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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia  no.tematico4 Porto  2014

 

ARTIGOS

Os ciganos do Rio Grande do Norte: caminhos e trânsitos

Gypsies of Rio Grande do Norte: paths and transits

Tsiganes de Rio Grande do Norte: les chemins et les transits

Gitanos de Rio Grande do Norte: caminos y trânsitos

Lisabete Coradini* Virgínia de Araújo Souza**

Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Universidade Federal do Rio Grande do Norte


 

RESUMO

Segundo os primeiros cadastros realizados por parcerias entre grupos de pesquisa e apoio, como a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (RN) e a Pastoral dos Nômades do Brasil, o estado do RN apresenta uma população cigana em torno de 5 400 pessoas. Essa população está distribuída em doze cidades do estado, sendo que 70% desse total são ciganos sedentários. Pretende-se com este trabalho apresentar uma cartografia inicial, traçando um panorama da situação em que se encontram. Para tanto, utilizou-se metodologia qualitativa, nomeadamente observação participante, como também entrevistas e registro audiovisual junto às comunidades ciganas na periferia da cidade de Natal e no interior do RN.

Palavras-chave: ciganos; Rio Grande do Norte; invisibilidade.


ABSTRACT

According to the first registers made by partnerships between research groups and support, such as the Federal University of Rio Grande do Norte (RN) and the Pastoral of the Nomads of Brazil (Pastoral dos Nômades do Brasil), the state of RN has a Gypsy population of around 5 400 people. This population is distributed in twelve cities in the state, where 70% of this total are sedentary Gypsies. The aim of this study is to provide an initial mapping, drawing a picture of the situation in which they are. For this, we used qualitative methods, including present observation, as well as interviews and audiovisual registration along with the Gypsy comunities on the periphery of the city of Natal and in the interior of RN.

Keywords: gypsies; Rio Grande do Norte; invisibility.


RÉSUMÉ

Selon les premiers recensements effectués par des groupes de recherche et soutien en association, tels que l´Université Fédérale de Rio Grande do Norte (RN) et la Pastorale des Nomades du Brésil (Pastoral dos Nômades do Brasil), l´État de RN présente une population tsigane d´environ 5 400 personnes. Cette population est distribuée sur douze villes de l´État, et 70% de ces gens sont tsiganes sédentaires. Ce travail prétend présenter un relèvement cartographique initial, traçant un panorama de la situation dans laquelle ils se trouvent. Pour ce faire, nous avons employé une méthodologie qualitative, essentiellement l´observation des participants, ainsi que des entrevues et registre audiovisuel auprès des communautés tsiganes en périphérie de la ville de Natal et à l´intérieur de l´État de RN.

Mots-clés: tsiganes; Rio Grande do Norte; invisibilité.


RESUMEN

Según los primeros registros realizados por sociedades entre grupos de investigación y apoyo, como la Universidad Federal de Río Grande do Norte (RN) y la Pastoral de los Nómades de Brasil (Pastoral dos Nômades do Brasil), el estado de RN presenta una población gitana de aproximadamente unas 5 400 personas. Esa población está distribuída en doce ciudades del estado, siendo que 70% de ese total son gitanos sedentarios. Este trabajo tiene como objetivo presentar un mapa demográfico, trazando un panorama de la situación en que se encuentran. Para ello, se utilizó metodologia cualitativa a partir de la observación de los participantes, así como entrevistas y registro audiovisual junto a las comunidades gitanas en la periferia de Natal y ciudades del interior de RN.

Palabras clave: gitanos; Rio Grande do Norte; invisibilidad.


 

Introdução

Há uma carência de dados oficiais sobre os povos ciganos e poucos trabalhos acadêmicos sobre o tema. No entanto, nos últimos anos tem aumentado o interesse e a curiosidade por essa temática. Atualmente no Brasil encontram-se pesquisadores e grupos de estudos preocupados com questões de identidade, habitação e escolaridade. No Nordeste destacam-se os trabalhos de investigação de pesquisadores da área de Antropologia e Ciências Sociais dos estados da Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte (Goldfarb, 2004; Silva, 2010; Silva, 2012).
De acordo com dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2011, foram identificados 291 acampamentos ciganos, localizados em 21 estados, sendo que os estados com maior concentração de acampamentos ciganos são: Bahia (53), Minas Gerais (58) e Goiás (38). Segundo esse levantamento, os municípios com vinte a cinquenta mil habitantes apresentam a mais alta concentração de acampamentos. Desse universo de 291 municípios que declararam ter acampamentos ciganos em seu território,
40 prefeituras afirmaram que desenvolviam políticas públicas para os povos ciganos, o que corresponde a 13,7% dos municípios que declararam ter acampamentos. Em relação à população cigana total, estima-se que há mais de meio milhão no Brasil.
Apesar desses dados da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR), não é possível dizer se são quinhentos mil ou um milhão. Nenhum dos índices do censo ajuda a recortar os ciganos, pois não há uma categoria no censo demográfico que permita contar como os ciganos se identificam. Na verdade, não existe legislação do ponto de vista de direitos especiais que leve em conta sua particularidade.

 

 

Desse modo, as sociedades são construídas por diversos grupos sociais que se diferenciam entre si. Nesse caso, o grupo cigano, que também não é homogêneo entre si, está ganhando terreno nos estudos científicos, assim como vem travando lutas por reconhecimento no âmbito político nacional. E no estado do Rio Grande do Norte isso não é adverso.
Segundo os primeiros cadastros realizados por parcerias entre grupos de pesquisa e apoio, como a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a Pastoral dos Nômades do Brasil, o estado do Rio Grande do Norte apresenta uma população cigana em torno de 5 400 pessoas. Essa população está distribuída em doze cidades do estado, sendo que 70% desse total são ciganos sedentários. Pretende-se, com este trabalho, apresentar uma cartografia inicial e apontar os primeiros contatos com a população local, traçando um panorama da situação em que se encontram, bem como mostrar os movimentos relacionados à criação da Pastoral dos Nômades, órgão vinculado à Igreja Católica, as rodas de conversas sobre comunidades ciganas realizadas nessas cidades e a busca da criação de um Centro de Referência do Cigano no Estado.

1. Ciganos no Brasil

Em 1574, João de Torres e sua esposa Angelina são condenados ao degredo e enviados ao Brasil. A partir de 1686, a documentação da deportação dos ciganos é mais precisa e a orientação desse decreto é que, ao desembarcarem, fossem enviados ao Maranhão (Teixeira, 2000). Inicia-se a trajetória dos ciganos Calons do Brasil. São esses Calons que hoje povoam quase todos os municípios do Rio Grande do Norte e estão em todos os estados do Nordeste.
A etnia Calon, cuja origem é a Península Ibérica, chega, através do projeto colonizador, às colônias para o assentamento, para o cumprimento de penas (todas fundadas no preconceito e na exclusão social), iniciando, dessa forma, o processo pelo qual se determinou a história dos ciganos no Nordeste do Brasil e a mobilidade a que se submeteram os grupos desde o fim dos cassacos e a invasão das empresas norte- americanas no Nordeste até a sedentarização imposta pelo capitalismo e pelas estruturas urbanas nas cidades construídas para o progresso, nos fins do século XX.
De domadores de cavalos a negociante de feiras, estava o cigano inserido na História do Brasil. Disse certa vez um cigano a um construtor de barragens e açudes: “Cigano não come orelha de jumento”, afirmando dessa forma que a troca tinha volta e era essa volta que dava e ainda dá o sustento de famílias ciganas até os dias de hoje.
Os ciganos fazem parte dos grupos ditos minoritários. No Brasil, esses grupos, desde o século XIX, são constantemente encarados como objeto da pesquisa social. São pessoas que sofrem com o preconceito por serem identificadas pelas suas crenças, gênero, etnia, aspeto físico, moral, entre outros aspetos. Esses grupos ditos minoritários apresentam características diferentes em relação à sociedade dita majoritária: a “branca”, econômica e politicamente dominante. Visto que esses grupos minoritários são numericamente maiores.
No imaginário gadjó, isto é, não cigano, os ciganos são representados de diversas maneiras, através de imagens paradoxais. A imagem do cigano pode representar liberdade, alegria e tradição, ou, por outro lado, “indolência”, “marginalidade”, “parasitismo” e “vagabundagem”. Ainda há aqueles que acreditam que hoje não existem mais ciganos, pois para eles cigano tem que ser nômade. Apenas é surpreendente notar que a organização cigana diverge da organização da sociedade dita majoritária. Para entendê-la, é necessário buscar, dentro de nós pesquisadores, elementos como a paciência, a vontade de aprender, a persistência e o entusiasmo.
Dessa maneira, a reflexão sobre os grupos ciganos precisa situar-se em relação às formas de interação social entre estes e a população não cigana. É preciso não esquecer que esses grupos se reorganizam face à sedentarização ou semisendetarização e às transformações ocorridas no seu modo de vida, analisando como grupos herdeiros de um tempo coletivo (Goldfarb, 2004). Apesar de estarem semisedentários, pois mesmo possuindo uma residência fixa, eles apresentam indícios da característica nômade, seja em situação de morte na qual mudam de cidade ou de casa, como também em casos de doença em que necessitem procurar outra cidade para tratamento e toda a família vai com o doente, ou até mesmo em situações em que exercem seus traços diacríticos em relação às atividades econômicas: a troca e venda de mercadorias como também a leitura de mãos e fazer a feira (pedir em outras cidades), eles não foram expropriados do direito de recordar e viver, de recuperar e reelaborar valores culturais que jamais deixaram de existir em suas formas de sociabilidade.
No dia 24 de maio é comemorado no Brasil o Dia do Cigano, como um desafio às políticas públicas contemporâneas. O decreto de 25 de maio de 2006, assinado pelo então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, institui o Dia Nacional do Cigano. Porém, essa data apenas representa um marco de reconhecimento nacional sobre a existência desses grupos étnicos, o que não quer dizer que ela representa garantias de políticas e o cumprimento dos direitos humanos perante esses grupos que sofreram desde a colonização brasileira e ainda sofrem com preconceitos, estigmas e discriminações. Desse modo, são muitos os órgãos e associações que estão travando lutas pelo reconhecimento legal nas demandas associadas às ações políticas na promoção e no desenvolvimento sustentável dessas sociedades ditas tradicionais.
Colocar a temática da população cigana nas prioridades da agenda institucional tem sido um processo longo e com contornos diversos face aos diferentes níveis de decisão política: nacional e local. A longevidade desse processo e o formato que assume naqueles níveis são inseparáveis da forma como determinados problemas sociais se configuram em problemas públicos, pois inerentes a essa configuração encontram-se as modalidades desejadas para o seu tratamento. Ou seja, colocar o tema cigano na arena pública parece pressupor a opção por determinado tipo de solução para os problemas enunciados. As controvérsias em torno dessa questão parecem traduzir os dramas políticos de sociedades em que a igualdade e o pluralismo são sua parte integrante e nas quais a designação e a descrição do problema para o resolver implica um processo de etiquetagem e de atividade coletiva.
A produção de trabalhos acadêmicos sobre grupos ciganos no Brasil ganha destaque a partir do final da década de 80. Muitos desses trabalhos foram realizados por historiadores e cientistas sociais. Na historiografia, o trabalho desenvolvido pelo historiador Rodrigo Corrêa Teixeira (2000) intitulado História dos Ciganos no Brasil, realizado no núcleo de Estudos Ciganos de Recife, é um retrato possível da história dos ciganos no país. Ele discorre desde a chegada do primeiro cigano ao Brasil até o século XIX, se utilizando da coleta de dados em documentos históricos e em trabalhos já realizados sobre ciganos. Faz, assim, uma retrospetiva da entrada destes nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Ainda tenta caracterizá-los pelas representações sociais acerca da sua economia, religião e aparência física.
Em um artigo intitulado “Os Ciganos do Catumbi”, os autores Mello, Veiga, Couto e Souza (2009: 79-92): discutem a participação dos ciganos Calon no comércio de escravos africanos e no poder judiciário carioca desde a corte de D. João VI, analisando as práticas comerciais e a formação de redes de organizações e relações informais.

Outro aspeto comum encontrado nos trabalhos sobre ciganos no Brasil e na literatura estrangeira diz respeito à busca de traços culturais originários. Dentre os pioneiros dessa fase estão: Mello Moraes Filho (2004 (1886/1885)), José Batista d‘Oliveira China (1936) e João Dornas Filho (1948). Dentre estes se destacam o nomadismo, a língua ou o dialeto, as vestimentas coloridas, as festas, a música ou as danças e as relações endogâmicas. Além disso, a ausência destes elementos tende a significar uma perda da identidade cultural, dos costumes ou da tradição, portanto, da substância que define tal identidade, o que diz respeito à tentativa de apreendê-los por meio de traços culturais característicos. Portanto, é a própria ideia de aculturação como um elemento chave e definidor da perda de uma identidade.
Já interessados na compreensão da identidade cigana num contexto urbano, principalmente no Nordeste do Brasil, cujas relações são permeadas por contextos interacionais com um mundo não-cigano, temos os trabalhos desenvolvidos por Silva (2000), Goldfarb (2004), Senna (2005) e Silva (2010). O primeiro diz respeito a um trabalho monográfico do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, intitulado Ciganos Calon na cidade de Natal, o qual se norteará pela construção da identidade cigana junto às interações/discriminações com a metrópole norte-riograndense. Posteriormente, vem o trabalho de Goldfarb (2004) desenvolvido em Sousa (Paraíba), cuja análise principal se assenta na construção identitária cigana. Titulado O tempo de atrás: um estudo da construção da identidade cigana em Sousa – PB – Tese de doutorado pela Universidade Federal da Paraíba, leva em consideração os elementos presentes dentro do próprio grupo como a língua calé e a memória de um passado nômade, assim como a relação destes com os não ciganos num processo de diferenciação social. Essa diferenciação, baseada num contexto contrastivo, permitiu a análise de categorias presentes no grupo cigano como forma de repensar e construir uma ciganidade.
O trabalho de Senna (2005) – A seda esgarçada: configuração sócio-cultural dos ciganos de Utinga – aborda as características presentes no grupo de ciganos da cidade de Utinga (Bahia). O autor discorre sobre o imaginário popular acerca da visão tida dos ciganos, reconstruindo, por outro lado, a necessidade da resistência com o intuito de preservar os valores e hábitos, que são à base da identidade do grupo. Se diferenciando dos trabalhos anteriores – “Aqui, todo mundo é da mesma família”: parentesco e relações étnicas entre os ciganos na cidade alta, (Limoeiro do Norte – Ceará), desenvolveu uma abordagem que reflete a rede familiar de um grupo de ciganos na cidade de Limoeiro do Norte. Através dessa base familiar, o grupo passa a se identificar como um grupo étnico, buscando num passado comum as diretrizes que fundamentam sua condição enquanto grupo cigano.
Tendo como base a teoria de Pierre Bourdieu sobre o poder simbólico, Fazito (2000) traz para a cena dos trabalhos sobre ciganos a ideia de transnacionalismo e etnicidade como uma construção simbólica da identidade cigana. Este trabalho versa a compreensão dos processos de construção do Romanesthàn (Nação Cigana), através das representações simbólicas e práticas cotidianas daqueles diversos grupos rotulados por um mesmo termo ciganos. A partir desta discussão sobre a organização social da comunidade cigana, é abordada a questão da etnicidade, da formação de grupos étnicos e de suas fronteiras e identidades no contexto de globalização.
A nossa reflexão sobre os grupos ciganos no Estado do Rio Grande do Norte perpassa pela análise de uma possível homogeneização global (só há um tipo cigano?) e resistência local frente à movência e fixação espacial dos grupos no estado, por meio de uma etnografia em rede. A expressão “etnografia em rede” nos remete a pensar uma abordagem metodológica que leva em conta os diversos sujeitos e seus respetivos grupos como mantenedores de relações intrínsecas. Ou ainda aborda a própria conceção de relação social para pensar os diversos grupos ciganos existentes no estado do Rio Grande do Norte como uma rede extensa de filiações e alianças. A questão teórica que guia a reflexão dos dados de campo situa-se no campo da construção de identidade/alteridade do grupo em relação à sociedade gadje (não-cigana). Vale lembrar que o contato com esse grupo de ciganos já foi estabelecido em 2008. A partir desse período começamos a observar e participar de diferentes atividades relacionadas aos ciganos no Rio Grande do Norte (reuniões, rodas de conversas, audiências públicas, congressos, eventos científicos). Esta pesquisa se baseia em três grandes fontes de informação: pesquisa de campo, pesquisa documental (jornais, blogs, sites, legislação específica) e registro audiovisual.
De acordo com Castro (2010), encontramo-nos, assim, perante três níveis de análise distintos: i) a alocação da atenção pública sobre a problemática; ii) a modalidade de construção do problema em torno do dilema da diferença; e iii) as soluções que o desafio da diferença coloca aos poderes públicos. Relativamente ao primeiro nível de análise enunciado, constata-se que, contrariamente aos problemas sociais, os problemas públicos estão em competição na arena governamental e captar a atenção para o tema cigano parece assumir certas especificidades. Como bem refere Vitale, não são as características internas ao objeto problemático, nem a sua extensão e intensidade sobre a população designada, mas sim as formas como se mobilizam e interagem entre si os atores interessados em dar crédito público ao problema (Vitale, 2009: 72).
O segundo nível referenciado traduz-se na diversidade de versões que assume o problema em função da diversidade dos seus modos de construção (Cefa?, 1996: 47). Independentemente do nível de decisão política (mais central ou local) e pensando em alguns países europeus, a temática cigana pode assumir-se como um “problema de ordem pública” ou como um problema de privação de recursos e de acesso igualitário ao sistema de oportunidades.
Quando se chega ao terceiro nível de análise, entra-se no campo das soluções, que, estando relacionado com a forma como se construiu o problema, assume duas tendências: ou se entra pela versão securizante para combater os problemas de ordem pública ou se questiona os modelos de integração em curso, abrindo-se à possibilidade de “inovação social” nesse domínio. Na primeira situação, e apesar de se negarem direitos fundamentais, as formas de atuação tendem a contornar a lei e impedem a aplicação de sanções. No segundo caso, e como alertam alguns autores, incrementa-se o debate em torno da necessidade de políticas dirigidas a grupos específicos, sobretudo quando o projeto político parece ameaçado ou a expressão de práticas culturais é potencialmente portadora de dificuldades.
Parte-se, assim, para a discussão de dois modos de conceber os processos de integração que desde os anos 80 têm liderado os debates. Um, assente no princípio da universalidade da cidadania, vê os problemas de integração decorrentes de fragilidades econômicas e sociais, secundarizando a dimensão étnico-cultural. Como efeito perverso dessa posição, tendem a desenvolver-se políticas de inserção que promovem a assimilação. O outro posicionamento, assente no duplo reconhecimento da igualdade cívica e da diversidade cultural, defende que a inserção social implica o respeito das particularidades étnico-culturais. Essa atitude se expressa no desenvolvimento de políticas multiculturais que, quando levadas ao extremo, podem desembocar numa espécie de diferencialismo estigmatizante (Schnapper, 1998).
Demarcar a identidade social corresponde à delimitação de fronteiras, bem como a construção de representações dos ditos outros. Nesse ponto, a existência de relações contrastivas permite o estabelecimento de legitimação de ideias e de estereótipos que tendem a excluir grupos sociais dos processos de interação cotidianos (Oliveira, 1976).
Notamos que mesmo havendo a negação do preconceito quando questionado aos não-ciganos, o discurso afirma a contradição, ou seja, quando dizem “não tenho, mas eles lá e eu aqui” ou “não viver misturada com eles” revelam que não há preconceito, na medida em que não deve existir o contato com os ciganos. Dessa forma, os ciganos podem ser pensados por meio da categoria de indesejáveis, na medida em que o não desejo de interagir com os mesmos nos permite ver a linha demarcatória entre o campo de oposições do “eu” e do “outro”. Vale mencionar que tais representações se destacam dentro de um processo de estigmatização. Os ciganos são definidos pela sociedade local por meio de categorias depreciativas e estereotipadas. As categorias mais recorrentes se ligam à uma ideia de cigano sujo, preguiçoso e vingativo.
O estigma, nas situações de interação entre ciganos e população majoritária, como trabalhado por Goffman (1988), passa a ser visualizado como um atributo de desvalorização ao indivíduo. Assim, o olhar do “outro” nas relações sociais acompanha e classifica essa “diferença” estigmatizante. No entanto, há ainda a manipulação do estigma, muitas vezes adotada por essas pessoas que se sentem estigmatizadas, que se relaciona às expectativas normativas em relação à conduta ou ao caráter dos “outros”. Neste caso, os estigmas são fundamentais para as interpretações e representações coletivas dos não ciganos sobre os ciganos, e servem para o controle social de um grupo sobre outro.
As fronteiras, nesse ponto, se tornam bem delimitadas. Se por um lado há representações estigmatizantes, por outro ocorreram mudanças pelo próprio convívio cotidiano dos grupos já sedentarizados com a população majoritária. A exemplo de empregos e acesso a algumas políticas públicas como o Bolsa Família
1. No entanto, se hoje as coisas mudaram foi porque “eles já convivem no meio da gente”, afirma uma depoente não cigana. Ou seja, eles convivem, mas não deixam de ser ciganos. E, para ela, os ciganos são desconfiados, não confiam nos não-ciganos.

A nosso ver, a problemática relativa à inclusão/exclusão dos ciganos é uma discussão complexa e abrangente. Os ciganos são grupos em situação de exclusão (escola e educação, emprego e formação, habitação, saúde, justiça), paralelamente às situações referidas sofrem discriminação racial e xenofobia. Por este motivo, Boaventura de Sousa Santos (1999: 44) é enfático quando nos chama para o envolvimento e ação nas comunidades no apelo a cidadania “devemos lutar pela igualdade sempre que a diferença nos inferioriza, mas devemos pela diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza”2.

2. Os ciganos no Rio Grande do Norte

No Brasil, vivem cerca de 1 milhão de pessoas ciganas, distribuídas em três grupos: Calon, Rom e Sinti. Os dados foram repassados pelo cigano Zarco Fernandes, presidente do Centro de Cultura Cigana de Minas Gerais, que esteve em Natal, em 2010, com a perspetiva de coordenar a criação de um Centro de Referência do Cigano no estado.
No entanto, desde a criação do decreto de 25 de maio de 2006, pouco se tem de “garantias” sobre a questão cigana no Rio Grande do Norte. As demandas e as necessidades se fazem presentes em cada comunidade (rancho) cigana visitada em todos os municípios do estado do Rio Grande do Norte. De acordo com pesquisas realizadas pelos diversos setores apontados acima, como a UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Pastoral dos Nômades e a UCIRN (União Cigana do Rio Grande do Norte), o estado do RN (Rio Grande do Norte) possui doze cidades com presença cigana. São elas: Natal, Parnamirim, São Gonçalo do Amarante, Serra Caiada, Tangará, Currais Novos, Cruzeta, Florânia, São Vicente, Caicó, São Rafael e Apodi.
Os ciganos Calons no RN são moradores de áreas demarcadas pela linha de pobreza e geralmente marginalizada, sem saneamento básico e assistência à saúde, apresentam baixos índices de escolaridade, sentem a carência de documentação completa e não possuem vínculo empregatício, convivendo à margem de grupos sociais estabelecidos em um mundo de cultura de consumo que explora e marginaliza quem é destituído de riquezas. Atualmente, em sua grande maioria, os Calon, especialmente os do Nordeste, são extremamente pobres e destituídos de qualquer instrução ou educação formal. Normalmente “desempregados”, preservam sua cultura de serem “bons comerciantes”, como eles dizem, fazem biscates ou pequenos empreendimentos, como conserto de automóveis ou compra e venda de artigos usados.
Na pesquisa etnográfica e documental (jornais, sites, blogs, legislação específica) constatamos ainda que não há órgãos governamentais, nem mesmo legislação específica que atenda os interesses dessa minoria étnica. Não obstante, pode- se contar com a aplicação da analogia, utilizando-se toda a legislação aplicável a outras minorias.
No entanto, vale ressaltar o empenho do Ministério da Cultura, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR), da Secretaria dos Direitos Humanos (SDH) e da Pastoral dos Nômades, que estão empenhados em promover parcerias com a comunidade cigana. No RN, observa-se o trabalho de sensibilização e mobilização, desde 2007, da Secretaria Estadual de Educação, em parceria com a Pastoral dos Nomâdes, para garantir a inclusão dos ciganos na escola e o direito à educação a todos os ciganos no Rio Grande do Norte, inclusive trabalhando para garantir uma política pública de educação para os ciganos no estado, respeitando os princípios de educação integral (educação em/para os direitos humanos) e para o cumprimento imediato da lei que garante a itinerância.
Em 2010, dois ciganos Calons do Rio Grande do Norte foram contemplados com o Prêmio João de Torres, promovido pelo Ministério da Cultura. Dois projetos foram selecionados com publicação do Governo Federal. Duas escolas foram fundadas com o apoio do Projeto Mova Brasil e do Instituto Paulo Freire (que se pretende fundar em outros municípios), parceiros agregados como o CRDH (Centro de Referência em Direitos Humanos) e a Pastoral dos Nômades3.
A historiadora Carla Lemos tem como projeto um relatório histórico que possibilite um território para a construção de uma “Cidade Cigana”, que tem como objetivo a promoção da própria cultura cigana no estado e a inclusão plena de todos os ciganos potiguares4 em todos os projetos sociais e políticos do Rio Grande do Norte.

Nas palavras de Lemos (2012): “Todos esses andamentos têm o sujeito cigano como protagonista e não coadjuvante, dessa forma a luta se justifica, se legitima e se materializa, isto é, reverte o conhecimento em ações participativas sociais. E esse é o objetivo”5.
A luta dos ciganos do Brasil e especificamente do Rio Grande do Norte, cuja bandeira se faz pela demanda de uma ação política voltada para uma afirmação identitária dentro de um sistema capitalista excludente e de uma omissão histórica vergonhosa e, principalmente, pela falta de uma política pública voltada para essas comunidades, é uma luta legitimada pela própria Constituição Brasileira, uma luta justa e relevante para uma sociedade que se quer valorar pela perspetiva de uma cidadania plena, democrática e igualitária.
Outro movimento surge em 2011. Dá-se início a União Cigana do Rio Grande do Norte (UCIRN). A União Cigana surge quando a ACIPRA (Associação dos Ciganos Calons de Cidade Praia), situada no bairro Cidade Praia na Zona Norte de Natal/RN, já tentava pleitear algumas reivindicações para a comunidade, como o cartão de saúde da AME – Assistência Médica em Nova Natal.

 

 

 

 

Com a criação da União Cigana do RN, a questão cigana começou a ganhar visibilidade nos palcos públicos e políticos do estado. A representante Diana6se faz presente em todos os eventos e debates cujos assuntos girem em torno da etnia cigana e através dela as condições dos grupos vão sendo disseminadas.
Muitos grupos ciganos ainda vivem em extrema pobreza, em meio ao lixo, sem saneamento básico e moradia própria. E o que eles reinvidicam são apenas direitos básicos como qualquer outro cidadão. Não se advoga o reconhecimento de um estatuto particular para a população cigana, pois se admite que essa fórmula coloca as famílias em uma alteridade definitiva que reforça, a longo prazo, o seu isolamento, traduzido por um fechamento no polo da identidade cultural como a única garantia de assegurar a manutenção ou reprodução do grupo e repercutindo-se uma inadaptação crescente à mudança. O fechamento dos ciganos no polo da identidade cultural, em detrimento da sua participação na vida econômica e social e na sua capacitação para serem atores da sua própria vida, pode explicar-se por ser a única via ou a via mais fácil de construção da identidade pessoal, sobretudo para aqueles que não se podem definir por aquilo que fazem.
Trata-se de assumir a existência de diferenças sociais e culturais e de “defender um entendimento mais alargado da noção de integração social que não associe a pertença a uma sociedade, a um modelo salarial de inserção social” (Marques, 2005: 87), sobretudo quando se adota uma leitura da noção de exclusão, dificilmente aplicável à população cigana, traduzida no acesso ao rendimento por via do emprego e colocando a tônica na crise das solidariedades informais (Marques, 2005: 79-80). O mesmo é dizer que não se pode associar a noção de integração à subordinação daquelas diferenças a um grupo social e cultural maioritário, mas ela tem de ser encarada como um processo horizontal, não isento de conflito, de influências recíprocas entre todos os grupos sociais (Casa-Nova, 2002: 41).
Perante a constatação dessas diversidades socioculturais, torná-las politicamente significativas exige que se deixe de pensar a igualdade no interior de uma conceção lobal de injustiça que reenvia a uma situação estrutural de dominação e de exploração, para se passar para uma conceção de justiça social enquanto igualdade de oportunidades. Trata-se de assegurar uma participação igualitária no seio da competição social e de reter a noção de equidade que reconhece a pertinência política das especificidades culturais dos indivíduos, aceitando a ideia de um tratamento diferencial dos membros dessas coletividades, a partir do conhecimento da sua situação e dos contextos e processos que produzem as desigualdades.
Nesse viés, outras ações estão sendo realizadas em parcerias entre a Secretaria, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a Pastoral dos Nômades. A primeira iniciativa nesse sentido foi uma audiência pública no ano de 2010, promovida pela professora Lisabete Coradini, junto à Câmara de Vereadores de Natal, que contou com o apoio do vereador George Câmara. Naquela ocasião reuniram-se representantes de diferentes comunidades ciganas do estado, representantes de secretarias e demais instituições vinculadas com direitos humanos e cidadania. A audiência pública intitulada “Os povos nômades de Natal: a situação dos ciganos” teve como principal objetivo descortinar a atual realidade porque passam os povos ciganos “residentes” em Natal. A falta de acesso às necessidades básicas como moradia (local para estadia), saúde, escola, registro de nascimento, etc. O principal debate realizado foi referente aos preconceitos por que passam esse grupo social. A Constituição Brasileira veda expressamente qualquer forma de preconceito ou discriminação, em razão de “origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, inciso IV).
Mas o que se vê são casos de exclusão da cidadania plena.

 

 

É o caso das rodas de conversa sobre grupos ciganos que são realizadas nas cidades onde a presença cigana é registrada. Já foram realizadas duas rodas de conversas. A primeira foi concretizada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 2012, organizada pelos professores e pesquisadores Flávio José de Oliveira e Lisabete Coradini. A finalidade da roda de conversa é formar uma conscientização sobre o povo cigano e discutir ações de políticas públicas, juntamente com membros da sociedade civil organizada para auxiliar nas necessidades básicas para a sobrevivência do povo e da cultura cigana. Esta primeira roda foi feita no Centro de Convivência da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde há um fluxo intenso de pessoas. Nesse dia, o professor Flávio de Oliveira realizou uma mostra de fotografia de comunidades ciganas por ele visitadas. Compareceram diversas pessoas entre representantes ciganos de Natal e outras cidades do estado, pesquisadores, admiradores da cultura cigana, políticos e representantes da Pastoral dos Nômades.

 

 

A segunda roda foi realizada na cidade de Florânia/RN em 2013. Ela foi organizada em uma escola pública da cidade, na qual estava sendo realizada a semana pedagógica. Quando chegamos à escola, muitos professores já estavam lá. Desse modo, cada um que queria falar sobre a questão cigana, principalmente aquela voltada à educação. Iam falando e tirando suas dúvidas tanto com a representante da UCIRN como com pesquisadores da cultura cigana que se fizeram presentes. Foi também uma experiência ímpar, embora não houvesse nenhum cigano da cidade participando do evento. Estavam lá apenas a representante da UCIRN e duas jovens ciganas da cidade de São Vicente.

 

 

Outro parceiro nas lutas pelos direitos da etnia cigana no Brasil e no estado do RN é a Pastoral dos Nômades. É um órgão vinculado à Igreja Católica. Nas palavras do jornalista Severo (2012):

“A Pastoral dos Nômades é um serviço da Igreja Católica em prol dos povos nômades do Brasil e do mundo, que vivem em condição de exclusão social e sem os direitos básicos. Além disso, tem a missão de promover a evangelização no meio dessa classe, que tenta implantar a importância do campo religioso para os mesmos. Diante dessa circunstância, os nômades no Brasil estão, diretamente, voltados para os parquistas, circenses e ciganos. Continuando na linha da pastoral, o fato histórico que marca o início dessa missão está presente numa aclamação do Papa Paulo VI, que na ocasião milhares de ciganos estavam na Praça de São Pedro no Vaticano em 1975. No Brasil teve seus primeiros passos em 1985, mas somente dois anos após estariam dentro das diretrizes da CNBB, sendo oficializada como Pastoral Nacional a partir de 1987. Os grandes protagonistas desse evento foram o bispo de Caixas do Sul, dom Benedito Zorzi e o padre Renato Rosso. O objetivo eixo da pastoral é passar a conhecer a cultura sem retirar suas raízes, promovendo meios educacionais, direitos fundamentais, diálogo entre as comunidades ciganas e não ciganas em contexto familiar”.7

3. Ser cigano é ser estrangeiro, sujo e vingativo

Analiticamente, os atributos tomados pelos não ciganos para definir os ciganos foram mobilizados pelos agentes sociais para classificar os seus “outros” de maneira que os ciganos aparecem como “estrangeiros”, “estranhos” ou “diferentes”. Com a observação participante e as entrevistas realizadas, esses atributos se tornaram recorrentes ao falar sobre o significado de ser cigano para os não ciganos. Assim, os ciganos representariam pessoas que, diante de “nós”, são diferentes e buscam maneiras também divergentes para sobreviverem. Porém, é preciso distinguir o viajante do estrangeiro. O estrangeiro, para Simmel (2005 (1908)), é aquele que chega e não vai embora logo, não é um mero viajante. É a figura que se muda de um lugar para outro, para ali residir, e não o turista.

 

 

Como ele é estrangeiro, sua posição em relação ao grupo é marcada pelo facto de não pertencer ao grupo desde o início do mesmo ou desde que nasceu. O estrangeiro tem uma posição ambígua em relação ao grupo. Ele é um elemento do grupo, mesmo que não se veja como um ou que não seja visto como parte dele pelos demais membros do grupo. No entanto, o estrangeiro tem, ao mesmo tempo, uma relação de proximidade e de envolvimento com o grupo, de um lado, e, de outro, uma relação de distância e de indiferença. Ele vive cotidianamente próximo e envolvido com ele. Contudo, como com frequência é tratado tal qual um “de fora” e se sente à parte do grupo, pode muitas vezes desenvolver um sentimento de distância e indiferença. O estrangeiro e, portanto, o estranho, seria um portador de sinais de diferença, como a língua, os costumes, as alimentações, os modos e as maneiras de se vestir. Ele não partilha certos preconceitos do grupo e não se sente forçado a agir como um dos membros. Segundo Simmel (2005 (1908): 265):

“Não se usa aqui, destarte, a noção de estrangeiro no sentido habitual, em relação àquele que vem hoje e amanhã se vai, mas como o que vem hoje e amanhã pode permanecer – porque era possível se mover e, embora não siga adiante, ainda não superou completamente o movimento do ir e vir. Fixo dentro de um determinado raio espacial, onde a sua firmeza transfronteiriça poderia ser considerada análoga ao espaço, a sua posição neste é determinada largamente pelo fato de não pertencer imediatamente a ele, e suas qualidades não podem originar-se e vir dele, nem nele adentrar-se. A unidade de proximidade e de distância que contêm cada relação entre os seres humanos, então, pode ser o mais resumidamente possível assim formulada: a distância nas relações significa que o próximo está remoto, e o ser estrangeiro ou o estranho, contudo, seria aquele que se encontra mais perto do distante. Porque é um elemento natural de relações completamente positivas e, também, porque é uma forma de interação específica. Nesse sentido, os habitantes de Sirius não nos são realmente estrangeiros, pelo menos, não no sentido da palavra enquanto categoria sociológica. Os Sirius, porém, não existem absolutamente para nós, eles se colocam para nós a partir de uma distância e, de forma estrita, estão além”.

Na definição dos ciganos pela população cruzetense também é recorrente a presença de estigmas que se relacionam com determinadas imagens sobre o corpo e sobre o comportamento desses sujeitos. De acordo com Goldfarb (2004: 70), estudiosos nos mostraram que foram várias as tentativas de grupos sociais dominantes em restringir, reprimir ou reformar os comportamentos de grupos dominados, tentativas que, sobretudo, voltam-se para os corpos.

A limpeza é tão associada à distinção que pesa sobre a própria palavra “limpo”, visto que aquilo que é “limpo” se define especialmente pelo aparato externo. De tanto qualificar um exterior distinto, a palavra limpeza passa a qualificar a própria distinção. Mas limpeza também é uma maneira e para incluir-se nela são necessários vestimentas, adereços, cheiros, etc. É preciso adicionar aparência ao asseio, pois um mesmo adjetivo acaba por qualificá-los (Douglas, 1966).

 

 

Desse modo, as lutas que hoje se fazem necessárias perpassam os próprios grupos ciganos, como também aqueles que percebem o quanto esses grupos sofreram e sofrem injustiças e exclusões, tanto da sociedade civil quanto das políticas públicas, pelo simples facto de serem vistos como diferentes.

(In)conclusões

Abordar a questão cigana é visualizar que esse grupo performatiza suas ações do dia a dia para torná-las mais prazerosas e palpáveis aos olhos dos que teimam em chamar de “vida de cigano”. Uma vida que, para além da superficialidade, nos revela uma organização complexa, mas repleta de sentimentos. O que muitos consideram como “errado”, “feio”, “sujo”, “sem sentido” possui uma aceção bem mais intricada e profunda que um simples “olhar por cima” não permite enxergar. A rede familiar do grupo Calon do Rio Grande do Norte é um exemplo do que podemos chamar de complexidade, não relativa ao difícil, mas como um aspeto completo cheio de imbricações que perpassam para além do simples parentesco. Assim, notamos como a política, a economia e a religião constituem pontos que transcorrem por essa rede familiar cigana.
E para concluir segue um trecho do poema “Viagem infinita”, de Helena Kolody (1999: 39) que expressa a condição do homem peregrino em permanente viagem: “Estou sempre em viagem. O mundo é a paisagem que me atinge de passagem”.
O “estar em viagem” aponta para a condição itinerante do ser humano. Assim, a viagem simboliza a busca da verdade, da paz, da imortalidade, da procura e da descoberta de um centro espiritual. Se a viagem infinita representa a busca do plano transcendente, o mundo apresenta-se como uma morada transitória dos homens, pois ele é só uma “paisagem” que atinge o sujeito lírico de “passagem”. Quem sabe todos os seres humanos de maneiras diversas não estão vivendo essa viagem numa busca comum? Por que então atribuir esse eterno nomadismo apenas aos ciganos e por isso discriminá-los?

 

Referências bibliográficas

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Outras referências

Blog de Diana Rorarani: http://rorarani.blogspot.com.br/

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Lei n.º 10836, de 9 de janeiro de 2004.

 

Artigo recebido a 23 de abril de 2014. Publicação aprovada a 26 de agosto de 2014.

 

Notas

*Lisabete Coradini (autora de correspondência). Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Rio Grande do Norte, Brasil). Endereço de correspondência: UFRN-CCHLA – Campus Universitário, Lagoa Nova, Natal RN, Brasil. CEP 59072-970. E-mail: lisabetecoradini@hotmail.com

** Virgínia de Araújo Souza. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Rio Grande do Norte, Brasil). E-mail: virginiaaraujo@ymail.com

1 O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência direta de renda com condicionalidades, que beneficia famílias em situação de pobreza (com renda mensal por pessoa de R$ 70 a R$ 140) e extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$ 70), de acordo com a Lei 10.836, de 09 de janeiro de 2004 e o Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004.

2 Para aprofundar a discussão sobre exclusão/inclusão ver Magano (2010).

3 O Ministério da Cultura, o Ministério da Saúde, a Secretaria de Promoção de Políticas da Igualdade Racial, a Secretaria dos Direitos Humanos e a Pastoral dos Nômades do Brasil lançaram em 2007 a 1ª e em 2010 a 2ª edição do Prêmio Culturas Ciganas. Para maiores detalhes ver: “Brasil Cigano. Guia de politicas públicas para os povos ciganos”. Disponível em: http://www.seppir.gov.br/.arquivos/guia-de-politicas-publicas-para-povos-ciganos/view . Acesso em junho de 2012.

4 Expressão dada a todos aqueles que nascem no estado do Rio Grande do Norte.

5 Entrevista publicada no Jornal de Hoje, 24/05/2012.

6 Diana é autodenominação que a representante dos ciganos no estado utiliza para se relacionar com os gadjes. Ela mantém um blog no qual é apresentado todos os eventos e reuniões que participa. Para mais detalhes consultar http://rorarani.blogspot.com.br

7 Disponível em: http://jornaldehoje.com.br/pastoral-dos-nomades-por-herbton-severo/

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