a-dia. (Entrevista, Diana, transgender, 19 anos) Acho que sim, há pessoas que são bastante mais ricas do que outras, há pessoas que são pobres e não tem tantas possibilidades como as outras e infelizmente acho que o dinheiro participa muito no bem-estar das pessoas. Por isso claro que há pessoas que têm um bem-estar muito maior do que outras. (Entrevista, Gil, 18 anos)

(ii) Personalidade e auto-estima. Algumas das diferenças no bem-estar experienciados pelos jovens são atribuídas pelos mesmos a aspectos relacionados com a personalidade e com a relação dos jovens com os seus outros significativos, especial- mente com a sua família mais próxima.
(iii) O contexto familiar. Apesar de relacionado com os aspectos anteriormente mencionados, está o contexto familiar e o apoio emocional que os membros da família dos jovens são capazes de dar, e que dão, aos seus filhos menores.

Alguns adolescentes tinham problemas familiares, as famílias eram mal estruturadas, não queriam muito saber se a vida deles ia tomar um rumo. Não ligavam muito se eram bons na escola ou não, ou se tinham faltas, não se importavam assim muito. (Entrevista, Sara, 15 anos)

As arenas do bem-estar

Dadas estas definições e entendimentos do bem-estar, não é surpreendente que as arenas do bem-estar mais mencionados são os já apresentados, aos quais acresce a escola e o desporto. São as arenas do bem-estar, para os jovens, as seguintes:
- Amigos: nomeadamente ter alguém em quem confiar e com que se pode desabafar e falar sobre tudo, e ter uma rede amical estável (referindo-se sobretudo às mudanças de escola).
- Família: nomeadamente não se sentirem pressionados, sentirem-se felizes e num bom ambiente, sentirem que a família se preocupa, receberem deles afecto e validação emocional.

E a família vai ajudar porque acaba sempre por ser o nosso porto de abrigo quando as coisas não correm bem e é onde nos refugiamos para tentar resolver os nossos problemas. (Entrevista, Vera, 19 anos)

- Situação económica: não passar por dificuldades económicas e não ser discriminado pelos colegas mais populares ou mais ricos da escola.

Ter dinheiro para fazer atividades de divertimento por exemplo, ir ver um filme, jantar fora, acho que isso também pode ser incluído como bem-estar. (Focus Group, Vasco, 16 anos)

- Autoestima e bem-estar psicológico: sentir-se bem consigo mesmo, partilhar as preocupações e ansiedades, ter alguém com quem falar.

- Escola: este aspeto é muitas vezes mencionado de forma muito instrumental, no sentido em que é um bom investimento para o futuro. Contudo, alguns jovens expressam explicitamente a opinião de que a escola, em si, não traz bem-estar imediato. Este parecer é mais frequente em jovens pouco orientados para a escola e escolarização, estando mais motivados para percursos vocacionais. A escola desempenha assim um papel um papel ambíguo no bem-estar dos jovens. No imediato pode ser considerada “uma seca” mas a sua utilidade para o futuro, para a integração no mercado de trabalho, na obtenção de uma “boa profissão” e de uma elevada qualidade de vida e bem-estar é amplamente reconhecida.

- Desporto: é uma fonte dupla de bem-estar. Por um lado, a pertença a uma equipa, partilhando objectivos comuns e contribuindo individualmente para uma meta colectiva é algo que é mencionado como importante para a obtenção de bem-estar por aqueles que praticam desporto, que são predominantemente os rapazes. Por outro lado, o desporto providencia ao quotidiano bem-estar e desafios físicos.

O bem-estar ao longo da vida: prospeções e retrospeções das crianças e dos jovens

Se tomarmos como referência os testemunhos das crianças acerca das alterações sofridas no bem-estar e acerca dos factores que podem explicar essas alterações, verificamos que consideram que, entre sensivelmente os seus 7 e os 10 anos, aquelas ocorreram no sentido negativo. Tendem a associar esta tendência decrescente à mudança de escola, à diminuição da quantidade e qualidade redes de amizades perdidas com essa mudança, e à alteração da relação com os professores que se caracterizava por ser mais próxima e amigável. Em alguns casos, a deterioração do estado de saúde foi também mencionado. No quadro dicotómico em que as crianças “arrumam” o bem-estar (o bem-estar interior e o bem-estar exterior), estes factores diriam respeito ao bem-estar exterior. Contudo, no que se refere ao bem-estar interior, foi considerado por vários entrevistados que este teria melhorado, como consequência do amadurecimento pessoal, da maturidade acrescida, da experiência de vida e do desenvolvimento de personalidade

Todos os dias se aprende uma coisa. Durante 10 anos a aprender uma coisa cada dia. Deve ser muita coisa. (Entrevista, Maria, 10 anos)

Na projeção futura, as crianças tendem a referir aspectos como o sucesso escolar, as notas elevadas e o ingresso no ensino superior, como os principais preditores do seu bem-estar a curto prazo. Já a longo prazo, os aspectos mais referidos são novamente relacionados com os seus familiares atuais e novos (futuros cônjuges e/ou filhos), as suas relações pessoais, a saúde e os laços sociais. Este exercício prospetivo evidenciou-se como mais difícil para as crianças do que o exercício retrospetivo, o que é um aspeto a ter em conta em inquirições por questionário. Nesta projeção, as mais significativas mudanças apontadas são: o aumento das preocupações e do investimento na saúde física, um maior investimento na atividade escolar e uma maior satisfação retirada do mesmo, uma maior preocupação em obter validação e orgulho por parte dos pais, uma diminuição da importância dada a bens materiais e superficiais, e uma maior preocupação com o bem-estar dos outros significativos.

Se calhar vou dar mais valor às coisas daqui a uns anos. Quando for eu a pagar as coisas se calhar vou-lhes dar mais valor. (Entrevista, Gil, 18 anos). Vou valorizar menos os bens materiais, vou dar mais valor ao dinheiro (não o gastar, é nesse sen- tido). E vou continuar a dar valor aos amigos e a família. (Entrevista, Rodrigo, 15 anos)

Por outro lado, são também identificados alguns objectivos para o futuro: adquirir estabilidade financeira, constituir família, não tomar os bens materiais como garantidos, mais liberdade para convívios sociais fora do contexto familiar, ter uma profissão estável, e ter boas relações com a família que entretanto contam constituir. As amizades continuam a ser consideradas muito importantes mas perderão importância devido à mudança da sua natureza. Os jovens antecipam que estas amizades se tornarão mais superficiais e menos afectuosas.

Se já estiver com a família, é o bem-estar da família, sair a noite e ter um bom trabalho. (Entre- vista, Hugo, 16 anos) Ter um bom trabalho, não ter problemas no trabalho, os meus colegas não me chatearem, eles gostarem de mim e eu deles, termos uma boa relação. Conseguir pagar as contas, as coisas básicas, e ter uma casa onde nos sentimos bem. (Entrevista, Sara, 15 anos)

O próximo gráfico ilustra as tendências mais frequentes e as oscilações ao longo do tempo da importância atribuída a diferentes esferas da vida enquanto preditoras do bem-estar. Verificamos então que embora a natureza da relação com o dinheiro e com o conforto económico se altere com o tempo (na infância foi importante ter muitos brinquedos, na juventude ter boas roupas e dinheiro para atividades de lazer e na idade adulta será importante a autonomia financeira), o grau da sua importância mante-se estável e de forma transversal ao longo do tempo. Já a importância atribuída aos amigos atinge o seu pico na juventude mas decresce à medida que os indivíduos se aproximam da idade adulta. Finalmente, a família prevê-se sempre muito importante, sendo talvez apenas ultrapassada pela importância que os amigos adquirem na juventude.

 

 

Conclusões

Este artigo partiu da ponte entre duas premissas e de uma interrogação. Por um lado, assenta na ideia de que as crianças e jovens devem ser entendidos pela academia e pelos decisores políticos como os “peritos sobre a sua própria vida e bem-estar” (Mason e Danby, 2011: 185). Por outro, partiu da noção de que recolher informação comparável (entre grupos sociais, unidades geracionais ou ao longo do curso de vida) junto de crianças e de jovens requer alguma cautela. Que desafios se encontram na inquirição de crianças e jovens sobre como definem e como avaliam o seu bem-estar? Esta é a interrogação a que um projeto de investigação europeu (MYWEB) procura responder, por meio de uma pesquisa qualitativa junto de jovens e de crianças que procurou perceber os desafios e obstáculos de um eventual Inquérito Longitudinal ao Bem-estar das Crianças e Jovens na Europa.
Relativamente às crianças verificaram-se distinções claras no detalhe e compreensão da resposta consoante o perfil da pergunta colocada. Assim, nas questões colocadas sobre o que é ou como se compõe ou consegue o bem-estar verificou-se um menor grau de clareza, detalhe e complexidade nas respostas do que nas questões relacionadas como as suas opiniões, práticas e experiências. Esta distinção não anula, contudo, a transversalidade de uma monitoragem reflexiva da acção (Giddens, 1984) nos discursos construídos, ainda que o auto-posicionamento social das crianças ainda não espelhe necessariamente as coordenadas sociais em que efetivamente se situam. As crianças parecem conseguir exemplos concretos de contextos e características sociais responsáveis pela criação e sustentabilidade de desigualdades sociais na vivência de bem-estar como é o caso dos contextos de guerra, epidemias, condições de vida ou solidão.
Os jovens apresentaram resultados ligeiramente diferentes (dos das crianças e entre si). A heterogeneidade encontrada no tipo de definições avançadas para o bem-estar resume-se em quatro tipos: (1) definições holísticas, (2) situadas, (3) auto-evidentes e (4) por camadas, que não encontram correspondência linear com as características sociais consideradas importantes para a composição de uma amostra socialmente diversa. As definições holísticas abordam em iguais estatutos os aspetos do bem-estar mental ou psicológico, físico, e emocional ou social; as definições situa- das tendem a fugir à abstração da pergunta no sentido em que a resposta se centra em aspetos muito concretos como a alimentação, a casa, as dificuldades económicas. As definições auto-evidentes seguem lógicas tautológicas. Pelo contrário, as definições por camadas apresentam uma elevada complexidade, recorrendo a distinções entre diferentes níveis e etapas na conquista do bem-estar extremo, a felicidade.
Reunindo os diferentes recortes temporais sobre as arenas do bem-estar (diferentes coortes sobre o presente, passado e futuro), concluímos ainda que as três principais arenas do bem-estar mais mencionadas (família, amizades e conforto económico) adquirem ao longo do tempo (real e projetado) diferentes proporções. A importância do conforto económico parece ser estável ainda que se altere substancialmente o seu conteúdo (na infância teria sido importante ter muitos brinquedos, na juventude ter boas roupas e dinheiro para atividades de lazer e na idade adulta será importante a autonomia financeira). Já a importância atribuída aos amigos atinge o seu pico na juventude mas decrescerá, segundo os inquiridos e o que projetam para o seu futuro, à medida que os indivíduos se aproximam da idade adulta. Finalmente, a importância da família adquire uma importância transversal ao curso de vida, competindo o seu lugar de primazia apenas com a importância que as redes de amizade adquirem no período da juventude.

 

Referências

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Endereço de correspondência: CIES-IUL, Edifício ISCTE, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. Email: magda.nico@iscte.pt

Endereço de correspondência ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, Edifício ISCTE, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. Email: nalmeidaalves@iscte.pt

 

Artigo recebido em 4 outubro de 2016. Publicação aprovada em 29 de março de 2017.

 

Notas

1 No caso da OCDE, as dimensões relevantes para o conjunto da população são segurança, saúde, emprego, acesso a serviços, envolvimento cívico, ambiente, habitação, rendimento e educação; no caso da UNESCO e exclusivamente no respeitante ao bem-estar infantil, as dimensões consideradas são bem-estar material, saúde e segurança, educação, comportamento e riscos, e habitação e ambiente.

2 O projeto MYWEB (Grant Agreement 613368) esteve em curso entre março de 2014 e agosto de 2016, foi coordenado por Gary Pollock (Manchester Metropolitan University) e envolveu 14 universidades e centros de investigação de 11 países, tendo sido financiado pela Comissão Europeia ao abrigo do Topic: SSH.2013.6.3-1 — Towards a European longitudinal childhood and youth survey. Support scheme: CSA- SA — Support actions.

3 Deixamos aqui o nosso agradecimento a Ana Alexandre, Augusta Correia e Nuno Ferreira pela colaboração na realização de algumas entrevistas e focus-groups.

4 O guião incluía ainda outras questões relativamente ao interesse dos jovens na participação num futuro Inquérito Longitudinal sobre o Bem-estar de Crianças e Jovens e modalidades que pudessem potenciar essa mesma participação

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