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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia  no.tematico6 Porto dez. 2016

https://doi.org/10.24747/0872-3419/soctema2 

NOTA DE APRESENTAÇÃO

 

Nota de apresentação

Magda NicoI, Vanessa CunhaII, Cláudia CasimiroIII

I(autora de correspondência). Instituto Universitário de Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) (Lisboa, Portugal). Departamento de Métodos de Pesquisa Social da Escola de Sociologia e Políticas Públicas do Instituto Universitário de Lisboa. Endereço de correspondência: Centro de Investigação e Estudos em Sociologia, Instituto Universitário de Lisboa, Av. das Forças Armadas - 1649-026 Lisboa, Portugal. Email: magda.nico@iscte.pt

IIInstituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) (Lisboa, Portugal). Endereço de correspondência: Instituto de Ciências Sociais Av. Prof. Aníbal Bettencourt, 9 - 1600-189 Lisboa, Portugal. Email: anessa.cunha@ics.ulisboa.pt

IIIUniversidade de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Centro Interdisciplinar de Estudos de Género. Endereço de correspondência: Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Rua Almerindo Lessa - 1300-663, Lisboa, Portugal. Email: ccasim@gmail.com

(Coordenadoras do número temático)

 

 

 

Este número temático pretende oficializar e consolidar a relação entre dois domínios importantes da sociologia em Portugal. De um lado, a sociologia da família, um domínio clássico, pluri-institucional e multi-método, central à institucionalização da sociologia em Portugal, com grande e crescente produção científica, e reconhecido estabelecimento de pontes constantes com outros domínios sociológicos e das ciências sociais. De outro, a perspetiva do Curso de Vida, que deve ser entendida enquanto manifestação de um dos “domínios clássicos duradouros” e “marca genética” da investigação sociológica em Portugal, o da “reflexão epistemológica e teórico- metodológica” (Machado, 2009). Esta perspetiva representa um paradigma teórico e, simultaneamente, um instrumento metodológico com grande protagonismo na América do Norte e em muitos países Europeus, que começa a dar passos firmes em Portugal. Os debates teórico-metodológicos sobre os instrumentos usados para levar a cabo pesquisas
sobre o curso de vida são muito ricos, empolgados e atuais, levantando questões epistemológicas sobre a validade dos paradigmas da causalidade ou da descrição para o estudo de problemáticas sociais e para a comunicação com outras disciplinas. A sociologia da família é um dos domínios com relações mais estreitas e privilegiadas com estes debates, aos quais pretendemos agora dar protagonismo e profundidade empírica através da organização deste número temático da Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Este número surge no seguimento de uma estratégia de divulgação e internacionalização da Secção Temática Famílias e Curso de Vida da Associação Portuguesa de Sociologia (APS), criada em 2013, que alia a investigação emergente sobre curso de vida à tradição da sociologia da família em Portugal. Surge também na sequência de um seminário internacional organizado em 2015 por esta secção, com apoio da APS e da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e numa parceria entre várias Universidades e Centros de Investigação. Este evento debruçou-se sobre os avanços e os desafios metodológicos do cruzamento destes dois domínios, procurando estabelecer debates em torno da complementaridade entre teoria e métodos, entre princípios conceptuais e instrumentos analíticos, entre as visões qualitativas e as quantitativas sobre a família e sobre o curso de vida. Pretendeu-se contribuir para a criação de mais canais de comunicação, troca e combinação entre os vários métodos do curso de vida, considerados por alguns como uma bênção analítica (Heinz, 2003), e dar também visibilidade às pesquisas qualitativas do curso de vida, como fica patente no artigo de Walter Heinz.

As combinações possíveis e concretizadas entre Família e Curso de Vida são múltiplas. Por um lado, porque a noção conceptual de família, e os estudos sociológicos que sobre ela se debruçam, são heterogéneos, incluindo: a formação da família, a conciliação entre trabalho e família, a parentalidade, a transição para a vida adulta e tantos outros conceitos e processos. A família pode ainda ser usada como unidade de recolha e análise de dados, como fica patente no artigo de Ana Gonçalves; como hipótese teórica relativamente a um determinado tópico, como por exemplo as redes sociais ou as trajetórias individuais, como bem mostram os artigos de Rita Gouveia, Vasco Ramos e Diana Carvalho; ou, ainda, como preditora de biografias ou trajetórias individuais. É sobejamente conhecido o efeito das origens sociais ou da classe social de origem nas trajetórias individuais, efeito esse que tem as suas raízes no contexto da família ou da socialização primária que esta proporciona, aspetos que estão particularmente patentes nos artigos de Ana Caetano e de Pedro Abrantes.
Por outro lado, porque também o Curso de Vida, ou Percurso de Vida (dependendo da terminologia francófona ou anglo-saxónica adotada), tem múltiplos entendimentos que, além do mais, não são mutuamente exclusivos. Como Elder (1975, 1985), Elder e Giele (2009), Elder, Johnson e Crosnoe (2002), George (2002), O'Rand (2002), O'Rand e Krecker (1990), Dannefer (2002), e outros, têm reiterado, o Curso de Vida tem um duplo papel, já que, deve ser encarado enquanto “constructo” a ser descrito ou explicado; e enquanto teoria explicativa que propõe “o uso das experiências passadas como meio de estudar os resultados subsequentes” (Dannefer, 2002: 647). Enquanto estratégia explicativa, a perspetiva do curso de vida tem como objetivo a compreensão da forma como as condições da ocorrência de determinados eventos influenciam a direção do curso de vida (Dannefer, 2002: 653). Assim, e associando a perspetiva do curso de vida à sociologia da família, estariam neste papel incluídos os estudos sobre a formação e a evolução de agregados domésticos, o estabelecimento e a manutenção de redes de apoio familiares, o calendário e o ritmo das primeiras transições familiares, residenciais e parentais, temas que foram abordados, respetivamente, por Vasco Ramos, Rita Gouveia e Diana Carvalho.
De forma complementar, o Curso de Vida deve cumprir uma função de “orientação teórica”, isto é, a perspetiva do curso de vida deve ser entendida como um campo de “inquirição comum que providencia um quadro analítico para análises descritivas e explicativas” (Elder, Johnson e Crosnoe, 2002: 4), ou como um “quadro que guia a investigação em termos da identificação e formulação do problema, da selecção das variáveis e da estratégia de desenho e de análise” (Elder e O'Rand, 2009: 431). Elder, Johnson e Crosnoe (2002) chamam mesmo a atenção para a confusão conceptual que ocorre do facto de se encarar o life course como um “constructo” e não exclusivamente como orientação teórica1 . Este papel teórico do Curso de Vida é aquele em que a sociologia (da família) em Portugal menos tem avançado, o que é compreensível se tivermos em conta que o desenvolvimento e posicionamento teórico é mais lento do que o desenvolvimento metodológico ou atualização empírica, e requer projetos de investigação longos e sustentáveis.
A perspetiva do curso de vida exerce ainda uma terceira importante função, a de proporcionar, em consonância com os princípios teóricos que convoca e defende (timing of lives, agency, linked lives e cultural and historical location), um continuum entre as abordagens e os métodos quantitativos e as abordagens e os métodos qualitativos, que devem, por ser turno, ser integrados por forma a compreender a estabilidade e a mudança nas vidas e nos comportamentos ao longo do tempo (Laub e Sampson, 1998: 229). Ainda existem, dada a natureza dos princípios teóricos e o material empírico que lhes está mais evidente ou imediatamente subjacente, relações privilegiadas entre determinados princípios do Curso de Vida com os métodos quantitativos (nomeadamente o timing of lives) ou com os métodos qualitativos (como por exemplo a agency ou a cultural and historical location). Esta dicotomia, ainda frequente, deve ser entendida como algo a ultrapassar, como argumenta Walter Heinz.
Seria legítimo questionarmo-nos se, face a esta diversidade de configurações e combinações entre estes múltiplos entendimentos da família, por um lado, e do Curso de Vida, por outro, se pode falar de uma identidade própria. Utilizar a metáfora da relação amorosa entre estes dois domínios, seria o equivalente a perguntar o que há de monogâmico, de exclusivo, de especial, nesta relação. Olhando tanto para o passado, para a demografia histórica e sua relação com a emergência e a institucionalização da perspetiva do curso de vida (Hareven, 1978), como para o contexto contemporâneo das ciências sociais, rapidamente somos levados a verificar a estreita e especial relação entre estes dois domínios. Em 2009, Billari, num editorial do Advances in Life Course Research, argumentava que “the life course is coming of age” (Billari, 2009). Descobriu o autor, nesta análise, que os estudos da família, a gerontologia, a demografia e os estudos de género – áreas intrínseca e concretamente imbuídas nos estudos da família em Portugal e não só – eram as áreas ou disciplinas onde um número mais significativo de publicações internacionais usava “life course” como palavra-chave.

Em Portugal, o Curso de Vida ainda não está “coming of age”. Um exercício idêntico ao de Billari, de procurar “curso de vida” ou “percurso de vida” nos títulos e/ou palavras-chave das publicações em Português ou sobre Portugal revelou-se, assim, curto e infrutífero. Embora os passos que o Curso de Vida tem dado sejam sobretudo no âmbito da sua relação, especial mas não exclusiva, com a sociologia e os estudos da família, o uso explícito da terminologia e da abordagem propriamente dita é ainda residual. Sublinhamos “explícito”. A decisão de unir, numa mesma secção temática, Famílias e Curso de Vida não foi uma decisão artificial, mas fez parte da oficialização de uma relação, até então desenvolvida de forma discreta. Assim sendo, apesar de não determos números que nos permitam construir tabelas e gráficos tais como os que Billari elaborou, temos evidências para afirmar que esta relação entre Famílias e Curso de Vida está a tornar-se mais visível e reconhecida, ao criar pontes com outras áreas e domínios do saber sociológicos e afins.
Uma primeira fase da história desta relação pautou-se por alguma invisibilidade e por um transversal caráter implícito ou secundário às investigações, essencialmente por dois motivos. Um primeiro tem a ver com o facto do Curso de Vida em Portugal ter mais a função de dispositivo metodológico ou de situar a investigação numa determinada fase de vida (infância, transição para a vida adulta, envelhecimento, etc.) do que, pelo menos explicitamente, de abordagem teórica. Um segundo motivo tem a ver com o facto de as investigações sobre o curso de vida terem, pela sua natureza, algo da “ciência lenta” e de projetos de investigação longos. Aqui merecem ser mencionados vários projetos de investigação em curso ou recentemente terminados em várias instituições portuguesas: “Trajectórias Residenciais e Metropolização: continuidades e mudanças na Área Metropolitana de Lisboa” (ISCTE-IUL, Dinâmia-CET); “Retratos de Família do Portugal Contemporâneo: Gerações, Cursos de Vida e Mobilidade Social” (CIES-IUL), “Trajetórias Familiares e Redes Sociais: O percurso de vida numa perspetiva intergeracional” (ICS- ULisboa); ou “EPITeen24: Reproduzir ou contrariar o destino social” (ISCSP-ULisboa). Mas também projetos de doutoramento como: “Vidas Reflectidas: Sentidos, Mecanismos e Efeitos da Reflexividade Individual”, de Ana Caetano; “ Personal networks in Portuguese Society: a configurational and lifecourse approach” de Rita Gouveia; “Percurso de vida em Portugal. O impacto das desigualdades e dos contextos sociais nas trajetórias profissionais e familiares”, de Vasco Ramos; “Entre a escola e o trabalho na entrada para a vida adulta: novos contributos a partir de um estudo longitudinal de uma geração nascida em 1990”, de Diana Carvalho; “transmissão familiar e intergeracional do fado em Lisboa” de Ana Gonçalves; ou “Transição Biográfica Inacabada. Transições para a Vida Adulta em Portugal e na Europa na Perspetiva do Curso de Vida”, de Magda Nico. Mais do que os projetos de investigação, estes projetos de doutoramento tendem a usar a perspetiva do curso de vida como abordagem teórica e instrumento crítico. É a alguns destes projetos individuais e de equipa que pretendemos, precisamente, dar visibilidade neste número.
Numa segunda fase – mais oficial – deste relacionamento entre famílias e curso de vida, verifica-se: um grande rejuvenescimento do campo de saberes da família também por conta desta ponte realizada com o curso de vida; o uso crescente de novas metodologias, nomeadamente quantitativas, inovadoras para o contexto português (como event history analysis ou sequence analysis); o reforço e reposicionamento teórico de alguns instrumentos qualitativos de recolha de informação; e uma reconexão dos estudos da família ao estudo da estratificação social, por via do princípio teórico da localização cultural e histórica, , como aliás havia sido feito abundantemente na fase inicial da sociologia da família em Portugal (Machado, 2009: 313).
É numa espécie de inauguração de uma terceira fase, a de disseminação e discussão de resultados e estratégias metodológicas e analíticas, que se reúnem numa mesma publicação - a primeira em Portugal sobre aspetos metodológicos da família e do curso de vida - artigos desenvolvidos por um reconhecido especialista internacional e por investigadores que têm desenvolvido pesquisas sobre o curso de vida no âmbito da sociologia da família em Portugal. Em conjunto, estes artigos atravessam parte da paleta metodológica do curso de vida, usando abordagens quantitativas e qualitativas, de paradigmas causais ou descritivos, com unidades de análise individuais ou familiares, apresentando-se, assim, como um mapa diverso das metodologias recentemente usadas na sociologia da família em Portugal.
Walter Heinz abre este número temático com um artigo intitulado Conceptual foundations of qualitative life course research. Se, por um lado, o autor marca uma posição qualitativa desde o seu título até aos princípios do Curso de Vida, que convoca de forma privilegiada, passando pelos conceitos que mobiliza e propõe, por outro lado, as sugestões latentes e transversais no seu artigo são as de que todos os princípios do Curso de Vida devem ser respeitados de igual forma (e não apenas por conveniência de acesso ou recolha de dados, quantitativos leia-se), e que nenhum, mesmo aqueles que remontam às origens de determinadas disciplinas ou que estão nas fronteiras entre as mesmas, devem ser tomados como garantidos. Ao limite, todos os princípios do Curso de Vida fazem, por natureza e competência, a ponte entre as metodologias quantitativas e qualitativas, entre as abordagens macro e micro. Cabe a cada investigador atravessá-la. Walter Heinz, num artigo de cariz teórico e epistomológico, propõe que se revisite a noção de “passagem de estatuto”, que se re-elabore a noção de agência, e que se acolha o seu conceito de “auto- socialização”, discutindo as implicações metodológicas da introdução destes conceitos.

Vasco Ramos utiliza a sua análise das trajetórias familiares em Portugal para questionar e “localizar histórica e culturalmente” a validade de teorias, muitas vezes colocadas em espetros epistemológicos distintos, sobre a mudança ou continuidade social, sobre a pluralização e a manutenção de trajetórias, sobre o passado e presente. Usa a perspetiva do curso de vida na sua plenitude, isto é, nas três funções que acima se descrevem. Utiliza para o desenvolvimento desta análise dados de um dos poucos projetos sobre o curso de vida em Portugal, aplicando-lhes uma inovadora análise de sequências que permite a identificação de diferentes perfis de co-residência, a saber: a parental precoce, a parental tardia, da parental à complexa, de acolhimento, da complexa à parental e a monoparental na origem. As diferentes representações destes perfis por coortes etárias permite-lhe avançar com a tese de que tem sido limitada a pluralização das trajetórias familiares (até à primeira fase adulta – até aos 35 anos) em Portugal nas últimas oito décadas. Assim sendo, avança igualmente que o alcance das populares teses sobre a pluralização dos cursos de vida e sobre a influência associal dos processos de individualização nestes mesmos cursos de vida é limitado. Avança ainda com a necessidade de um olhar holístico sobre o curso de vida, defendendo a necessidade de ir buscar fora da família (ao mercado de trabalho, ao contexto económico, etc.) causas próximas e últimas para a emergência ou reprodução de trajetórias.
Ana Caetano propõe analisar a formação da reflexividade individual enquanto “constructo” do curso de vida (Dannefer, 2002). Baseando-se em material empírico de natureza intensiva – 20 entrevistas biográficas a homens e mulheres com idades, origens sociais e qualificações escolares e profissionais diversas – (Caetano, 2013), a autora sugere que é a socialização familiar precoce, fortemente balizada pelos contextos sociais de pertença, que fornece as coordenadas para a formação da reflexividade individual, ao transmitir as “primeiras grelhas de interpretação do mundo”. A partir da apresentação de quatro perfis distintos de formação da reflexividade individual - auto-referencial, funcional, resistente e pragmático -, a autora demonstra que a reflexividade, se bem que performativa ao longo do curso de vida, ecoa os “estímulos” transmitidos na socialização familiar precoce. É a apropriação contínua e acumulada desses “estímulos”, mais ou menos diretos, que molda a “forma como cada pessoa observa e interpreta o mundo”.
Diana Carvalho oferece uma análise exploratória das transições precoces para a vida adulta em Portugal e na Europa. Com recurso ao European Social Survey 2006, e elegendo quatro marcadores clássicos dos estudos das transições (saída de casa dos pais, início da conjugalidade, primeiro casamento e transição para a parentalidade), a autora propõe conhecer as transições precoces (i.e., que ocorrem até ao percentil 25 da distribuição) em três coortes geracionais: a que nasceu até 1949; a que nasceu entre 1950 e 1969; e a que nasceu de 1970 em diante. A partir de cálculos próprios que permitem uma aproximação cada vez mais fina aos calendários transicionais, Diana Carvalho faz uma análise inter e intra-geracional da realidade das transições precoces e situa o caso português no contexto europeu. Ao focar a precocidade das transições e as continuidades geracionais, em vez de o adiamento e as ruturas, a autora brinda-nos, neste artigo, com uma abordagem metodológica inovadora e com uma leitura crítica das narrativas dominantes nos estudos das transições para a vida adulta.
Ana Gonçalves propõe, com o seu artigo, uma articulação entre memórias familiares e curso de vida e procura, através de uma metodologia qualitativa que explora relatos biográficos de fadistas, realçar o modo como as relações entre ambos se processam. A perspetiva do curso de vida, cujo enfoque se ancora na interface entre dinâmica temporal e eixo biográfico, não é propriamente um objeto novo na sociologia, mas é inovador o modo como neste artigo a memória familiar é sujeita a interpretações e a uma análise mais sistemáticas. A autora, tomando como universo empírico de recolha e de análise de dados as famílias dos fadistas e os processos de socialização que se projetam na carreira dos mais jovens fadistas, estabelece um elo causal entre várias temporalidades – biográfica, geracional, contextual e histórica – e, de forma estimulante, convoca e articula, conceitos como os de configuração familiar, memória social, relatos biográficos cruzados e cursos de vida na sua dimensão contextual e processual.
O artigo de Pedro Abrantes apresenta-nos uma investigação sociológica de carácter exploratório que se foca na tensão entre unidade e pluralidade de trajetórias individuais, influenciadas pelos processos de socialização. O autor, partindo de um projeto mais alargado onde se debruça sobre 52 narrativas autobiográficas construídas em processos de formação e certificação, analisa, neste artigo, em particular e em profundidade, uma dessas histórias de vida, articulando-a com os padrões observados na totalidade das narrativas recolhidas e também aqui discutidos. Ao passo que a infância e a adolescência parecem ser vividas como experiências unificadas, a vida adulta tende a emergir de forma mais plural e por seu turno associada, por um lado, à vida profissional e, por outro, à vida familiar. Já relativamente a outras dimensões, como o lazer, a relação com o corpo ou a participação cívica, as narrativas demonstram como a sua importância pode ser variável – tendência que sugere uma relativa autonomia das experiências, lógicas e papéis assumidos em cada uma destas dimensões. Se, num certo sentido, esta “multidimensionalidade da vida”(para usar uma expressão do autor) constitui uma libertação, porque mitiga o determinismo familiar e de classe, num outro sentido também pode implicar que sujeitos com recursos díspares “se afirmem, em paralelo, em cada dimensão e conciliem, em cada momento, as disposições e exigências de cada uma delas”.
Rita Gouveia dá-nos a conhecer um retrato atual das redes pessoais na sociedade portuguesa, a partir de resultados extensivos da investigação “Trajetórias familiares e redes sociais”, que procurou reconstituir o percurso de vida de três coortes geracionais: uma nascida em 1935-40; outra, em 1950-55; e a terceira, em 1970-75. Segundo a autora, as teorias da individualização, da nuclearização e da crise da família revelam um alcance limitado para apreender os mapas de relações íntimas nas sociedades contemporâneas. Convocando uma perspetiva configuracional e tipológica das redes pessoais, baseada na atribuição subjetiva e não apriorística das relações de afinidade, Rita Gouveia identifica e caracteriza sete tipos de configurações: aconjugal extensa, a nuclear fechada, a nuclear aberta, a amizade e ascendentes, a orientada para fratria, a feijoeiro-descendente e a orientada para filhos adultos. Esta abordagem conceptual e metodológica inovadora no quadro da sociologia portuguesa permitiu revelar a pluralização das redes pessoais assente em diferentes constelações de laços de parentesco e não-parentesco; uma pluralização limitada pelos contextos sociais e pelo percurso de vida. Aqui se percebe como a fase do ciclo de vida, a acumulação de transições e o reservatório demográfico do indivíduo desempenham um papel determinante na configuração da sua rede de relações íntimas.

 

 

Referências Bibliográficas

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Projectos

“Trajetórias Familiares e Redes Sociais: O percurso de vida numa perspetiva intergeracional” (ICS- ULisboa)

EPITeen24: Reproduzir ou contrariar o destino social (ISCSP-ULisboa)

Retratos de Família do Portugal Contemporâneo: Gerações, Cursos de Vida e Mobilidade Social (CIES-IUL)

Trajectórias Residenciais e Metropolização: continuidades e mudanças na Área Metropolitana de Lisboa” (ISCTE-IUL, Dinâmia-CET)

 

Texto recebido a 30 de junho de 2016. Publicação aprovada a 3 de setembro de 2016.

 

Notas

1 Esta confusão conceptual teve como consequência uma utilização indiferenciada, e errada, de outros termos como “life span”, “life history” ou “life cycle” (Elder, Johnson e Crosnoe, 2002; O'Rand e Krecker, 1990). Esta “economia linguística” (Adams, 1979 citado por O'Rand e Krecker, 1990: 242) é criticada por Elder, que recusa o estatuto de sinónimos a estes termos. Elder, Johnson e Crosnoe referem que um estudo do “life span” apenas define o intervalo temporal do objecto de estudo, neste caso, bastante longo e a abarcar a quase totalidade do tempo de vida, enquanto “life history” é definida como instrumento metodológico que recolhe cronologia exata das atividades e eventos ao longo da vida e o “life cycle”, por sua vez, tem sido utilizado para descrever uma determinada sequência dos eventos da vida, especialmente no que se refere ao processo reprodutivo de uma geração para a outra não considerando o contexto histórico nessa análise (Elder, Johnson e Crosnoe, 2002: 4-9).

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