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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia  no.tematico7 Porto Dec. 2017

https://doi.org/10.21747/08723419/soctem2017a2 

ARTIGOS

Artes e inclusão social: projetos e ações enquanto experiências metodológicas

Arts and social inclusion: projects and actions as methodological experiences

Arts et inclusion sociale : les projets et les actions comme des expériences méthodologiques

Artes y inclusión social: proyectos y acciones como experiencias metodológicas

Natália Azevedo

Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora integrada do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Porto, Portugal).

Endereço de correspondência

 


RESUMO

A sociologia e as artes configuram relações teóricas e processuais possíveis, necessárias e visíveis, nos campos científico, organizacional e comunitário. A circularidade entre projetos artísticos, atores sociais e territórios, com vista a discursos e práticas de inclusão social, mantém-se um pressuposto analítico e social sustentável. Interessa-nos confrontar virtualidades e limites das experiências metodológicas de observação desses parâmetros em relação. As que realizámos sobre o trabalho da PELE com comunidades locais em ação, a partir de projetos de teatro em prisões, sugerem-nos pontos de chegada possíveis e interrogações plausíveis.

Palavras-Chave: artes, inclusão social, processo metodológico, teatro nas prisões.

 


ABSTRACT

Sociology and arts have theoretical and social relations, which are possible, necessary and visible in scientific, organizational and community fields. The circularity between artistic projects, social actors and territories is an analytical and social sustainable assumption, directed to speeches and social inclusion practices. Our aim is confronting advantages and limits of observation's methodological experiences about these parameters in relationship. The observations around PELE's work, with local communities in action (theatre projects in prisons), brings questions and results to discussion.

Keywords : arts, social inclusion, methodological process, theatre in prisons.

 


RÉSUMÉ

La sociologie et les arts ont des relations théoriques et processifs possibles, nécessaires et visibles, dans le champ scientifique, les organisations et la communauté. La circularité entre projets artistiques, acteurs sociaux et territoires, en vue de discours et pratiques d'inclusion sociale, est un principe analytique et social durable. Nous cherchons confronter virtualités et limites des expériences méthodologiques d'observation de ces paramètres en relation. Les observations sur les travaux de PELE avec les communautés locales (projets de théâtre dans les prisons) nous montrent des questions et résultats possibles.

Mots-clés : arts, inclusion sociale, trajet méthodologique, théâtre dans les prisons.

 


RESUMEN

Sociología y artes tienen relaciones teóricas y procedimentales posibles, necesarias y visibles en los campos científico, organizacional y comunitario. La circularidad entre proyectos artísticos, actores y territorios, con miras a discursos y prácticas de inclusión social, constituye una asunción teórica y social sostenible. Buscamos confrontar ventajas y límites de experiencias metodológicas de observación de estos parámetros en la relación. Las que hemos tenido en el trabajo de PELE con las comunidades locales en acción (proyectos de teatro en las cárceles) nos sugieren resultados y plausibles preguntas.

Palabras clave: artes, inclusión social, proceso metodológico

 


1. Nota introdutória

Artes e inclusão social têm sido enquadradas como vetores possíveis de uma relação necessária e sustentável. Com o presente texto1 pretendemos relançar questões que a nossa experiência metodológica em torno do trabalho cultural da associação PELE2 acabou por nos suscitar (Azevedo, 2014; 2012).

A sociologia e as artes configuram relações teóricas e processuais possíveis, necessárias e visíveis nos campos científico, organizacional e comunitário. Mais do que fundamentar a circularidade processual entre projetos artísticos, atores sociais e territórios, com vista a discursos e práticas de inclusão social (até ao momento, um pressuposto analítico e social relevante e sustentável), interessa-nos confrontar virtualidades e limites das experiências metodológicas de observação desses parâmetros em relação. As observações que realizámos sobre o trabalho da PELE com as comunidades locais em ação, a partir de projetos teatrais e no caso do teatro em prisões (a “encenação de si pelo próprio”)3, sugerem pontos de chegada e interrogações plausíveis. Não são resultados nem pressupostos teóricos os que aqui situamos; são elementos que fazem parte de um processo metodológico que, a dado momento, nos colocam perante virtualidades e dificuldades inerentes ao nosso papel como investigadores: investigadores da sociologia e investigadores em relação direta com contextos culturais e artísticos com determinadas características sociais. Num outro sentido, colocam-nos perante uma das questões centrais no campo das artes e da inclusão social: como entrecruzar a temporalidade curta e circunstancial de tais projetos com as histórias de vida de atores sociais marcadas por problemas sociais estruturais e estruturantes? Como viabilizar modos de inclusão social, esfera da totalidade do social, por via de estratégias de atuação que tendem a situar-se na esfera do circunstancial e dos espaços-tempos imediatos e provisórios?
O trabalho de criação teatral com populações específicas, e com acentuada e assumida componente interventiva nos contextos de vida das populações, confrontou-nos com o desafio de fazer o acompanhamento do processo de criação teatral ENTRADO (entre dezembro de 2009 e julho de 2011), em contexto prisional – Estabelecimento Prisional do Porto – e com populações de reclusos homens. Por outras palavras, concretizar uma monitorização qualitativa do projeto a partir dos discursos e das práticas dos atores envolvidos (reclusos, instituição prisional e PELE). As entrevistas à direção e técnicos, os inquéritos aos reclusos, a análise documental dos registos audiovisuais do trabalho criativo e da comunicação social, e a observação direta participante do contexto da peça (atores e públicos) foram os dispositivos técnicos que melhor se ajustaram ao desafio. A partir daqui iniciou-se um novo cenário de intervenção e avaliação pela e para a própria associação: dinâmicas de trabalho da PELE que se prolongaram pelo teatro comunitário em prisões (com novos projetos, inclusive com mulheres reclusas) e por outras áreas de intervenção junto das comunidades; instrumentos extensivos e qualitativos de medida e de interpretação dos processos e dos resultados; equipas um pouco mais pluridisciplinares e com acentuada presença de stakeholders; condicionalismos constantes decorrentes dos financiamentos, internos e externos. A este processo de avaliação organizada e crescente, não são estranhos, por um lado, o crescimento da instituição - adquiriu legitimidade cultural, política e social (no Porto e fora do Porto) e institucionalizou-se mais nos seus papéis de intervenção cultural e artística, sem a tal contrapor-se um poder efetivo de ação face aos condicionalismos financeiros; por outro lado, a representação social positiva quanto ao lugar da cultura no território e na comunidade - tornou-se mais pública e visível no quotidiano urbano da cidade do Porto.
Nestas andanças possíveis que tivemos, e noutras similares (algumas delas relativas às políticas públicas para a cultura e para as artes dos municípios da Área Metropolitana do Porto), mantivemos três níveis de reflexões metodológicas. São reflexões cujo progressivo investimento político, simbólico e representacional nas artes orientadas para a inclusão social tem demonstrado a necessidade de ponderar os limites e as virtualidades da centralidade em ação da cultura e das artes na contemporaneidade urbana. E, nesse contexto, os papéis possíveis do sociólogo como modesto e legítimo observador.

2. Cultura, artes e inclusão social

Primeira reflexão: as proximidades entre cultura e artes. É a dimensão material e simbólica do conceito de cultura que o configura na sua definição antropológica mais global: o universo social é um universo cultural. A especificidade de ambos reside na diversidade, conciliação e conflitualidade dos modos sociais de criar, vivenciar e reconfigurar a cultura. Como em qualquer outro domínio do social, as dicotomias poderão ressurgir, não tanto no cariz dos discursos teóricos sobre este universo – dicotomias paradigmáticas ultrapassadas, poder-se- á dizê-lo – mas mais nas vivências quotidianas da cultura, seja em contextos de cultua-ação seja em contextos organizacionais de cultura-objeto, ou de cultura tornada objeto artístico. As dicotomias exigem a interação disciplinar entre campos científicos próximos e as subtilezas epistemológicas e metodológicas de diferenciação dos mesmos. A sociologia da cultura e a sociologia da arte (ou das artes, como preferimos perspetivar) corporizam bem as questões da simultaneidade relativa.

 

 

Quando nos confrontamos com a cultura tornada objeto e prática distintiva (e a aproximação ao universo da arte desenha-se desde logo), os discursos interiorizados sobre as práticas possíveis na relação com a criação e a receção dos objetos-arte colocam desafios aos que protagonizam tanto os projetos da conceção/criação nas áreas artísticas, como os que por diversas vias sustentam esforços organizados de mediação cultural e artística. Cenários similares desenham-se quando aquilo que pretendemos é concretizar o desafio da inclusão social de, e com populações socialmente desprovidas de relações com a arte – socialmente entendida no sentido ideológico mais distintivo e, como tal, mais propiciador de relações de distância social com os universos das artes.
Os projetos artísticos, os projetos de intervenção cultural, os projetos de teatro em prisões, os projetos culturais de inclusão social, para não falar de outras expressões que traduzem o suposto empowerment daquelas populações por via das artes, constituem expressões que salvaguardam, em última instância, o seguinte: a arte na sua pluralidade e, como tal, as artes na relação circular com os outros em ação. As fronteiras daquilo que é arte, num dado contexto, são também uma representação interpretada por uma comunidade de pares (Becker, 2010). As artes são o resultado de processos sociais, datados e situados, e não um corpus de objetos definidos uma única vez e por todos os que representam instituições e disciplinas consagradas. É uma proposta in progress, contraditória e tensa. Ou, pelo menos, assim o entendem os modelos teóricos da transversalidade horizontal das manifestações culturais, na tentativa de dessacralização daquilo que sempre constituiu a referência artística legitimada: seja a que reporta para o património artístico das sociedades, solidificadas em camadas de legitimação estética e simbólica pelo tempo histórico, pelos efeitos da raridade e da autenticidade e pelos discursos que historicizam os processos da criação artística das sociedades; seja a que reporta para as convenções mais flutuantes e provisórias da contemporaneidade artística.

 

 

Interpretar as potencialidades do trabalho daqueles que são atores/criadores das suas próprias condições de manifestação cultural – como no caso dos protagonistas dos projetos artísticos com vista a modos de inclusão social – permite-nos visualizar o quão as trajetórias individuais continuam a ter relevo na relação direta e constante com as práticas culturais. O trabalho artístico realizado em contextos prisionais - os atores sociais em interação sobre o seu território (a instituição total) - as relações entre os grupos de reclusos e as expressões culturais – como o teatro – situam-se para além do momento da conceção in loco. Não é fácil nem imediato
fazê-lo, pois a dimensão estrutural de tal trabalho tanto se situa antes como depois da conceção do próprio projeto. E, nesse sentido, os modos de criação e de receção dos objetos artísticos variam, a montante e a jusante, de acordo com as características estruturantes das trajetórias de vida social das populações-alvo. Pressuposto este que se aplica, do nosso ponto de vista, às análises que façamos das trajetórias individuais de qualquer ator social.
A “encenação de si pelo próprio”, no teatro, na dança e nas artes performativas, na música, nos textos escritos e dramatizados, nos registos fotográficos, nas artes plásticas, ou noutra forma de expressão, confronta-nos, e de modo constante, quase redundante, com quatro níveis de questionamento: i) como são consideradas as artes nos contextos em que os atores sociais sem relação com as artes são os criadores das propostas artísticas em ação?; ii) onde reside a especificidade formal e simbólica das propostas artísticas em cenários convencionais e não convencionais?; iii) o que são artes com populações desprovidas de capitais artísticos ou, se se preferir, desprovidas daqueles que se localizam no campo legitimado e avaliativo do mundo da arte?; iv) o que define em termos técnicos e formais, mas de igual modo, simbólicos e vivenciais, as propostas artísticas em contextos comunitários?
Na abordagem da relação entre cultura e artes, o binómio em relação transfigura-se de vez em quando, sempre que se ajusta, e de acordo com os papéis dos atores sociais em co- presença e co-criação. A circularidade cruzada entre os vértices da criação, receção e mediação artísticas tende a situar a abordagem às artes na pluralidade teórico-metodológica, por um lado, e na hibridez das propostas de leitura criativa do social, por outro.

3. Criação, receção e mediação

Segunda reflexão: a circularidade entre criação, receção e mediação na relação com os objetos artísticos. Consideramos que a monitorização metodológica dos projetos artísticos só pode ser entendida quando enquadrada na totalidade das esferas de relação com as artes – criação, receção e mediação – e segundo os papéis sociais assumidos – criadores, públicos e mediadores. Ainda que a análise sociológica de apenas uma das esferas seja pertinente, torna-se mais heurística quando conseguimos perspetivar, de modo relacional e integrado, as três esferas e respetivos atores sociais.
A curiosidade sociológica que, desde logo, se revela é a que diz respeito à sociodemografia dos atores sociais presentes nos projetos desta índole. Mesmo que, a priori, tais atores enquanto públicos-alvo dos projetos reflitam as características próprias de quem vive situações de não inclusão social, tal não invalida um levantamento organizado daquelas mesmas características. A especificidade do trabalho com estas populações enquadra-se, desde logo, nas características dos que protagonizam tais projetos. São populações que, de alguma forma, detêm elementos identitários que as aproximam: as condições jurídicas e sociais de existência e as trajetórias de vida associadas a padrões de exclusão social. Há uma homogeneidade relativa das suas condições sociais de existência. Valerá a pena atender, porém, à diversidade social que essas mesmas trajetórias de vida albergam e integrá-las (ou perspetivar como se integram) nos projetos criativos para os quais tais populações são motivadas a participar. Sempre que exequível, a avaliação-diagnóstico (a avaliação ex-ante) pode evitar intervenções casuísticas e momentâneas, sem continuidade, e cuja sustentabilidade temporal e institucional é quase sempre entendida como um ponto de chegada não garantido e, como tal, um efeito inevitável da falta de condições institucionais para a continuidade destes projetos.
Em segundo lugar, a viabilidade conjuntural dos projetos aqui em discussão define-se no enquadramento tutelar de organizações/instituições, de espaços-tempos públicos e/ou de territórios comunitários, o que se torna variáveis e ponderáveis os recursos materiais, humanos e financeiros exigíveis, as relações sociais (de poder, de autoridade), as lógicas de funcionamento dos campos. Se é razoável a configuração sociodemográfica dos protagonistas criadores, razoável também se torna a dos técnicos e/ou representantes associativos que estabelecem o duplo papel de criadores/mediadores. Quais são os critérios representacionais assumidos pelos seus interlocutores, mais familiarizados com o campo artístico (legitimado ou “menos legitimado”) e com as linguagens da produção e receção artísticas? Que perfis configuram? E como se situam nas interações sociais com as populações-alvo, dentro e fora dos espaços- tempos da criação?
Num caso ou noutro caso, os traços sociodemográficos e as características motivacionais (discursivas e práticas) são elementos que urge descrever e interpretar pois poderão tender a reproduzir parâmetros próximos dos da exclusão social. Não integram estes atores associativos grupos de voluntários que, à partida, são excluídos dos próprios processos de tomada de decisão ou categorizados em modos de vida socioeconómicos, ora situados na economia informal ora nas desigualdades estruturais? Procuremos reter as características de ambos os lados da relação, entre os que coprotagonizam as ações criativas e os que estimulam a planificação criativa, e ponderar até que ponto estes últimos são alavancas possíveis para algum modo de mudança social entre aqueles.

 

 

Em terceiro lugar, os projetos integram públicos: os públicos-alvo dos projetos, mas, de igual modo, os públicos-recetores, ambos entendidos como atores que desenvolvem modos de relação com instituições, com projetos, com obras/objetos/bens, com usos diferenciados das experiências de envolvimento ativo, de cidadania crítica e reflexiva. A avaliação de tais projetos deve contemplar em qualquer momento a caracterização sociodemográfica e a interpretação das motivações e expectativas destes públicos. Como referenciámos antes, o que os levam a participar como atores de si próprios em encenações coletivas e personificando vivências de exclusão social? Se a participação é voluntária e assente na relativa homogeneidade de condições sociais, como será possível alargar o leque de mobilização e participação dos públicos para projetos artísticos que não se restrinjam a áreas de intervenção pautadas pela exclusão social instituída e pela precariedade de recursos sociais e económicos?
Por outro lado, são públicos diversificados os que se assumem na sua condição de recetores: públicos-família/amigos, públicos-atores e encenadores, públicos-institucionais, públicos com proximidades afetivas e profissionais aos contextos encenados; de modo geral, públicos que se definem pelo papel mais próximo ou mais distante face às instituições presentes e aos processos criativos em causa, à relação com os espaços públicos e territórios comunitários; públicos que vivenciam experiências de receção em espaços não convencionais, públicos que integram nas suas práticas de saída abordagens artísticas como estas. Públicos com tantas outras peculiaridades a tipificar.
A mediação informal entre públicos-atores deles próprios e criadores mescla-se nos trabalhos desenvolvidos, sobretudo quando situados a uma escala micro. Integremos na análise dimensões mais externas aos atos criativos e que abordam os conteúdos e o valor das obras produzidas nestes contextos peculiares: quadros institucionais e organizacionais da produção, receção e distribuição; lógicas do campo cultural e artístico, convenções instituídas, do ponto de vista formal e substantivo. Como transpor os processos artísticos em contextos não convencionais e em momentos quase informais de criação/interação, para os quadros institucionais que legitimam barreiras culturais e hierarquias artísticas?
Para o efeito, poderemos agilizar marcadores observacionais que vão desde a análise dos domínios/setores artísticos e dos atores sociais (criadores, mediadores, mercados, públicos), passando pelos resultados (duráveis e em curso) e pelos efeitos da artification (legitimação e autonomização das práticas, esteticização e autentificação das obras), até às abordagens terminológica, institucional ou estética, para citar apenas alguns do processo em si (Heinich; Shapiro, 2012). Nas camadas mais visíveis do processo, encontramos atores sociais que autonomizam propostas de intervenção social, que treinam e consolidam estratégias identitárias e de autoestima social e individual. Fica-nos na mente como, à la longue, conseguimos solidificar a relação entre a sustentabilidade dos projetos e a possibilidade de contribuir, de facto, para processos de mudança social dos trajetos de vida dos protagonistas. São duas dimensões que nos reportam, também, para o universo das políticas públicas para cultura e as artes, tanto no seu enfoque europeu e nacional, como regional e municipal.

4. Enfoque qualitativo e versatilidade de papéis observacionais

Terceira curiosidade: as virtualidades processuais das observações qualitativas em diferentes momentos dos processos de conceção, construção, vivência e receção dos projetos artísticos com as características já apontadas. Pressupomos com convicção, e face à proximidade e familiaridade com as trajetórias da investigação qualitativa, que se trabalhe segundo um desenho de pesquisa participado, assente em princípios da abordagem intensiva do social, por mais plástico e duradouro que seja, nessa ambiguidade, o próprio social. Integramos os olhares sobre os atores, objetos e contextos peculiares do mundo das artes; a redefinição constante dos mesmos atores no quotidiano da relação interacional e nos quadros estruturantes das suas condições de vida; a relação possível entre a sociologia e o espaço público, as artes e as comunidades, e as trajetórias de vida e o campo de possíveis por via das criações artísticas.
O processo observacional contempla, desta forma, o pressuposto de descrever e interpretar os projetos artísticos orientados para a inclusão social como um processo de fabricação de objetos artísticos (Heinich; Shapiro, 2012), aproximando-nos dos momentos de planificação, intervenção e avaliação dos projetos e dos modos como os seus protagonistas desenvolvem práticas culturais no quotidiano que se transformam em artes. Neste sentido, e numa prática de avaliação in progress (aquela que corresponde ao durante da execução do que foi planeado com os grupos sociais, mas que integra, de igual modo, o que está antes – ex-ante - e o que está depois – ex-post), indicamos a descrição sistemática e necessária das situações e dos atores criadores: o registo da origem e da existência processual das propostas artísticas; a vertente descritiva e analítica a partir de testemunhos diferenciados; as avaliações positivas e negativas, legitimadas ou não legitimadas, no quadro do mundo das artes, feitas por interlocutores internos e externos ao processo de criação artística; os modos como tais projetos saem dos espaços não convencionais e se localizam, territorial, institucional e simbolicamente, no âmago dos espaços artísticos convencionais; os discursos da legitimação mediática e artística sempre que tais deslocalizações têm lugar em espaços legitimados; a visibilidade institucional, política e artística desigual dos projetos sempre que as associações que os medeiam se tornam alvo de mediatização e de apropriação simbólica no campo dos mass media e no campo da receção e criação artística dominante.
Sempre que possível, e tomando como pressuposto metodológico a necessidade do enquadramento de tais projetos na longa duração, uma pesquisa-ação de cariz etnográfico torna- se operacionalizável. Salvaguarda-se a relação estreita com a materialidade das ações quotidianas (sob suporte analítico de uma sociologia pragmática), os atributos formais e semânticos dos objetos que, a dado momento, também aspiram a algo de artístico, as especificidades dos contextos institucionais que permitem tais projetos; as ações dos sujeitos, os sentidos que dão às suas ações e os efeitos que têm sobre as suas práticas; os modos como os atores sociais são incorporados enquanto atores criadores nos processos de criação simbólica; a construção das categorizações artísticas por via dos discursos e práticas destes atores (como se distanciam, se mesclam ou se relativizam); os modos como formas de arte se tornam mais visíveis e integradas no quotidiano destas populações (os contextos de ensino, os contextos familiares e os contextos relacionais são alguns dos contextos paralelos a explorar analiticamente). O alargamento das chamadas “artes estabelecidas” e a visibilidade social de “novas formas de arte”, quer nos espaços convencionais de criação/receção, quer nos espaços públicos e na sobreposição/mescla/transversalidade entre diversos lugares da criação/mediação/receção artísticas, são o desafio de quem procura desenvolver dispositivos sistemáticos de observação.

 

 

A prática docente do sociólogo constitui a prática científica e pedagógica acumulada e estruturada, mas enformada/informada pelas experiências pessoais e profissionais ligadas à investigação empírica e aos projetos de intervenção (a investigação aplicada). Nesse sentido, o investigador pode dominar as técnicas e o saber-fazer e, nesse quadro, desenhar uma leitura dos processos sociais. Num outro, e acumulado com este último, o sociólogo é um ator social em ação, próximo das áreas sociais em análise, desenvolve gostos, interações, opções, afinidades; proximidades e distâncias, consensos e conflitos. A posição epistemológica e metodológica particular do sociólogo, e naquilo onde reside alguma da sua especificidade profissional, parece-nos, é a da reflexividade dos sujeitos envolvidos, associada à intervenção técnica e social do sociólogo nos contextos em análise. Nos contextos artísticos em discussão, mantém-se a convicção quanto ao necessário metadiscurso como pressuposto base do seu trabalho analítico. Porém, as virtualidades da relação multidisciplinar com outros atores (investigadores e criadores) na construção dos discursos e práticas não pode ser descurada sob pena de ficar em causa a versatilidade relativa do sociólogo na conciliação e/ou negociação dos conflitos e das diferenças nas relações de poder instituídas nos campos sociais. O equilíbrio necessário entre perfil técnico, perfil ético e bom senso do sociólogo na gestão diária da investigação participada constitui, na área da sociologia amadurecida e sustentada enquanto ciência social, o desafio por excelência do exercício profissional.
Fazê-lo na área privilegiada das representações sociais sobre o que é cultura e o que é arte (e dizê-las artes relativiza o acento distintivo daquela) corporiza mais e melhor o alcance e limites do mesmo desafio. Não se pode escapar (se é que a questão pode ser assim colocada – “escapar?” ou antes “obliterar”) à representação social do sociólogo como “avaliador”, como aquele que não só atribui sentidos positivos e negativos, como pondera e define as melhores e mais ajustadas soluções para os problemas sociais. É uma visão dicotómica, e reproduzida enquanto tal, a da proximidade técnica aos órgãos de poder político ou do discurso crítico e contrário ao poder político instituído, ambas ideologias sociais intra e extra ao campo da sociologia e do sistema social global. No campo das artes a expectativa social quanto ao trabalho a desenvolver pelo sociólogo, com a validação social dos dados (discursos e práticas) por vezes atenua, outras vezes dificulta a dimensão operacional dos projetos de intervenção artística.
Parece-nos sensato, e necessário, na conciliação entre ditames éticos formais e sentido cívico crítico do cidadão sociólogo, que a conciliação contínua e progressiva entre teoria e empiria se processe; que a investigação participada não desvirtue enquanto prática a centralidade dos princípios teóricos assumidos; que a investigação se oriente para contextos sociais, não necessariamente por razões académicas, mas como construção conjunta (com pares e atores sociais) de linguagens, de práticas de intervenção, de discursos de construção e de avaliação. Não tornemos tais projetos artísticos orientados para a inclusão social como projetos de encenação artificial da mudança social – por vezes, se não quase sempre, é esse o lastro social que fica por via dos seus interlocutores privilegiados. Tornemo-los práticas sustentáveis e plausíveis.

 

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Natália (2012), “ENTRADO – Andamentos breves de uma monitorização in progresso”, in AAVV – Imaginarius ENTRADO, Percursos de um projecto teatral numa prisão, Porto, Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, PELE – Espaço de Contacto Social e Cultural, CCTAR – Centro de Criação de Teatro e Artes de Rua, pp. 68-83.         [ Links ]

- (2014), “Das relações entre artes e prisões: em jeito de glossário metodológico”, in Cruz, Hugo (coord) – Arte e Comunidade, Lisboa, FCG, pp. 487-499.         [ Links ]

BECKER, Howard (2010), Mundos da Arte, Lisboa, Livros Horizonte.         [ Links ]

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PELE, Espaço de Contacto Social e Cultural, consultado a 30/06/2017, disponível em https://www.apele.org/.         [ Links ]

 

Endereço de correspondência: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal. Email: nazevedo@letras.up.pt

 

Artigo recebido em 22 de fevereiro de 2017. Publicação aprovada em 6 de setembro de 2017.

 

Notas

1 O artigo retém as dimensões tratadas na comunicação “Teatro comunitário nas prisões – uma experiência metodológica”, apresentada nas Jornadas do Instituto de Sociologia que tiveram lugar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) a 14 e 15 de janeiro de 2016. Enquadramos no presente texto os objetivos e as circunstâncias de discussão das temáticas na altura tratadas.

2 PELE, Espaço de Contacto Social e Cultural. Como anotado na página oficial da associação, é uma estrutura artística do Porto, criada em 2007, que desenvolve projetos teatrais enquanto criações coletivas e segundo processos de trabalho orientados pela centralidade do indivíduo e da comunidade nos processos da criação. Para mais informações, consultar https://www.apele.org

3 No link https://www.apele.org/entrado estão disponíveis os suportes documentais alusivos ao projeto ENTRADO (2009-2011) e que corporizam a sua memória documental.

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