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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.31  Porto June 2016

 

ARTIGOS

Notas sobre a dominação social em António Gramsci e Pierre Bourdieu1

Notes on the social domination in Antonio Gramsci and Pierre Bourdieu

Notes sur la domination sociale dans Antonio Gramsci et Pierre Bourdieu

Notas sobre la dominación social en Antonio Gramsci y Pierre Bourdieu

Marcello Felisberto Morais de Assunção2
Universidade Federal de Goiás
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa


 

RESUMO

Neste texto buscaremos fazer uma análise comparativa entre Bourdieu e Gramsci, abordando a partir desta os possíveis sentidos marxianos da produção Bourdieusiana. Não pretendemos esgotar todas as possibilidades de análise, mas, demonstrar alguns contrastes entre as reflexões de Gramsci e Bourdieu a partir de dois conceitos centrais nas suas obras: Hegemonia e Violência Simbólica. A partir destes conceitos, perscrutaremos comparativamente as suas respectivas reflexões sobre a questão da dominação, a fim de contribuir para o vácuo em torno dos estudos comparados entre estes autores.

Palavras-chave: Marxismo; Gramsci; Bourdieu; Dominação.


ABSTRACT

In this paper we seek to make a comparative analysis between Bourdieu and Gramsci, addressing from this possible Marxist senses of Bourdieusian production. We do not intend to exhaust all possibilities of analysis, but show some contrasts between the reflections of Gramsci and Bourdieu from two central concepts in his works: Hegemony and Violence Symbolic. From these concepts compared we will scrutinize their respective reflections on the question of domination in order to contribute to the vacuum around the comparative studies between these authors.

Keywords: Marxism; Gramsci; Bourdieu; Domination.


RESUMÉ

Dans cet article, chercher à faire une analyse comparative entre Bourdieu et Gramsci, adressant à partir de ce sens possibles marxistes de production Bourdieusienne. Ne pas l'intention d'épuiser toutes les possibilités de l'analyse, mais montrer quelques contrastes entre les réflexions de Gramsci et Bourdieu de deux concepts centraux dans ses œuvres: l'hégémonie et de la violence symbolique. Départ de ces concepts comparé nous allons examiner leurs réflexions respectives sur la question de la domination afin de contribuer à la dépression autour des études comparatives entre ces auteurs.

Mots-clés: Marxisme; Gramsci; Bourdieu; Domination.


RESUMEN

En este trabajo tratamos de hacer un análisis comparativo entre Bourdieu y Gramsci, dirigiéndose de esta posibles sentidos marxistas de producción Bourdieusiano. No tenemos la intención de agotar todas las posibilidades de análisis, pero mostramos algunos contrastes entre las reflexiones de Gramsci y Bourdieu de dos conceptos centrales en sus trabajos: Hegemonía y violencia simbólica. A partir de estos conceptos en comparación examinaremos sus respectivas reflexiones sobre la cuestión de la dominación con el fin de contribuir al vacío en torno a los estudios comparativos entre estos autores.

Palabras clave: Marxismo; Gramsci; Bourdieu; Dominación.


Antônio Gramsci (1891-1937) e Pierre Bourdieu (1930-2001) foram, e continuam sendo através de seu legado, dois autores fundamentais para o avanço teórico-prático das ciências humanas em seus respectivos campos, seja no marxismo ou no âmbito da sociologia. Através de suas formulações teóricas e intervenções práticas estes conseguiram perpetuar o seu legado através de um elemento fundamental (hegemônico, mas, não único) que media a totalidade de suas obras: a análise crítica sobre a cultura a partir de uma perspectiva conflituosa desta. Conflito que é visibilizado, em ambos, através da tendência da contribuição da cultura para a legitimação da dominação de classe (ou/e de grupos), sem, no entanto, reduzir esta produção, através dos intelectuais, a partir de uma completa autonomia (consubstanciada na noção ‘‘gênio'', própria de uma ‘‘razão escolástica'') ou na redução desta produção a uma total dependência mecânica das estruturas (como no caso do ‘‘marxismo vulgar'' ou em certo tipo de estruturalismo), fugindo, portanto, de qualquer tipo de determinação fatalista, seja qual for o tipo de reducionismo (politicista, economicista ou culturalista).
Através de um amplo aparato conceitual, apropriado de uma série de tradições, Bourdieu e Gramsci conseguiram fazer, em seus distintos tempos, análises que mesclavam uma alta profundidade teórica com uma análise voltada para o seu próprio tempo. O esforço de Gramsci se voltava para a compreensão da derrota da revolução socialista no ocidente (Coutinho, 1999), e na tentativa, mediante esta derrota, da projeção de um horizonte socialista democrático através da superação da estratégia de guerra de movimento para uma guerra de posição (noções que são constituintes das reflexões Gramscianas sobre a revolução socialista no ocidente e imbricadas a noção de hegemonia, como veremos adiante).
Em Bourdieu, este esforço teórico-prático se direcionou na crítica ao sistema de ensino e a cultura em geral (a sua contribuição para a reprodução das relações de força), nos primeiros escritos, e nos últimos, uma intervenção mais direta através dos ataques a mídia e ao neoliberalismo. Ambos a partir de suas respectivas análises com enfoque na dimensão cultural perscrutaram, como já foi dito, a relação desta com uma classe ou grupo dominante, sem reduzi-la a um mero fatalismo da primeira e seguindo a tradição marxiana que vê a cultura dominante como a cultura da classe dominante.

Mediante as diversas aproximações entre Bourdieu e o marxismo, buscaremos nesta análise invocar os sentidos marxianos na obra Bourdieusiana através de uma análise comparativa entre este e A. Gramsci, considerado por muitos como um dos intelectuais mais singulares e inovadores da tradição marxista. Não analisaremos todas as múltiplas possibilidades de análises destes autores (o que seria uma tarefa hercúlea), mas, ressaltaremos aqui alguns possíveis contrastes (e também dissensos) a partir de um dos elementos de suas reflexões, central em suas análises: a questão da dominação social, através dos conceitos de hegemonia (A. Gramsci) e violência simbólica (Pierre Bourdieu). Antes de aprofundarmos no estudo desses conceitos se faz necessário evidenciar a concepção materialista e determinista do mundo social compartilhada por Gramsci e Bourdieu, pois, é a partir desta concepção que estes irão fundamentar uma ruptura com certa noção de liberdade contingenciada que esta implícita em suas abordagens. Bourdieu e Gramsci colocam a prática social, através desta perspectiva, dentro de uma cadeia de determinações, que apesar de seu aparente fatalismo e mecanicismo guarda espaço para aquilo que Raymond Willians chamou de ‘‘inesgotabilidade da prática e da intenção humana'' (Williams, 2011: 59).

1. Materialismo e determinismo em Antônio Gramsci e Pierre Bourdieu

Bourdieu e Gramsci ao longo de sua trajetória dialogaram ao longo de sua vida com a tradição materialista e idealista, sem, no entanto, fazer uma adesão a-critica a uma ou outra perspectiva. Ambos confrontaram as tradições hegemônicas das ciências humanas que analisavam a ação social (não é a toa que Gramsci chama o marxismo de filosofia da práxis e Bourdieu nomeia sua sociologia de praxiológica) a partir da dicotomia materialismo/idealismo, objetivismo/subjetivismo. Estas tradições, no qual Gramsci e Bourdieu se defrontavam, reduziam a ação, no idealismo a um individualismo reducionista, ou na perspectiva materialista metafisica (como também no estruturalismo do tempo de Bourdieu) a mero mecanicismo. Perspectivas que tanto Gramsci a partir dosCadernos do cárcere – as críticas ao manual de Bukharin ou ao idealismo de Benedetto Croce e também na análise a historiografia do Risorgimento – como Bourdieu – em Esboço de uma teoria da prática (1983) e em outras obras – confrontam.
Parece-nos que em ambos a solução para estas dicotomias, está muito próxima da noção marxiana da dialética entre liberdade e necessidade, e que é visível na noção de determinação social apropriada por Gramsci e Bourdieu. Nesta tradição se supera certa noção de determinismo presa ao que Raymond Willians chamou de ‘‘herança teológica”, ou seja “a noção de que uma causa externa que prediz ou prefigura por completo e que de fato controla totalmente uma atividade ulterior'' sendo substituída pela noção marxiana que ‘‘vai além da determinação abstrata e teleológica'' (Willams, 2010: 44). Há, portanto, uma clara diferença entre esta primeira definição (mecanicista) onde ‘‘um conteúdo subsequente é essencialmente prefigurado, previsto e controlado por uma força externa preexistente'' (Williams, 2010: 45) de numa noção onde a determinação e vista como um ‘‘processo de fixar limites e exercer pressões, seja por alguma força externa ou interna ou por leis internas de um desenvolvimento particular'' (Williams, 2010: 45). É a noção mecânica, fatalista e estática na sua abordagem da relação entre individuo e sociedade, que ambos irão exorcizar a partir de suas reflexões.

Como nos mostra Bourdieu ao se enquadrar em uma noção dialética das determinações sociais:

‘‘Os constrangimentos da necessidade inscrita na própria estrutura dos diversos campos pesam ainda nas lutas simbólicas que têm em vista conservar ou transformar esta estrutura; o mundo social é, em grande parte, aquilo que os agentes fazem, em cada momento; contudo, eles não tem probabilidades de o desfazer e de refazer, a não ser na base de um conhecimento realista daquilo que ele é e daquilo que nele são capazes em função da posição nele ocupada'' (Bourdieu, 1989: 150)

Nesta reflexão, se vê claramente uma forte semelhança com a noção de liberdade contingenciada explícita na famosa frase de Marx ‘‘Os homens fazem sua própria história, mas não o fazem como querem, não a fazem sob circunstancias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado'' (Marx, 1977: 17). Esta perspectiva apropriada por Bourdieu evidencia uma ruptura com a ‘‘ilusão da transparência da consciência'' (Bourdieu et al, 1999: 27) própria de uma noção que inclui aspectos ‘‘não-conscientes''(que não se apresentam facilmente a consciência) e determinantes na ação social (a partir do sentido de determinação assinalado anteriormente), que é mesmo um dos pressupostos para se fazer uma análise crítica do mundo social explícita na noção da ação social mediada pela noção de liberdade contingenciada.
É esta noção da qual Gramsci em grande parte se apropria nas suas reflexões, a partir do momento em que ele concebe a filosofia da práxis como ‘‘o historicismo absoluto, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história'' (Gramsci, 2004: 155) que se desdobra nesta perspectiva (de conceber as determinações no âmbito de uma perspectiva historicista), na fuga dos individualismo (próprios de uma noção idealista, consubstanciada na ideia do intelectual livre), mas também na crítica aos automatismos de uma análise social mecanizada presente em grande parte em uma noção economicista, própria do materialismo metafísico que rondava o tempo de Gramsci e que não aplicava o principio das determinação sócio-históricas a si mesmo. Em linhas gerais pode se dizer que o marxismo Gramsciano busca através de uma noção historicista das determinações sociais a apreensão de uma noção dialética entre liberdade e necessidade.
É a partir da primeira noção de determinação (exercício de pressão), evidenciada anteriormente, que Bourdieu e Gramsci irão fundamentar a suas respectivas análises do mundo social e que irão pensar a questão da contribuição da cultura para a dominação social de classe, sendo os conceitos de hegemonia e violência simbólica fundamentais (como veremos adiante) para compreender em suas construções o conflito social ampliado para além da estrutura socioeconômica, mas também para a dimensão simbólica, cultural. Abordaremos de agora em diante estes conceitos para a compreensão da noção de dominação social (e das determinações criadas por esta) em Gramsci e Bourdieu.

2. Hegemonia, Intelectuais e Sociedade Civil em Antônio Gramsci

Se em Marx o conceito central para pensar a dominação social, através da cultura (ou na linguagem marxista as superestruturas) é a ideologia em Gramsci este conceito se consubstancia na hegemonia (Eagleton, 1997: 105). A hegemonia não se reduz a ideologia, mas a inclui, já que pode assumir formas políticas, econômicas e culturais. Podendo ser entendida como um ‘‘espectro inteiro de estratégias, práticas pelas quais um poder dominante obtém o consentimento ao seu domínio daqueles que subjuga'' (Eagleton, 1997: 107), portanto, conquistar a hegemonia significa instituir uma direção político-ideológica a partir das diversas instituições da sociedade civil. A hegemonia é entendida por Gramsci como uma das dimensões da dominação de um grupo social (e das frações do mesmo) sobre outros grupos e classes, supremacia que se manifesta de duas maneiras em Gramsci:

‘‘(...) como ‘‘domínio'' e como ‘‘direção intelectual e moral''. Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a ‘‘liquidar'' ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, alias, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante mas deve continuar a ser ‘‘dirigente'' (Gramsci, 2001: 62-63)

Como evidencia Gramsci, a direção (obtida através de processos hegemônicos) e tão importante quanto o domínio (a coerção) na dominação social. Esta importância da dimensão consensual (contratual) e simbólica da dominação se consubstancia nos apontamentos realizados nos Cadernos do Cárcere na reformulação e ampliação dos conceitos de sociedade civil (o espaço onde a hegemonia se situa) e intelectual (o grupo responsável pela reprodução ou subversão da hegemonia), que são interdependentes ao conceito de hegemonia.

Os intelectuais são para Gramsci os funcionários da ideologia, o grupo responsável pela reprodução ou subversão da hegemonia através de sua atuação nas instituições da sociedade civil (jornais, universidades, etc). A partir da noção do intelectual enraizado, há uma determinação social de classe (e por isso o termo intelectual orgânico), este crítica e desconstrói a utopia idealista do intelectual livre (Gramsci, 1991: 5) – questão que o aproxima da crítica ao escolasticismo (formulador de uma razão escolástica) que P. Bourdieu se defronta em Meditações Pascalinas (2001b) e outras obras – própria dos intelectuais tradicionais (aqueles que se vêem como completamente autônomos de qualquer perspectiva ideológica ou/e de classe, mas que tendem a ser absorvidos ou suprimidos para a concretização de uma hegemonia).

Estas reflexões se desdobram em uma noção onde à relação entre intelectual e as classes dominantes (o que ele chama de classe fundamental) é mediatizada em diversos níveis (Gramsci, 1991: 10), fugindo assim de uma perspectiva mecânica entre produção cultural e classes dirigentes – como veremos a frente, esta noção do intelectual na sua relação com às classes dominantes, através de graus de mediação, é bastante próxima do conceito Bourdieusiano dos intelectuais como classe dominante dominada (Bourdieu, 1990: 174).. Os intelectuais em Gramsci tem o papel fundamental de dar uma direção ‘‘espontânea'' às classes dominadas, a partir dos processos hegemônicos, criando uma autoconsciência a uma classe através de uma concepção de mundo unitária, que impregna o tecido social (Portelli, 1977: 87). Estes são, portanto, os ‘‘(...) ‘‘emissários'' dos grupos dominantes para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político'' (Gramsci apud Portelli: 87).

Entretanto, os intelectuais para Gramsci não são meros agentes passivos na sua relação com as classes e grupos dirigentes, autonomia que é mesmo uma das condições para uma ação mais eficaz, pois os intelectuais devem ‘‘(...) desprender-se da classe dominante para unir-se a ela mais intimamente, para constituírem uma verdadeira superestrutura, e não apenas um elemento inorgânico e indistinto da estrutura econômica'' (Gramsci apud Portelli: 88). Para Gramsci o grau de organicidade destes (a sua conexão com os grupos sociais dominantes), poderia ser medido através de dois planos superestruturais: a sociedade civil e a sociedade política (Gramsci, 1991: 11)

Em sua reflexão, o Estado é a unidade e o equilíbrio entre estes dois planos superestruturais. Gramsci irá a partir da reformulação do conceito de sociedade civil ampliar a teoria marxiana do Estado com a inclusão deste conceito, indo além da redução do conceito de Estado, vigente no seu tempo, a uma função repressiva (Coutinho, 1999: 123).

Neste sentido, o Estado em Gramsci além da sua dimensão coercitiva identificada através do conceito de sociedade política – o conjunto de aparelhos de repressão estatal (burocracia executiva e político-militar) que garantem o monopólio legal da repressão pelas classes e grupos dominantes – também é visto como sociedade civil – conjunto de organizações (Universidades, Igrejas, jornais, revistas, etc) responsáveis pela produção e difusão de ideologias (Coutinho, 1999: 127). Portanto, a sociedade civil representa uma das faces do Estado: do consenso e da legitimidade, da hegemonia, e a outra face a sociedade política, o espaço da coerção, do monopólio da violência física – esta definição também aproxima-se bastante da reflexão de Bourdieu sobre o Estado na sua dimensão de dominação simbólica.

Como reitera Gramsci em diversos apontamentos dos Cadernos do Cárcere ao se referir, através da metáfora do centauro maquiavélico, a esta dupla face do estado ‘‘...ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade...'' (Gramsci, 2000: 33), e, também, em um outro momento ao explicitar que o exercício da hegemonia, no terreno clássico do Estado parlamentar (mas que pode ser generalizado para as formações sociais ‘‘ocidentais'' em geral):

‘(...) caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrario tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião publica – jornais e associações (...) (Gramsci, 2000: 95).

É, portanto, através destes dois espaços, que em sua unidade representam o estado (hegemonia escudada na coerção), que os intelectuais exercem a sua dupla função de hegemonia e do governo político de duas formas:

“1) do ‘‘consenso espontâneo'' dado pelas grandes massas da população a orientação expressa do grupo fundamental dominante da vida social, consenso que nasce ‘‘historicamente'' do prestigio (e, portanto da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua posição de sua função no mundo da produção; 2) do aparato da coerção estatal que assegura ‘‘legalmente'' a disciplina dos grupos que não ‘‘consentem'' nem ativa nem passivamente'', mas que é constituído por toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo” (Gramsci, 1991: 11)

Esta noção ampliada de Estado e intelectual não pode ser compreendida a- historicamente. A sociedade civil e os processos hegemônicos são imbricados nas formações sociais ocidentais, quer dizer, são um fenômeno moderno (ligados aos processos de institucionalização do capitalismo) e que se contrapõem as formações ‘‘Orientais''. No dizer de Gramsci:

“No oriente, o Estado era tudo e a sociedade civil era primitiva e gelatinosa, no Ocidente, entre Estado e sociedade civil havia uma relação equilibrada: a um abalo do Estado, imediatamente se percebia uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual estava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas; a proporção varia de Estado para Estado, como é evidente, mas precisamente isso requeria um cuidadoso reconhecimento de caráter nacional (Gramsci apud Coutinho, 1999:152)

Como se vê por ‘‘ocidente'' (em oposição as formações ‘‘orientais'') Gramsci quer dizer uma formação social onde a sociedade civil tem um papel central, quer dizer, onde a socialização da política possibilitou uma autonomia (ainda que relativa), que possibilita a centralidade dos processos hegemônicos, o que tende a gerar uma redução do grande dispêndio de energia próprio da ação da sociedade política (Estado-coerção). A predominância de um ou outro momento superestrutural é que define o grau de ocidentalidade ou orientalidade de uma formação, o que na prática define se um sistema pode ser caracterizado como predominantemente hegemônico ou ditatorial (Portelli,1977: 83).

Esta formulação instiga Gramsci a visualizar uma necessidade na mudança da estratégia socialista no ocidente, ao explicitar que enquanto nas formações sociais orientais a estratégia deveria se voltar para a guerra de movimento (o confronto direto ao Estado), nas formações ocidentais esta luta deveria se orientar pela guerra de posição (uma noção processual e molecular da revolução, onde a luta se direciona para o combate nas diversas trincheiras constituídas pela figura da sociedade civil, espaço privilegiado das lutas). Esta luta deveria ser orientada seja na hegemonia burguesa (e em geral das classes e grupos dominantes) ou na contra-hegemonia proletária, não por um individuo (como pensa Maquiavel através da ação do príncipe), mas, no âmbito daquilo que Gramsci denominou como moderno príncipe: o partido político (Gramsci, 2000:16).

Este intelectual coletivo é o mediador entre as classes subalternas e o Estado (Coutinho, 1999: 168), e conformaria (seja nas hegemonias ou contra-hegemonias) a formação de uma vontade coletiva que ultrapassasse o interesse econômico-corporativo para o ético-político. Os intelectuais orgânicos (hegemônicos ou contra-hegemônicos) dariam forma e homogeneidade a consciência de classe contida na vontade coletiva. Processo que pode resultar na formulação de um bloco histórico (a aliança entre as classes através de um equilíbrio, sempre instável, entre infraestrutura e superestrutura, no qual os intelectuais, através da sociedade civil e sociedade política, tem um papel mediador fundamental). Neste sentido, não há hegemonia sem o conjunto das organizações materiais da cultura (através do espaço da sociedade civil) que fazem a mediação entre o Estado-coerção e a economia, sendo o intelectual a figura que faz, propriamente, esta conexão através de sua atuação no Estado (sociedade civil e sociedade política).

A hegemonia, como ficou claro na análise dos conceitos interdependentes a esta, é um conceito central na teoria do mundo social Gramsciana, pois esta evidencia, em conjunto aos conceitos de sociedade civil e intelectual, a importância da dimensão consensual/contratual e simbólica para a dominação social, sem, no entanto, ser estática, pois deve ser continuamente renovada, recriada, defendida e modificada, e por ser dinâmica e dialética suporta contradições: as contra-hegemonias. Portanto, para Gramsci, através da noção de hegemonia:

“A vida estatal deve ser concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios nos quais os interesses dos grupos dominantes predominam, mas até certo ponto, não até o restrito interesse econômico-corporativo” (Gramsci apud Coutinho: 187)

E na superação do mero ‘‘interesse econômico-corporativo'' para o ético- político e que a política aparece na sua dimensão hegemônica, expressa na prioridade da vontade geral sobre a vontade singular (Coutinho, 1999: 224), sendo assim, como explicita Gramsci, o momento da ‘‘catarse'', quer dizer, da ‘‘passagem do momento meramente econômico (ou egoísta-passional) para o momento ético-político'' (Gramsci apud Coutinho, 1999: 225). Neste aspecto, podemos perceber não só a influencia de Hegel, Maquiavel, Marx e Lenin, mas, também de Rousseau na formulação de sua noção de hegemonia. Presença que pode ser visualizada no contratualismo implícito a noção da passagem do interesse individual (econômico-corporativo) para o interesse coletivo, ético-político (aquilo que Rousseau chamava de vontade coletiva), quer dizer, da adesão consensual entre governantes e governados no interior do Estado, a partir de sua ‘‘dimensão do consenso ou da legitimação'' (Coutinho, 1999: 248).
Outra dimensão da hegemonia é a originalidade no qual este conceito reformula a noção de base e superestrutura, até então bastante ossificado na teoria da cultura marxista, por ter como pressuposto a base como um estado e não um processo (Williams, 2011: 47). Para Raymond Willians (2011) o conceito de hegemonia esboça uma das análises mais originais para se pensar a noção de totalidade, pois, foge de uma noção mecânica da base e superestrutura (base determinante superestrutura determinada) que ignora as contradições e variações inerentes as atividades humanas que sempre encontram-se em uma dinâmica bastante complexa (Williams, 2011: 47). Portanto, a hegemonia em Gramsci ao mesmo tempo em que evidencia a dominação social como algo dinâmico, por terem que ser constantemente ‘‘renovadas, recriadas e defendidas'' (Williams, 2011: 52), esta também nos mostra a existência de algo total, no sentido de algo que é:

“(...) vivido em tal, profundidade, que satura a sociedade a tal ponto e que, como Gramsci o coloca, constitui mesmo a substância e o limite do senso comum para muitas pessoas sob sua influência, de maneira que corresponde à realidade da experiência social muito mais nitidamente do que qualquer noção derivada da formula de base e superestrutura” (Williams, 2011: 52).

Gramsci supera, através deste conceito, uma noção abstrata entre base e superestrutura, percebendo a relação entre estas não como um espaço estático de relações sociais, e sim, como um processo. Noção que explicita um aspecto fundamental na análise do mundo social: a dimensão inconsciente. Dimensão que é, como nos diz também Terry Eagleton (1997), um dos aspectos mais originais dessa formulação, pois, supera a ‘‘ilusão da transparência da consciência'', sem, no entanto, cair nos mecanicismos (ou voluntarismos) que a sua geração enredava a ação social, como se percebe nos apontamentos dos Cadernos do Cárcere (as críticas à sociologia, ao materialismo metafísico e, também ao idealismo). Portanto, é em Gramsci que se efetiva a passagem da ideologia como ‘‘sistema de ideias'' para a ideologia (enquanto hegemonia) como prática social vivida, habitual, rotineira, que abrange ‘‘as dimensões inconscientes, inarticuladas da experiência social'' (Eagleton, 1997: 107).

Em contraponto a esta interpretação da hegemonia enquanto dimensão, inarticulada, inconsciente da experiência social, Michael Burawoy (2011), nos diz que a mesma é em Gramsci sumamente consciente, sendo assim, em sua perspectiva, contraria a noção de violência simbólica, como este nos mostra ao pensar como em ambos os conceitos há distintas reflexões sobre a dominação:

‘‘(...) de um lado, a dominação simbólica em Bourdieu, no qual o dominado não reconhece sua submissão como tal; de outro lado, a hegemonia em Gramsci, na qual o dominado reconhece e consente sua submissão. A partir disso emergem diferentes teorias acerca da dinâmica da mudança social'' (Burawoy, 2011: 52).

Tese que é aqui confrontada, pois como se vê em nossa construção, a hegemonia não e só consciente, esta também tem uma dimensão inarticulada e inconsciente (no sentido de construir uma dinâmica que satura a experiência), como deixa claro não só o próprio Gramsci, mas, também alguns dos seus interpretes como Terry Eagleton (1997) e Raymond Willians (2011) – o que o aproxima, em nossa opinião, como veremos adiante, da reflexão Bourdieusiana da violência simbólica, pois esta apesar de ser mais estática (o que não significa imóvel) em relação ao conceito de hegemonia, esta também tem toda uma dimensão que tende à inconsciência.

Na realidade, esta ambivalência, inconsciência ou consciência, não define em si a noção de hegemonia, pois, a mesma pode ser tanto consciente como inconsciente. Podemos visualizar esta binaridade através do momento em que os processos hegemônicos nunca conseguem esgotar a experiência dos grupos e classes subalternos, que respondem a estas mesmas formas hegemônicas através de uma concepção de mundo fragmentaria que carrega não somente elementos de determinada cultura dominante (como demonstra Gramsci em sua análise sobre o folclore). Neste aspecto, o senso comum (produzido através da mediação entre hegemonias em combate e a cultura popular) é uma espécie de consciência inconsciente, pois é uma forma aleatória, espontânea, ‘‘não-organizada'' de compreensão da realidade, inclusive da dominação.

O senso comum é, portanto, uma forma inconsciente, devendo ser superada por uma concepção crítica de mundo que dialogue com o senso comum, mas busque superá- lo por meio de uma ‘‘filosofia'', ou seja, uma concepção elaborada que eleve o nível cultural das massas e as permita entender sua inserção no mundo. Para Gramsci esta é a função dos intelectuais socialistas, por isto, nem sempre o consentimento é oriundo da concordância consciente, pois, pode ser oriundo de passividade ou de uma consciência do tipo do senso comum.

Como veremos adiante o conceito de hegemonia, a partir de sua dimensão inconsciente, tem uma série de aproximações com o conceito Bourdieusiano de violência simbólica, já que em ambas as formulações há uma ênfase muito grande a essa dimensão de um poder que subordina sem, no entanto, ser sempre reconhecido enquanto tal (por ser confundido com a própria experiência, sendo assim transformado em senso comum). Este poder oprime com o consentimento daqueles que são subordinados, ou seja, como é próprio da ação do poder simbólico, ele só e reconhecido (tem sua força) quando ignorado enquanto tal visto como ‘‘arbitrário'' e ‘‘natural'' (Bourdieu, 2003b:7).

3. Habitus, campo e violência simbólica em Pierre Bourdieu

O tema central que atravessa a obra de Bourdieu é o desmascaramento da dominação (Burawoy, 2010: 26), através da análise da violência simbólica (aquela que não e reconhecida enquanto tal) a partir de uma perspectiva materialista e determinista da cultura (como já foi evidenciado no primeiro tópico). A violência simbólica consiste na imposição de um poder arbitrário como legitimo (Bourdieu, 2011: 26). A seleção/omissão dos arbitrários culturais se concretiza em uma luta, verdadeiramente simbólica, no qual a classe dominante tende sempre a se impor, sendo esta fundamental, por realizar (a partir dos intelectuais) o processo de desistoricização e naturalização de determinado arbítrio (o inconsciente cultural, ou histórico, produzido através da "amnésia da gênese") o colocando no topo da hierarquia dos arbítrios, como este deixa claro na suas reflexões sobre o papel dos arbítrios culturais:

“Numa formação social determinada, o arbítrio cultural que as relações de força entre os grupos, ou classes constitutivas dessa formação social, colocam em posição dominante no sistema dos arbitrários culturais é aquele que exprime mais completamente, ainda que sempre de maneira mediata, os interesses objetivos (materiais e simbólicos) dos grupos ou classes dominantes” (Bourdieu, 2011: 30)

Para Bourdieu há, portanto, uma tendência na correspondência entre reprodução cultural e a reprodução social (que em geral é dissociada da primeira), quer dizer, os arbítrios culturais dominantes tendem a se constituir ‘‘como um dos mecanismos, mais ou menos, determinantes segundo os tipos de formações sociais, pelos quais se encontra assegurada a reprodução social, definida como reprodução da estrutura das relações de força entre as classes'' (Bourdieu, 2011: 30). A transubstanciação das relações de força em autoridade legitima, através da desistoricização e naturalização, e, portanto, um aspecto fundamental da dominação social, pois:

“O reconhecimento da legitimidade de uma dominação constitui sempre uma força (historicamente variável) que vem reforçar a relação de força estabelecida, porque impedindo a apreensão das relações de força como tais, ele tende a impedir aos grupos ou classes dominadas a compreensão de toda força que lhes daria a tomada de consciência de sua força” (Bourdieu, 2011: 36)

Neste aspecto, a violência simbólica, implícita na seleção e imposição dos arbítrios culturais, satura a experiência social, através do trabalho de dissimulação das estruturas objetivas, como este evidencia:

“A violência simbólica é essa violência que extorque submissões que não são sequer percebidas como tais apoiando-se em ‘‘expectativas coletivas'', crenças socialmente inculcadas. Como a teoria da magia, a teoria da violência simbólica, assenta numa teoria da crença, ou, melhor, numa teoria da produção da crença, do trabalho de socialização necessário para produzir agentes dotados dos esquemas de percepção e de apreciação que lhes permitirão perceber as injunções inscritas numa situação ou num discurso e obedecer-lhes. A crença de que falo não é uma crença explicita, posta explicitamente como tal relativamente à possibilidade de uma não-crença, mas uma adesão imediata, uma submissão dóxica às injunções do mundo, obtida quando as estruturas materiais daquele a quem a injunção se dirige concordam com as estruturas implicadas na injunção que lhe é dirigida” (Bourdieu, 1997b: 130-131).

Como se percebe, a violência simbólica é sumamente inconsciente, e age tanto a partir daqueles que a sofrem e também naqueles que a exercem, na medida em que uns e outros são em grande parte inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la (Bourdieu, 1997a:62). Neste aspecto, o estudo da violência simbólica, permite, através da evidenciação da historicidade dos arbítrios sociais, nos mostrar os mecanismos pelos quais as ideologias tomam conta da vida cotidiana (Eagleton, 1997: 104), o que o aproxima do conceito de hegemonia. No entanto, para compreender a teoria Bourdieusiana da violência simbólica, para além de um hiperdeterminismo destruidor do sujeito, se faz necessário evidenciar os conceitos de campo e habitus. O conceito de campo e habitus são interdependentes ao conceito de violência simbólica tal como a noção ampliada de intelectual e Estado são do conceito de hegemonia em Gramsci. Estes são, portanto, conceitos centrais em sua análise, por evidenciarem uma perspectiva mais dinâmica e complexa do processo de imposição das violências simbólicas (e dos arbítrios culturais produzidos por esta), a partir de sua conexão com uma noção multi-conflituosa das relações sociais entre grupos e classes.
Se em Gramsci a cultura, e a sua dominação subjacente através da hegemonia, é concretizada através da materialidade da sociedade civil, em Bourdieu este espaço se consubstancia nos campos sociais. Um campo para Bourdieu é um microcosmo de relações sociais relativamente autônomas, onde se é produzido e reproduzido as visões sociais de mundo. No interior dos campos há uma eterna competição (entre os detentores do monopólio de determinada competência), e também externa (aqueles fora do campo) pelo domínio, quer dizer, legitimação de si (e também dos outros) oriunda do acúmulo de capital (o capital cultural, cientifico, simbólico, político, etc) próprio de cada campo (Eagleton, 1997: 142).
Neste sentido, há um campo educacional, literário, intelectual, historiográfico, jornalistico, etc..., o conjunto destes, o chamado campo de poder tem uma função análoga à sociedade civil em Gramsci e o campo político e análogo ao Estado restrito (Burawoy, 2010: 67). Nos campos sociais há dominantes e dominados, havendo assim, o combate (a luta de todos contra todos) entre ortodoxias (que tendem a defender através de sua posição social privilegiada nas estruturas sociais) e as heterodoxias (que buscam confrontá-la), mas só fazem sua defesa ou crítica, jogando o jogo social, com suas próprias regras, não enunciadas verbalmente. Em linhas gerais para Bourdieu:

“Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominante e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que détem e que define sua posição no campo, em consequencia suas estratégias” (Bourdieu, 1997a: 57)

Os intelectuais, através destes campos, são responsáveis pelas produções ideológicas em conflito pelo monopólio da produção simbólica legítima (Bourdieu, 2003b: 12). Para Bourdieu estes respondem a um duplo princípio que se consubstancia na reprodução ou subversão de determinada dominação simbólica: aos desígnios de classes como também ao ‘‘campo específico de produção'' no qual estes se vinculam (Bourdieu, 2003b: 13), já que é: ‘‘na própria estrutura do campo em que se produz e reproduz a crença'' (Bourdieu, 2003b: 15). Portanto, é nestes microcosmos de relações sociais, com sua autonomia relativa em relação ao Estado, na sua esfera política, é que haverá os conflitos pelo domínio da violência simbólica legitima, ou seja, pela naturalização da visão de mundo no qual se busca veicular/subverter.

Para Bourdieu os intelectuais, detentores do capital cultural e simbólico, ao produzirem os bens simbólico em seus respectivoscampos não somente reproduzem interesses dos grupos dominantes, mas também respondem a interesses internos, de cada intelectual, como ao seu campo de produção. Portanto, o conflito pela reprodução/subversão de uma certa visão social de mundo implícita a toda produção cultural sempre irá responder por este duplo intuito: aos campos sociais e às classes dominantes (Bourdieu, 2003b: 13). E no interior desta lógica é que a produção do mercado de bens simbólicos (com seu capital correspondente aos campos no qual se vincula determinado bem: o capital cultural, simbólico, científico, político, etc.) tem uma autonomia relativa em relação ao mercado de bens materiais.

Esta produção cultural tende a contribuir para manutenção e reprodução da dominação social através da difusão e legitimação no interior dos campos sociais de uma visão de mundo, ou em termos Bourdieusianos, dos habitus. Para Bourdieu os habitus são um:

“(...) sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador das práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘‘reguladas'' e ‘‘regulares'' sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e do domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente” (Bourdieu, 1983: 61)

Bourdieu a partir da noção de habitus abandona por completo qualquer noção mecânica da prática social, sem, no entanto, conceder uma espécie de livre arbítrio a estas. Um outro aspecto dos habitus é que este evolui somente, e através, dos campos sociais, pois, internalizam estas estruturas sociais, sendo assim, uma ferramenta para perscrutar essas incorporações:

“O habitus é o produto do trabalho de inculcação e de apropriação necessário para que esses produtos da história coletiva, que são as estruturas objetivas (por exemplo, da língua, da economia, etc), consigam reproduzir-se, sob a forma de disposições duráveis, em todos os organismos (que podemos se quisermos chamar de indivíduos) duravelmente submetidos aos mesmos condicionamentos, colocados, portanto, nas mesmas condições materiais de existência” (Bourdieu, 1983: 79)

E, portanto, neste jogo dialético de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade (Bourdieu, 1983: 60), através da mediação dos campos e intelectuais, é que a dominação social tende a se perpetuar. É a partir desta lógica que a violência simbólica se concretiza, sendo, portanto, uma estratégia que consolida a dominação social com um pequeno dispêndio de violência física. Como se percebe até aqui a análise da cultura e das lutas simbólicas inerentes a esta (traduzidas por Bourdieu através dos conceitos de violência simbólica, campo, habitus, capital e outros), são o eixo central de suas reflexões, mas, sem, no entanto, reduzir esta mesma produção a uma perspectiva unidimensional internalista ou externalista, como nos mostra Bourdieu:

“Somente na medida em que tem sua função lógica e gnosiológica a ordenação do mundo e a fixação de um consenso a seu respeito, é que a cultura dominante preenche sua função ideológica – isto é, política – , de legitimar uma ordem arbitrária; em termos mais precisos, é porque enquanto uma estrutura estruturada ela reproduz sob forma transfigurada e, portanto, irreconhecível, a estrutura das relações sócio-econômicas prevalecentes que, enquanto uma estrutura estruturante (...), a cultura produz uma representação do mundo social imediatamente ajustada à estrutura das relações sócio-econômicas que, doravante, passam a ser percebidas como naturais e, destarte, passam a contribuir para a conservação simbólica das relações de força vigentes” (Bourdieu apud Miceli, 2011: XII).

Neste sentido, as relações entre as classes através deste pressuposto, entre reprodução social e reprodução cultural, obedecem a uma lógica que dissimula, racionaliza no plano das significações, as estruturas objetivas. Dissimulação que só pode ser compreendida a partir dos campos sociais, quer dizer, dos espaços onde se constituem as distintas linguagens e que dão materialidade (como já foi assinalado anteriormente) a produção cultural (Miceli, 2011: XIII).
Bourdieu busca, portanto, aliar o conhecimento da organização interna das distintas produções culturais – através do campo simbólico que dá ordenação ao mundo social a partir de representações que tendem a simular a estrutura real de relações – com uma percepção da sua função político e ideológica de legitimação de uma ordem social vigente (Miceli, 2011: XIV). Processo que é traduzido através da relação entre habitus e campo que gera os distintos processos de dissimulação das estruturas sociais, formuladoras das violências simbólicas, que por sua vez legitimam as distribuições desiguais dos distintos capitais (econômico, cultural, simbólico, político, etc).
O estudo da cultura para Bourdieu, como busquei evidenciar até aqui, tem, portanto, como objetivo desvendar o que é ocultado no tecido social. Como este evidencia, ao pensar o papel da sociologia: ‘‘A sociologia, como todas as ciências, tem por função desvelar coisas ocultas; ao fazê-lo, ela pode contribuir para minimizar a violência simbólica que se exerce, nas relações sociais (...)'' (Bourdieu, 1997a: 62). Neste aspecto, a historicização dos processos de seleção/omissão dos arbítrios culturais (consubstanciados nos distintos campos), constitui como uma das armas para irromper o poder de mobilização gerado pelo poder simbólico legitimador de uma certa ortodoxia.
Para tal intento (o estudo das distintas formas de dominação simbólica) pode-se dizer, sinteticamente, que Bourdieu pensa a sociologia da cultura a partir do estudo da relação entre reprodução social e reprodução cultural. Esta relação é a chave (como já foi evidenciado) para compreender a eficácia de um discurso ou doutrina simbólica, a partir do desvendamento do trabalho de dissimulação do sistema de relações objetivas e das relações de forças no qual a cultura dominante tende a legitimar. Pretensão que se consubstancia em Bourdieu desde os seus primeiros escritos até os últimos na crítica as distintas produções culturais, desde o sistema de ensino ate o neoliberalismo.

4. Apontamentos finais sobre a dominação social em A. Gramsci e P. Bourdieu
Como podemos perceber o conceito de hegemonia e violência simbólica, dentro de suas respectivas construções, tem uma função análoga: pensar a questão da legitimidade, consentimento e durabilidade da dominação de classe ou/e grupo, que se expande da estrutura sócio-econômica para a cultura ou em linguagem marxista para as superestruturas. Neste aspecto, as produções culturais em Gramsci e Bourdieu não são entendidas como um espaço neutro que paira sobre a sociedade (como é próprio de uma perspectiva idealista), ao contrario, estas produções culturais são enquadradas a partir de sua conexão com os grupos, classes e instituições, e, ao mesmo tempo (apesar destas determinações), esta mesma produção, não é uma mera resposta mecânica destas estruturas sociais. Ambos os autores são, portanto, fundamentais para romper com uma série de ‘‘falsas dicotomias'' próprias de certas análises do mundo social, sem renunciar a uma noção crítica da sociedade.

Embora haja uma série de proximidades entre Bourdieu e Gramsci (que este texto buscou reforçar), há alguns pontos de dissenso, ligados, fundamentalmente, à questão do grau de interiorização da dominação social. A hegemonia tem a dimensão da não-consciência como um dos aspectos, mas não o único, da dominação, sendo a consciência da dominação algo possível através do elemento de bom senso, implícito no senso comum das classes e grupos dominados. No entanto, há uma série de barreiras no qual essa consciência em Gramsci confronta para superação deste senso comum que satura, através dos processos hegemônicos, a experiência social, evidenciando assim as diversas dificuldades (os desequilíbrios materiais e simbólicos entre classes hegemônicas e contra-hegemônicas) no qual o moderno príncipe irá defrontar em seus embates contra os poderes hegemônicos.

Em Bourdieu a interiorização da dominação social, através das violências simbólicas, é algo muito mais profundo do que a hegemonia, já que dificilmente seria possível superá-la, pois, esta sempre tende à inconsciência. No entanto, para além do hiperdeterminismo implícito a este enquadramento do conceito de violência simbólica,

se faz necessário perceber a dinâmica entre habitus e campos (evidenciada no tópico III), que nos mostra um Bourdieu atento ao papel ativo dos agentes, em luta pela imposição dos distintos arbitrários culturais (violências). Esta superação das ortodoxias, que apesar de em grande parte das obras de Bourdieu estar consubstanciada na imagem do intelectual (e, fundamentalmente do sociólogo), em seus últimos escritos de vida nos parece ir além desse grupo privilegiado. Nos últimos anos da sua vida, nos anos 90, vê- se um Bourdieu reivindicando o poder latente nas classes e grupos dominados, a partir de sua luta contra o neoliberalismo, às artimanhas da “razão imperialista” e as produções culturais legitimadoras desta ortodoxia.

Apesar das diferenças entre Gramsci e Bourdieu, há uma serie de ganhos, em distintos níveis, ao se realizar uma leitura aproximativa entre estes autores, que não se reduzem somente a noção de dominação social, mas, em distintos outros aspectos (a noção de Estado, intelectual, necessidade/liberdade e outras), os quais este texto não abarca em toda a sua complexidade.

 

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Artigo recebido a 8 de março de 2014. Publicação aprovada a 23 de dezembro de 2015.

 

Notas

1 Este texto foi resultado das pesquisas realizadas a partir do grupo ''História, teoria e método no marxismo clássico'' sob a orientação do Professor Dr. David Maciel.

2 Marcello Felisberto Morais de Assunção. Doutorando e bolsista CAPES (UFG). Faz estágio sanduíche em Portugal no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Endereço de Correspondência: Rua Morais Soares 114, 3º Direita, 1900-349. E-mail : marcellofma@gmail.com

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