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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.28  Porto dez. 2014

 

ARTIGOS

Fundos de conhecimento e egoredes: traduzindo uma abordagem teórico-metodológica

Funds of knowledge and egonetworks: translating a methodological-theoretical framework

Les fonds de connaissances et d'ego-réseaux: une approche méthodologique et théorique

Fondos de conocimiento y egoredes: traducir un enfoque teórico-metodológico

Filipa M. Ribeiro1

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e Universidade Autónoma de Barcelona


 

RESUMO

Este artigo faz uma reflexão interdisciplinar sobre a relação entre a análise de redes sociais e os fundos de conhecimento de investigadores e professores de ensino superior. Argumenta-se que a criação de conhecimento e a sua disseminação podem ser pensadas como e através dos processos de tradução. Esses processos existem e acontecem através de fundos de conhecimento, os quais podem ser medidos e descritos, na sua estrutura e conteúdo, através das redes pessoais dos atores que produzem esse conhecimento. Salienta-se a dimensão epistémica das redes de conhecimento, em particular das egoredes.

Palavras- chave: fundos de conhecimento; egoredes; tradução.


ABSTRACT

This paper is an interdisciplinary reflection on the relationship between social network analysis, namely egonetworks, and the funds of knowledge of researchers and teachers of higher education. It is argued that the creation of knowledge and its dissemination can be conceived as and through translation processes. These processes exist through and by means of the funds of knowledge, which can be measured and described, in its structure and content, through personal knowledge networks. Egonetworks can, thus, be defined as epistemic conduits.

Keywords: funds of knowledge; egonetworks; translation.


RÉSUMÉ

Cet article explore la relation entre l'analyse des réseaux sociaux et les fonds de connaissances des chercheurs et des professeures. Pour ce faire, on développe une réflexion interdisciplinaire sur les fonds de connaissances dans les établissements d'enseignement supérieur. On prétend que la création de connaissances et sa diffusion peut se concevoir comme des processus de traduction. Ces processus existent à travers des fonds de connaissances, qui peuvent être mesurés et décrits, dans sa structure et son contenu, par le analyse de réseaux de connaissances personnelles.

Mots-clés: fonds de connaissances; ego-réseaux; traduction.


RESUMEN

Este artículo es una reflexión interdisciplinar sobre la relación entre el análisis de redes sociales y los fondos de conocimientos de los investigadores y profesores de la enseñanza superior. Se argumenta que la creación de conocimiento y su difusión pueden ser concebidas como y a través de procesos de traducción. Estos procesos existen mediante los fondos de conocimiento, que pueden ser medidos, en su estructura y contenido, a través de redes de conocimiento personal. Por lo tanto, las egoredes pueden definirse como conductos epistémicos.

Palabras clave: fondos de conocimiento; egoredes; traducción.


 

1. Fundos de conhecimento: movimento, mudança e analogias2

Este artigo visa apresentar as bases de dispositivo teórico-metodológico para o estudo dos processos de criação de conhecimento, servindo-se para isso de contributos oriundos de diversas disciplinas, com especial destaque para a análise das redes sociais. Para isso, nesta secção, aludindo ao conhecimento científico criado nas universidades, define-se a perspetiva sob a qual se entende o conceito de conhecimento para depois então apresentar a análise de redes de conhecimento como ferramenta de estudo dos processos de criação de conhecimento e seus contextos. Os fundos de conhecimento serão vistos como movimentos sociais, nos quais predominam fenómenos de tradução dos quais serão dados exemplos.
O conhecimento muda e move-se. Estas formas verbais são, simultaneamente, transitivas e intransitivas. O conhecimento académico não se desenvolve ao longo de uma linha pré-determinada, mas sim num caminho historicamente contingente, em que cada geração de cientistas herda pressupostos, técnicas e conceitos da geração anterior, transformando-os e transmitindo-os. Devido a esse processo, percebemos o conhecimento académico como estruturado de uma forma particular, com uma certa ontologia e com diferentes fenómenos atribuídos a domínios distintos. Essa herança flui através de diferentes tipos de dispositivos (equações, leis, teorias, conceitos), alguns dos quais se tornam ícones na medida que crescem como formas de pensamento que tendem a tornar-se mais autoritários, precisos e eternos. O tipo de dispositivos analisado aqui é as redes pessoais de conhecimento como componentes e canais para os fundos de conhecimento dos investigadores e professores universitários.
A questão do desenvolvimento do conhecimento utiliza a ideia de “problematizar o existencial” da sociedade, a fim de refletir sobre o seu significado (Young, 2008). O conceito de “problematizar o existencial” (problem posing) significa que professores e alunos usam o diálogo para construir a compreensão de como a vida, a realidade e o mundo funcionam através da intencionalidade para indagar sobre a existência humana (por exemplo, identidade, língua e discurso, ciclos de poder, género, raça, colonização, imperialismo, justiça social, democracia, emancipação, desigualdade e equidade, entre outros).
Urge, então, uma compreensão mais profunda de como essa diversidade de conexões permite que professores e alunos desenvolvam um ciclo de questionamento que começa a construir o pensamento crítico sobre as suas próprias experiências pessoais como conexões. Isso gera novos desafios e efeitos sobre o processo de criação de conhecimento.
Neste artigo argumenta-se que o conceito de fundos de conhecimento permite vislumbrar as estruturas mais profundas sobre a criação de conhecimento, de uma forma que revela uma profunda ligação entre a forma como o mundo é e como os investigadores o experimentam. Isso anda de mãos dadas com a imagem de caça ao tesouro de aquisição de conhecimento, pois simplifica e condensa as emoções, os valores e as crenças abaixo dela.
Os fundos de conhecimento são um conceito, derivado dos estudos socioculturais e antropológicos, sobre ensino e aprendizagem que remete para o conhecimento intelectual e social aquirido por um indivíduo ou comunidade (González, Moll e Amanti, 2005). Outros autores realçaram outras dimensões deste conceito (Bensimon e Neuman, 1993; Argyris e Schon, 1996; Cole, 1985; Gallimore e Goldenberg, 2001), mas o importante a reter é que o conceito inclui quer a atividade comportamental quer as componentes cognitiva e afetiva. Assim, os fundos de conhecimento refletem como os investigadores e professores definem problemas, situações e criam sentido dos fenómenos. São o know-how e o know–why que os indivíduos mobilizam (muitas vezes inconscientemente) para realizar o seu trabalho. Sabemos que os investigadores e professores universitários desenvolvem os seus fundos de conhecimento por meios formais e não formais, tais como experiências diárias de conversa com colegas, observação dos estudantes, leitura de revistas científicas e de relatórios, educação formal ou outras atividades profissionais de socialização nas normas da prática científica e docente na cultura da instituição a que pertencem (Bensimon, 2007), mas sabe-se muito pouco sobre os fundos de conhecimento que moldam as práticas de investigação e de ensino nas universidades porque não se analisa em profundidade o envolvimentos dos investigadores e professores que refletem o seu compromisso, esforço e empenho. Em termos operacionais, o conceito de fundos de conhecimento é inerentemente dinâmico. Contudo, o fenómeno correspondente continua a ser mal compreendido e as abordagens existentes para a sua modelagem e descrição (por exemplo, textos de linguagem natural e figuras) são fundamentalmente estáticas e, em grande parte, ambíguas. A análise de redes sociais e pessoais permitem esta análise contemplando as mudanças que esses fundos e relações sofrem ao longo do tempo.
O conhecimento, neste artigo, é entendido como uma construção social, o que significa que é construído e reconstruído por grupos sociais que estão, eles próprios, situados num contexto marcado pelo seu próprio passado e por fortes traços pessoais (Polanyi, 1958). Já o conceito de fundos de conhecimento traduz a noção de contextualidade do conhecimento; o conhecimento não é apenas sobre “o que se sabe”, é também sobre “quem é que sabe” e as representações entre um e outro. Não é possível conhecer à distância da reprovação, permanecendo na superficialidade da aparência. Para conhecer é preciso fazer um esforço para nos colocarmos no lugar do outro, calçarmos as suas sandálias gastas de viajante dos tempos. É um trabalho difícil, mas necessário para entender o movimento e a mudança, as características mais perenes do conhecimento enquanto objeto.
A contextualidade do conhecimento e noções como “comunidade de conhecimento” ou “cultura do conhecimento local” devem ser consideradas simultaneamente, visando uma pluralidade de “níveis”, “contextos”, “espaços” ou “comunidades”, quer sejam de âmbito nacional, um setor, uma comunidade de agentes ou “espaços” investidos e criados pelas comunidades de conhecimento, como é o caso das universidades. O estudo de fundos de conhecimento facilita a compreensão da sua complexidade e resiliência, porque: 1) analisa em conjunto o conhecimento em si e os atores que conhecem; 2) possibilita a análise das representações, racionalidades e contextos sociais do conhecimento; 3) promove o reconhecimento ou negação da diversidade de conhecimentos.

1) Fundos de conhecimento e seus atores

O desenvolvimento da teoria de redes sociais trouxe evidências de que as relações que formam um sistema influem na mudança, nos fluxos e nas estratégias de difusão pelas redes formais e informais de relações sociais que criam redes de entendimentos, influência e conhecimento antes, durante e após qualquer implementação de estratégias de mudança ou inovação (Daly, 2010). Rawlings e McFarland (2011), por exemplo, abordaram um problema semelhante quando analisaram os fluxos de influência nas universidades, analisando os diferentes tipos de impacto de afiliações em mudanças na produtividade e atribuição de financiamento. Usando dados já disponíveis sobre redes de afiliação, os autores tentaram identificar os padrões de influência de características individuais e diádica influenciam os investigadores. Já em trabalhos anteriores (Johri, Ramage, McFarland e Jurafsky, 2011), os autores tinham determinado os diferentes tipos de colaborações dentro de campos e subcampos científicos, usando a análise linguística, de forma a modelarem computacionalmente essas diferenças. Foi um passo importante para compreender as contribuições dos autores individuais, com base nas suas redes de colaborações. Já Ribeiro e Lubbers (2013) estudaram os mecanismos interpessoais que afetam a criação de conhecimento, nomeadamente a similitude em termos de posição académica e de disciplina e a força de laço entre investigadores. Através da análise das redes pessoais de conhecimento de 32 investigadores e professores de universidades e institutos de investigação na Catalunha, os resultados sugerem que a similitude não é um fator determinante para a criação de conhecimento e que a força de laço é determinada por valores pessoais, interpessoais e académicos, afinidade entre os indivíduos, frequência de contacto e presença em mais do que uma rede (colaboração, influência, social, discussão, etc.). Verificou-se ainda que apenas 32% dos colaboradores dos entrevistados eram considerados importantes para a criação de conhecimento individual. Assim, as redes de colaboração não explicam por si só a criação e motivação de conhecimento.

Redes de conhecimento são geralmente definidas como um conjunto de atores que são repositórios de conhecimento que criam, transferem e adotam o conhecimento (Phelps, Heidl e Wadhwa, 2012). As conexões sociais entre esses atores são vistas como canais de informação e conhecimento. Estamos de acordo com esta definição, mas acrescentamos que, particularmente no que diz respeito a processos de criação de conhecimento, as redes de conhecimento configuram-se também como canais epistémicos. Esta definição implica que o valor associado à formação de laços é não só exógeno e exogenamente determinado e conhecido de todos os agentes. Em vez disso, para investigar redes de conhecimento é importante a ênfase na sua dimensão epistémica, ou seja, nos estados epistémicos individuais, coletivos e interpessoais dos atores envolvidos na rede. Dessa forma é possível ver a real importância e a função de práticas epistémicas como as redes de colaboração ou de influência. A principal vantagem de ver uma rede como um canal epistémico, onde ocorrem processos de tradução dos estados epistémicos e de conhecimento é que permite um avanço significativo na análise não só estrutural, mas também do conteúdo das relações que formam essa rede. Os processos de tradução de conhecimento que ocorrem nesses canais são também um processo de coprodução e evocam as formas em que cada tipo de conhecimento é convertido noutro, e como ele ganha a fiabilidade. Entendidas desta forma, as redes sociais podem passar a considerar e a contemplar o significado social e o contexto pessoal, oferecer as lentes teóricas e metodológicas, através das quais a teoria de redes e a Sociologia tentam responder a perguntas relacionadas com a criação e a autoridade epistemológica do conhecimento, no nosso caso específico do ensino superior. Ao mesmo tempo oferecem uma rota para um compromisso com as questões que, apesar de antigas, ainda são importantes e certamente adquiriram uma renovada proeminência nas universidades contemporâneas.
O mapa de redes de colaboração entre os membros das equipas de investigação da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB) (Martinez et al., 2007), com enfoque nos diferentes atributos dos atores: género, campo científico e o papel mediador de cada elemento mostra que, entre 2004 e 2006, houve um aumento significativo de colaborações dentro da UAB. Esse aumento, que tem sido continuado, deve-se principalmente a uma rede mais ampla dentro do campus. Mas não sabemos se esse aumento das redes de colaboração significou mais criação de conhecimento em termos de diversidade (por exemplo, interdisciplinaridade) e produção científica. Também não se conhecem os fatores que levaram a este aumento da colaboração. Uma análise mais fina das redes de conhecimento de investigadores de 4 instituições de ensino superior da Catalunha, entre as quais a UAB, destaca dois fatores de rede como propícios à interdisciplinaridade: centralidade e laços fortes. Esses dois mecanismos são mais fortes que os atributos pessoais dos investigadores (por exemplo, estilos de trabalho e criatividade) e o seu peso é maior em redes com mais investigadores afiliados em departamentos da faculdade do que em investigadores afiliados em institutos de investigação (Ribeiro, no prelo).

2) Análise das representações, racionalidades e contextos sociais do conhecimento

Ao contrário de uma forte tendência nas ciências sociais, é importante compreender que na base de qualquer conhecimento está uma qualquer representação entendida não como um espelho do mundo externo nem como construções mentais, mas antes como formas de construção de significado e de criação de realidades interrelacionadas entre sujeitos e entre estes e o mundo. Por isso é importante perceber essas representações como processos inerentemente sociais. Ambos – significado e contexto social – facultam lentes teóricas através das quais podemos olhar a transformação do conhecimento, as suas relações com os contextos sociais e culturais e a diversidade de formas que assume nas esferas contemporâneas. Um exemplo deste tipo de trabalho é o de Gervais (1997), em que o autor estudou as representações sobre o ambiente por altura de um desastre ambiental que teve lugar numa comunidade remota da Escócia. No confronto com o “estranho” e o “diferente” que se seguiram ao derrame de petróleo, a comunidade reformulou as suas representações sobre o ambiente e a natureza por forma a acomodar as novas pessoas e hábitos que chegavam à localidade.
Tome-se ainda o exemplo dos trabalhos de Hernández-Serrano e Stefanou (2009) sobre a transferência de expertise através do ato de contar histórias, no qual os autores desenvolveram um modelo de resolução de problemas baseado precisamente na prática de contar histórias. Os autores propuseram um modelo para a resolução de problemas por meio de histórias como um enquadramento geral que explica o fenómeno da construção de significado alcançado por quem tenta resolver esses problemas. O modelo identifica como condição causal um desafio à nossa compreensão do problema que é enaltecido pelas histórias contadas. Este modelo é hoje aproveitado, por exemplo, na área da estratégia e comunicação de conteúdos nos mais variados tipos de empresas e negócios.

3) Reconhecimento ou negação da diversidade de conhecimentos

Sendo o conhecimento um fenómeno dinâmico, plástico, plural e derivado quer das esferas objetivas como subjetivas, o conhecimento é diverso. A questão é como é que essa diversidade se faz representar em arenas específicas, como as universidades, por exemplo. O que acontece quando os cientistas falam entre si? Ou quando um filósofo dá uma aula a sociólogos? Ou quando sociólogos europeus ouvem sociólogos asiáticos? Ou quando um investigador não pode ensinar o que investiga na sua universidade? O que está em jogo quando decisores políticos decidem o que se ensinar a crianças que vivem em aldeias rurais? Todas estas situações envolvem pontos de contacto entre o conhecimento de si e o conhecimento do outro, entre formas de representação em competição, entre práticas que privilegiam determinadas representações dominantes.

A investigação educacional mostra que currículo e ensino sempre terminam num ato de conhecimento pessoal. Podemos argumentar que uma compreensão crítica das relações pessoais de investigadores e de professores onde o conhecimento acontece também abrange as relações de dominação e subordinação de saberes, onde cada ator tem um papel. A investigação sobre redes pessoais é um subcampo de análise de redes egocêntricas, que, por sua vez, é um subconjunto de análise de redes sociais, disciplina que estuda os padrões de relações entre atores sociais. Como Pablo de Grande (2013) define, uma rede pessoal é o conjunto de relações de um indivíduo com as pessoas que ele conhece mais o conjunto de relações entre estas pessoas. A diferença entre análise de redes pessoais e outros tipos de redes egocêntricas é que não há limites na delimitação dos membros dessas redes (McCarty e Molina, no prelo).
Pelo que ficou dito até aqui fica claro que os fundos de conhecimento são também movimentos sociais. Mas o que pensamos quando pensamos em movimentos sociais? Parte da resposta remete para palavras, documentos, textos e ideias que esses movimentos representam. Um movimento existe apenas em virtude das comunicações que lhe conferem algum grau mínimo de coesão e coerência. Outra parte da resposta remete para a noção de espaços abertos (Kimble, 1939). Atente-se, a este propósito, em duas analogias distintas.

A primeira analogia: as equações. Estas têm uma influência subtil sobre o tecido da nossa linguagem e do nosso pensamento que vai muito além dos limites do campo científico em que foram produzidas, o que se traduz, por exemplo, nas seguintes expressões: “Poder = conhecimento”; “Guerra = matar pessoas”. Com efeito, as equações podem seduzir-nos a considerar que esta é a maneira de pensar e que outras formas são inferiores ou até mesmo defeituosas. Já Heisenberg (1974) afirma que quase todo o progresso em ciência tem sido pago por um sacrifício, pois para quase cada nova conquista intelectual foi preciso desistir de conceções e de posições anteriores. Assim, de certa forma, o aumento de conhecimento e de perceção diminui continuamente a reivindicação do cientista sobre “o conhecimento da natureza”. No entanto, a ciência de hoje tem pouco em comum com a ciência do tempo de Heisenberg.
A segunda analogia: Our bodies, ourselves teve a sua primeira publicação em 1973. Tratou-se da primeira publicação comercial do que tinha sido uma série de artigos produzidos por um grupo de discussão sobre saúde das mulheres em Boston, Massachusetts. Desde então, o texto tem evoluído através de cinco edições e várias traduções para outras línguas. A primeira grande revisão – The new our bodies, ourselves – foi produzida em 1984 e continuou em 1996; uma segunda revisão de Our Bodies, Ourselves for the New Century surgiu em 1998. Uma série de trabalhos paralelos inclui Ourselves and Our Children (1978), Changing Bodies, Changing Lives (1980) e Ourselves Growing Older (1987, revisto em 1994). O livro foi traduzido primeiro para italiano (1974), depois para japonês, espanhol, francês, grego, sueco, alemão e hebreu, holandês, árabe e para bengali, havendo ainda versões em russo, arménio, sérvio e búlgaro, em 20013. Posto isto, a identidade autoral de Our bodies, ourselves é coletiva, mas não é sempre específica. A primeira pessoa do plural é usada com um deslocamento referente, que evoca, por vezes, todas as mulheres nos Estados Unidos e, noutras vezes, quem colaborou na produção de uma parte específica do texto. Os processos de tradução e adaptação complicam (enriquecem) ainda mais a identidade autoral. Na introdução à primeira edição britânica, em 1978, Phillips e Rakusen (1978) escrevem que “decidimos continuar a usar o pronome, mas, como as mulheres de Boston explicam o seu prefácio, isso não significa que estamos todos de acordo com tudo o que foi escrito” (Philips e Rakusen, 1978: 10). O pronome “nós” refere-se, portanto, à experiência coletiva de todas as mulheres que trabalharam sobre este livro.

Shapiro (n.d.) descreve o processo de tradução de Our Bodies, Ourselves para um público latino-americano, que resultou na publicação de Nuestros Cuerpos, Nuestras Vidas, em 2000. No início de 1990, reconheceu-se que a primeira tradução em espanhol (1976) ficou datada e surgiu uma nova tradução direta da edição em inglês (americano) de 1992. Diferentes capítulos foram, então, reescritos por 20 grupos de saúde feminina em 11 países do Norte, do Sul e da América Central e Caribe. Isto representou uma tentativa de desenvolver uma versão em espanhol para sul-americanas e latinas nos Estados Unidos, o que significou, por sua vez, a apresentação destas duas comunidades uma à outra. Posteriormente foram editadas novas versões em Boston, apoiadas por um médico tradutor experiente. Nesta fase foram introduzidas as alterações feitas para a nova edição de 1998, nos Estados Unidos da América. A produção de Nuestros cuerpos, nuestras vidas teve um enquadramento, com alterações na ordem e conceção de seções e capítulos. Por exemplo, foram introduzidas alterações substantivas em vários capítulos, como aquela sobre o aborto, tornando a temática mais adequada para diferentes condições sócio-económicas e políticas. Incluíram-se novos recursos materiais, nomeadamente os títulos de livros e algumas capas foram alteradas, e alguns dos termos principais também foram reformulados. Os “selves” em inglês passam a “vidas” em espanhol e “self-help” tornou-se “ayuda mutua”, porque se acredita que ninguém cuida de si por si. Isso é o mais significativo, porque a tradução espanhola torna-se uma fonte para novas versões de Our Bodies, Ourselves. A principal fonte para a edição búlgara foi uma tradução para o inglês da versão espanhola Nuestros Cuerpos, Nuestras Vidas. Traduções geram traduções e o que os tradutores denominariam como texto de destino é reconstruído como uma fonte. No entanto, parece difícil pensar em traduções em série ou em paralelo; em vez disso, as traduções acumulam-se num corpo de conhecimento, numa forma de pensar e numa forma de expressão característica de um conjunto de textos sem estarem totalmente ou definitivamente concretizados em nenhum deles. A origem ou centro é cada vez mais evasivo e obscurecido. Our Bodies, Ourselves é reproduzido, reconstruído, reescrito na medida em que é traduzido. Normalmente, o trabalho de tradução é frequentemente escondido, tratado como um aspeto técnico da produção de um livro, tal como a formatação de texto. Neste caso, porém, é um processo aberto, deliberado, visível, informado por uma ética política que, segundo Shapiro (n.d.), se inspira no ideal de educação participativa de Freire: a educação participativa enfatiza um processo relacional, dialógico entre professor e aluno. No entanto, o processo de adaptação que deu origem a Nuestros Cuerpos, Nuestras Vidas resultou muito mais parecido com a representação textual de uma teia de relacionamentos e a criação de uma comunidade virtual. A teoria educacional de Paulo Freire tem um corolário em teoria literária, ao entender o leitor como autor ou coprodutor de um texto e a leitura como um processo em que o leitor completa o texto. Da mesma forma, e claramente relevante para Our Bodies, Ourselves, são os trabalhos feministas recentes em estudos da tradução que afirmam a “agência” do tradutor, bem como as possibilidades de participação entre escritor e tradutor. “A tradução feminista implica alargar e desenvolver a intenção do texto original” (Simon, 2000: 32). Baseado no trabalho de Barbara Godard, argumenta-se que traduzir é um processo transferencial, no qual o assunto da leitura torna-se um assunto de escrita. Prática de escrita e tradução feminista reúnem-se para transformar tudo o que é escrito e reescrito (Simon, 2000). As sucessivas traduções de Our Bodies, Ourselves formam um sistema cujo significado é emergente e reproduzido continuamente. A tradução pode ser considerada de três formas: construtiva, na medida em que inventa o objeto que traduz; constitutiva, na medida em que cria comunidades de escritores e leitores; e contingente, na medida em que é determinada pela sua inteligibilidade e utilidade para o leitor e pelo contexto para o qual ele é feito. A reprodução de significado é inevitável e imperfeita. A tradução compromete-se, pois, entre a verdade do original e as exigências da nova situação a que se destina. Para ser lida e recebida no novo contexto, a tradução deve operar segundo uma lógica de adequação e de eficiência. Assim, a tradução é simultaneamente um reconhecimento e uma forma de traição.

2. Teoria e método: tradução, fundos de conhecimento e redes

Nesta secção faz-se a exploração teórica dos constructos teóricos que são objeto de reunião teórica e metodológica neste artigo: fundos de conhecimento e egoredes em que estas são sistemas complexos (canais epistémicos, como definido na secção anterior), onde se processa a tradução de conhecimento(s) em e pelos fundos de conhecimento de professores universitários e investigadores.

2.1. Sistemas complexos

Há uma distinção importante entre o que é complexo e o que é simplesmente complicado. Um sistema complicado é um intrincado de muitas partes, embora as relações entre as partes sejam mensuráveis e o comportamento do sistema como um todo seja previsível. Um sistema complexo, por outro lado, é aquele em que as relações entre as partes são flexíveis ou não especificadas e o seu comportamento global incerto. Um sistema pode ser um organismo ou uma espécie, um corpo humano, uma família, uma organização ou um estado. Pode ser definido como um conjunto de relações entre as partes ou unidades. É definido pela natureza dessas relações e não pelo caráter dos seus componentes; dito de outra forma, os seus elementos são relações e não entidades.
Os elementos do sistema (as relações que o compõem) são delimitados de alguma forma até que seja feita uma distinção entre o sistema e seu ambiente. Geralmente, este ambiente compõe-se de outros sistemas. O sistema é aberto, dependente do intercâmbio com o seu ambiente e essencialmente preocupado com a manutenção e reprodução de si mesmo. Os sistemas coevoluem com outros sistemas. Tensão, contradição e paradoxo dentro e entre eles são normais e podem ser produtivos. A interação entre os sistemas e elementos dentro de sistemas leva a um comportamento emergente, a algo novo. “Um sistema adaptativo complexo é uma coleção de agentes individuais com liberdade para agir de maneiras que não são sempre totalmente previsíveis, e cujas ações estão interconectadas para que as ações de atores alterem o contexto para outros atores” (Plsek e Greenhalgh, 2001: 625).
As relações dentro e entre os sistemas consistem em fluxos de pessoas, artefactos, dinheiro, informações, regulamentos, emoções e ideias, entre outras coisas. Estas podem ser compreendidas de maneiras diferentes como tipos de comunicação e o sistema pode ser considerado como sendo regulado pela sua interação no seu ambiente (geralmente expresso em termos de feedback positivo e negativo). Desta forma, o problema da complexidade pode ser interpretado, em grande parte, como um problema de comunicação. Comunicações que atravessam as fronteiras entre um sistema e o seu ambiente podem ser pensadas como traduções. Um sistema mantém e reproduz-se na medida em que decreta ou realiza traduções. As traduções, em si mesmas, formam um sistema, bem como os documentos, textos e aqueles que escrevem, leem e interagem. O significado é produzido na interação e está em constante evolução. Isso é o que se entende por intertextualidade.

2.2. Tradução

A tradução começa e baseia-se num ato inicial de confiar (Steiner amplifica este ato com o conceito francês de élancement). O tradutor assume, em boa fé, que um texto faz sentido ou que o sentido pode ser reproduzido de forma diferente. O sentido procede por meio de incursão e extração. O tradutor invade o sentido original e traz de volta o que é possível encontrar. Em seguida, tenta dar forma e corpo ao significado apropriado. Os recursos para isso são fornecidos pelo idioma nativo (receção). Fundamentalmente a língua nativa ou conjunto simbólico local corre o risco de ser transformada ligeiramente no ato de apropriação. O movimento final da tradução é um ato de reciprocidade ou restituição, no qual um efeito reforça o original através da tradução: a atenção dos tradutores dignifica e engrandece o texto de origem. Curiosamente, Steiner postula um sistema que é colocado fora de equilíbrio pelos três primeiros movimentos das traduções. O seu equilíbrio dinâmico deve ser mantido por um processo de troca. Houve uma saída de energia a partir da fonte e um ingresso para o recetor, alterando a harmonia de todo o sistema. O tradutor, o exegeta ou o leitor são fieis ao seu texto e tornam a sua resposta responsável, somente quando se esforçam para restabelecer o equilíbrio de forças que a sua compreensão disruptiva desestruturou. Assim, a tradução pode ser retratada como a negação da entropia; a ordem é preservada em ambas as extremidades do ciclo: fonte e recetor (Steiner, 1998, itálicos no original).
Neste ponto vale a pena referir que a atenção para um determinado tipo de tradução é conseguida através da comparação e da categorização. Comparar algo com outra coisa implica o reconhecimento logicamente prévio ou suposição de que eles são comparáveis. Consiste em usar a justaposição de coisas para lhes dar sentido, separadamente e juntos. Isso é o que James Boyd White se prepara para fazer em Justiça como Tradução (White, 1990). Este tipo de trabalho, no Direito e na Literatura e em qualquer área de produção de conhecimento, “não é a transferência de resultados de campo para campo, nem o transporte de método (considerado como uma espécie de máquina intelectual que pode ir trabalhar novos temas sem ser modificada), mas antes resulta da esperança de mantê-los na mente ao mesmo tempo de forma a alterar o nosso sentido de ambos” (White, 1990: 19).
Ao desenhar este paralelismo, recorrendo a analogias entre tradução erelações em sistemas complexos, consubstancio a sugestão de que a criação de conhecimento e a sua difusão podem ser pensadas como e através de processos de tradução. Esse processo existe e acontece através de fundos de conhecimento, os quais podem ser medidos e descritos na sua infraestrutura, através das redes pessoais dos atores que produzem esse conhecimento.

3. Método de investigação: fases do conhecimento e redes pessoais

Furusten (1999, baseando-se em Latour, 1987) discute as maneiras complementares de compreender como um texto funciona ou produz significado. Podemos olhar para o texto propriamente dito ou para o seu contexto. O texto em si é examinado em três níveis: significado de superfície; argumento implícito ou subjacente; relações que estabelece com outros textos. O contexto inclui tanto as circunstâncias (a forma) em que o texto é escrito ou produzido e aquelas em que é lido. Quando não for possível apreciar esses processos de produção e de receção participando e observando- os, podemos tentar reconstruí-los estudando com aqueles que o produziram.
Analogamente é disto que se trata quando analisamos os fundos de conhecimento recorrendo à análise das redes pessoais de quem o produz. Afinal, no conceito de fundos de conhecimento está também presente uma das mais populares formas de conceber a dinâmica de movimento entre as ciências humanas: o conceito de fluxo, que deriva em parte das pressões e das unidades da dinâmica de fluidos, na qual as intensidades circulam (Deleuze e Guattari, 1988). Henriques propõe uma conceção de movimento, onde o que é transmitido não é um objeto, mas sim uma frequência de repetição ou padrão de energia. Portanto, a ênfase é sobre a relação de movimento entre processos. Como Henriques sugere: é o padrão dinâmico que se move, não é uma coisa (Henriques, 2010).
A premissa básica proposta pela abordagem teórico-metodológica da análise de redes sociais é o estudo de sistemas como sendo redes. Uma das vantagens é usar a visualização como meio de compreensão.

4. Análise de redes sociais e criação de conhecimento

Neste ponto importa retomar a definição de redes sociais e, dentro destas, as redes pessoais. Uma rede social é um conjunto de indivíduos (comumente chamado de atores) e uma enumeração de relações (ou laços) entre esses indivíduos (Kindermann, 2008). O termo rede social deriva do trabalho de Barnes (1954), em que era usado para designar as relações sociais encontradas numa comunidade em Bremmes, na Noruega. Desde então, o termo tem sido associado a diferentes tipos de relações entre diferentes tipos de indivíduos. Redes contemporâneas, ao contrário das comunidades locais, não são apenas centradas na filiação local, mas muito mais em afiliações culturais de nicho e comunidades de conhecimento. Essas novas maneiras de partilhar cultura e conhecimento têm grandes implicações nas relações entre produção e consumo e as fontes tradicionais de autoridade para a cultura e o conhecimento. Os padrões de criação de conhecimento estão a ser reformatados continuamente, na medida em que as redes se tornaram a lógica cultural dominante (Varnelis, 2008). Como acontece noutros domínios, as universidades também se compõem de atores em rede e, assim, as culturas que emergem são variadas. Nesta sociedade em rede, a criação de conhecimento e a especialização aumentam a probabilidade de que o conhecimento atual seja mantido e multiplicado em novos conhecimentos e práticas.
A análise de redes sociais (ARS) cartografa e mede relações e fluxos entre pessoas, grupos ou organizações. Desde o seu início, a ARS tem sido um método multidimensional e interdisciplinar. A ARS pressupõe que os atores participam em sistemas sociais que os conectam a outros atores, cujas relações influenciam comportamentos uns dos outros. A identificação, a medição e a verificação de hipóteses sobre o conteúdo substantivo das relações entre atores e formas estruturais tem sido a característica distintiva da ARS, em comparação com outras tradições mais individualistas, centradas em variáveis específicas, mais utilizadas em ciências sociais (Knoke e Yang, 2008). Assim, a ARS visa medir e representar as relações estruturais, explicando como estas ocorrem e quais as suas consequências. A utilização da ARS no estudo dos processes emergentes de criação de conhecimento justifica-se pela formação de fluxos localizados e localizáveis do conhecimento, uma vez que é através de intercâmbios entre pares e não pares que estes corpos de conhecimento crescem e se transformam. O conhecimento é sempre um processo emergente, modificado e descartado consoante as circunstâncias. Em suma, compreender se e como as redes sociais modelam os fluxos de conhecimento nas universidades e nos processos de criação de conhecimento é de fundamental importância.
Diane Crane (1972) desenvolveu um trabalho seminal na tentativa de compreender de onde vem o conhecimento que se estuda nas universidades. Quem é responsável? Quem deve exercê-lo? A autora argumenta que o problema da relação entre a estrutura interna de uma instituição cultural particular e os produtos culturais nela desenvolvidos tem sido negligenciado pela Sociologia do Conhecimento. Segundo a autora, esta falha deve-se à tendência para definir os grupos sociais como entidades abstratas, em vez de coleções de indivíduos cujos modos de interação podem ser observados de forma precisa. Essa tarefa exige, segundo Diane Crane, a análise do desenvolvimento dos sistemas de crenças destes grupos, bem como a análise sociométrica das relações entre os seus membros, das relações entre esses grupos e as relações de tais grupos na estrutura social mais abrangente. O desenvolvimento da análise de redes sociais tem vindo a dar uma contribuição relevante neste domínio.
Com efeito, o desenvolvimento subsequente da teoria das redes representou um contributo importante para lidar com a questão do conhecimento, pois combinou o que intuitivamente sabemos com um crescente corpo de investigação sobre redes sociais, sugerindo que os relacionamentos dentro de um sistema importam ao influenciarem a mudança, os fluxos, as estratégias de difusão, através de redes formais e informais de relações sociais (Daly, 2010).
Estudos educacionais mais recentes salientam a importância de redes sociais fortes entre os professores para a propagação e para a implementação política de reformas ou de inovações (por exemplo, Coburn e Russel, 2012; Moolenaar e Sleegers, 2010; Penuel, Frank e Krause, 2009). O papel das redes sociais para a criação de conhecimento também foi estudado fora do campo educacional, destacando o papel crucial das redes formais e informais na aprendizagem organizacional por estimular novos conhecimentos e novas práticas (Ahuja e Carley, 1999; McGrath e Krackhardt, 2003).
Forman e Markus (2005), Drejer e Jorgensen (2005) e Hlupic, Pouloudi e Rzevski (2002) estudaram a criação de conhecimento e o papel da colaboração. Os autores identificaram a necessidade de mais investigação sobre a relação entre as características das redes sociais e a criação de conhecimento num ambiente de investigação colaborativa. Também Drejer e Jorgensen (2005) e Hlupic, Pouloudi e Rzevski (2002) detetaram a necessidade de mais investigação, integrando os domínios da criação de conhecimento e das redes sociais. Estes investigadores reconheceram que, embora a colaboração e a investigação interdisciplinar sejam frequentemente recomendadas, ainda há uma falta de trabalhos empíricos ou teóricos que validem o papel da sociologia das redes no contexto da criação do conhecimento.

4.1 Redes pessoais: atractores estranhos

No que respeita à ARS, existem duas opções principais. Na análise de redes sociais completas, o foco está num conjunto de nós que servem como a população do estudo. Neste caso, o número de laços mede-se sistematicamente para cada par de nós na população. Por exemplo, se se fosse analisar todas as relações do corpo docente de uma universidade inteira, a população de nós corresponderia a algum tipo de grupo. A outra opção são as egoredes, cuja análise tem como foco as relações de um ator (ego) e o seu meio social. Por meio desse método, a rede pessoal do ego é estabelecida a partir do seu ponto de vista subjetivo. As egoredes representam o padrão global de relacionamentos de um indivíduo. O foco situa-se na inserção dos atores no seu ambiente social. A análise de egoredes é usada quando o grupo sob investigação é difícil de delinear ou o tamanho do conjunto sugere o estudo de casos individuais (Fischer, 2010; McCarty e Molina, no prelo; Wellman e Berkowitz, 1988). A análise das egoredes combina elementos da abordagem científica tradicional que é baseada nos atributos dos atores e na abordagem que é baseada na ciência das relações. A investigação sobre redes pessoais abrange as seguintes categorias: 1) identificação de padrões e processos de socialização e integração; 2) previsão da variação interindividual nesses padrões; 3) deteção da influência das redes pessoais sobre resultados individuais; 4) uso das redes pessoais como um meio para outros objetivos, tais como estudar populações de difícil acesso; 5) desenvolvimento do método em si.

 

 

A análise das redes de relações permite compreender como a topologia dessas redes influencia os processos de criação de conhecimento, em que fase os nós (atores) convergem e a que ritmo, bem como perceber os processos inerentes a mecanismos de coordenação ou de aprendizagem.
Conforme argumentado neste artigo, a análise de egoredes, pela sua natureza teórica e operacional, apresenta uma forma diferenciadora na análise de fundos de conhecimento, entendidos como processos de tradução, como explicitado e exemplificado nas secções anteriores. Isto acontece porque a análise de egoredes permite a identificação de padrões que podem ser identificados e descritos, de forma analógica, como sendo processos de atractor estranho e de afinidade eletiva. O atractor estranho é um conceito oriundo da teoria do caos. Um atractor estranho é um princípio matemático segundo o qual um padrão regular num sistema dinâmico se decompõe e outro emerge: é a matemática de transição dentro e entre sistemas complexos. Tais atractores são denominados estranhos porque precipitam a “saída de” ao invés de conformidade com as normas do sistema. A frase é atribuída a Ruelle e Takens, que discutem entre si sobre quem a inventou (Ruelle e Takens, 1971; Gleick, 1998). O conceito de afinidade eletiva está associado nas ciências sociais a Weber, que se inspirou no romance de Goethe com o mesmo nome (em alemão, Die Wahlverwandschaften, 1809). A ideia era corrente na ciência do final do século XVIII e terá sido encontrado por Goethe no seu trabalho em Física. O anúncio da pré-publicação do romance explica como o termo é usado em química para compreender a forma como as substâncias se combinam, separam e recombinam. Como um dos personagens do romance explica, “por exemplo, o que chamamos de calcário é mais ou menos puro óxido de cálcio bem combinado com um ácido fraco, conhecido para nós no estado gasoso. Se um pedaço dessa rocha for diluída com ácido sulfúrico diluído, dar-se-á uma combinação que resultará em gesso; o ácido fraco gasoso, por outro lado, escapa. Deram-se, portanto, uma separação e uma nova combinação surgiram e sentimo-nos tentados em usar o termo afinidade eletiva, porque realmente parece que aconteceu um relacionamento que foi preferido em detrimento do outro” (Goethe, 1994: 33). Este é o processo de tradução exposto neste artigo e que consubstancia os fundos de conhecimento passíveis de ser analisados pelas egoredes. Goethe observa também essa afinidade eletiva um conceito antropomórfico tirado de assuntos humanos usados por cientistas para descrever e explicar o comportamento da matéria inanimada. Nesta medida, Goethe
4 reapropria-se do conceito para o mundo social, usando-o como metáfora. O mesmo se faz nesta argumentação.
Por último, a análise de egoredes propicia uma representação dos fundos de conhecimento, mostrando os laços que formam esse ato de mediação entre origem e destino e estabelece uma relação entre autores em contextos diferentes, a qual tem efeitos recíprocos. A título ilustrativo, incluo aqui uma amostra de fundos de conhecimento de um investigador de uma instituição de ensino superior da Catalunha:

 

 

Conclusão

Em suma, mas sem fechar este debate, neste artigo argumenta-se como as egoredes, pelos seus fundamentos metodológicos e teóricos, são um dispositivo adequado para estudar os fundos de conhecimento de investigadores e professores universitários, já que o conhecimento tem uma natureza relacional e acontece numa série de acumulações e emergências, isto é, numa tradução. As egoredes são um ponto de partida para perceber as estruturas e os padrões dos processos de negociação, um ato compartilhado de reconfiguração, explicação e ampliação, adaptação e transformação.
Neste artigo optou-se por uma abordagem e argumentação interdisciplinar para justificar a relação entre egoredes e o estudo dos fundos de conhecimento, pois “a criatividade científica é ‘uma conceção estreita do profissionalismo que conduz insensivelmente a uma especialização forçada e a uma normalização das pesquisas e dos pesquisadores’” (Lopes, 2012: 25). Por outro lado, este cruzamento de perspetivas oriundas de diferentes campos de estudo contribui para aumentar o potencial crítico interno e interventivo da sociologia, pois “a sociologia só será sociologia se for um conhecimento crítico” (Lopes, 2012: 25).
O propósito deste trabalho não era o de chegar a algum ponto final específico ou a conclusões empíricas, estas apresentadas noutros trabalhos (por exemplo, Ribeiro e Lubbers, 2013 e Ribeiro, no prelo). Era antes o de servir como base para a discussão mais prolongada sobre a natureza dos fundos de conhecimento. Por isso, estabelecemos o paralelismo entre aqueles e o processo de tradução e adaptação, no caso, da obra Our bodies, Ourselves. Este paralelismo espoleta certamente vários pontos de discussão sobre temas relacionados com sistemas complexos, a tradução e as redes sociais. Neste artigo, fi-lo como se contasse uma história. A utilidade das egoredes para estudar os fundos de conhecimento pode ser maior ou menor conforme o tipo de conhecimentos a que nos referimos. O caso trazido para este artigo é o do conhecimento produzido em instituições de ensino superior. O que é interessante é que as egoredes são um dispositivo performativo (McKenzie e Schweitzer, 2001), justificado na maneira como constitui e representa os movimentos e as mudanças próprias do processo de criação do conhecimento, sobretudo porque essas egoredes são sistemas complexos, abertos, adaptativos. Isso comporta um aspeto material, em que a forma de uma rede surge e o que a une é a produção e distribuição de artefactos culturais e pessoais. A dimensão ideacional dessas redes traduz-se nas conexões que perfazem a própria “metacultura” do conhecimento e da ciência.

 

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Artigo recebido a 1 de março de 2013. Publicação aprovada a 20 de janeiro de 2014.

 

Notas

1 Doutoranda na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP) (Porto, Portugal) e visiting researcher na Universidade Autónoma de Barcelona (Barcelona, Espanha). Endereço de correspondência: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Rua Alfredo Allen, 4200-135 Porto, Portugal. E-mail: filipa.ribeiro@gmail.com

2 Este artigo baseia-se num trabalho realizado no âmbito de uma bolsa de doutoramento financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

3 Sobre a evolução do texto, consulte a referência de Potter (1998). Para uma breve descrição e discussão de alguns desses projetos de tradução mais recentes, consulte Whelan e Pincus (2001).

4 É a teoria da tradução de Goethe que baseia grande parte da teoria de Steiner (1998). Na seleção que Unseld fez dos trabalhos de Benjamin (1977) consta um ensaio, de 1924, sobre a obra Wahlverwandschaften, de Goethe, que segue a sua discussão clássica da tarefa do tradutor.

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