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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.32  Porto Dec. 2016

https://doi.org/10.21747/0872-3419/soc32a1 

ARTIGOS

 

Carreiras e circuitos de músicos brasileiros: uma exploração etnográfica no Bairro Alto, Lisboa

Careers and Brazilian musicians circuits: an ethnographic exploration in Bairro Alto, Lisbon

Carrières et circuits de musiciens brésiliens: une exploration ethnographique au Bairro Alto, Lisbonne

Carreras y circuitos de músicos brasileños: una exploración etnográfica en el Bairro Alto, Lisboa

 

Ricardo Bento 1, Graça Índias Cordeiro2 e Lígia Ferro3

1Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Instituto Universitário de Lisboa, (ISCTE-IUL) (Lisboa, Portugal).

2Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) (Lisboa, Portugal). E-mail: graca.cordeiro@iscte.pt

3 Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP), Porto, Portugal. Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) (Lisboa, Portugal). E-mail: lferro@letras.up.pt

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Partindo de uma pesquisa etnográfica sobre o mundo da música popular brasileira (MPB) em lugares do Bairro Alto em Lisboa, este artigo coloca à discussão o modo como os percursos trilhados pelos artistas imigrantes de origem brasileira com objetivos de realização artística e de reconhecimento público, se desenham a par e passo com uma intensa sociabilidade coletiva entre pares, onde o trabalho e o lazer se misturam. A partir das noções de circuito e carreira analisaremos a relação entre um percurso de mobilidade espacial e de mobilidade social, assim como a relação entre a constituição de cenas musicais em diferentes escalas citadinas e artísticas.

Palavras-chave: carreiras artísticas; circuitos urbanos; músicos brasileiros no Bairro Alto.


ABSTRACT

Starting from an ethnographic research on the Brazilian popular music world in some of Bairro Alto's places (Lisbon) this article discuss how the paths pinched by the Brazilian immigrant artists in search of artistic fulfillment and of public recognition are constructed side by side with an intensive sociability between peers, where work and leisure mix together. From the notions of circuit and career, we shall analyze the relationship between paths of spatial mobility and social mobility, as well as the relationship between the constitution of musical scenes in different urban and artistic scales.

Keywords: artistic careers; urban circuits; Brazilian musicians in Bairro Alto.


RÉSUMÉ

A partir d'une recherche ethnographique sur le monde de la musique populaire brésilienne à certains lieux du Bairro Alto (Lisbonne) cet article discute la façon dont les chemins des artistes immigrants brésiliens cherchent à l'accomplissement artistique et la reconnaissance publique, côte à côte avec une intense sociabilité, où travail et loisir se mélangent. Le rapport entre les chemins de la mobilité spatiale et la mobilité sociale est analysé à l'aide des notions circuit et de carrière, ainsi que la relation entre la formation des scènes musicales dans des différentes échelles urbaines et artistiques.

Mots-clés : carrières artistiques; circuits urbains; musiciens brésiliens à Bairro Alto.


RESUMEN

A partir de una investigación etnográfica sobre el mundo brasileño de música popular en algunos lugares de Bairro Alto (Lisboa) este artículo discute cómo se construyen los caminos de los artistas inmigrantes brasileños en busca de plenitud artística y de reconocimiento público, junto con una sociabilidad intensa entre pares, donde el trabajo y el ocio se mezclan. A partir de las nociones de circuito y la carrera, vamos a analizar la relación entre las trayectorias de movilidad espacial y la movilidad social, así como la relación entre la formación de las escenas musicales en diferentes escalas urbanas y artísticas.

Palabras clave: carreras artísticas; circuitos urbanos, músicos brasileños en Bairro Alto.


 

A circulação de músicos de origem brasileira em Portugal tem sido uma constante desde a segunda metade século XX até aos dias de hoje (Cidra, 2010: 177-178). Este movimento acompanhou o processo de tipificação e internacionalização de géneros musicais do Brasil numa história de exportação da “música popular brasileira” (MPB) associada à expansão da indústria fonográfica e do espetáculo:

“Através da articulação entre a televisão, a política das editoras fonográficas e a realização de espetáculos em teatros, casinos, pavilhões desportivos, discotecas e festivais de música um pouco por todo o país, Portugal consolidou-se como um mercado significativo da MPB no exterior do Brasil.” (Cidra, 2010: 178)

Nas décadas de 1980 e de 1990, os músicos constituíam uma pequena parcela da primeira vaga de imigrantes brasileiros para Portugal (Cidra, 2010: 180). A instabilidade económica e política do Brasil e a antevisão de uma estabilidade económica e política de Portugal, recém-integrado na Europa, trouxeram músicos e empresários da área da comunicação e do audiovisual que renovaram o panorama deste tipo de música em Portugal (Cidra, 2010: 178), muito embora parte significativa deles não se tenha aqui fixado. Alguns destes músicos vinham de pontos da Europa ou Médio Oriente, atraídos por um meio musical em expansão num país de língua portuguesa culturalmente mais próximo que outros países e onde a música brasileira era bem conhecida. Muitos acabaram por sair, fixando-se, sobretudo na Europa do Sul (Cidra, 2010: 178). Os contatos estabelecidos na sociedade de acolhimento faziam- se, preferencialmente, no âmbito da oferta do meio musical constituída por “um número significativo de bares em várias zonas urbanas ou de concentração turística no país, propriedade de empresários ou comerciantes portugueses, apresentando como principais repertórios, música popular brasileira interpretada ao vivo” (Cidra, 2010:180).
Hoje, os músicos continuam a ser uma parte significativa da mais recente vaga de imigração brasileira, considerada menos ‘qualificada' e mais ‘laboral' do que a anterior vaga, entre a década de 1980 e finais de 1990 (Malheiros org., 2007; Peixoto et al, 2015; Nico et al, 2007) e os bares continuam a ser um dos palcos mais procurados para trabalhar.
Partindo desta evidência empírica, o presente texto propõe uma reflexão sobre a experiência de um pequeno grupo de músicos imigrantes brasileiros que vivem, atuam e circulam numa pequena área central da cidade de Lisboa, no Bairro Alto. Com base numa pesquisa etnográfica exploratória, entre Janeiro e Junho de 20151 , tentámos compreender como a luta por uma realização artística e seu reconhecimento público se compatibiliza com uma intensa sociabilidade quotidiana entre pares, onde o trabalho e o lazer se misturam, numa pequena área geográfica da cidade de Lisboa. As noções de circuito (Magnani, 2005) e de carreira (Hannerz, 1980; Becker,1982; Menger, 1999; Gomes, 2014) ajudaram a compreender a relação complexa do percurso de mobilidade espacial e de mobilidade social, assim como a relação entre a constituição de cenas musicais em diferentes escalas citadinas e artísticas.

1. Entre bares e estúdio: circuitos de trabalho e lazer

O Bairro Alto é um dos lugares mais centrais da cidade de Lisboa e algumas das suas ruas, como a Rua da Rosa, Rua da Atalaia e Rua do Norte, são expressivamente ocupadas por bares e restaurantes animados por música brasileira ao vivo (Guerreiro, 2012:13-14). A existência de certas associações de dança e artes2 , da Casa do Brasil e, até, do consulado do Brasil, contribuem para a atração de um público brasileiro diversificado para esta área da cidade. A Rua da Atalaia, em particular, caraterizada pela agregação de equipamentos urbanos permanentes, destaca-se pela densidade de bares e restaurantes, muitos deles com espaços interiores exíguos. Há para todos os gostos: para conversar ou para ouvir a música, com sala de jogos, Dj's e música eletrónica, exposições de artes plásticas, concertos de música ao vivo, tradicionais ou alternativos3 . A marca brasileira impõe-se nesta rua, através da expressão linguística, música, dança, caipirinhas, caipiroscas e cachaças vivamente anunciadas. Para além de atrair turistas, também brasileiros, toda esta circulação cultural brasileira constitui um possível fator de empregabilidade para imigrantes brasileiros na indústria do entretenimento e em atividades relacionadas com o lazer.
A partir deste encontro com a música ao vivo foi possível acompanhar alguns artistas imigrantes na vida da cidade e mapear “redes de relação” condensadas num território (Frúgoli Jr., 2013: 17). A rua definiu, assim, um primeiro recorte4 espacial a partir do qual se seguiu o trajeto dos músicos pela região circundante, o que ajudou à identificação de outros lugares menos públicos (como um estúdio de gravação) e mais residenciais. A etnografia organizou-se, assim, em torno da descrição e interpretação das experiências destes músicos, polarizadas em torno dos momentos e lugares significativos das suas vidas, valorizando a diversidade de experiências, desde o nível laboral mais óbvio do bar/restaurante/rua até ao nível mais íntimo do estúdio/casa/associação5 .

 

 

Os quatro bares que de seguida apresentamos, muito próximos entre si, configuram uma pequena ‘mancha de lazer' (Magnani, 2005), de música ao vivo e diversão noturna da Rua da Atalaia, no Bairro Alto. Podemos afirmar que nestes bares os músicos encontram uma das suas principais fontes de rendimento, atualizando práticas musicais, relações sociais e oportunidades que surgem na informalidade pré e pós exposição pública. Observar como diferentes frequentadores e diferentes recursos espaciais e materiais orientam de forma diversa práticas artísticas, estratégias de representação, usos e consumos foi um dos nossos objetivos.

No Portas Largas: Kuaqua

No Portas Largas a música ao vivo carateriza-se por ter algumas noites com música pop-rock (covers) e outras com MPB. São sobretudo músicos brasileiros que ali tocam, num palco elevado e frontal em relação às mesas. Ainda nos anos 90 era uma taberna e um lugar de encontro prévio antes de começar a noite no Frágil, a mítica discoteca do bairro situada do outro lado da rua. A sua localização estratégica na Rua da Atalaia onde convergem as Travessas dos Inglesinhos e da Queimada, faz com que as suas portas de entrada sejam visíveis por quem passa na Rua da Misericórdia, uma das principais vias que circundam a entrada no Bairro Alto. Os frequentadores deste bar são heterogéneos e, durante a semana, com pouca presença de público brasileiro. A música serve mais para criar ambiente, do que para ser ouvida. Muitas vezes se ouvem as vozes dos clientes por cima da música.
Baterista profissional, Kuaqua tem quarenta e dois anos e toca habitualmente no Portas Largas. Oriundo de Belo Horizonte, está em Portugal há mais de dez anos. É casado com uma cabeleireira, tem quatro filhos, com quem vive nas proximidades do Bairro Alto. Com trinta anos de atividade como baterista em diversas bandas, tanto no Brasil como em Portugal, Kuaqua multiplica as suas aspirações no meio musical em diferentes áreas: experimentação musical, gravação de outros músicos e workshops no Estúdio6 , concertos nos bares e restaurantes do Bairro Alto. Quando chegou a Portugal trabalhou três anos na fábrica de velas do Loreto, próxima do Bairro Alto, até conseguir viver apenas da música. Foram duros esses dias em que quase não dormia para poder continuar a seguir os seus desejos de ser músico. Hoje, os seus rendimentos provêm sobretudo do trabalho como músico em bares no Bairro Alto, interpretando diversos ritmos de origem brasileira, e de atividades que desenvolve num pequeno estúdio informal que construiu com amigos. Também tocava na Toca do Espalhafato, propriedade do seu amigo Abidula, e que fechou as portas recentemente.

 

 

No Arroz Doce: Cícero Mateus

A poucos metros do Portas Largas fica o Arroz Doce, pequeno bar remodelado na última década. Anteriormente era uma taberna de paragem obrigatória onde a tia Alice servia umas bifanas acompanhadas pela bebida mais conhecida e com o nome mais vernacular do bairro “o pontapé...”. Junto a uma parede existia uma velha jukebox onde se podiam escolher músicas que permitiam ao mesmo tempo pôr a conversa em dia com os amigos. É um lugar importante no território do bairro para encontrar relações consolidadas e estreitar novas, um espaço de sociabilidade que funciona como catalisador de redes interpessoais.
Recentemente o Arroz Doce tornou-se num espaço moderno, atraente e confortável, com uma decoração cuidada do balcão e iluminação de baixa intensidade em tons de vermelho que atrai turistas e jovens em busca de excitação e entretenimento. Na sua parte interior há um palco estreito, baixo, onde cabem três músicos. Com cinquenta pessoas as mesas e o restante espaço ficam completamente cheios. O proprietário que nasceu e cresceu nas ruas do bairro também é dono do bar Tacão Grande, que fica na Travessa da Cara, quase em frente ao Erasmus Corner, ponto de referência para os estudantes estrangeiros. Ele descreve como foi experimentando a música brasileira ao vivo e como as pessoas iam ficando a ouvir e o consumo, sobretudo de cerveja, foi aumentando. Os géneros musicais e os músicos têm-se diversificado, apresentando-se ao vivo em ambos os bares com Dj's, pop-rock, samba e eletrónica.
Cícero Mateus, um destes músicos, tem trinta anos de idade e veio para Portugal com dezasseis viver com tios e primos. Foi com estes últimos que formou uma banda e começou a tocar no Armazém F, em Alcântara, um dos lugares de referência para os músicos brasileiros recém-chegados que queriam tocar ao vivo. Para além de atuar no Arroz Doce circula também por outros bares do Bairro Alto, embora evite este tipo de situações rotineiras que penalizam demasiado a composição e os ensaios dos seus próprios temas musicais. No Brasil já havia iniciado a aprendizagem musical pela percussão, num ambiente familiar e com grupos de amigos. Terminou o ensino secundário já em Portugal, alcançou as avaliações necessárias para ser admitido na universidade e adquiriu a nacionalidade portuguesa para poder circular mais facilmente pela Europa, mantendo a brasileira. É vocalista, guitarrista e compositor. Já foi à televisão apresentar músicas do álbum gravado pelos Luso Baião, banda formada por portugueses e brasileiros, da qual também faz parte o irmão Beto. Integra, ainda, um projeto de pop-rock afro-brasileiro ainda em desenvolvimento, os Alma Brasilis e desenvolve composições para a sua carreira a solo. Vive numa área central da cidade de Lisboa. Costuma ir a pé para os concertos que apresenta regularmente em dois bares no Bairro Alto: no Tacão Grande numa roda de samba, ao domingo e no Arroz Doce, à segunda-feira. Além destes lugares percorre outras salas nacionais, como o teatro A Barraca, em Santos, o Chapitô, na Costa do Castelo, o B.Leza7 e festivais internacionais de forró que acontecem na Europa, para além de já ter ido ao Brasil atuar. Quando toca no Arroz Doce aparecem frequentemente uma dezena de amigos e conhecidos que vão acompanhando o seu trabalho. Neste bar em particular, Cícero interpreta um reportório ligado à tradição musical brasileira que se dirige sobretudo a turistas, estudantes estrangeiros e alguns portugueses.

 

 

No Espalhafato: Abidula

A Toca do Espalhafato, ou simplesmente o Espalhafato como era conhecido, antes de encerrar portas em Março de 2015, encontrava-se muito degradado, com falta de isolamentos nas paredes, buracos no teto, portas e janelas estragadas, tendo sido alvo de restrições em relação aos horários de funcionamento e ameaça de multas, devido a queixas sobre excesso de volume sonoro que se propagava para a rua e casas contíguas. Toda a infraestrutura do prédio estava sem condições e precisava de reparações urgentes. O telhado caiu e as estruturas técnicas de fachadas, eletricidade e canalizações estavam em péssimo estado. Este foi um dos motivos que ajudou na decisão de vender e fechar o bar definitivamente. No seu interior exíguo existia um balcão à entrada, um palco ao fundo e, no meio, quatro ou cinco mesas de reduzidas dimensões. Com menos frequentadores do que outros bares da vizinhança a Toca do Espalhafato cativava alguns novos clientes, para além daqueles que já eram habituais e conhecidos do músico-proprietário, Abidula, por intermédio do vizinho Portas Largas que gera muito movimento naquela parte da rua.
Proprietário da Toca do Espalhafato, onde também cantava e tocava violão, Abidula tem quase cinquenta anos. Veio para Portugal em meados dos anos 90, depois de ter passado por Paris, onde trabalhou como percussionista. Mestre em capoeira, foi um dos primeiros a impulsionar esta prática em Portugal. Reside muito perto do Bairro Alto, é vizinho do Kuaqua, e participa na rede de sociabilidades de um estúdio informal, do qual falaremos mais adiante, tal como outros músicos que frequentam o seu bar. Começou por tocar na Rua da Atalaia, mais tarde no atual Espalhafato, então chamado Toca do Cachorrão que, anteriormente, tinha sido um restaurante de comida portuguesa chamado A Toca. Foi ele e o sócio quem o batizou de Espalhafato, inspirados pela expressão “espalhar o facto” como homenagem aos jornalistas que alertam para injustiças ou abusos de poder. Em 2013 comprou o prédio num leilão promovido pelas finanças e em 2015 vendeu-o a um investidor imobiliário. Acalenta o projeto de criar uma fundação cultural num armazém junto ao rio Tejo. Pensa voltar ao Brasil para passar férias, mas quer continuar a viver em Portugal nos tempos mais próximos.

No Marganês: Dinho Zamorano

O Marganês é um dos últimos bares no topo norte da Rua da Atalaia. Os frequentadores do ambiente noturno e musical que ali se vive aparentam ser clientes habituais, ou pelo menos conhecedores das sonoridades brasileiras do forró, arrasta- pé, frevo e samba. O bar tem algum espaço para dançar, embora seja um pouco claustrofóbico, como comentam alguns, e em dias com muita gente, dançar torna- se uma tarefa para aventureiros. Outrora esta parte da rua tinha má fama e era representada como um sítio perigoso. Agora está mais movimentada e é usual nos dias de mais agitação ver muitos dos clientes na rua a conviverem, enquanto lá dentro os acordes do cavaquinho de Dinho animam a casa e a dança.

 

 

Dinho Zamorano canta e toca cavaquinho numa banda onde é a figura central, com o irmão mais novo, Rapha. As suas origens de Olinda, Pernambuco aparecem no sotaque quente e nasalado dos seus trinta e sete anos de idade, quando canta as letras sensuais e provocadoras de um forró. Concluiu o ensino secundário enquanto fazia as suas experimentações musicais e trabalhava para ajudar os pais. Quando chegou a Portugal, em 2001 com vinte e três anos veio ter com a irmã que tocava música eletrónica e começou a trabalhar na construção civil. Em simultâneo, juntava-se com outros músicos em rodas de samba e outros eventos musicais para adquirir mais experiência e contatos. Após ter sido forçado a sair do país, adquiriu nacionalidade espanhola, pelas suas raízes familiares e regressou novamente a Portugal. Hoje, casado com uma portuguesa, de quem tem três filhos, vive em Benfica. Podemos encontrá-lo a tocar regularmente no Bairro Alto, no Marganês, durante a semana e nas docas de Alcântara, no Havana, ao Domingo. Atualmente, tem-se dedicado a um novo trabalho que vai editar em breve.

Abidula, Dinho, Kuaqua, Cícero e muitos outros músicos e amigos fazem parte de uma pequena rede de afinidades que se encontram, frequentemente, no Estúdio . É um pequeno lugar que fica numa rua estreita a dez minutos a pé do Bairro Alto. As portas velhas de alumínio mais parecem dar acesso a um velho armazém e não existe sinalética que singularize o que ali se desenrola. Este estúdio informal combina um conjunto de sociabilidades criativas ligadas à música e a outras afinidades pessoais. Nesse lugar estes músicos mostram as suas composições, os improvisos, ou descansam e falam dos seus quotidianos. É possível assistir a encontros entre músicos diferentes como o caso de Adrix, um músico de origem cabo-verdiana, que nunca frequentou a escola formal para aprender música erudita, e Leonardo, um professor brasileiro de guitarra e aluno de mestrado em teoria musical e composição. Numa das noites, ambos entraram simultaneamente num diálogo entre diferentes linguagens e melodias, criando contrastes e empatias entre guitarra e voz.
Alguns dos músicos que por ali passam acabam por conseguir trabalho por revelarem as suas capacidades ao grupo de pares. Podemos mencionar o caso de Jeff, um guitarrista que chegou somente há uns meses a Lisboa, e com o qual o Kuaqua formou um trio para atuarem em circuitos culturalmente prestigiantes, tal como um concerto na associação da Casa Comunitária, situada na Mouraria. Neste Estúdio não é incomum ouvir falar de ideias que aparecem entre acordes soltos e linhas da percussão, de músicos convidando músicos para se entreajudarem em projetos embrionários. Exemplos que evidenciam uma preocupação com o prestígio pessoal, a construção de uma carreira como músico, procurando algo mais do que apenas o exercício de capacidades adquiridas.
Por todos estes motivos o Estúdio surge como um lugar do circuito destes músicos onde se conjugam relações entre diferentes géneros musicais, origens culturais e estratégias de ação. Desempenha, também, um papel importante ao assegurar a criação de uma rede de sociabilidades de músicos que reescreve continuamente os sentidos de permanência que normalmente os bairros históricos e os centros urbanos têm, introduzindo novos conteúdos culturais e sociais que contagiam as práticas e as representações, numa espécie de palimpsesto urbano. O tempo de lazer como forma de participação plena na sociedade e a qualidade desses momentos de convívio e trabalho coletivo repercute-se de uma forma singular na própria atividade artística dos músicos quando estes procuram experiências de realização pessoal que, normalmente, estão dissociadas das atividades profissionais quotidianas, solicitando uma descoberta de si e dos outros.

2. “É assim que a música me constrói”

O meu trabalho é uma parada de vinte e quatro horas. A música está na minha vida a toda a hora, não tem parada. Nesses vinte anos me coloca nos lugares, vai-me colocando a falar com pessoas e a trocar ideias comigo. E sai qualquer coisa positiva disso. É assim que a música me constrói. (Cícero, 23 Abril 2015)

Para estes músicos, a intensidade do empenho artístico e a importância concedida aos lugares de visibilidade e reconhecimento público não são equivalentes. As suas carreiras artísticas são moldadas pelos modos plurais como constroem as ligações das práticas artísticas aos mundos de arte a que têm acesso (Becker, 1982). Pode afirmar- se que a “organização sequencial das diferentes situações de vida” destes artistas se carateriza por uma tendência incerta e multiforme (Hannerz, 1980: 270)8 , na sequência do reconhecimento ou do esquecimento dado aos projetos em que se encontram envolvidos.
Assim,embora atualmente Kuaqua seja um músico quevivequaseexclusivamente de atividades ligadas ao meio musical, desdobra-se numa multiplicidade de projetos direta e indiretamente ligadas ao seu trajeto como percussionista. Esta estratégia de combinar diversas atividades não apenas melhora os seus rendimentos como favorece o alargamento da sua rede de contatos, diminuindo o risco de incerteza laboral. A pluralidade de ocupações compensa a ausência de um contrato formal com grandes organizações artísticas que usualmente dão acesso a trabalhos mais estabilizados. Porém, quando observamos os constrangimentos iniciais de Kuaqua para manter uma carreira como músico em Portugal percebemos aquilo que podemos designar como uma “dupla impermanência”. Por um lado, seguindo novamente a noção de carreira como organização sequencial das situações de vida (Hannerz, 1980: 270), vemos que as mudanças introduzidas pelo percurso migratório alteram relações de vizinhança, redes interpessoais, de lazer e mobilidade, aumentando as variáveis de incerteza. Por outro lado, a exigência de processos colaborativos sofisticados na performance musical e o risco de fracas ligações laborais são causas adicionais de instabilidade que condicionam a trajetória artística, tal como foi descrito pelo próprio ao apontar as dificuldades que sentiu inicialmente em conseguir viver apenas da música, exercendo profissões fora desse universo performativo.
Num sentido inverso, a transição migratória de Cícero e a entrada num meio musical desconhecido aconteceu sem grandes alterações disruptivas. Os vínculos de parentesco parecem ter facilitado o contato com o cenário social e artístico pré-existente. A continuidade da aprendizagem escolar formal permitiu a abertura a novas realidades e relações de amizade que se refletiram na descoberta de outros estilos de vida, com saberes sociais e culturais diferenciados da sua experiência anterior. Ainda que Cícero viva a partir dos rendimentos provenientes de concertos e bares, ele arrisca mais na composição dos seus temas e procura ensaiar, gravar e apresentar esses trabalhos ao vivo, dedicando menos tempo aos circuitos performativos que os bares lhe proporcionam. Essa estratégia permitir-lhe-á porventura um acréscimo de novas opções que, embora incertas e desconhecidas abrem para expressões estéticas, redes de sociabilidade e circuitos musicais inesperados que dão à sua carreira uma configuração criativa e independente baseada na construção de portfolios artísticos originais.
O percurso artístico do Abidula, por seu lado, carateriza-se pela acumulação de diferentes ocupações indiretamente ligadas à interpretação musical. Nomeadamente através da capoeira, que tem uma forte presença do canto e do ritmo, e atrás dos papéis de empregador e divulgador como proprietário de um bar com música ao vivo. O facto de ser proprietário e empresário modifica necessariamente a “organização sequencial das suas situações de vida”, tendo que estabelecer relações com comerciantes locais, fornecedores, músicos e clientes. O empenho de Abidula sustenta e alarga as redes de sociabilidade, de fruição estética e a fluidez de novos papéis ligados às atividades do Espalhafato; inversamente, a sua participação como intérprete, músico e autor noutras dimensões estéticas está nesta fase concreta da sua vida condicionada pelas responsabilidades que detém como proprietário de um bar.
No que se refere a Dinho, vemos que a sua atual carreira artística está associada a pequenas organizações, restaurantes e bares, e situações conjunturais em que lhe pedem para realizar apresentações em festas organizadas por autarquias ou particulares, que querem celebrar uma ocasião específica. Além disso, este músico grava maquetes e desenvolve trabalhos de composição dirigidos a uma comunidade cultural específica que se revê na complexa génese da música popular brasileira, combinando géneros que nasceram em regiões distantes e culturas distintas, como é o caso do samba e do forró. Em determinado momento da pesquisa acompanhámos de perto um dos momentos em que se preparava para dar uma entrevista a uma rádio nacional que divulga sobretudo música de origem brasileira. Isto é revelador de que a manipulação de convenções (normativas e criativas) que são realizadas pelas interpretações deste músico em relação aos múltiplos géneros existentes na música brasileira se interliga e dialoga com mecanismos e dimensões culturais próprias desse mundo de arte (Becker, 1982). Mesmo que em situações pontuais se tenha de negociar fronteiras com audiências ou produtores de uma sociedade de destino que não compreendem inteiramente a gramaticalidade dos conteúdos expressivos em causa, como no caso em que são tocados temas originais nos bares de diversão noturna com a presença diversificada de turistas, migrantes brasileiros, estudantes estrangeiros e locais, por exemplo.
Resumidamente, vemos que a separação da atividade musical em diversos planos é uma constante repetida por todos estes músicos: um mais ligado ao trabalho, como forma de sustento; outro alimentado pelos projetos individuais de autor; e ainda um terceiro, para onde convergem e se combinam expressões artísticas e projetos sociais. Muitos estudos apontam para esta realidade em que os músicos desenvolvem múltiplas atividades em simultâneo como forma de aumentar o rendimento, manter uma ligação duradoira ao meio e inventar oportunidades futuras (Menger, 1999; Gomes, 2014). Neste sentido, o modo como aspirações de curto prazo direcionam práticas musicais, e, como o planeamento de objectivos mais estruturados de uma carreira se intersetam com equipamentos culturais, mecanismos de produção, interesses e audiências de um circuito musical acabam por condicionar a práxis, o estatuto e as decisões individuais ou coletivas.

“Eu toco em muitos sítios, que para sobreviver tem que fazer vários. Como estou aqui há treze anos as pessoas já me conhecem e vou tendo trabalhos. Nesse momento estou regular em três dias, mas cheguei numa fase em que não quero estar a tocar fixo nos lugares, tipo cinco anos no mesmo lugar. Eu quero sempre tocar em outros lugares. Quero sempre mudar.” (Cícero, 23 Abril 2015)

Os concertos, como momentos de exposição artística com maior visibilidade performativa, são particularmente valorizados. São referidos como momentos em que as pessoas se deslocam de propósito para os ouvir, para dançar e dar atenção à qualidade dos seus temas. Em contraste, as práticas musicais nos bares do Bairro Alto ou na rua9 , são importantes como rotina que mantém rendimentos e, também, como exercício das capacidades técnicas e estéticas treinadas pelos compassos quotidianos de trabalho. Efetivamente, estas não são, normalmente, as práticas mais valorizadas artisticamente pelos próprios. Embora possam coexistir, e até sobrepor-se, em alguns casos, as expetativas mais elevadas estão dirigidas para projetos próprios ou eventos que permitem atingir patamares de reconhecimento e prestígio de maior valor.

3. Bairro Alto, lugar de movimentos sonoros

Um dos aspetos mais curiosos, relacionado com a própria escolha do lugar para estas práticas musicais surge nas diferentes perceções do Bairro Alto como uma miríade de paisagens musicais que vão do fado até à manifestação das culturas juvenis mais contemporâneas, incluindo música eletrónica, rap, jazz e pop-rock alternativo. Neste sentido, o Bairro Alto, é caraterizado como um lugar típico da cidade, que carrega tradições históricas e culturais, mas que não deixa de atrair e reinventar, em particular, novas estéticas musicais que se inter-relacionam no mesmo território urbano.
Com efeito, a cidade de Lisboa e o Bairro Alto, em particular, são referidos como lugares envolventes que ‘fazem as coisas acontecer':

É uma das melhores coisas que aconteceu aqui em Lisboa em relação à música, e até de certa forma as expressões de artes plásticas têm essa vantagem aqui. Você se comunica com gente do mundo inteiro na cidade e fala português, e às vezes não. (Leonardo, guitarrista e compositor, 12 de Março de 2015)

Neste pequeno território coexistem, lado a lado, os bares e restaurantes turísticos onde atuam para ganhar a vida com algumas das casas de espetáculo mais ‘apetecíveis' da cena artística lisboeta, como o Teatro do Bairro, a galeria ZDB ou, nas suas proximidades, o B.Leza. A vizinhança entre práticas musicais contrastantes, a proximidade física entre espaços que suscitam uma circulação entre experiências tão contrastantes é, sem dúvida, um dos valores deste território lúdico (Baptista, 2005) com elevado poder de atração.
Simultaneamente, o poder da música em espaço público como revitalizadora da vida urbana é conscientemente defendida por estes músicos. Neste sentido, a música como performance social é um meio de acedermos aos outros, interligando interações entre diferentes intérpretes e compositores através do encontro entre culturas e audiências que em muitos casos são simbolizadas por reificações de alteridade e afastamento.

A música…ela tem um poder incrível, entendeu? Você vai num bar de música ao vivo e ele está lotado. Ontem mesmo proibiram os bares por causa dos ruídos, do Portas Largas para baixo, de ter música ao vivo durante quarenta e cinco dias. O que é que aconteceu? Ninguém na rua. Ontem ninguém no bairro (Bairro Alto), ninguém ali na Rua da Atalaia. (Dinho Zamorano, 11 de Fevereiro de 2015)

Seja nos bares de porta aberta, seja nas ruas e praças circundantes do Bairro Alto, a ‘música brasileira' é representada como uma riqueza deste bairro que sem ela ficará menos atrativo. Alguns dos músicos entrevistados referem o impacto da música tocada ao vivo como um elemento de dinamismo social, económico e cultural e de como se torna importante existirem lugares onde isso possa acontecer.

P'rá mim a música me fez encontrar vários caminhos. Mesmo da letra, da poesia, da espiritualidade, sabe? Até coisas que aprendi fora da música, foi a música que me deu. (Cícero, 23 Abril 2015)

Contudo, nem todos os lugares se equivalem, no Bairro Alto. Um público conhecedor das melodias brasileiras, maioritariamente composto por brasileiros que dançam e cantam os temas e que sabem reconhecer as qualidades dos temas e dos intérpretes, ou a qualidade da atenção que é dada aos gestos performativos influem nas perceções e na valorização das interpretações:

No Marganês, na segunda-feira, sinto a maior felicidade do povo, tu sai dali com alma lavada, o samba contagia e isso é legal. Agora vou tocar num restaurante em que é totalmente diferente. Você não vê aquele calor do povo. São lugares diferentes. (Dinho Zamorano, 11 de Fevereiro de 2015)

A relação com as ‘tradições' próprias do bairro são efetivamente invocadas. A presença da música brasileira em salas de concertos, nas ruas e nos bares depara-se com a centralidade das práticas culturais, de lazer e consumo que as manifestações locais e cosmopolitas vividas no bairro emanam. Neste sentido, as prolíficas origens melódicas, harmónicas e rítmicas da cultura musical brasileira entrelaçam-se com outras sonoridades, consideradas mais lisboetas. Estas possibilidades são percecionadas como uma riqueza incomparável, responsável pelo poder de atração do Bairro Alto.
Estes circuitos combinados entre trabalho e lazer proporcionam momentos de criação e performance, sucessões de eventos, canais de visibilidade pública, mecanismos de produção e financiamento, encontros entre grupos de pares e/ou instituições de formação que ajudam ao reconhecimento e ao desenvolvimento das suas capacidades. Alguns destes músicos brasileiros trabalham em bares e restaurantes noutras áreas turísticas com uma grande densidade, e têm um reportório orientado consoante os lugares e os públicos.
Ainda que possamos afirmar que estes músicos usam muito do seu tempo nestas práticas para se financiar, parte deles não cessam de pensar nos seus próprios trabalhos e em colaborações com outros músicos, como forma de potenciarem práticas e expressões estéticas em que a sua autoria seja reconhecida. Desta forma, a criação de temas originais é uma das estratégias para se obter mais reconhecimento público e realizar objetivos pessoais.

O que quero mesmo agora é gravar esse cd com quatro ou cinco temas… que são temas que sejam meus… e saber que pô o cara tá ouvindo o meu trabalho é uma coisa minha, não tô tocando igual ao fulano, eu é que tô tocando. (Kuaqua, 6 de Março de 2015)

É assim que, nestas dimensões diferenciadas e concomitantes são organizados processos de trabalho artístico em salas de concertos, teatros, associações e outras instâncias de maior consagração performativa, que aspiram a situações, lugares e circuitos com configurações transnacionais, entrelaçando culturas e experiências do viver urbano. Determinadas cenas musicais decorrem deste impulso para fazer trabalhos individualizados que necessitam da cooperação de diversos elementos ou grupos, para que possam em conjunto mostrar uma coerência expressiva impulsionada por audiências e mundos artísticos.
Podemos aduzir que estas práticas artísticas de nível mais profissional, independente ou dirigido a uma comunidade específica influencia, de forma direta, a configuração dos circuitos musicais destes protagonistas. Além disso, a forma como os músicos organizam as incertezas da sua carreira também transformam as dinâmicas dos próprios circuitos. Dado que o seu modus operandi está vinculado internamente ao risco de criarem protótipos por tentativa e erro, não têm garantia prévia de sucesso, e, por isso, procuram continuamente novas oportunidades artísticas. Noutra perspetiva, os circuitos musicais que são mais intensamente estruturados através do planeamento a longo prazo do trabalho de composição, ensaios, concertos e gravações, alteram as ações individuais e coletivas das carreiras plurais e incertas destes protagonistas, acrescentando reconhecimento público aos seus trabalhos de autor.

4. Considerações finais

A cidade de Lisboa, e o Bairro Alto em particular, oferecem a estes músicos de origem brasileira modos de ancoragem que favorecem a circulação e o alcance de oportunidades locais e internacionais. As formas de cooperação identificadas neste texto são reveladoras de uma estratégia orientada no sentido da realização pessoal e profissional. As redes de sociabilidade em que se inserem proporcionam um motor de dinamismo para a concretização de objetivos pessoais, tanto na diversificação dos seus papéis artísticos como na combinação que alguns deles realizam em projetos autorais através de contatos e circuitos de dimensão internacional. Estar em movimento para a maior parte dos músicos é algo que é necessário, uma vez que têm de apresentar as suas capacidades, os seus reportórios e os seus temas perante uma audiência que os quer ver ao vivo. A potencialidade da música brasileira para circular e ser recebida em diferentes partes do mundo é um recurso que permite construir repertórios que se integram em festivais nacionais e internacionais, como é o caso dos festivais de forró que existem na Alemanha, Inglaterra, Espanha, França ou Itália, apenas para mencionar alguns.
A observação de circuitos artísticos urbanos permitiu perceber como as carreiras se vão construindo, neste diálogo entre a vida local e as deslocações territoriais. A interseção entre os conceitos de circuito e carreira revelou ligações entre as formas de deslocação territorial, nas suas várias escalas micro-local, citadina e internacional, e os percursos de mobilidade social, ‘pessoal e artística' que ajudam a olhar de modo integrado cidade e imigração. A análise desta interseção é uma das estratégias analíticas potencialmente fértil para melhor compreendermos o sentido e o significado das experiências destes músicos.
O acompanhamento dos circuitos por onde estes músicos se movem espacialmente pela cidade mostrou, assim, as estratégias cooperativas, as decisões pessoais e as situações através das quais se incorporam na vida local, projetando as suas aspirações em múltiplas dimensões. As atuações em bares, restaurantes, associações, teatros, salas de concertos, praças e ruas como forma de inserção laboral, e simultaneamente, o processo impulsionador para atuar em instâncias mais consagradas coexistem com a participação em diversas práxis comunitárias. Seja no âmbito da realização de projetos mais pessoais ou profissionais, seja na expansão de novas relações sociais e institucionais que modificam os cenários da vida urbana desses lugares.
Contudo, quando intersetamos a noção de carreira com a de circuito, entendida como um percurso de mobilidade social que nem sempre é linear, conectando dimensões territoriais e a fluidez da experiência urbana, característico da irregularidade de quem trabalha por projetos, contrariamente a quem está integrado em estruturas do meio artístico mais estabilizadas, verificamos que há uma ausência de lugares de consagração dentro do circuito. Esta é uma lacuna sentida pelos próprios que dificulta a rotina de um trabalho mais prestigiado e que pode levar ao próprio abandono da atividade, tendo em conta que são os circuitos que mantêm as aspirações de uma carreira artística que se desenrola numa sucessão intermitente de situações e projetos. Efetivamente, as criações saídas desta rede de afinidades associada às práticas musicais deparam-se com obstáculos na hierarquia organizacional da cidade. Neste sentido, é como se a cena de música brasileira local tivesse uma fragilidade intrínseca, uma vez que os lugares de maior consagração são usados sobretudo pelos artistas brasileiros de renome, deixando de fora os músicos que produzem localmente, muito embora alguns deles o consigam fazer internacionalmente.
Paradoxalmente, Lisboa oferece oportunidades de desenvolvimento do trabalho artístico, sendo valorizados vários aspetos, incluindo a segurança que sentem na vida quotidiana da cidade, para além de ser vista como uma porta de entrada para os mercados de trabalho mais amplos do espaço europeu. A liberdade de poder transitar pela cidade sem receio de uma violência fortuita, ou estar na copresença de uma desigualdade social constante que impõe uma tensão de insegurança e vigilância permanentes, surge como dimensão fundamental da cidadania10 . As redes de parentesco, vizinhança e amizade em que se inserem estes músicos imigrantes operam como formas de apoio, trazendo benefícios recíprocos como contatos de trabalho e de residência.
Embora estes músicos imigrantes façam parte da imigração brasileira mais recente, designada como laboral por ser menos qualificada relativamente à anterior vaga imigratória podem ser categorizados como imigrantes “laborais profissionalmente qualificados”. Assim, a simultaneidade de formas de integração laboral local através de um exercício profissional relativamente incerto, leva-nos a concordar com Amanda Guerreiro sobre a ambiguidade de estatuto que estes músicos imigrantes têm como migrantes, entre a procura de melhores condições de vida e sucesso artístico (Guerreiro, 2012). Nesse caminho interligam-se sociabilidades criativas e reconfigurações culturais, contraditórias, conflituantes, convergentes ou sobrepostas, que ajudam a explorar melhor as dimensões de fronteira entre os fenómenos migratórios atuais e as inscrições locais da expressividade relativas ao trabalho da arte. As redes de sociabilidade em que estes músicos se inserem e os seus recursos materiais e imateriais favorecem a mediação entre mundos (Velho, 2010), dando acesso a circuitos musicais que diversificam as suas relações e práticas.
Estas experimentações são dirigidas a públicos vastos, desde a rua a salas de concertos mais prestigiadas, ultrapassando as suas próprias comunidades de partida. Podemos, pois, afirmar que estas formas de expressão artística, interligadas por fluxos de migração territorialmente estruturados em redes de sociabilidade locais, provocam recursividades culturais que decompõem estereótipos, negoceiam fronteiras e constroem pontes, diálogos, confrontos e combinações entre expressões musicais imigrantes (Vanspauwen, 2013) produzindo uma ‘cena musical vernacular emergente” (Sieber, 2002: 179) na cidade de Lisboa. Esta é apenas uma das pistas enunciada neste artigo, potencialmente promissora, nomeadamente no que se refere ao modo como estas práticas musicais são informal e institucionalmente enquadradas contribuindo para que Lisboa seja um lugar de criação artística singular.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência: Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL). ISCTE-IUL, Avenida das Forças Armadas 1649-026, Lisboa. E-mail: ricardo.bento7@gmail.com

 

Artigo recebido a 5 de novembro de 2015. Publicação aprovada a 30 de junho de 2016.

 

Notas

1 A presente pesquisa faz parte de uma investigação mais abrangente sobre os recursos, as condições, as trajetórias biográficas, os estilos de vida, as sociabilidades e os circuitos urbanos de imigrantes de países terceiros à União Europeia que vêm trabalhar em Portugal no campo artístico : “O trabalho da arte e a arte do trabalho: circuitos criativos de formação e integração laboral de imigrantes em Portugal” projeto coordenado por Lígia Ferro e Otávio Raposo, CIES-IUL/ACM/CE. Agradecemos aos artistas que partilharam as suas histórias connosco, aos colegas da equipa deste projeto de investigação com quem discutimos dados e dúvidas de pesquisa e a Otávio Raposo que atuou como elemento facilitador da entrada no terreno da pesquisa.

2 Artcasa e ArtePura.

2 De dia, o movimento e visibilidade dos bares noturnos dá lugar a outro tipo de comércio e instituições: lojas de moda e atelier, a Galeria Zé dos Bois (ZDB) com seus eventos culturais, cuja entrada principal é feita pela Rua da Barroca, a Galeria das Salgadeiras, o Talho da Atalaia ao lado do bar A Capela, uma mercearia, uma loja de ferragens ao lado do Arroz Doce, uma casa de molduras, um artesão, um Hostel situado em frente ao mercado próximo de uma escola primária.

3 A rua, como recorte empírico, tem sido usada em vários etnografias urbanas. Veja-se Graça Cordeiro (1997); Cristiana Bastos (2001); Graça Cordeiro e Fréderic Vidal (org) (2008); Lígia Ferro (2011) e (2015); e, para o Bairro Alto, Heitor Frúgoli Jr. (2013).

4 A pesquisa etnográfica foi mais intensamente desenvolvida de forma sistemática por Ricardo Bento, bolseiro de investigação do projeto, ao longo de quatro meses; Graça Cordeiro e Lígia Ferro orientaram este trabalho, com algumas incursões no terreno e discussões periódicas que foram dando forma ao texto escrito em colaboração.

5 A pesquisa etnográfica foi mais intensamente desenvolvida de forma sistemática por Ricardo Bento, bolseiro de investigação do projeto, ao longo de quatro meses; Graça Cordeiro e Lígia Ferro orientaram este trabalho, com algumas incursões no terreno e discussões periódicas que foram dando forma ao texto escrito em colaboração

6 Nome fictício.

7 O B.Leza tem sido ao longo do tempo um lugar ímpar nas cenas musicais cabo-verdianas e africanas que têm acontecido em Lisboa, como refere César Monteiro, 2011

8 Ulf Hannerz (1980) enquadra a noção de carreira de uma forma holista como conceito chave para entender a fluidez da vida urbana. Ver pp. 270-76.

9 Embora não seja referido explicitamente neste artigo, a experiência de alguns músicos que tocam nas ruas de Lisboa fez parte desta pesquisa

10 Angela Torresan (2012) refere o “estranhamento” de muitos brasileiros pertencentes à classe média em relação ao seu país como um dos motivos para iniciarem percursos migratórios, sentindo que as suas aspirações sociais e os seus direitos de cidadania não seriam cumpridos durante o seu período de vida.

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