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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia  no.tematico6 Porto dez. 2016

https://doi.org/10.24747/0872-3419/soctema7 

ARTIGOS

 

A família conta: ilustrações a partir do fado

The family tells: illustrations from fado

La famille raconte : illustrations à partir du fado

La familia cuenta: ilustraciones a partir del fado

Ana Gonçalves

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL). Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro em Rede de Investigação em Antropologia, (Lisboa, Portugal). Endereço de correspondência: Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa, Portugal. E-mail: goncalves-ana@campus.ul.pt

 


RESUMO

Este artigo procura contribuir para a exploração das relações entre memórias familiares e curso de vida, salientando as suas características dialógicas e dinâmicas. O ponto focal desta abordagem é o reconhecimento de que as histórias de família estão sujeitas a alterações ao longo do tempo e encontram-se profundamente enraizadas nas biografias pessoais, assim como a memória é um elemento central no curso de vida do indivíduo, que em si mesmo implica a possibilidade de conhecer, viver, recordar e compartilhar experiências significativas. Uma família ligada ao fado serve de ilustração empírica.

Palavras-chave: herança cultural; memória familiar; histórias de família.


ABSTRACT

This article aims to contribute to an exploration of the relations between familial memoires and life course, specially stressing their dialogical and dynamic features. The focal point of this approach is the recognition that, on the one hand, family stories are subject to change over time and are deeply rooted in personal biographies, and, on the other hand, the memory is a central element of the individual's life course, which itself involves the possibility to know, live, remember and share meaningful experiences. A family linked to fado serves as an empirical illustration.

Keywords: cultural heritage; familial memories; family stories.


RÉSUMÉ

Cet article vise à contribuer à l'exploration des relations entre mémoires familiales et cours de vie, en soulignant ses caractéristiques dialogiques et dynamiques. Le point focal de cette approche est la reconnaissance du fait que les histoires de famille sont susceptibles de changer au fil du temps et sont enracinées dans les biographies personnelles, ainsi que la mémoire est un élément central du cours de vie de l'individu, que lui-même implique la possibilité de connaître, vivre, rappeler et partager des expériences significatives. Une famille liée au fado sert d'illustration empirique.

Mots-clés: héritage culturel; mémoire familial; histoires de famille.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo contribuir a la exploración de las relaciones entre las memorias familiares y el curso de vida, haciendo hincapié en sus características dialógicas y dinámicas. El punto central de este enfoque es el reconocimiento de que las historias de familia pueden cambiar con el tiempo y están arraigadas en las biografías personales, así como la memoria es un elemento central del curso de vida del individuo, que a su vez implica la posibilidad de conocer, vivir, recordar y compartir experiencias significativas. Una familia ligada al fado sirve como ilustración empírica.

Palabras clave: herencia cultural; memoria familiar; historias de la familia.


 

1. Início

O ponto inicial deste artigo é a ideia de que o património e a constelação terminológica em que atualmente se insere ocupam o centro de alguns dos mais desafiantes debates contemporâneos. Mais nitidamente, esta nova vaga1 de interesse desenhou-se a partir dos mais recentes desenvolvimentos da noção de património2, que tem conhecido uma dupla inscrição. Vale a pena determo-nos um pouco sobre estes aspetos.
Na sua aceção mais ampla, o património adquire o sentido de denominador comum, geralmente filtrado e validado por estabelecer um elo ― real ou virtual ― com o passado, a memória e a identidade do grupo de que é propriedade e que, em virtude do valor que socialmente lhe é reconhecido, é confiado à vigilância de instâncias que o procuram preservar das forças atuantes do presente para o transmitir às gerações futuras. Algumas das atuais inflexões desta noção têm que ver com o processo de democratização das sociedades e o avanço do relativismo cultural, consonantes com os pendores pós-colonial e pós-nacional da época atual (Hall, 1999: 7). É à luz deste novo quadro social que deve ser compreendida, por exemplo, a abertura da cadeia de sentido do património ao imaterial, ao “outro” (no sentido antropológico do termo) ou a escalas que não a estritamente nacional (sejam mais particularistas, sejam mais universalistas).
Numa segunda aceção, que remete para um plano mais íntimo, o património equivale a um assunto do foro privado, acima de tudo, depositário de uma história e de um vínculo familiares (Singly, 1996: 158). Consistindo num stock doméstico, introduz um enviesamento no mundo social, capaz de contradizer os valores igualitários e a crença meritocrática das sociedades democráticas (Gotman, 2006: 3; Lahire, 2010: 209). Trata-se, em linhas gerais, de um conjunto diverso de propriedades, valores e direitos (fundiários, pecuniários, etc.), títulos, obrigações e relações sociais, capacidades, hábitos e preferências (Bourdieu, 1986). Nos últimos anos, a revisão crítica da influente noção de capital cultural de Pierre Bourdieu ― decisiva na leitura da transmissão familiar ― desencadeou um novo repertório conceptual, entre o qual se encontram os conceitos de omnivoridade cultural (Peterson e Kern, 1996: 904) e de capital cultural emergente (Prieur e Savage, 2013). Há que situar estas atualizações no contexto da recente orientação cultural para o ecletismo e o cosmopolitismo e do advento das novas tecnologias de informação.
Constituindo em todo o caso, à escala comunal ou pessoal, na categoria material ou imaterial, nas formas económica, social, cultural ou simbólica, um operador de continuidade, a questão do património interessa justamente por exaltar as interdependências pessoais e as potenciais transferências entre gerações passadas, presentes e futuras, contrapesando por isso uma visão sacralizada do indivíduo e da sua conduta liberta.
Precisamente este artigo visa o retorno ao nível microssociológico para o desvelamento do papel exercido pela configuração familiar3 no jogo social da transmissão e da apropriação da herança cultural. Porém, através do rastro dos testemunhos de vários membros de diversas gerações da mesma família, procura-se aqui ganhar um outro alcance sobre o fenómeno: ao se mostrar o modo variável como cada um deles capta, evoca e canaliza a história familiar, levantam-se pistas de reflexão acerca da moldagem da rememoração e da narração de si, dos seus e dos outros ao longo do curso de vida.
Neste caso particular, vê-lo-emos adiante, o bem patrimonial durável e transferível relaciona-se com o fado - uma forma cultural expressiva da cidade de Lisboa―, por sinal, ele mesmo um entrançado destes problemas.4

2. A memória familiar e o curso de vida: linhas de observação

Regra geral implícita e omnipresente neste feixe de questões está a memória, ou seja, a maneira como o passado se revela no presente e influencia o futuro. Para evitar equívocos, posto que o assunto é vasto, há que referir que as linhas gerais a seguir delineadas se atêm deliberadamente à memória familiar dos indivíduos.
Não sendo propriamente um objeto novo na sociologia - as primeiras formulações teóricas surgiram nas obras do sociólogo francês Maurice Halbwachs5 -, a memória familiar só raramente é sujeita a interpretações e a análises mais sistemáticas. Como surge sob a forma de narrativa sobre a vida é integrada, ainda hoje, nos estudos sociológicos de um modo mais ilustrativo ou instrumental, como uma reserva de informação acerca do passado (Muxel, 1993: 191).

Acima de tudo, a memória familiar carateriza-se por uma certa dualidade. Por um lado, trata-se de uma memória coletiva, na medida em que requer uma comunidade afetiva e pode ser o resultado de uma dinâmica complexa de interações, negociações, reapropriações intergeracionais e intrafamiliares. Por outro lado, trata-se de uma memória individual, uma vez que cada membro do grupo familiar se recorda de modo diferenciável e circunstancial. No fundo, cada memória individual equivale a um ponto de vista sobre a memória coletiva, pelo que a memória familiar é propensa a variações entre indivíduos, conforme a posição social que cada qual ocupa6, como a alterações ao longo do curso de vida, de acordo com as circunstâncias históricas e os eventos de vida que sucedem (Muxel, 1993: 192 e 2012: 22).
Este é, de facto, um ângulo importante: para além das condições objetivas de vida e da definição subjetiva de si, nas últimas décadas a sociologia tem vindo a atribuir relevância ao trajetivo (Pais, 2010: 33). Exemplo disso é a perspetiva do curso de vida, cujo enfoque se ancora precisamente na interface entre dinâmica temporal e eixo biográfico. Esta abordagem releva a importância não apenas do que é contextual, ao focar as interações entre o indivíduo e os diversos contextos sociohistóricos que o enquadram (seja conjetura societal, seja contexto familiar), mas também do que é processual, dando conta que as transições e as trajetórias por que o indivíduo passa no decurso da vida são altamente padronizadas e socialmente diferenciadas. Ao fazê-lo, a perspetiva do curso de vida tem em consideração os impactos de época, geração e estádio da vida7, responsáveis por importantes padrões e variações nos valores, nas atitudes, nos comportamentos, nos conhecimentos, nas competências pessoais (Bengtson e Allen, 1993: 472).
Longe de se esgotarem todas as hipóteses de cruzamento, nos três pontos seguintes procura-se estabelecer um elo causal entre os aspetos enunciados:

Em primeiro lugar, a memória familiar não é intemporal, mesmo quando aparenta ser uma ruminação de ações paralisadas ou suspensas no tempo. A retrospeção da vida privada ― que, em regra, não remonta a mais do que duas ou três gerações ascendentes ― suscita uma versão adaptada, forçosamente atual, que, de modo algum, poderá ser exaustiva ou reflexo fiel desse passado comum, porque o trabalho da memória é extremamente seletivo e reconstrutivo. Basta pensar que a própria narração exerce a função de filtro, que em virtude dos interesses do presente distingue o que será retido e dito do que, inversamente, acabará repudiado (ou à sombra) e não dito. A historicidade não cessa de ser opaca quando as recordações servem para prescrever voluntariamente qualquer coisa de particular (por exemplo, hábitos ou valores) às gerações mais novas, de modo a se assegurar a perenidade do que se entende ser a identidade social e cultural da família. Quando assim é, as recordações não constituem apenas uma série de imagens recapitulativas do passado, são também modelos e exemplos para condutas futuras.8
Em segundo lugar, a memória coletiva, e especialmente a familiar, é uma coprodução de gerações. Os assuntos de família, passados e presentes, são objeto de conversas que podem envolver as diversas gerações (geralmente, até três a quatro) em copresença num determinado recorte histórico. Reportando-se exatamente ao conhecimento das relações de parentesco e das diversas narrativas, verídicas ou míticas, que a propósito delas se criam (Zonabend, 1991: 179), é natural que o processo de memorização seja progressivo: uma certa indefinição predomina entre os mais jovens e uma vasta memória genealógica é mais comum em idade tardia. Esta constatação é uma maneira diversa de dizer que memória familiar é um aparato cognitivo que se adquire e acumula à medida que se avança no curso de vida. Mas isso não se faz por simples adição desde o nascimento: ainda que, em geral, a família seja o primeiro e principal enquadramento social da infância, a literatura científica tem vindo a estabelecer como baliza temporal para a emergência do projeto autobiográfico (reflexivo, retrospetivo e rememorativo) o período que vai da adolescência à entrada na vida adulta (Pratt e Fiese, 2004: 13-14).
E, por fim, a memória não é monolítica e tão-pouco imparcial. De antemão, os gradientes e as fações são inerentes às reavaliações subjetivas do passado. Os indivíduos tanto podem estar em diferentes etapas da vida como podem ter múltiplas pertenças sociais (Favart, 2005: 92), por vezes, conflituantes entre si, o que significa que cada um deles tem à sua disposição, em cada fase, um repertório variável de experiências, esquemas mnemónicos e regimes de significação. Como elemento de balanço reflexivo, que tende a fornecer argumentos que dão sentido e coerência à trajetória individual, a memória familiar é, pois, manobrável.

3. As histórias de família: elementos do método

Com o objetivo de se obter uma visão qualitativa destas mútuas implicações, a análise basear-se-á em entrevistas realizadas em 2014 durante um trabalho de campo que decorreu em Lisboa. Esse material integra um estudo qualitativo de meia dúzia de famílias ligadas à cena lisboeta do fado, no curso do qual foram entrevistados perto de trinta indivíduos (um quarto dos quais mulheres), de diferentes backgrounds sociais e de diferentes gerações (o intervalo de idades dos entrevistados é de oitenta anos). Por razões que se prendem com os objetivos específicos desse estudo, foram apenas selecionados para entrevista os membros familiares reconhecidos como fadistas, instrumentistas ou apreciadores de fado, tal como o exemplo tratado neste artigo ilustra.
Merecedora de nota é a metodologia adotada. As histórias de famílias9 são uma extensão metodológica relativamente recente do método biográfico ou das histórias de vida e o resultado de uma longa tradição metodológica qualitativista das ciências sociais. Uma das características particulares deste método é a possibilidade de cada caso familiar pesquisado funcionar como um pequeno espelho das configurações socioculturais gerais e das dinâmicas que as atravessam, facultando uma leitura compreensiva e diacrónica dos processos de reprodução e mudança de um dado contexto social (Bertaux e Delcroix, 2000:71).
Cada história de família é recuperada através de uma pluralidade de relatos individuais. Refira-se, no entanto, que nem todos os possíveis interlocutores (ao limite todos os membros de uma determinada família) têm forçosamente que ser entrevistados.

Três ou quatro informantes estrategicamente distribuídos ao longo de algumas gerações são geralmente aceites como suficientes para fornecer uma perspetiva integrada, global e validada pela simultaneidade e complementaridade dos seus discursos. No decorrer da entrevista, os indivíduos são incitados a falar sobre as suas experiências e histórias pessoais, mas também a recontar a história do seu grupo familiar.

4. Os percursos e os discursos: caso(s) particular(es)

O nome de família Rodrigues - que não consta nas últimas gerações da linhagem familiar abrangida nesta análise - é no meio fadista um símbolo do seu expoente máximo: Amália, uma intérprete virtuosa que conheceu em vida projeção nacional e internacional e continua a ser consagrada, dezasseis anos após a sua morte, como uma das mais influentes referências musicais nas novas gerações.10
Celeste, irmã de Amália, quase três anos mais nova do que ela, atualmente11 tem noventa e três anos de idade, é a mais antiga fadista de Lisboa em atividade: celebrou em 2015 setenta anos de carreira no fado - uma das mais longas carreiras musicais em Portugal -, ao longo da qual cantou ao vivo para diversas plateias no país e no estrangeiro e gravou acima de sessenta discos de fado. Nasceu no Fundão, na Região Centro do país, no período final da Primeira República, no seio de uma família ligada, por via patrilinear, à música de banda filarmónica. Durante a infância migrou com a família para a capital, onde ouviu o fado pela primeira vez. Mal completou a instrução primária teve de ir trabalhar. Estreou-se como fadista profissional aos vinte e dois anos. Casou dez anos depois com um ator português de renome, do qual se divorciou após o 25 de Abril. Foi pela primeira vez mãe depois dos trinta anos (tem duas filhas), avó antes de completar os cinquenta (tem um neto e três netas) e bisavó após os setenta (tem quatro bisnetos).

O neto primogénito de Celeste é o realizador e produtor Diogo Varela Silva, que se estreou na longa-metragem justamente com um documentário12 dedicado à sua avó materna, obra que revisitou em 2015 a propósito da efeméride já referida.13 Nasceu em Lisboa, poucos anos antes do 25 de Abril. Depois da sua formação superior em cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema, tem vindo a documentar a vida e a obra de algumas das referências do fado, como é o caso de Fernando Maurício em O Rei Sem Coroa, de 2011, e Beatriz da Conceição em O Fado da Bia, de 2012, e no decorrer deste ano roda a sua primeira longa-metragem de ficção, Alfama em Si, uma ópera-fado, cujo elenco inclui, para além da sua avó Celeste, os fadistas Ana Moura, Camané, Ricardo Ribeiro, Rodrigo, Kátia Guerreiro, entre outros. Casou-se poucos anos depois de completar os vinte anos e foi pela primeira vez pai antes dos trinta. Tem dois filhos.
O primogénito de Diogo, um dos bisnetos mais velhos de Celeste, é Sebastião, um jovem de dezanove anos de idade, que concluiu o Ensino Secundário na Escola Artística António Arroio, tem como passatempo sério a música (toca numa banda de rock e partilha a paixão familiar pelo fado) e como aspiração profissional o cinema. É autodidata de guitarra acústica e elétrica e frequentou aulas particulares de piano. Tem um irmão.
Gaspar, o único irmão de Sebastião, o benjamim de Diogo e um dos mais novos bisnetos de Celeste, tem atualmente treze anos de idade e frequenta o último ciclo do Ensino Básico. Duas vezes por semana tem aulas de guitarra portuguesa, um instrumento icónico do fado, com Paulo Parreira, um músico profissional, filho e irmão de guitarristas profissionais. Gaspar é uma jovem promessa do fado: nos últimos anos, sempre em crescendo, tem participado em sessões fadistas em casas de fado, concertos e espetáculos, documentários, programas de entretenimento na televisão, tem figurado por algumas vezes em entrevistas e reportagens na imprensa escrita nacional, e integrado eventos expositivos no Museu do Fado, para além de ter colaborado em três gravações de CD, onde acompanha à guitarra a bisavó paterna.

Como facilmente se depreende, Celeste, Diogo, Sebastião e Gaspar, embora unidos por laços familiares e, em certa medida, por uma herança comum, representam tipos e graus de ligação a um domínio cultural específico, o do fado, com manifestas desigualdades de investimento, retorno económico, expectativas e ambições entre si, tal como se encontram em distintos estádios do curso de vida e ocupam posições diferentes no grupo familiar e fora dele.
Se a situação de entrevista é assinalada por alguma similitude - trata-se, afinal, de uma interação verbal e presencial conduzida pelo mesmo interlocutor a partir de um guião previamente delineado -, a habilidade e a sensibilidade narrativa dos entrevistados apresenta uma notável variação individual. Tendencialmente, o tempo de duração da entrevista e a complexidade da informação nela contida parecem aumentar quanto mais avançado estiver o entrevistado no curso de vida.
Para dar uma ideia de tal variação individual, leiam-se os seguintes excertos:

“Da parte do meu pai, todos ― o meu bisavô, o meu avô, o meu pai, os irmãos dele todos ― eram músicos. (…) A minha mãe, na terra, pertenceu a um rancho folclórico e cantava nas festas populares, nos arraiais. A voz dela era assim um bocado parecida com a da Amália, mas ainda mais bonita, sabe? Tinha uma voz maravilhosa, nunca ouvi uma assim como aquela. Ela é que nos ensinou o folclore da Beira. (…) A minha mãe teve cinco rapazes e depois cinco raparigas. Só vingaram dois dos rapazes, o Vicente e o Filipe, os outros morreram em pequenos. Depois da Amália era eu, a Glória, a Ana e a Detinha (Odete), que era a mais nova. A Glória morreu com 6 anos e a Ana com dezasseis anos e meio. (…) Eu comecei (a cantar fado) mais por brincadeira. Aos sábados havia fados no Mesquita (Restaurante Típico Adega Mesquita), no Bairro Alto, onde aparecia o José António Sabrosa a tocar guitarra, mais o viola que tocava com ele, e quem aparecesse cantava. E foi assim: um dia lá tive coragem e cantei uma quadra. Estava lá o Zé Miguel, que era o empresário da minha irmã (Amália), e como tinha um teatro ― que se chamava na altura Casablanca ― contratou-me logo. Comecei com contrato, nunca fui amadora (…). Era difícil conciliar a vida do fado com a vida familiar? De certa maneira, não se tem o mesmo tempo para se estar com a família. Vida de artista é isto: está-se a trabalhar, tem-se ensaios, tem-se espetáculos fora… (…) Tive duas meninas. Na altura em que trabalhava na minha casa (de fados), n'A Viela, quando elas eram pequenas, ia a casa nos intervalos. Ia ver se estavam a dormir, se estavam bem. (…) O Diogo é que andava sempre atrás de mim por todo o lado. Quando estava a fazer para a mala (para ir cantar fora), ele dizia “— vais para outra terra? Não vais!” e desfazia-a. Eu a fazer a mala e ele a desfazê-la. Depois, tinha de o levar comigo, não é? (…) Mais tarde, o Diogo começou a fazer as Festas de Santo António aqui da rua e o Gaspar começou a ouvir a música e com uma guitarrinha de plástico punha-se ali a acompanhá-los. Às vezes, estava até às sete da manhã. Íamos deitá-lo e ele levantava-se, daí a um bocadinho já lá estava outra vez. E uma vez ele chega-se ao pé de mim e diz-me assim: “— eu vou aprender a tocar guitarra para te acompanhar”. Eu: “— oh, quanto tu me puderes acompanhar, já eu fui viajar” (eufemismo para “já terei morrido”). E ele assim: “— ah, eu espero (que regresses)”. Já me acompanhou várias vezes. Agora imagine a minha emoção ao entrar num palco com um bisneto pequenino. A primeira vez (que aconteceu), ele tinha sete anos.”

Celeste Rodrigues, fadista, 91 anos.

O relato de Celeste passa em revista acontecimentos familiares passados e contém ilações gerais sobre as suas consequências. Ela gere informação relativa a seis gerações da sua família, o que abrange um intervalo temporal de cerca de um século e meio, e, em consequência, envolve espontaneamente muitas pessoas na sua narrativa pessoal. Macro- eventos históricos como a II Guerra Mundial e o 25 de Abril são integrados e percebidos como influentes. Além do mais, o modo de narração aproxima-se do contar de uma história (no decorrer da sua entrevista, às tantas, Celeste retorquiu: “já contei isto tantas vezes”).

“Lembro-me de ir com a minha avó para todo lado. Eu cresci a ouvir fado. Cresci com estas pessoas. (…) Mesmo nos meus anos mais rebeldes de juventude, ia na mesma ter com a minha avó às casas de fado. Numa altura em que gostar de fado era uma coisa… as pessoas gozavam com quem gostava de fado. Lembro-me de ir ter com a minha avó à Viela e ser o único rapaz da minha idade que lá estava. (…) Nunca tive jeito, não tenho o dom, tenho outros… mas também sou fadista, porque também é fadista quem ouve, quem sabe ouvir. Aliás se reparares, o fado é raro acontecer. E só acontece quando está tudo em sintonia: o público, o fadista, os músicos, todo o ambiente. (…) Tinha a grande vontade que o meu primeiro filme fosse sobre a minha avó. Depois do processo criativo que esse filme envolveu fui desafiado a fazer o mesmo com outros fadistas. Foi importante para fazer os filmes ter nascido neste meio, conhecer esta linguagem. Isso foi importante, claro que sim. Não me parece que vá voltar ao fado enquanto tema documental tão cedo. Não porque não quero, mas porque quem decide não quer (…). Foste-te apercebendo da manifestação de interesse pelo fado dos teus filhos? Sim. Eu acho que a música é das melhores coisas que pode haver para a educação de uma criança. Mesmo para a disciplina, para a concentração. Por isso sempre incentivámos. É daquelas coisas que tu não podes obrigar, mas deves tentar incentivar. E, quando mostram esse interesse, há que tentar ajudar e dar as ferramentas necessárias.”

Diogo Varela Silva, realizador e produtor, 43 anos.

De quando em quando, Diogo encaixa a sua história particular no contexto mais geral, por exemplo quando relata a experiência de ter crescido numa época marcada por uma certa hostilidade14 ao fado ou denuncia subliminarmente o agravamento da situação do financiamento do cinema. Se a história familiar perde longevidade, em comparação à narrativa de Celeste, mantém ainda assim a sua dimensão intergeracional (no sentido ascendente e descendente). Recaem sobre a família os dividendos da sua vivência “nativa” no fado, que tem uma dupla efetivação: enquanto público conhecedor e divulgador (através do cinema), ambos aduzidos como modos de pertença ao meio. Por ter esperanças de ver continuada a história familiar no fado, empenha-se no seu papel socializador: proporciona aos filhos o acesso precoce à música, aos músicos e aos instrumentos e dedica-lhes o documentário que realizou sobre a vida e obra da avó, o que tem, só por si, a eficácia de um ato intencional de transmissão (ver fotografia 1).

“Obviamente que o facto da minha família estar inserida no meio musical trouxe alguma coisa para mim. Apesar de não ter sido o fado propriamente, a música foi sempre ‘aquela coisa'. (…) A minha (bis)avó ofereceu-me uma viola quando eu era miúdo, mas, mesmo mostrando interesse, pu-la um bocado de parte. Passados uns três anos voltei a pegar naquilo. Aliás, nem foi nessa: entretanto, o meu pai deu-me uma guitarra acústica e foi aí que eu comecei a aprender mais. A partir daí fui sempre querendo mais, querendo mais. Comecei a tocar guitarra elétrica também. (…) Interesso-me por tudo. Adoro fado, adoro fado, mas nesta altura o estilo com que me identifico mais é o rock e é isso que eu mais gosto de tocar.”

Sebastião Varela, estudante, 17 anos.

No relato de Sebastião a memória familiar adquire compacidade: basicamente é condensada a uma propriedade distinta, inerente ao grupo (o envolvimento no mundo musical). Ele reconhece, sem contestação, a herança familiar. Contudo, a adesão ao ou rutura simbólica com o fado não está terminada, deixando em aberto a possibilidade de vir a seguir qualquer um destes caminhos. Esta bifurcação é amplificada pelo aproximar da entrada na vida ativa. Nesta fase, o interesse pelo rock trouxe-lhe um novo repertório de relacionamentos e o alargamento das experiências para além dos estritamente proporcionados pelo seu grupo familiar.

“Gostei de ouvir, primeiro. Depois tive uma guitarra de Coimbra, ainda não tocava, mas queria. Depois tive outra que não foi construída pelo Óscar (Cardoso)15, mas algumas peças eram dele. Agora tenho outra que já é profissional. (…) Comecei (a tocar guitarra portuguesa) com sete anos, quando aprendi o Fado das Horas. Logo no primeiro fado, acompanhei a minha bisavó. E o facto de poderes acompanhar a tua bisavó é importante para a tua aprendizagem musical? Claro! E as histórias que a tua bisavó te conta são importantes para ires conhecendo melhor os meandros do fado? Sim.”

Gaspar Varela, estudante, 11 anos.

Gaspar facilmente identifica alguns eventos marcantes na sua própria história e narra a sua sucessão linear, ainda que num arco temporal relativamente curto. Inclusive incorpora no seu próprio relato reminiscências familiares: as primeiras manifestações do seu gosto pelo fado baseiam-se em recordações partilhadas em conversas entre vários familiares, já que, na verdade, ele não tem memórias próprias de tão precoces sinais. Contudo, o desenvolvimento dos tópicos é mínimo e o discurso surge frequentemente entrecortado por lacónicos “sins” e “nãos”. Da mesma forma que a causalidade e a avaliação dos eventos de vida só surgem se incentivados por via de perguntas, também o número de “outros significativos” (familiares ou não) é relativamente reduzido, cingindo- se a enunciar pessoas com quem mantém relações próximas com alguma frequência.

5. Nota final

A partir de uma abordagem qualitativa, apoiada em relatos cruzados, este artigo procurou explorar o modo como o curso de vida molda não somente a história da família como as memórias que dela se têm e os usos que dela se fazem. Mas que pistas pertinentes se podem obter a partir de um corpus mínimo de registos biográficos subjetivados ― visto que propositadamente não surgem diluídos no anonimato ―, algo que, de imediato, parece opor-se a qualquer pretensão de extrapolação? De facto, para um resultado mais ambicioso no que respeita a generalizações seria necessário não só multiplicar os casos,16 como porventura recorrer a um método longitudinal (isto é, submeter os indivíduos-alvo a novo interrogatório após um devido intervalo de tempo).
Feita esta ressalva, importa referir que, ainda assim, aquele espectro discursivo torna inteligível o facto de que o ato biográfico ― entenda-se, a situação verbal das memórias ― não se exerce uniformemente. Podendo não ser fácil discernir os efeitos de geração dos efeitos de ciclo de vida, atendendo às múltiplas temporalidades constitutivas das vidas singulares, nem tão-pouco declinar a interferência de outras variáveis sociais (o género, sobretudo), é no entanto detetável como diferem nos contornos e nos teores, por exemplo, uma narração concentrada nas ações pessoais e apenas pontuada por alguns familiares de uma outra compiladora da história familiar, elevada à sua máxima potência na linha do tempo.
Um outro aspeto relevante concerne ao facto de cada uma daquelas narrativas se reportar a tempos diferentes, uma vez que cada membro da família se tenta apropriar de um começo da história familiar em função da sua história individual. De maneira que até quando são lembrados os mesmos parentes vemo-los necessariamente surgir em fases diversas da vida.
Outro aspeto impressivo é que a memória familiar parece ser portadora de cenários de vida. Neste sentido, cada um dos membros é compelido a posicionar-se em relação a esse horizonte de possibilidades e expectativas e à herança simbólica que ele acarreta. Mas se a história familiar, em geral, parece consistir numa força de perpetuação do património cultural, paralelamente esse património parece reforçar os vínculos familiares: neste caso concreto, apreciar, praticar o fado estabelece uma linha divisória entre familiares, ao mesmo tempo que serve de marcador de identidade social e cultural da família como um todo.

 

Referências Bibliográficas

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Agradecimentos

Este artigo retoma algumas das entrevistas realizadas no decorrer da pesquisa de doutoramento da autora, financiada por uma Bolsa Individual da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, com a referência SFRH/BD/43270/2008. Naturalmente, cabe aqui um agradecimento a Celeste Rodrigues, Diogo Varela Silva, Teresa Fernandes, Sebastião Varela e Gaspar Varela pela sua amável participação neste estudo e pelas facilidades concedidas para a reprodução da imagem integrada neste artigo.

 

Artigo recebido a 2 de março de 2016. Publicação aprovada a 21 de junho de 2016.

 

Notas

1 Expressões como “a obsessão patrimonial” (Jeudy, 2001), “a inflação patrimonial” (Heinich, 2009) e “a explosão do património” (Nora, 2011) traduzem o alastramento e a fixação do tópico na vulgata dos nossos dias.

2 Para uma retrospetiva de longo curso do conceito, ver Harvey (2008); para um enquadramento da expansão semântica da noção de património e, em particular, da sua deriva em direção ao imaterial, veja-se, por exemplo, Bendix (2011).

3 Em contrapartida à visão mais enclausurada de círculo, célula ou núcleo familiar, cf. Lahire (2010).

4 Convém especificar que este género musical urbano, consagrado Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO em 2011, tem entre os seus praticantes e cultores múltiplos membros pertencentes a famílias de ascendência aristocrática ou de raiz popular.

5 Deve-se a Halbwachs o reconhecimento da dependência da memória individual dos quadros sociais em que os indivíduos participam (a família, entre eles), considerando-os pré-requisitos para qualquer ato de recordação, ao contrário do entendimento da época que concebia o fenómeno como eminentemente individual (Halbwacks, 1925).

6 Em particular, sobre as interferências de variáveis sociais como região, classe social e género, ver Zonabend (1991: 189) e Muxel (1993: 194-195).

7 Saliente-se que várias temporalidades - nomeadamente, biográfica, geracional, contextual e histórica (Muxel, 2012: 21) - se intersetam no plano da vida quotidiana, tornando difícil a captura de “efeitos puros” de idade, cohort, geração ou período. Como refere Claudine Attias-Donfut, ganhará outro alcance o exame que não os considere fatores isolados e autónomos, mas que atente para os seus efeitos cruzados. O contrário tem sérias hipóteses de ser posto em causa no embate com a realidade, tanto mais que, por norma, as gerações se definem umas em relação às outras em cada período e cada etapa da vida exprime um feixe particular de relações intergeracionais (Attias-Donfut, 2000).

8 Em concreto, sobre a visão retrospetiva (que pondera o passado) e prospetiva (que desenvolve expectativas de vida) da memória familiar, ver Muxel (2012: 29-30).

9 A designação do método tem sofrido algumas alterações ao longo dos tempos: e.g., histórias de família (Bertaux-Wiame, 1988), método das genealogias sociais comparadas (Bertaux, 1992), histórias de casos de família (Bertaux e Delcroix, 2000), história de família (Cabral e Lima, 2005).

10 Sobre Amália, ver, entre outros, Santos (2003), Baptista (2009), Nery (2009) e Gray (2013: 179-225).

11 Note-se que as idades mencionadas nos sintéticos trajetos biográficos se reportam à data da escrita do artigo. No entanto, nos fragmentos narrativos, optou-se por manter a idade dos entrevistados à altura da realização das entrevistas

12 O documentário Fado Celeste integra o conjunto de edições do Plano de Salvaguarda implementado na sequência da inclusão do fado na Lista da UNESCO Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade.

13 Cinco anos depois de ter realizado Fado Celeste, Diogo Varela Silva decidiu revisitar o filme, a propósito da homenagem pelos setenta anos de carreira da sua avó. Esta nova versão, intitulada Celeste, estreou na secção Heart Beat (destinada a filmes relacionados com música e artes performativas) do Lisbon Docs de 2015.

14 No pós-25 de Abril, o fado arca uma conotação ideológica diretamente ligada ao regime recém-deposto, o que se repercute numa conjuntura de certo modo desfavorável ao género (Gonçalves, no prelo).

15 Óscar Cardoso é um guitarreiro (construtor de guitarras) reconhecido no meio fadista.

16 Ao se procurar ampliar a abrangência de casos, considerando as especificidades do fado, não se deverá negligenciar a ascendência aristocrática ou popular das famílias. Uma exploração deste tipo certamente expõe importantes diferenças na transmissão e na apropriação do histórico familiar. Nas famílias de origem aristocrática é mais frequente o encorajamento, desde cedo, do conhecimento da genealogia da família, concebida como o corolário da continuidade (ancestralidade) familiar e portadora de distinção social. Consequentemente, nesses casos é comum a manifestação de um sentido de ligação à família alargada. Por contraste, nas famílias de origem popular (onde se inclui a família que este artigo focou), ainda que se pressinta um sentido genealógico, a trama da história familiar é algo vaga e condensada (cf. Mension-Rigau, 2007(1994)).

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