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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.28  Porto dez. 2014

 

ARTIGOS

Narrativas das relações entre o Estado e as organizações do terceiro setor: algumas pistas de análise

Narratives of relations between the State and the Third Sector organizations: some clues for analysis

Récits de relations entre l’État et les organisations du Secteur Tiers: quelques pistes pour analyse

Narrativas de las relaciones entre el Estado y las organizaciones del Tercer Sector: algunas pistas para el análisis

Paula Guerra1 Mónica Santos2

Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto


 

RESUMO

O presente artigo integra-se num eixo específico de um projeto de investigação sobre empreendedorismo social em Portugal, o eixo das políticas portuguesas de empreendedorismo social direcionadas para as organizações do terceiro setor. Este trabalho, de cariz essencialmente exploratório, visa identificar as representações, no seio de atores-chave e organizações de terceiro setor português, acerca da emergência ou não de políticas de desenvolvimento de práticas de empreendedorismo social, assim como refletir sobre as articulações entre o Estado e as entidades do setor no sentido de vislumbrar tendências dos modelos de atuação e relação entre ambos.

Palavras-chave: empreendedorismo social; políticas públicas; representações sociais.


ABSTRACT

This article is part of a specific axis of a research project on social entrepreneurship in Portugal, the axis of the Portuguese social entrepreneurship policy towards third sector organizations. In an exploratory way, we aim to identify, within the key stakeholders and third sector Portuguese organizations, the representations about the emergence (or not) of policies that enable the development of practices of social entrepreneurship. From here we are going to reflect about the articulation between the State and third sector entities in order to find out the main trends of this relationship and forms of action.

Keywords: social entrepreneurship; public policies; social representations.


RÉSUMÉ

Cet article fait partie d'un axe spécifique d'un projet de recherche sur l'entrepreneuriat social au Portugal, l'axe politique portugaise de l'entrepreneuriat social à des organismes du tiers secteur. Ce travail, essentiellement exploratoire, vise à identifier les représentations dans les principales acteurs clés et les organisations du tiers secteur portugais, à propos de l'émergence ou non de politiques de développement des pratiques de l'entrepreneuriat social, ainsi qu'à réfléchir sur les articulations entre l'Etat et les entités du secteur afin de discerner les tendances de modèles et de relations.

Mots-clés: entrepreneuriat social; politiques publiques; représentations sociales.


RESUMEN

Este artículo forma parte de un eje específico de un proyecto de investigación sobre emprendedurismo social en Portugal, el eje de políticas portuguesas de emprendedurismo social dirigida a las organizaciones del tercer sector. Este trabajo, esencialmente exploratorio, tiene como objetivo identificar las representaciones en los principales protagonistas y las organizaciones del tercer sector portugués, sobre la aparición o no de prácticas de desarrollo de políticas de emprendedurismo social, así como reflexionar sobre las articulaciones entre el Estado y las entidades del sector con el fin de distinguir las tendencias de modelos de conducta y de relación.

Palabras clave: emprendimiento social; políticas públicas; representaciones sociales.


 

1. Enquadramento e metodologia3

A nossa abordagem integra-se num projeto de investigação sobre empreendedorismo social em Portugal cujo principal objetivo é o de identificar graus de empreendedorismo social nas entidades do terceiro setor, tendo em conta um conjunto de dimensões teóricas e empíricas determinadas pela equipa de investigação4. É dentro do eixo das políticas nacionais de desenvolvimento de práticas de empreendedorismo social que se enquadra este artigo. Iremos focar a nossa atenção sobre um conjunto de dados recolhidos fundamentalmente através de entrevistas a atores-chave, provenientes sobretudo do terceiro setor, da economia social e também de outras esferas cujo trabalho tem contribuído para a emergência do empreendedorismo social em Portugal.
A partir destes dados procuramos aferir (i) o conhecimento dos atores face às orientações e programas políticos que permitem o desenvolvimento de práticas de empreendedorismo social, tal como (ii) o seu entendimento sobre qual tem sido a sensibilidade político-governamental face a este fenómeno e ao próprio terceiro setor e economia social, e ainda (iii) o reconhecimento de obstáculos ou oportunidades conferidas pelas orientações dos programas políticos aos seus associados ou organizações congéneres. Estes três itens de análise foram verificados junto de um conjunto de atores-chave, alguns dos quais se constituem como estruturas representativas (entidades de cúpula) de uma panóplia de organizações de base como as cooperativas, mutualidades, fundações e associações (Parente et al., 2012). No total, foram realizadas 20 entrevistas semiestruturadas, dezoito das quais efetuadas a mandatários de instituições de representação e de programas políticos nacionais e duas a atores-chave individuais. Mais adiante, iremos especificar e tipificar as organizações e os atores individuais entrevistados, por âmbito de atuação e forma jurídica das organizações.
Antecede à exposição e análise dos dados empíricos um breve esboço teórico sobre os diferentes conceitos instrumentalizados e as relações entre o terceiro setor e o Estado, tendo em conta as particularidades da estrutura social portuguesa. Em jeito de síntese, procuraremos, por fim, apurar algumas pistas exploratórias sobre os modelos de relação entre o Estado e as entidades de terceiro setor no tocante às políticas que podemos incluir no espectro do empreendedorismo social português.

2. Articulações entre o Estado e as organizações do terceiro setor português: retomando os principais eixos de análise

A incapacidade ou a falência dos Estados Providência, com particular incidência a partir da década de 1980 (Quintão, 2011), têm contribuído para a (re)emergência de um conjunto de iniciativas de atores e entidades da sociedade civil em geral que procuram encontrar respostas alternativas a velhos e a novos problemas sociais como o desemprego, a habitação, a saúde, a ecologia, etc. Um dos mais recentes conceitos que procura apreender estas novas dinâmicas é o de empreendedorismo social: concretizando-se nas iniciativas de articulação entre os princípios das organizações não lucrativas e os métodos de negócio dos campos da gestão e da economia com vista à sustentabilidade económica daquelas organizações (Mair e Marti, 2006).
A problemática nasce em contexto anglo-saxónico e foi sendo construída a partir de 1990, criando o resultado do desenvolvimento de iniciativas individuais e/ou coletivas, a diferentes graus de formalização, e pressupondo a primazia da criação do valor social em detrimento da obtenção e acumulação do lucro (Dees, 2001; Austin, Stevenson e Wei-Skillern, 2006). O conceito é, contudo, trabalhado por diferentes escolas que põem tónicas distintas nas dimensões da sustentabilidade económica ou da inovação social (Defourny e Nyssens, 2010), imprimindo um caráter ainda difuso e aberto ao fenómeno. A esta fragmentação teórica, acresce a utilização de outros conceitos, com maior antiguidade e próprios de realidades específicas – sobretudo no contexto europeu – como o de economia social, economia solidária e terceiro setor. A plasticidade que carateriza estas definições teóricas que embora se refiram a realidades mais ou menos convergentes mas não exatamente sobrepostas, tem impedido grosso modo a determinação de fronteiras distintas entre elas.
De forma genérica, podemos dizer que a economia social engloba o conjunto de cooperativas, mutualidades, associações e fundações (CIRIEC5, 2007) que partilham os princípios da primazia do indivíduo e do objeto social sobre o capital; da autonomia e da independência de gestão; do controle democrático dos membros (CIRIEC, 2007; Defourny, 2009). Por sua vez, o terceiro setor corresponde ao espaço ou, segundo o CIRIEC (2007), ao ponto de convergência entre a economia social e o setor não lucrativo, embora não exatamente coincidentes, uma vez que este último não contempla alguns dos princípios da economia social, assentando antes numa lógica mais assistencialista e caritativa. Por último, a economia solidária encontra-se associada às respostas inventariadas para colmatar as necessidades sociais de grupos em exclusão social, e o seu campo de atuação articula-se em torno do mercado, do Estado e da reciprocidade (CIRIEC, 2007). Quintão (2004), tendo como referência o contexto francês, considera que o conceito se foi firmando em oposição às entidades tradicionais da economia social, através de novas soluções institucionais e metodologias de intervenção cujo realce assenta no princípio da solidariedade e da reciprocidade.
No âmbito do nosso estudo, das políticas associadas à problemática do empreendedorismo social, foi rapidamente constatada a inexistência de políticas e/ou legislação diretamente associada à problemática em questão o que nos conduziu à extensão dos critérios de análise às políticas direcionadas para o terceiro setor, espaço eleito pela equipa para identificar a emergência do fenómeno em estudo (Parente et al., 2012). O conceito de terceiro setor foi privilegiado como campo de aplicação dos processos de empreendedorismo social pela sua capacidade heurística e dada a maior abertura, flexibilidade e pluralidade (Quintão, 2011) de organizações passíveis de analisar. Apresentando uma configuração heterogénea, o terceiro setor compreende um conjunto de organizações diversas, tais como associações, cooperativas, fundações, Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), mutualidades, entre outras, cuja representação dentro do tecido institucional varia muito (Parente, 2011; Quintão, 2011). Esta diversidade, embora possa condicionar sobremaneira a autonomia e a capacidade do setor na partilha de princípios e objetivos comuns, é também o seu principal trunfo, pois esta versatilidade permite um contínuo ajuste à natureza mutável e complexa dos problemas e à plasticidade da condição dos destinatários (Hespanha, 2000).
Quintão (2011) refere que é a partir da implantação do regime democrático que se assiste a uma recomposição do terceiro setor português, marcado contudo por diferentes momentos. Porém, é com a entrada na Comunidade Económica Europeia que se afirma um período de maior estabilização visível no crescimento do número e do tipo de organizações (Quintão, 2011: 12-14). As cooperativas que tinham crescido exponencialmente nos primeiros anos após o 25 de Abril de 1974 e que mantiveram um crescimento continuado até meados da década de 1980 só inverteram esta tendência na década de 1990. As organizações ligadas à Igreja Católica como as misericórdias e os centros paroquiais e sociais permanecem com um importante papel no domínio da assistência a públicos mais desfavorecidos, sendo atores-chave na mobilização de recursos de integração social: dados de 2007 indicam que aproximadamente 60% das IPSS teve a sua origem em iniciativas ligadas à Igreja (Joaquim, 2007). Em 2011, as misericórdias ascendiam ao número de 390 no país. As IPSS, cujo estatuto acresce a diferentes personalidades jurídicas, têm registado um aumento significativo: em 1972 contabilizavam-se 1264 instituições a nível nacional, em 1998 eram 2992 e em 2008 existiam aproximadamente 5000. É ainda possível verificar a progressiva implementação de organizações do terceiro setor com intervenção internacional, como as associações de cooperação internacional, de ajuda humanitária ou de comércio justo (Quintão, 2011).

Perante esta configuração organizativa, importa perceber, no entanto, quais os papéis que o terceiro setor assume no contexto da sociedade portuguesa. Sabemos que o desenvolvimento deste setor varia em função dos diferentes modelos sociais nacionais, enquanto produto sócio histórico específico destes, sendo fruto, inevitavelmente, de uma dimensão política e designadamente das políticas públicas (Laville, 2000), mas também enquanto produto do conjunto de interações entre poderes públicos e iniciativas heterogéneas que se traduzem em efeitos mútuos que vão variando no tempo e no espaço no tocante à intensidade e às modalidades. Tal papel pode limitar-se à execução de políticas públicas, mas pode envolver igualmente a escolha das políticas e a formação da própria agenda política, em processos de complementaridade ou confrontação com o Estado (Santos, 1999: 34). As relações com o Estado Providência podem ser múltiplas. Nos últimos anos, dado o recuo e a incapacidade crescente do Estado na criação e manutenção de respostas sociais, a tendência parece pautar-se pelo crescente peso do terceiro setor na estruturação e modalidades de funcionamento do Estado em lógicas de complementaridade e substituição. Se durante o regime ditatorial português, as organizações do terceiro setor foram controladas e instrumentalizadas por um regime corporativo e assistencialista (Parente, 2011; Quintão, 2011), a partir da Revolução de 1974, estas relações complexificaram-se, ora avançando ora recuando os discursos de autonomia e complementaridade entre Estado e terceiro setor, em dinâmicas frequentemente dúbias e contraditórias (Hespanha, 2000; Franco et al., 2005). Estas dinâmicas têm feito com que, gradualmente, se tenha vindo a reconhecer a importância das relações entre o Estado e o setor não lucrativo, não obstante a ambiguidade das funções e papéis dos agentes, das fontes de financiamento e do grau de cooperação que permite a autonomia da sociedade civil (Franco, Sokolowski, Hairel e Salamon, 2005).
O terceiro setor, por seu lado, parece estar cativo num paradoxo entre a reivindicação da legitimidade “ética” para representar e defender as necessidades dos mais carenciados, e a sua dependência financeira do Estado, quando supostamente integra a sociedade civil autónoma (Hespanha, 2000). Aliás, é a incapacidade ou a capacidade limitada de gerar recursos e a consequente dependência face ao financiamento estatal a principal debilidade apontada ao terceiro setor. É a partir de 1980 que novos enquadramentos legais contribuíram para que muitas organizações se tornassem produtoras de bens e serviços subcontratados pelo Estado (Ferreira, 2000) engendrando o designado modelo “pluralista” (Perista, 2001) de um sistema de segurança social cujas responsabilidades são partilhadas entre o Estado e o setor não governativo e não lucrativo, modelo aliás intimamente relacionado com a parca consolidação do Estado Providência em Portugal.
No intuito de procurar outras pistas que nos pudessem elucidar sobre as diferentes modalidades de relação entre o Estado e o designado terceiro setor, consideramos Dörner (2008) quando este refere que o aumento da descentralização da atuação do Estado tem potenciando a criação de novos mecanismos e modalidades de participação cívica. A partir do trabalho deste autor (Dörner, 2008), identificamos as tipologias mais citadas que ilustram a diversidade de relações entre o Estado e o terceiro setor. Uma das tipologias (Najam, 2000 in Dörner, 2008) socorre-se de duas dimensões – a concordância de objetivos (fins) e a concordância com estratégias (meios) – para a combinação de diferentes cenários: há cooperação quando há consenso nestas duas dimensões; compromisso, numa vertente de complementaridade, quando existe partilha de objetivos mas não de estratégias e, numa vertente decooptação, quando há ausência de objetivos comuns embora exista concordância em termos de estratégia. A complementaridade converte-se em suplementaridade quando é o próprio terceiro setor a financiar a sua intervenção. A confrontação acontece quando há discordância em ambas as dimensões.
Numa outra abordagem, Coston (1998 in Dörner, 2008) constrói uma escala cuja principal dimensão é a capacidade do Estado em aceitar o pluralismo institucional perante atores não estatais. A escala proposta varia entre a resistência, via neutralidade ou indiferença, e o apoio ativo. Por seu turno, Brinkerhoff (2002 in Dorner, 2008) apresenta uma tipologia com base em duas dimensões: a mutualidade e a identidade organizacional. A tipologia varia entre a parceria real, contratual, extensão e cooptação. Há parceria real quando os atores têm igual oportunidade de influenciar as decisões. Quando um ator tem preponderância no estabelecimento de objetivos mas ao outro ator é-lhe conferida liberdade de participar ou não, estamos perante a relação contratual. Há extensão quando o ator mais fraco não tem capacidade de escolher ou influenciar as decisões. Por fim, a cooptação resulta na capacidade de ator mais forte em interferir e destruir a identidade organizacional do outro.
Young (1999, 2000 in Dorner, 2008) analisa esta relação a partir da suplementaridade (divisão horizontal do trabalho), complementaridade (divisão vertical do trabalho) ou rivalidade. Já os autores Kuhnle e Selle (1992 in Dörner, 2008) concetualizam a relação quanto ao distanciamento dos atores no que concerne à facilidade e frequência da comunicação, e quanto à (in)dependência do terceiro setor, inerente ao nível de controlo ou autonomia (visível nos tipos de acordos de financiamento). O cenário de autonomia separada ocorre num contexto de fraca comunicação e apoio financeiro, e, por conseguinte, não há controlo entre os atores. No cenário de dependência separada, à inexistência de financiamento acresce o caráter unidirecional da comunicação, permitindo maior controlo do Estado. O cenário dedependência integrada aponta para a existência de financiamento mas também do controlo sobre o setor. Por fim, no quadro de autonomia integrada, as organizações do terceiro setor têm um forte apoio financeiro embora não estejam sujeitas a forte controlo/influência do Estado. Os autores defendem a inexistência de um cenário idílico, assumindo que a relação se pauta, necessariamente, pela competitividade e conflito.
Por último, destaca-se a tipologia construída por Kramer et al. (Kramer et al., 1993 in Dörner, 2008) com base em duas dimensões: a provisão financeira e a produção de serviços. Num quadro de governação dominante, é o Estado quem assegura estas dimensões. Num quadro dedominação do terceiro setor, o financiamento e a prestação de serviços são da responsabilidade do setor não estatal. Num cenário de “relacionamento dual”, afere-se uma posição de equidade em termos de financiamento e prestação de serviços. Num cenário derelacionamento colaborativo, o Estado assegura o financiamento e delega a prestação dos serviços. Num cenário de relacionamento de suplementaridade, verifica-se a parceria positiva através da extensão dos serviços públicos por via da disponibilização de serviços similares. Num cenário de relacionamento complementar, há também uma parceria de extensão de serviços, embora estes sejam distintos. Num cenário de relacionamento rival ou de rivalidade, a ação do terceiro setor representa uma alternativa ao serviço público.

3. Narrativas e representações das políticas de apoio ao empreendedorismo social, economia social e terceiro setor

Vejamos, de seguida, qual o posicionamento dos atores-chave entrevistados sobre as políticas de fomento do empreendedorismo social em Portugal e sobre os principais constrangimentos e oportunidades no que concerne às orientações dos programas políticos por eles identificados como sendo as mais importantes no espaço do terceiro setor, economia social e empreendedorismo social. O uso destes diferentes conceitos prende-se com o sentido de identidade e pertença de cada entidade entrevistada face às diversas “famílias” existentes: economia social, terceiro setor, empreendedorismo social, economia solidária, conceitos já descritos no ponto anterior.
Os atores-chave foram selecionados pela importância da sua atuação, ora a título institucional ora individual, sobretudo no espaço do terceiro setor e da economia social mas também no fomento de práticas e iniciativas identificadas como de empreendedorismo social6. Entre os entrevistados institucionais, oito são atores de representação de cúpula setorial tendo em conta as diversas formas jurídicas das organizações que compõem o terceiro setor. A organização D, enquanto cúpula de terceiro nível, as organizações A, B, C, E, F, G, M e a organização H, com atuação ao nível regional e representativas das diferentes famílias de subsetores integrantes do terceiro setor. Acrescentam-se, ainda, as organizações de base, organizações I e J, como centros de investigação e de formação na área do empreendedorismo social; a Organização K, associada à temática da inovação social; a Organização L, enquanto única agência de financiamento do terceiro setor; e a Organização N, enquanto ator- chave na promoção da economia social na área educativa. Acrescentam-se a estes organismos de representação setorial, dois atores-chave de representação da política estatal e dois representantes de programas nacionais: o Programa 1 de combate às desigualdades e discriminações no acesso ao mercado de trabalho; e o Programa 2 de coordenação estratégica e operacional das políticas de combate à pobreza e à exclusão social. Os atores individuais – o informante 1 e o informante 2 – foram entrevistados pela experiência de consultoria na área do empreendedorismo social7. No Quadro 1, encontra-se a caraterização dos entrevistados.

 

 

A análise de conteúdo categorial temática realizada incidiu em dois grandes eixos: por um lado, o reconhecimento, por parte das entidades, das políticas que nos últimos anos têm permitido o desenvolvimento de práticas de empreendedorismo social ou outro conceito que os atores tenham preferido para identificar a missão da sua instituição8 (nomeadamente, economia social, economia solidária, terceiro setor, etc.); e, por outro, entender em que medida as políticas nacionais têm criado obstáculos ou oportunidades aos seus associados ou organizações congéneres. Considerando o primeiro eixo referido atrás, sobre as políticas nacionais, importa referir que apenas dois atores-chave (Organização L e informante 2) desconhecem quaisquer orientações políticas de enquadramento, embora esse desconhecimento não implique a inexistência das mesmas. Contudo, há nove organizações (organizações D, G, H, representante político 1, organizações I, J, K, Programa 1 e organização M) que afirmam o reduzido fomento ou mesmo a inexistência deste tipo de políticas. A título ilustrativo:

“Nos últimos anos, tem havido grandes limitações, sobretudo neste último quadro comunitário, temos sentido fortes limitações ao desenvolvimento da economia social e solidária e à iniciativa dos empreendedores sociais. Este quadro comunitário está muito formatado.” (Organização G)

Porém, nove dos atores-chave denotam conhecimento sobretudo das políticas e orientações mais direcionadas para o seu tipo de organização; posicionamento de autocentramento comum em muitas esferas organizativas. É também de acrescentar que este reconhecimento pode ser sinónimo da crescente visibilidade do terceiro setor (Quintão, 2011), espaço onde a maior parte dos atores atuam.
No que respeita a referências específicas a programas, dois pontos merecem ser retidos: o Programa de Iniciativa Comunitária EQUAL – Portugal (EQUAL) e a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES) foram citados por doze atores-chave. Este padrão de resposta releva a importância do programa EQUAL em Portugal e o seu caráter pioneiro e fundador no que diz respeito a metodologias de intervenção alicerçadas na participação e no envolvimento dos beneficiários com iniciativas específicas em torno da economia social, bem como o destaque a uma entidade de defesa e pressão de interesses acerca da economia social. Vejamos alguns dos excertos referentes ao EQUAL e à CASES:

“Para mim é um erro não tornar os princípios e as metodologias EQUAL transversais a todas as linhas, prioridades e programas políticos. Mas o EQUAL é determinante e foi determinante no desenvolvimento de uma data de iniciativas que hoje eu considero de empreendedorismo social.” (Organização H)

“A CASES apresenta-se como um ator, não é bem público nem privado, é duplo, porque tem cooperantes públicos e privados, pelo menos nos seus estatutos tem lá grandes responsabilidades tanto no fomento da economia social como na questão do micro crédito.” (Programa Político 1)

Outro programa presente em 18% das entrevistas foi o Quadro Estratégico de Referência Nacional 2007-2013 (QREN). Sendo o quadro estratégico de referência nacional até 2013, o QREN é mais do que um programa específico, visto que se apresenta como um conjunto de possibilidades de financiamento que sustentaram vários programas e setores nos últimos anos. Neste ponto, assume especial relevância o Programa Operacional Temático Potencial Humano 2007-2013 (POPH) e em particular os seguintes eixos: Eixo Prioritário 5 – Apoio ao Empreendedorismo e à Transição para a Vida Ativa; e o Eixo Prioritário 6 – Cidadania, Inclusão e Desenvolvimento Social. Outros programas, atores e iniciativas foram também mencionados, embora com menor frequência, de onde podemos incluir o Programa Indicativo de Cooperação (PIC), o Conselho Nacional para a Economia Social (CNES), o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Economia Social (PADES), o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), o Programa Comunitário para o Emprego e a Solidariedade Social (PROGRESS), o Programa Escolhas, entre outros. Há ainda a destacar que o grau de familiarização com os instrumentos políticos pode antever dinâmicas de maior proximidade com instituições da tutela, constituindo-se esta proximidade como um fator decisivo para a obtenção desse conhecimento. Uma vez que estamos perante instituições de representação de cúpula, representantes de programas políticos e de política estatal seria expetável esta maior sensibilidade perante os instrumentos de política.

“Tem havido uma relação muito próxima das ONGD9 com o Ministério da Tutela e com as instituições da tutela, têm vindo a ser definidos uma série de mecanismos legais e instrumentos operacionais e de financiamento e as ONGD têm vindo a profissionalizar-se.” (Organização A)

Do que foi dito, depreende-se que quase metade dos entrevistados admite o reduzido ou o inexistente incremento do empreendedorismo social embora, na mesma proporção, se reconheçam políticas na sua área concreta de intervenção.
Olhando agora para os obstáculos que as políticas representam para as entidades, deduz-se que é no campo político e no campo legal que mais constrangimentos existem. No campo legal é a insuficiente legislação que surge como principal obstáculo: onze dos atores chave (organizações B, F, H, representante político 1, organizações I, J, K, Programa 2, organizações M, N, informante 1) indicam a ausência ou o insuficiente enquadramento legal do terceiro setor e da economia social, a falta de códigos e estatutos adequados às especificidades do setor, evidenciando ainda um desconhecimento por parte dos legisladores dos modos de funcionamento destas instituições (Couto et al., 2012).

“Não haver uma legislação específica para este setor. Se não considerar este setor como um setor de facto, mesmo estando definido na Constituição, é muito complicado termos políticas públicas desenvolvidas que possam potenciar o seu crescimento e as organizações do terceiro setor. Tirando algumas delas com maior impacto político e maior visibilidade, são considerados como uma extensão do Estado na prestação dos serviços sociais. E isto para mim é o grande entrave para o desenvolvimento das respostas sociais e das organizações em Portugal.” (Organização H)

O reduzido ou o inadequado enquadramento político-legal acompanhado da indefinição do papel do terceiro setor têm permitido uma diminuta proteção económica- fiscal, nomeadamente no tocante à não isenção fiscal (aflorado por quatro entrevistados) o que compromete o papel destas organizações:

“Nós aqui em Portugal, na última reforma do código contributivo demos mais uma machadazinha no terceiro setor ao aumentar os impostos e ao acabar com a diferenciação positiva das cooperativas ficamos ainda menos concorrenciais do que já éramos.” (Organização L)

O caráter avulso e fragmentado das orientações programáticas e da legislação parece refletir a ambiguidade dos papéis e funções dos atores no campo político. Entre as principais condicionantes, há uma frequente enunciação do reduzido diálogo entre Estado e as organizações do terceiro setor, edificando barreiras ao incremento e ao investimento no empreendedorismo social e no terceiro setor em geral. As dimensões da frequência da comunicação e da autonomia económica são apontadas pelo modelo de Kuhnle e Selle (1992 in Dörner, 2008) para a determinação do grau de distanciamento e controlo entre os dois atores analisados. A comunicação reduzida ou unidirecional e a dependência financeira face ao Estado sugerem o cenário da dependência integrada, do controlo do Estado face ao terceiro setor. Neste sentido atente-se aos doze atores-chave (organizações A, B, C, D, F, H, Representante político 2, organizações J, K, Programa 2, organizações M e N) que referem a falta de diálogo, a secundarização e a indefinição do papel do terceiro setor por parte do Estado.

“Não há diálogo (…) por várias razões, por culpa do Estado, por culpa das organizações. Isto aqui é partilhado. As relações entre os Estados e as organizações em todas as partes do mundo (…) não são um processo estável.” (Representante político 2)

“O terceiro setor, entendido como espaço económico forte e poderoso, gerador de emprego, gerador de riqueza, nunca foi valorizado e, portanto, também não é aliciante para as pessoas.” (Organização F)

É importante atentar no pressuposto identificado pelo primeiro excerto relativo às relações não estáveis entre Estado e organizações, embora a responsabilidade não seja atribuída exclusivamente ao primeiro. A competitividade e conflito, inerente às relações entre os atores, vão de encontro ao postulado por Kuhnle e Selle (1992 in Dörner, 2008). A Organização B retoma a indefinição do papel do Estado perante o terceiro setor e a natureza do relacionamento entre atores. O Estado tem de decidir o que quer fazer, é o repto lançado. Parece ser necessário que o Estado assuma um compromisso entre os cenários identificados por Najam (2000 in Dörner, 2008) da complementaridade, da suplementaridade ou da cooptação ou, tal como é referido por Kramer et al. (1993 in Dörner, 2008), do relacionamento colaborativo, de suplementaridade ou de complementaridade. Pretende-se que o setor seja uma extensão dos serviços e bens do Estado, que o substitua ou que confira serviços distintos? E qual o grau de autonomia expetável de acordo com as funções intrínsecas aos diferentes cenários? As organizações parecem não ter uma interpretação consensual destas questões. A aprofundar o distanciamento provocado pela reduzida comunicação, a não inclusão das organizações de forma ativa na formulação e discussão de políticas indicia novamente a secundarização e a ausência de reconhecimento na prática destas entidades no sentido da melhoria e da adequação à realidade dos próprios projetos e políticas afetas ao terceiro setor.

“Implementamos, percebemos os obstáculos dessas medidas, percebemos como podemos melhorar, e depois todo esse know-how nem sempre é aproveitado pelos políticos.” (Organização M)

“Nós sentimos que quando somos chamados já está tudo definido, por muito que se diga ou se deixe dizer, aquilo já está formatado, conseguimos ajustar uma ou outra coisa, mas muitas das vezes somos informados só para validar.” (Organização A)

“Não tem havido espaço para a constituição de equipas, de momentos de reflexão com os técnicos e com a população em geral. As medidas são muito institucionais.” (Programa 2)

Outra das dimensões mais importantes no processo de articulação remete para o grau de autonomia do setor, mensurável pelos modelos de financiamento. Oito dos entrevistados referem a ausência de diversificação de fontes de financiamento e a escassez de recursos:

“Tem havido grandes limitações (…) Este quadro comunitário está muito formatado e se as pessoas não têm projetos e ideias que se encaixem rigorosamente nos programas é muito difícil. É muito difícil desenharmos projetos que respondam ao mesmo tempo às necessidades do território e às exigências dos programas.” (Organização G)

“A ideia é obrigar as organizações a autonomizar-se do Estado mas por outro lado não podes desenvolver negócios ou atividades paralelas porque tens de fazer isto. Estão a deitar por terra o que poderia ser a autonomização das organizações.” (Organização H)

As dificuldades de financiamento oscilam entre a rigidez dos programas e a contradição entre o objetivo de autonomizar o terceiro setor e os obstáculos à sua concretização, numa alusão às próprias tensões entre a missão das organizações sociais e a necessidade do seu autofinanciamento. Parece-nos haver a ideia generalizada de que muitas destas instituições apresentam um papel de substituição do Estado e que, em troca disso, deveriam ter condições específicas na capacidade de intervenção. Novamente o que está em questão é o próprio papel do Estado e a função de cada uma das entidades. É de referir a espiral da dependência patente nas afirmações do representante político 2 e da Organização G. A dificuldade em recorrer a outras fontes financeiras resulta da pouca profissionalização dos quadros a que subjaz, por sua vez, a escassez de recursos e subsequente incapacidade das organizações em “manter quadros”:

“Há um mercado altamente competitivo a nível internacional onde Portugal se inclui, com verbas muito escassas porque há uma grande quantidade e diversidade de organizações e o que nós assistimos é que há, de facto, a capacidade de um grupo restrito de organizações portuguesas conseguirem responder aquilo que são os critérios internacionais de financiamento (…) as nossas organizações, a maior parte delas, têm uma grande dificuldade em manter quadros que lhes permita depois haver este salto para a profissionalização.” (Representante político 2)

É ainda de salientar, entre os constrangimentos identificados, a ausência de um sistema de avaliação e monitorização das instituições e seus impactos (organizações C, E, Representante político 1, Organização K e Informante 1). Esta parece-nos uma dimensão de posicionamento muito importante, pois alerta claramente para a necessidade de uma avaliação de desempenho, instrumento fundamental de gestão das relações sociais institucionais. A par da vulnerabilidade do setor resultante destes condicionalismos inerentes ao Estado português, e transposta para o inexistente ou o desadequado enquadramento político-legal, acresce a própria inconsistência do setor, no que toca à definição comum e interna de objetivos e estratégias.

“Há quem defenda que (…) o terceiro setor, devem ter as duas vertentes, deve ter respostas consideradas dentro da área social e outras dentro da área não-social, ou seja, se já visarem o lucro, dentro de outras regras. Apesar disso é difícil conciliar dentro de uma instituição cujas contas são comuns não é?” (Organização B)

Voltando-nos agora para as oportunidades conferidas pelas políticas de desenvolvimento do empreendedorismo social, da economia social e do terceiro setor, constatou-se uma maior frequência no registo de propostas de cenários desejáveis, ou seja, objetivos ou aspetos que as organizações ainda não viram concretizados. Como iremos verificar, há uma enorme diversidade de expetativas intrínseca à própria heterogeneidade do setor. Entre os principais aspetos inventariados, salientamos: o apelo ao enquadramento legal do negócio social e ao fomento de iniciativas locais (Organização L, informante 1); a revisão da lei das ONGD (Organização A); a maior capacitação da sociedade civil e a promoção de parcerias entre as organizações e o setor privado. Neste cenário apontado pelo Representante 2, as organizações seriam, idealmente, sustentáveis e o Estado apresentar-se-ia enquanto facilitador na promoção de parcerias ou um parceiro aquando de interesses consonantes com o setor numa lógica de compromisso, de complementaridade ou de suplementaridade (Najam, 2000 in Dörner, 2008).
Em conexão com os constrangimentos económicos, a Organização G faz a alusão a um cenário de maior flexibilidade dos programas de apoio financeiro, por forma à compatibilidade com as necessidades territoriais, assim como ao alargamento do período de financiamento, entre 5 a 10 anos, garantindo uma maior estabilidade. Acrescenta-se, ainda, o necessário reconhecimento político do papel do empreendedor social e a potencialidade do fomento de parcerias público-privadas, no sentido da dinamização do terceiro setor, tal como o Representante político 2 também sugerira. A Organização I sugere projetos de lei de criação de empresas sociais. O papel do Estado, novamente enquanto facilitador, passaria por criar condições e desbloquear, em termos legislativos, o investimento e o acesso a fontes de financiamento. A Organização H propõe uma secretaria de Estado para o setor social e a partilha de conhecimento de forma à criação de escala. Para a Organização N dever-se-ia distinguir as entidades com prática social que conferem recursos e/ou serviços ao próprio Estado, dando primazia àquelas cujos princípios respeitam a economia social, mais numa lógica de extensão e substituição das funções estatais. Para o Representante político 1, o fomento passa por apoios a projetos, nomeadamente as incubadoras, linhas de crédito e, sobretudo, o controlo e avaliação dos seus impactos. Refere-se, ainda, a aposta na descentralização, na capacitação das comunidades e nas dinâmicas locais, cenário também elencado pelo Programa 1. Este representante lembra ainda a sustentabilidade do setor, as parcerias e redes, o apoio aos empreendedores e ao micro crédito. A Organização K considera fundamental a criação de um Departamento de Inovação Social que defina um plano estratégico de forma a reformar as entidades e incitar a regulação das incubadoras sociais. Por fim, na Organização J, apela-se à melhoria dos modelos de gestão das organizações da economia social.

4. Pontos de ancoragem dos discursos acerca do empreendedorismo social em Portugal: pistas conclusivas

Temos verificado ao longo desta abordagem que a heterogeneidade do terceiro setor se coteja não só em função dos diferentes modelos sociais, mas também enquanto produto sócio-histórico específico destes, evidenciando a importância das representações sociais que se vão produzindo. Sistematizando as principais ideias acerca dos discursos dos atores-chave das organizações do terceiro setor português denota-se uma ambivalência acerca do conhecimento das políticas e orientações programáticas de empreendedorismo social. Dois dos entrevistados, ligados a entidades de fomento ao empreendedorismo social afirmam desconhecer políticas e legislação no âmbito deste fenómeno. A estes acrescem mais nove entrevistados que consideram inexistentes ou reduzidas as políticas de fomento ao empreendedorismo social. Por outro lado, nove dos entrevistados identificam políticas direcionadas para as suas especificidades organizativas. Importa referir que encontramos mais organizações de cúpula neste último grupo enquanto as organizações de investigação e formação ressaltam a irrelevância e a reduzida legislação inerente ao fomento do empreendedorismo social. Isto poderá indicar uma maior proximidade destas organizações à temática em si e à afirmação categórica da inexistência de políticas neste âmbito em concreto. Por seu turno, as organizações que apontam as políticas direcionadas para o seu campo de atuação, sobretudo terceiro setor e economia social, tendem a referir a legislação com impacto nas suas organizações. Dentro deste conhecimento merece especial destaque o EQUAL e a CASES, respetivamente um programa e uma entidade que apostou e aposta em iniciativas diretamente vocacionadas para a economia social.
No cômputo das representações acerca do Estado e do terceiro setor no que diz respeito a orientações e instrumentos de política, e situando-nos num segundo eixo de síntese, é possível identificar um conjunto de obstáculos causadores de entropia nas relações entre ambos. Em termos de tipificação podemos identificar obstáculos legais relacionados com a ausência e o insuficiente enquadramento legal do terceiro setor e da economia social, a falta de adaptabilidade de códigos e estatutos face às especificidades do setor e a diminuta proteção económica-fiscal. Estes obstáculos são referidos por treze entrevistados e se tivermos em conta a identificação das organizações de acordo com os conceitos de terceiro setor, economia social e economia solidária, verificamos que a esmagadora maioria das organizações que se identificam com a economia social e a economia solidária estão aqui representadas, podendo inferir-se o papel de complementaridade destas entidades face às funções estatais, papel que não está a ser legitimado em termos de enquadramento legal. O caráter avulso e fragmentado das orientações políticas parece denotar alguma apatia ou resistência face ao setor que, nos discursos dos entrevistados, se deteta por via da constatação do reduzido diálogo e comunicação entre o Estado e as organizações do terceiro setor em geral. Como vimos com o modelo de Kuhnle e Selle (1992 in Dorner, 2008), a comunicação ou ausência dela apresenta-se como uma dimensão fundamental no estabelecimento do grau de distanciamento da relação entre os atores. O facto de doze entrevistados, seis dos quais provenientes de organizações de cúpula, enfatizarem a secundarização e/ou indefinição do papel do terceiro setor por parte do Estado remete-nos para cenários de maior controlo estatal e da menor autonomia do setor, atestado também pelo obstáculo da dependência económica.
As questões financeiras, concretizadas na ausência de diversificação de fontes de financiamento e na escassez quotidiana de recursos com que estas instituições se deparam, estão patentes dos discursos de oito entrevistados. A conjugação da ausência de diálogo com a dependência económica aponta para a tipologia da dependência integrada (Kuhnle e Selle, 1992 in Dorner, 2008), mas também para os modelos de resistência por via da neutralidade e da indiferença estatal (Coston 1998 in Dorner, 2008) e da relação de extensão (Brinkerhoff, 2002 in Dorner, 2008), onde aqui o terceiro setor se apresenta como o elemento mais fraco e com reduzida capacidade para escolher ou influenciar as decisões do poder estatal. Embora o terceiro setor tenha vindo a crescer e a ganhar destaque, a sua inconsistência no que toca à definição comum e interna de objetivos, visível na própria panóplia de “famílias identitárias”, a limitação da sua autonomia e do seu campo de atuação têm representado obstáculos ao seu pleno desenvolvimento.
Ainda que com carater exploratório, estes resultados apontam para a necessidade de modelos de desenvolvimento económico e social alternativos, sobretudo tendo em conta o panorama atual. Urge identificar os papéis consagrados às instituições do terceiro setor e fomentar o diálogo e a sua participação no processo de reflexão, conceção e concretização das decisões que afetam a sua autonomia e os seus campos de atuação. Parece-nos ainda que um novo modelo tem de assentar num crescente protagonismo de atores institucionais de base local, dotados de conhecimento e plasticidade suficientes para encetarem estratégias de inclusão social mais eficazes no quadro dos novos constrangimentos. Sublinhamos que o que se pretende aqui é traçar um quadro geral de tendências e de interpretação que não buscou a exaustividade, lembrando-nos sempre de Boaventura Sousa Santos quando refere que: “A questão central é a de determinar o papel do terceiro setor nas políticas públicas e (...) tal depende tanto do próprio terceiro setor como do Estado, como ainda do contexto internacional em que um e outro operam, da cultura política dominante, e das formas e níveis de mobilização e de organização social. Tal papel pode limitar-se à execução de políticas públicas, mas pode também envolver a escolha das políticas e, em última instância, a formação da própria agenda política e pode ser exercido tanto por via da complementaridade como por via da confrontação com o Estado” (Santos, 1999: 34).

 

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Legislação e outros documentos

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PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS (2011), Programa do XIX Governo Constitucional português , (Consult. a 06.08.2012). Disponível em: http://www.portugal.gov.pt/media/130538/programa_gc19.pdf

 

Artigo recebido a 6 de março de 2013. Publicação aprovada a 18 de maio de 2013.

 

Notas

1 Socióloga. Doutorada. Docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Investigadora do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (ISFLUP) (Porto, Portugal). Endereço de correspondência: Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Gabinete 251, Torre B – Piso 2, Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: pguerra@letras.up.pt

2 Socióloga. Doutoranda. Investigadora do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (ISFLUP) (Porto, Portugal). E-mail: mosantos@letras.up.pt

3 Este artigo foi realizado sob financiamento do FEDER através do COMPETE – Programa Operacional via Fundação de Ciência e Tecnologia no âmbito do Projeto Empreendedorismo Social em Portugal: as políticas, as organizações e as práticas de educação/formação (PTDC/CS-SOC/100186/2008), liderado pelo ISFLUP e desenvolvido em parceria com a A3S – Associação para o Empreendedorismo Social e a Sustentabilidade do Terceiro Setor – e com o Dinâmia/CET-IUL, Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território, do ISCTE-IUL.

4 Para consulta detalhada sobre as dimensões ver Parente, Lopes e Marcos (2012).

5 CIRIEC – Centre International de Recherches et d'Information sur l'Economie Publique, Sociale et Coopérative.

6 Para descrição detalhada dos atores chave e da sua seleção ver Parente et al. (2012).

7 Para descrição detalhada dos atores chave e da sua seleção ver Parente et al. (2012).

8 Importa explicitar que apenas dois entrevistados manifestaram o desconhecimento do conceito de empreendedorismo social, seis acentuaram a sua indefinição teórica e oito o seu caráter recente. É ainda de referir que quatro das entidades prefere o conceito de economia social para identificar a missão das suas instituições, três identifica-se com o conceito de economia solidária, um com o de terceiro setor e um com o de terceiro sistema (Parente et al., 2012).

9 ONGD – Organizações não Governamentais de Desenvolvimento.

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