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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.26  Porto dez. 2013

 

ARTIGOS

Carreira, arte feminista e mecenato: uma abordagem à dimensão económica do circuito artístico principal sob uma perspetiva de género1

Career, feminist art and patronage: an approach to the economic dimension of the art circuit in a gender perspective

Carrière, l'art féministe et patronage: une approche à la dimension économique du parcours d'art dans une perspective de genre

Profesión, arte feminista y el patronato: una aproximación a la dimensión económica del circuito de arte bajo una perspectiva de género

Rui Pedro Fonseca2

Universidade do Porto


 

RESUMO
Este artigo foca as condições de produção artística sob uma perspetiva de género, concretamente os custos de produção, as estratégias e disposições essenciais necessárias para que artistas (bem como artistas feministas) atinjam posições privilegiadas no circuito artístico principal. Também se abordam, sob uma perspetiva de género, alguns dos critérios de gosto dos agentes que ocupam as posições de topo do mercado da arte, bem como se analisa o ranking da produção artística mais bem cotada à escala mundial. Lança-se, ainda, uma leitura sobre a escassa feminização nas carreiras artísticas em postos de topo do campo da arte.

Palavras-chave : Dimensão; Económica; Arte; Género.


 

ABSTRACT
This article focuses on the conditions of artistic production in a gender perspective, in particular the production costs, the strategies and basic necessary provisions for artists (as well as feminist artists) achieve privileged positions in the main art circuit. Further, under a gender perspective, we address some of the criteria of taste of the agents that occupy the top positions of the art market as well as analyzing the ranking of the best artistic production listed worldwide. It also glances a reading on the low feminization of artistic careers in the top of art field.

Keywords : Dimension; Economic; Art; Gender.


 

RESUMÉ
Cet article se concentre sur les conditions de la production artistique dans une perspective de genre, en particulier les coûts de production, les stratégies et les dispositions de base nécessaires pour les artistes (ainsi que des artistes féministes) parvenir à des positions privilégiées dans le circuit de l'art. En vertu d'une perspective de genre, nous nous adressons à certains des critères de goût des agents qui occupent les principaux positions de marché de l'art ainsi que l'analyse du classement de la meilleure production artistique énumérés dans une escale mondiale. Se conduit une lecture sur la faible féminisation des carrières artistiques dans du domaine de l'art.

Mots-clés : Dimension; Économique; Art; Genre.


 

RESUMEN
Este artículo se centra en las condiciones de producción artística en una perspectiva de género, en particular los costes de producción, las estrategias y las disposiciones básicas necesarias para que los/as artistas (así como artistas feministas) alcancen posiciones de privilegio en el circuito principal del arte. Además, bajo una perspectiva de género, si enfoca a algunos de los criterios de gusto de los agentes que ocupan las primeras posiciones del mercado del arte, así como si analiza la clasificación de la mejor producción artística en una escala mundial. Finalmente, si hace una lectura sobre la baja feminización de las profesiones artísticas en el circuito principal del arte.

Palabras clave : Dimensión; Económica; Arte; Género.


 

1. Custos de produção e o investimento

Os custos de produção de obras de arte podem variar entre o investimento de montantes pouco exigentes (eg.: como a compra de papel, carvão, barro, gesso, etc.) ou podem implicar gastos bem mais volumosos que requeiram materiais mais caros ou que exijam a contratação de colaboradores/executantes ou o recurso a processos técnicos e equipas especializadas (Cf. Melo, 1994: 35). Ora, um/a artista que não tenha bolsas ou fontes de rendimento dificilmente poderá materializar um projeto cujos custos de produção excedam as suas possibilidades.
A luta de um/a artista para conseguir materializar a sua ideia implica, por vezes, o investimento de montantes tão elevados que o autofinanciamento derivado de venda de obras pode não ser suficiente para adquirir materiais demasiado custosos, equipamentos, colaboradores/as e/ou espaços. Há quem consiga patrocínios, outros/as vão vendendo as suas peças, outros/as adquirem empregos dentro ou fora do campo da arte, outros/as formam associações ou grupos para, na maior parte dos casos, obterem uma necessária visibilidade para efeitos de consagração, etc.. Independentemente das estratégias utilizadas, os/as artistas permanecem suficientemente orientados/as em relação às exigências do campo da arte para tentarem, dentro das suas possibilidades, viver do seu sistema de distribuição e expor a sua obra ao público. Contudo, assiste-se a uma notória “discrepância entre as credenciais e as recompensas – alta qualificação entre artistas, e salários baixos ou muito díspares e desregulamentados em várias áreas.” (Conde, 2009: 7)
Ser artista é ser investidor/a e titular de recompensas económicas e simbólicas, o que implica ostentar um capital social específico e aceder a diferentes formas de poder legitimador: salários, instituições, credenciais educacionais, conhecimentos, consciência dos meios para almejar determinados fins, etc. No entanto, há que mencionar que são poucos/as os/as artistas que atingem o cume de uma carreira. A profissão de artista acarreta vulnerabilidade resultante, por exemplo: dos pagamentos ininterruptos (quando existem) e que muitas vezes são baixos3; da falta de contratos de trabalho; da submissão a formas de poder simbólico; da recusa dos gatekeepers em permitir a participação em exposições coletivas ou individuais; da recusa em expor em concursos de arte, galerias, bienais, etc.

2. O culto do individualismo como condição para a integração de um/a artista no mercado concorrencial

O sistema da arte é altamente hierarquizado, logo a partir da extensa e variável valorização das obras, de algumas que simplesmente não o são, a outras que são cotadas com montantes meramente simbólicos, ou outras que atingem cifras de centenas de milhões. Quando mais elitista é o mercado da arte, mais potencia a cotização de determinado/a artista, e que os valores económicos das obras tenham um impacto substancialmente maior que o seu valor estético ou simbólico (Crane, 1992: 144).
O estabelecimento e a ascensão de uma carreira de artista implicam, em regra, a existência de relações pessoais e a obtenção dos “conhecimentos” necessários dentro do sistema da arte – marcadamente hierarquizado. No topo da hierarquia encontram-se os/as artistas que atingem o estrelato, cuja ascensão normalmente não tem retorno – são estes/as que, normalmente, ostentam maior capital cultural/social, assim como os/as que obtêm as remunerações mais elevadas. Nas zonas intermédias da pirâmide, alinham-se estratos sucessivamente mais reduzidos e permanentemente atravessados por deslocações ascendentes e descendentes, com recaídas, recuperações e estabilizações provisórias ou definitivas (Cf. Melo, 1994: 105). Em qualquer dos estratos da hierarquia, as lutas pelas posições têm lugar entre os pares, quer sejam artistas ou outros agentes culturais.
De acordo com o estudo clássico do mercado da arte de Moulin (1967), os negociantes integram um/a artista na economia social transformando os valores estéticos em valores económicos, o que implica, em termos práticos, a mobilização de outros agentes, instituições e a formação de complexas redes de circulação de capital económico, mas também simbólico, em torno da produção artística. Considerando casos de artistas que atingem o auge de uma carreira de sucesso, cujas obras são distribuídas e referenciadas por museus de arte ou coleções particulares, o mercado da arte significa, para estes casos, um potencial e aliciante lugar de rentabilização económica. Todavia, o mercado de arte não se restringe apenas às obras dos/as consagrados/as, já que também permite a entrada a novos/as artistas que pretendem criar novas dinâmicas comerciais e construir carreira. Aos/às novos/as artistas é-lhes atribuída uma determinada cota, ou seja, um determinado valor por cada obra a ser comercializada, valor que é variável ao longo do percurso artístico do/a autor/a e que normalmente corresponde à cristalização da sua legitimação (Cf. Nóbrega, 2009: s/p).
A possibilidade de qualquer artista integrar o seu trabalho nos mais conceituados museus de arte implica uma tarefa muito árdua e um percurso consistente que incondicionalmente, necessita do acompanhamento de agentes culturais legitimadores (críticos, comissários e/ou galeristas) que estejam já incluídos no circuito e que tenham alcançado reconhecimento suficiente para sugerir a inclusão de trabalho artístico em instituições de prestígio (idem).
Em termos gerais, os/as artistas compreendem a necessidade de utilizar o sistema de mercado da arte para que a sua obra aceda às audiências, o que permite a criação de condições de visibilidade para fins comerciais e/ou a aquisição de capital simbólico que varia de intensidade de acordo com o espaço acolhedor e com os agentes com quem trabalham. Compreendem, desde logo, que a consagração da sua carreira está dependente de uma rede de agentes culturais que detêm poder de influência e de consagração.
As práticas culturais em sociedades avançadas estão instituídas em arenas relativamente autónomas que possuem hierarquias institucionalizadas onde artistas plásticos/as lutam por recursos valorizados, cujas conquistas de lugares geram classificações simbólicas (Cf. Swartz, 1997: 43). Grupos e indivíduos que beneficiem da consecução dos seus interesses, embora na forma desinteressada, obtêm o que Bourdieu designa como capital simbólico. Capital simbólico é “capital negado”; é a reformulação da autoridade carismática que legitima relações de poder ao acentuar as qualidades pessoais das elites como supostamente superiores e naturais (idem). Não só o trabalho artístico, mas o nome do/a autor/a funciona como uma marca comercial, “como signo distintivo” ( idem), tendo, “independentemente da sua vontade, o seu trabalho inserido numa lógica que é a da produção corrente da mercadoria (…).” (Melo, 1994:16, 17) Bourdieu conseguiu demonstrar que existe uma política económica da cultura, que toda a produção cultural é orientada para a recompensa, e que as preferências estilísticas são selecionadas e rejeitadas a partir de normas que são análogas às noções gerais de investimento económico (Cf. Swartz, 1997: 67). As recompensas e as conquistas de várias ordens, de qualquer artista ou agente cultural no âmbito do campo artístico, melhoram determinada posição, pois são conferidoras de várias formas de poder, seja material, cultural, social ou simbólico. Ser artista com sucesso profissional acarreta um contínuo trabalho em torno da construção da reputação, do status, requer conhecimentos e envolvimentos com determinadas personalidades que confiram legitimação/reputação no âmbito do campo – desde os pares, com os quais concorrem, mas sobretudo os agentes culturais.
As carreiras dos/as artistas requerem uma alta dependência das relações interpessoais com estes agentes culturais, relações que usualmente “misturam funcionalidade, afeto e poder, sob a liderança carismática” (Conde, 2009: 18). Para o crítico de arte Alexandre Melo, a projeção de um/a artista depende, sobretudo, das suas próprias capacidades de relacionamento e de integração:

“A divulgação internacional da obra dum artista depende antes de mais do próprio artista, da capacidade que ele tem de se inserir numa rede de relações, de diálogos, de colaborações, de intercâmbios, que torna a sua obra possível no plano internacional” (Melo, 2007: s/p).

O sistema de distribuição da produção artística é gerido por intermediários especializados que criam ordem e asseguraram a acessibilidade do seu próprio negócio através da criação de relações de ordem interpessoal e institucional que possibilitam a criação de condições estáveis de circulação das obras. Para que determinado/a artista alcance uma posição privilegiada dentro do campo, é necessária uma gradual promoção que se dá através do reconhecimento de agentes culturais – comentadores, galeristas, pessoas da classe política e/ou económica, da comunicação social especializada, entre outros. São estes agentes que impulsionam a intervenção mediática e que permitem que a obra obtenha uma mais intensa velocidade de difusão de informações.
O reconhecimento de qualquer artista numa rede de relações institucionais implica a distinção da sua obra artística, o que requer um trabalho pela singularização, muitas vezes pelo recurso à sublimação, ie.: “o/a artista X que tem vocação e talento natural”; “aquele/a que nasceu para ser artista”, “o/a carismático/a artista…”, etc..4 O individualismo resultante da alta competitividade, que tem lugar na generalidade dos setores laborais, é também um fenómeno que inere ao campo artístico, por vezes ainda de forma mais exacerbada. O cultivo do individualismo gira em torno da autoria e da necessária autenticidade conferida pela assinatura ou pelo imperativo de produzir arte que se distinga pela sua unicidade.

 

 

O/A artista carismático/a, que possui o especial “dom” em ser criador/a, proporciona um duplo reforço: de si e, por acréscimo, do seu trabalho. A sua valorização pessoal é, assim, intrínseca à valorização da obra, ao seu valor estético, intelectual, sobretudo mercantil. A multiplicação dos mediuns artísticos, as milionárias valorizações económicas que muitas vezes são anexas a determinadas obras, a sua reprodutibilidade, mas também o prestígio da figura de um/a artista jogam, em conjunto, um papel importante conferidor ao que Walter Benjamim viria a denominar de “arte aurática” que é realizada apenas por artistas reconhecidos/as, que muitas das vezes adquirem estatuto e fama.
Artistas famosos/as são aqueles/as cujas obras, compradores, exibidores, intermediários e comentadores atuam necessariamente num quadro internacional (Cf. Melo, 1994: 47). Estes/as artistas, para além de manterem prestígio dentro do campo, particularmente entre investidores e outros especialistas, são muitas vezes reconhecidos entre grandes audiências. São artistas que gozam de uma situação privilegiada devido ao facto de o seu trabalho ser apoiado, promovido e comentado com alguma intensidade por agentes culturais que também ocupam posições privilegiadas.
A luta por produzir uma obra de arte, uma criação definitiva que possa encontrar um local único no mercado, implica sempre circunstâncias competitivas e envolve um esforço individual que gira em torno da sua produção e legitimação. A distribuição da produção e o consumo da arte estão dependentes de um circuito cuja lógica implica o investimento de dinheiro e a necessidade de obtenção de lucros dentro de um mercado que requer a inovação, a diversificação e a originalidade, por vezes, alguma egolatria e subjetivismo como armas numa competição entre artistas, agentes e instituições que possuem um sentimento de luta pela existência material, pelo sucesso, pela influência e pelo poder. Ser artista implica a sujeição a um mercado concorrencial onde a competição com os pares é assaz feroz
5, onde qualquer um/a fica sujeito/a à obrigatoriedade de produzir arte que surpreenda e que surja como novidade dentro do circuito, num tempo e contextos que, de acordo com Pierre Bourdieu, assentaram num processo de “institucionalização da anomia”.
Por convenção, o efeito “novidade” surge no campo da arte como uma estratégia contra a saturação do mercado; sendo que, como refere Maria de Lourdes Lima dos Santos, “a novidade torna-se numa repetição, numa moda que precisa de combinar a série com a novidade” (Lima dos Santos, 1994: 131, 132).
Embora alguma da arte avant-garde, em si inovadora, num período demarcado como modernismo, inclua alguma produção feminista e outros tipos que se definam como socialmente críticos, o termo em si engloba toda a arte que foi/é essencialmente desafiadora das convenções artísticas estabelecidas e legitimadas pelas instituições artísticas (estilos, formas, suportes, técnicas),6 incluindo escolas e museus. Contudo, correntemente, a novidade absoluta não deixa de ser uma improbabilidade face à saturação dos paradigmas da criatividade que, em si, encerra um caráter demasiadamente banal, ainda que seja demasiadamente valorizada.

3. A produção artística (feminista) sob a tutela do mecenato. Uma abordagem à dimensão económica

Previamente resultantes de avaliações e revalorizações, a história da arte tende a focar como objeto de estudo as tendências artísticas, os/as artistas e os acontecimentos que vão de encontro ou, no limite, que não chocam com os interesses das camadas sociais mais influentes. Os seus processos de interpretação e de avaliação tendem a refletir o desenvolvimento das escolas e a consagrar o gosto do patronato sublinhando a sua influência na configuração do legado de produção cultural. Consequentemente, esta valorização contínua do gosto, previamente estabelecido pela história da arte, suporta os interesses dos investidores, na medida em que consolida a sua posição/status no próprio campo, perante outros agentes económicos e perante os próprios públicos.
Para além do culto sagrado que as consignam, as obras de arte representam um atrativo para determinadas empresas e alguns negociantes que investem, normalmente sob a orientação de especialistas em arte, somas valiosas que geralmente viabilizam ativos financeiros, para além dos simbólicos. São investimentos que podem ser subjetivos, mas efetivamente lucrativos, estando sujeitos à valorização especulativa que é feita, por exemplo, em leilões, em torno de obras artísticas. Eg.: no leilão de arte moderna e impressionista da Christie’s (em 2008) vendia-se então o Monet mais caro de sempre por 51,6 milhões de euros. Nessa mesma sessão o valor total do leilão elevara-se para 212,3 milhões de euros. Mais recentemente, um outro leilão de arte contemporânea ascendeu a 228 milhões de euros, com a venda do “Three Studies for a Self-Portrait”, de Francis Bacon (Cf. Marques, 2008: s/p). Mesmo em plena crise económica e financeira, o mercado artístico não cessa de crescer porque, de acordo com Pedro Mesquita da Cunha, diretor e fundador da leiloeira portuguesa Sala Branca, “é um bom refúgio para quem tem liquidez e quer investir”, além de que revela que as classes mais altas estão efetivamente mais ricas. No que respeita aos “gostos”, Pedro Mesquita Cunha refere que o mercado está “mais educado” porque aos poucos vai-se colocando a hipótese de que pode “leiloar uma instalação” (idem). Eis um critério de gosto que subjaz que a forma/medium é mais valorizada que o conteúdo.
A arte começou a ser considerada como investimento no início da década de 1980. Durante grande parte do século XX eram apreciados “os seus méritos estéticos”, havendo “poucos indivíduos (na maioria corretores e leiloeiras) que olhavam para a arte como uma oportunidade de investimento” – recorda Iain Robertson. “Dividendo estético” era o termo usado para descrever o prazer de possuir uma obra de arte (idem).
Ter a capacidade de investir em arte consagrada implica pertencer a uma classe social economicamente elevada e ser capaz de adquirir conhecimentos substanciais das convenções que estruturam a produção da “arte erudita”, de acordo com os parâmetros oficiais. É uma aquisição de conhecimentos que não implica necessariamente um competente sistema de referências, ou seja – de saberes ligados à história da arte, tendências estilísticas7, ou aos discursos artísticos. Este tipo de conhecimentos é normalmente assegurado por críticos, curadores, ou por outros mediadores culturais que, algumas das vezes, assessoram os investidores. Só os/as artistas mais consagrados/as conseguem que a sua obra ascenda a uma valorização económica que atinge cifras por vezes milionárias, o que torna alguns/mas deles/as em marcos cuja referência histórica se torna, normalmente, irreversível. É limitado o número de artistas que entram neste circuito restrito, e quando o alcançam convertem-se em indicadores sobre as procuras das principais tendências, estilos, e nomes que atraem colecionadores e outros tipos de investidores. As boas informações que estes agentes adquirem sobre o objeto artístico traduzem-se em perceber se determinada obra pode garantir vantagens comerciais, o que implica o que comumente se designa de “olho para o negócio”. O “olho” ou o “ faro” são fatores sistematicamente evocados por galeristas ou colecionadores famosos quando tentam explicar o que os levou a apostar em nomes desconhecidos e que, entretanto, se tornam famosos (Cf. Melo, 1994: 18). A aposta em determinados artistas não se trata de uma ciência exata, mas pode ter propósitos específicos. As escolhas artísticas podem ser feitas e justificadas como exercícios que sustentam a construção de imagens corporativistas que são usualmente conservadoras e feitas para produzirem um efeito positivo num grande número de pessoas. Atualmente, empresas multinacionais, bancos, seguradoras, entre outras, assumem o papel de serem as grandes contribuidoras financeiras para as artes, apresentando uma particular tendência em apoiar programas que reflitam os interesses e gostos de uma comunidade local que a própria multinacional tenta influenciar (Cf. Crane, 1992: 151). Note-se, a título exemplificativo, o contexto norte-americano onde algumas dessas empresas, como aExxon ou a Mobil, que não só apoiam extensivamente as artes, como publicitam os seus serviços de amparo em jornais como, por exemplo, o New York Times (idem: 152).
São empresas que abarcam uma missão de criar boas relações com os públicos ou, no limite, de procurar que não existam choques ideológicos derivados de obras que exibem. Em alguns casos, o inanciamento pode ainda ser usado como uma forma de marketing, ainda que indireto, de determinadas ideias (estilo de vida, produtos, serviços) que sirvam os interesses da empresa. Consequentemente, a arte pode ter a utilidade de ostentar um caráter publicitário ao representar tendencialmente determinadas visões do mundo, de reconhecer determinados padrões sociais de valor e critérios de gosto. Nesta política cultural, a arte surge como produto que serve sobretudo funções de “decorativismo institucional” (Seabra, 2008: s/p), o que subjaz que este tipo de apoios empresariais servem os próprios interesses corporativos, não os interesses de determinada minoria, como os direitos de mulheres patentes numa qualquer obra feminista.
Os mecenas de primeira linha, que comummente atuam no topo da estrutura do campo da arte, encarnam com muita frequência esse papel de utilizar a arte como suporte decorativo dos próprios edifícios e como estratégia de autopromoção dentro do mundo empresarial. A entrada no mercado da arte por parte de um mecenas equivale a um acesso ao status em que “Rockefellers e Guggenheims usam os seus recursos económicos e sociais para erguerem monumentos a eles próprios, em forma de grandes museus de arte contemporânea” (Becker, 1994: 82). As motivações de um mecenas em apoiar e rodear-se de arte podem ser ilustradas a partir destas citações recolhidas por Hans Haacke:

“A minha apreciação e prazer da arte são estéticos em vez de intelectuais. Não estou mesmo preocupado com o que o artista diz; não é uma operação intelectual – é aquilo que sinto.” – Nelson Rockefeller

“O apoio da EXXON serve as artes como um lubrificante social. E se o negócio continua nas grandes cidades, precisa de um ambiente lubrificante.” – Department of Public Affairs, EXXON Corporation

“Mas o mais significante é que permite aumentar reconhecimento no mundo dos negócios, a arte não é uma coisa à parte, ela tem a ver com todos os aspetos da vida, incluindo o negócio – porque ela é, de facto, essencial para o negócio.” – Frank Stanton (idem, 81-82)

Tais conceções e objetivos em relação às artes plásticas colocam (aparentemente) os mecenas numa posição de indiferença em relação aos conteúdos, desde que estes não afetem a imagem das suas instituições empresariais. São comentários que também revelam o interesse pela aquisição de arte como prova de marca do cultivo e do gosto adequados ao status social que pretendem vincar. Legitima, tendencialmente, a prerrogativa do ócio ostensivo, representando os interesses de uma minoria privilegiada da sociedade, de uma elite que dispõe dos meios necessários para a sua aquisição e gozo. Ao investirem num/a artista consagrado/a, os negociantes vão justificando os seus gostos numa base de critérios previamente estipulados por conceções partilhadas sobre como devem ser as produções culturais – são premissas fundamentais para as avaliações e apreciações dos produtos culturais (Cf. Crane, 1992:112). As artes plásticas jogam, assim, um papel em que são vistas como uma prática destinada apenas aos “eleitos”, que colecionam pelo deleite individual, apenas como um hobby. DiMaggio e Useem argumentam que os investidores beneficiam com o financiamento das artes até porque lhes permite manter e prolongar as suas posições na respetiva classe hierárquica. Eles referem que os

“eventos artísticos têm proporcionado à elite ocasiões convenientes para a reafirmação da partilhada e distintiva alta cultura. As famílias da elite passam a ‘apreciação artística’ para os seus filhos como uma forma de capital cultural que mais tarde se torna numa vantagem valiosa na perseguição de carreiras profissionais e administrativas” (DiMaggio & Useem, 1978a cit. Crane, 1992: 147)

Os investidores, nomeadamente aqueles que se sujeitam à filantropia, fascinam pela acumulação e por se circundarem de obras de arte, enaltecem-se e assumem uma imagem pública de valorizarem a vida cultural de uma dada comunidade. Mesmo a filantropia, que por princípio não é lucrativa, funciona para legitimar interesses económicos particulares, convertendo-os em forma de reconhecimento simbólico e para o bem de outrem (Cf. Swartz, 1997: 91). De acordo com Bourdieu, a filantropia, enquanto setor não lucrativo, permite a “conversão de capital económico em capital simbólico” assegurando aos grupos dominantes a estima da sua boa imagem e das suas atividades em relação à opinião pública (idem: 91, 92). O prestígio social surge, então, como motivação para a aquisição de obras de arte raras, de um/a artista conceituado/a, vinca uma imagem de marca conferidora de estatuto social: um “Andy Warhol” pode, efetivamente, ser consumido tal como um Jaguar, ou seja, como um objeto de prestígio, mas sem funções utilitárias.
O apoio financeiro à atividade artística é uma ocorrência banal. Seja um projeto artístico independente, de uma galeria, de um museu ou do próprio Estado, o mecenato está sempre implícito. Por outras palavras, a carreira de qualquer artista depende de um financiador, de um legitimador a quem são depositadas ambições e esperanças. O facto de um/a artista não ser independente dos condicionalismos económicos e sociais implica que, por vezes, os seus interesses, alguns deles enraizados pelo desejo de poder e/ou prestígio, ou mesmo por uma necessidade básica de subsistência, se sobreponham a outros como, por exemplo, os relacionados com a contestação ou a desconstrução social. Mesmo que qualquer artista permaneça consciente do facto de estar condicionado/a às condições materiais, não pode fugir à condição de que a sua produção cultural poderá legitimar os interesses de consagração de agentes e entidades promotoras, em detrimento de uma eventual função educativa e formadora de uma sua obra que faça menção, por exemplo, a questões alusivas à igualdade de género. Não se espera que da obra um/a artista surja a contestação social, mas espera-se que a eventual influência da sua obra resulte de inovações estéticas e, sobretudo, que essas inovações façam parte dos requisitos de gosto dos gatekeepers, das organizações que avaliam, que expõem e vendem os seus trabalhos, e que os usufruam para proveito próprio.
A necessidade de sobrevivência através do mercado da arte tende a conduzir um/a artista a produzir de modo a que o seu trabalho respeite determinados padrões morais e estéticos tornando-se, involuntariamente ou inconscientemente, no/a porta-voz dos seus compradores e protetores, cuja elevada posição não pode jamais ser afetada. Na sua relação com o patronato, um/a artista não pode jamais beliscar quem o/a publicita ou consagra: há, portanto, que saber jogar com os próprios limites da liberdade que estão delimitados pelos agentes e pelas instituições (Cf. Moulin (1967), apud. Becker, 1994: 86). Entrar no circuito artístico implica a qualquer artista aceitar tacitamente as regras do jogo, ou seja, acolher determinadas formas de luta mas sempre dentro de procedimentos que, normalmente, excluem verdadeiras ações de contestação.

4. A inclusão do feminismo artístico no principal mercado da arte

Qualquer artista que ascenda ao mercado primário necessita, obrigatoriamente, de passar pelo mercado secundário8. Este grande segmento de mercado viabiliza a circulação de obras em espaços e eventos menos conceituados, ainda assim importantes porque sustentam agentes culturais e artistas que procuram sedimentar ou mesmo subir a sua cotação através do reconhecimento do seu trabalho. Qualquer artista feminista que almeje e logre o mercado primário necessita, obrigatoriamente, de experiencializar o mercado secundário e sujeitar-se ao risco de não ver o seu trabalho reconhecido, ou seja, que os comerciantes não o (re)vendam, o que provoca uma baixa inevitável da sua cotação. Não obstante as dificuldades e os riscos que a carreira artística acarreta, se hoje em dia se reconhece que artistas feministas (como Cindy Sherman, Barbara Kruger, Louise Lawer, Jenny Holzer, entre outras) são consagradas e reconhecidas em museus e noutras instituições culturais de prestígio internacional (exemplo do MoMa, de Nova Iorque, ou da Tate Modern, em Londres), se se reconhece que há uma ascensão destas mulheres na pirâmide hierárquica, tais melhorias e progressos devem-se ao próprio mercado e aos/às agentes que o compõem. A transação e a especulação de obras de arte podem atingir valores astronómicos nos leilões de arte, sobretudo nos principais centros artísticos sediados em Londres e Nova Iorque.

É nos leilões de arte que o mercado artístico não tem limites, onde os investimentos, subjetivos, podem ser efetivamente lucrativos. Só os agentes económicos mais ricos podem disputar pelas obras que são sujeitas a especulação. No entanto, tal como confirma o ranking das obras mais até 2012 (tabela 1), o principal mercado da arte ainda subvaloriza as mulheres em relação aos homens artistas. Ainda há discriminação no que toca aos valores de vendas praticadas entre mulheres e homens artistas no mercado principal, particularmente nos grandes leilões de arte que operam ao mais alto nível do funcionamento da cadeia económica do sistema artístico. A propósito deste desfasamento de valores entre as obras de mulheres e homens artistas, o galerista e colecionador Iwan Wirth, que representa Louise Bourgeois, entre outras mulheres artistas, menciona a

“(…) constante desilusão ver a discrepância de preços entre excelentes mulheres artistas e os seus homens pares. O género de um artista não deveria ter nada a ver com o seu valor de mercado. Eu vejo isto a acontecer constantemente com as grandes artistas que representamos, tais como Bourgeois, Joan Mitchell ou Eva Hesse.Claro que o mercado artístico, tais como todos os locais, deveria estar livre de tais preconceitos. Fiquei encantado ver importantes pinturas vendidas na Sothby por 3.2 milhões. No entanto, esta ocorrência tem de ser comparada com os trabalhos da mesma venda, que incluíam um Bacon, vendido por 13.7 milhões; um Basquiat, por 5 milhões e um Richard Prince por 4.2 milhões. As mulheres artistas são uma pechincha nos mercados atuais. (…) O problema é que as mulheres foram excluídas dos museus de arte”. (Cf. Johnson, 2008: s/p)

 

 

Sarah Thornton, socióloga e historiadora que tem trabalho publicado sobre o mercado artístico, refere que apenas 30% dos acervos artísticos dos museus e galerias contêm obras feitas por mulheres; enquanto os artistas do top 100 nos leilões de 2007 incluíram apenas 4 mulheres (Cf. Johnson, 2008: s/p).
Mediante uma conjuntura em que o mercado artístico ainda é altamente discriminatório em relação às obras de mulheres, quer no número, quer na cotação, o crítico de arte Brian Sewell, procurando negar as evidências, mas confirmando a conjuntura, mencionara (em julho de 2008) numa declaração algo discriminatória que:

“O mercado artístico não é sexista. Os gostos de uma Bridget Riley ou Louise Bourgeois equivalem a um segundo ou terceiro ranking. Nunca existiu uma mulher do primeiro ranking. Apenas os homens são capazes tal de grandeza estética. As mulheres preenchiam 50% ou mais do ensino artístico, no entanto desapareceram gradualmente em finais das décadas de 1920, 1930. Talvez tenha a ver com o facto de que tomavam conta de crianças.” (Johnson, 2008: s/p)

Para além da sua dimensão económica, os leilões têm uma “densidade emocional e espetacular que não deve ser subestimada, a que resulta (…) da acumulação das dimensões de jogo, despique e exibição (…)”(Melo, 1994: 21). Os leilões certificam períodos de um mercado eufórico com fortes oscilações, em que os preços das obras gravitam em torno de fatores que não são nem racionais, nem objetivos, apenas emocionais e especulativos. O despique é a substância de um jogo onde o exibicionismo corresponde à afirmação de um status social, cultural e económico e à exibição mundana de uma imagem (Cf. Melo, 1994: 22).
A reconhecida Christies, casa de leilões de arte (Nova Iorque), é um dos locais de referência do mercado principal da arte onde a dominação masculina é deveras evidente. Sarah Thorton descreve a experiência na Christies pelo seu cariz sexual, por vezes violento (Cf. Huang, 2011: s/p). Um dos seus entrevistados, o influente consultor de arte Philippe Ségalot, refere que a “a compra de arte é um ato extremamente gratificante e másculo” ( idem). Um outro entrevistado, o artista Keith Tyson, refere que “a venda é contagiante. Sente-se a emoção do capitalismo e entra-se numa mentalidade de macho-alfa.” (idem)
Na dimensão económica da arte, concretamente os compradores, galeristas e curadores
12 de topo são essencialmente homens. Os leilões, como os da Christies, são principalmente dominados pelos homens (de negócios) pelo simples facto de a classe empresarial situada no topo da hierarquia ser essencialmente masculina. Na sua dimensão puramente económica, o objeto artístico (mesmo feminista) surge como produto, mercadoria que é (re)valorizada consoante os interesses dos investidores e que muito dificilmente a valorizam pelos seus conteúdos.
É nesta conjuntura de um mercado principal da arte, cujo poder legitimador é essencialmente dominado por homens, que a arte feminista procura obter legitimação. Na sua dimensão económica, a arte feita por mulheres (ver tabela 1) obtém cotações muito mais baixas quando comparada com a de autoria masculina. Enquanto a obra mais cara (até 2008) feita por uma mulher, a “Spider”, de Louise Bourgeois, atinge os 10,7 milhões de dólares; o “Portrait of Joseph Roulin”, de Vincent van Gogh, posicionado no 10º posto das obras mais caras (até 2008), atinge os 58 milhões de dólares. O ranking das 10 obras mais caras (até 2008), dos períodos moderno e contemporâneo, inclui apenas obras de artistas homens. Já no ranking de 100 surge uma das quatro mulheres, Louise Bourgeois, no 49º posto. Por fim, a arte feminista ocupa uma cotação (não enumerada) muito baixa no mercado, sobretudo quando comparada com as obras que detêm dígitos que perfazem milhões: tenha-se como referência a obra feminista mais bem cotada do mercado “Untitled (When I hear the world culture, I take out my checkbook)”, de Barbara Kruger, que chega aos 902,500 dólares (Russeth and Douglas, 2011: s/p).
A valorização de artistas e obras varia consoante o género – este consiste num grande fator de desigualdade, portanto de discriminação13, no campo artístico onde há uma clara assimetria generalizada de consagração entre homens e mulheres artistas. A baixa visibilidade de mulheres artistas e, sobretudo, a falta de referências do período clássico, também se deve ao legado de um passado cujas forças institucionais e estruturais do campo artístico concebiam as mulheres exclusivamente como modelos nus. Face a este funcionamento do campo artístico, as mulheres tinham exclusão automática dos estúdios e das escolas de arte, o que reflete uma história da arte que confirma a baixa visibilidade de mulheres artistas. As velhas noções de grandeza, a perenidade dos cânones, do que é engrandecido na arte, assim como as conceções masculinistas do “génio” artístico, ainda estão vinculados exclusivamente aos homens e têm excluído consecutivamente as mulheres artistas. Na história da arte não existe uma “génia” mulher. Evelin Stermitz descreve esses cânones “como ‘ideologias’ ou sistemas de crenças que falsamente pretendem objetividade quando realmente refletem relações de poder e dominação.” (Stermitz: s/d)
As condições sociais e de produção tiveram de mudar consideravelmente para que atualmente as mulheres tenham uma maior participação nos contextos artísticos institucionais, o que tem contribuído para que os seus méritos sejam cada vez mais reconhecidos. Mas, apesar de tantos progressos, as mulheres artistas ainda têm mais dificuldades em viver da sua produção artística quando comparadas com os homens. Oportunidades de exposições, premiações, recordes de vendas, postos de ensino, representação em instâncias culturais, a aquisição de “fama”, etc., ainda permanecem altamente masculinizadas. Os preços das obras de mulheres permanecem muito mais baixos comparados com as dos homens, o que significa que são mais mal pagas e que têm menos oportunidades de desenvolver trabalho artístico, quando comparadas com os pares do outro sexo. O cerco fica ainda mais apertado quando se trata de arte feminista. Helena Reckitt, feminista e curadora de arte contemporânea, salienta a dificuldade das feministas em exporem e venderem os seus trabalhos num campo artístico que ainda cria restrições a conteúdos feministas veiculados pela arte (Reckitt, s/d).

5. A luta pelas causas feministas Vs: a luta pela carreira artística

Um/a artista (feminista) que pretenda que o seu percurso profissional rume à consagração no circuito principal do campo artístico necessita de almejar objetivos e ultrapassar determinadas barreiras. A construção de uma carreira de sucesso requer que o trabalho de um/a artista ganhe visibilidade em instituições artísticas de relevo – galerias, museus, outros espaços culturais, coleções privadas ou públicas. A reprodução do seu trabalho em monografias, em catálogos de exposições individuais e coletivas, em revistas, assim como a referência escrita realizada por agentes culturais que ocupam posições privilegiadas dentro do campo (críticos, curadores, jornalistas, etc.); a conquista de prémios, bolsas, subsídios, não só otimiza melhores condições de produção como também projeta a carreira de qualquer artista, certificando a sua consagração.
A dimensão económica da arte condiciona os comportamentos das artistas feministas que atuam em conformidade face aos constrangimentos e às oportunidades que o próprio mercado e mecenas impõem ou oferecem. Ser artista feminista implica, portanto, a internalização, ou “incorporação”, de regras das estruturas que compõem e dão ordem ao campo da arte. É um processo, aplicável a qualquer campo, que Bourdieu denominou de “habitus”, que contende a reprodução de ações, perceções e atitudes (Cf. Swartz, 1997: 108) de forma consistente.
Dentro da prática criativa, as artistas feministas são também levadas a afirmarem-se individualmente e compreendem que não podem ser premiadas se não deixarem de respeitar a nobreza de espírito e o caráter dos mecenas. Acatar regras não pressupõe que as artistas feministas partilhem dos compromissos políticos e simbólicos dos seus mecenas, nem que sejam apologéticas do seu status quo, ou que ainda se subjuguem como meras serventes do poder. As artistas feministas, enquanto protagonistas de um campo que as legitima mas que também as subordina, ocupam uma posição contraditória porque criticam um sistema no qual pretendem obter legitimação, alcançar capital económico e ter posse de poder. Buscam, por um lado, reconhecimento do campo e das instituições que o compõem e, por outro, criticam o próprio funcionamento dessas instituições não deixando de quererem ser incluídas. Não obstante a aparente contradição, a posse de poder por parte das feministas faz sentido porque lhes permite a obtenção de capacidade de remover ou promover legitimação.
É da sua produção e do mercado da arte que muitas artistas feministas querem viver, o que coloca a exigência de terem de entrar no circuito. Dentro do circuito, as artistas feministas não só concorrem com outros/as artistas, estando circunscritas a uma pequena minoria, como inclusivamente concorrem entre si. A luta por ocuparem a sua posição implica às artistas feministas a autopromoção para obterem visibilidade em prole dos interesses pela carreira, uma outra luta que vigora para além das causas que o seu trabalho alude. Não deixam de usar a autobiografia e as autonarrativas como forma de promoção de si próprias e do seu trabalho: a hiperteorização, o discurso autocentrado, o portfolio e, o currículo, são recursos imprescindíveis para qualquer artista (feminista) que queira sobreviver dentro do mercado da arte. Frequentemente, também acontece que os/as artistas fiquem reféns do seu próprio trabalho ou, pelo menos, de um tipo de trabalho que os legitimadores culturais esperam que seja produzido14. Para aquelas que querem entrar e/ou permanecer no mercado principal têm de equacionar (como imprescindível) os contactos com produtores culturais especializados que ocupem posições de liderança em determinadas instituições.
O objetivo de qualquer artista feminista que esteja no mercado artístico implica a veiculação de questões de género mas, também, passa necessariamente pela sua integração no circuito e pelo seu sucesso comercial. O mesmo princípio é aplicado a agentes e instituições artísticas que estejam voltadas para a igualdade de género e sejam apologéticos do feminismo, que também não deixam de estar orientados para o lucro e para o aumento do seu capital simbólico. A autonomia de uma artista feminista dentro do campo artístico depende, portanto, dos valores e do estilo de vida de quem a legitima.
Ainda que ténue, deve-se ao mercado e a investidores o crescendo da popularidade do feminismo, quer em volume de trabalho publicado, quer nas instâncias artísticas, pese embora os eventos promovidos por indústrias de relações públicas os vendam como “pacotes de feminismo”. É uma contradição aparente, que apresenta vantagens e desvantagens para os discursos artísticos feministas. As vantagens do mercado artístico é que permite que mulheres feministas que se tornem visíveis perante várias instituições e vários públicos heterogéneos, e que deem eco a reivindicações sociais de várias ordens. A sua legitimidade acarreta formas de mediatização, de reprodução visual e discursiva, a possibilidade de se tornarem como referência da história da arte, e ainda potencia a veiculação de discursos (valores, denúncias, problematizações, etc.) sobre questões de género para as vastas audiências. A reprodutibilidade do discurso da arte feminista consagrada permite que esta não seja homogeneizada como “estilo” ou “tendência”, mas como discurso. Surgem depois algumas desvantagens no âmbito da legitimação. Quando Charles Labelle refere que, em relação aos últimos 15 anos, “o feminismo parece ter agora mais a ver com o direito de algumas mulheres em se reafirmarem atuando com histerismo, vendendo os seus corpos, ou fingindo-se de mortas” (Cf. Labelle, 2008: s/p), a sua observação enquadra- se num tempo em que a ideologia cultural é consumista, lúdica, mediática, generalista e eclética, e onde “tudo vale” para que artistas e agentes culturais legitimem as suas produções artísticas.
Face a um poder económico que joga um papel altamente discriminatório, as (re)conhecidas atitudes de algumas mulheres artistas que se pompeiam como “ bad girls” que ostentam disposições de rebeldia de forma a garantirem a sua inserção no circuito, denotam que as relações das artistas feministas, e de outros/as, se modificaram com as instituições artísticas e agentes culturais aos/às quais projetam ambições de promoção social. Por conseguinte, por terem o receio de comprometer a carreira artística, muitas jovens artistas feministas poderão ser mais impelidas mais à irreverência, à atitude cool , do que serem propriamente incentivadas à investigação teórico-prática ligada a valores de género.
Não obstante algumas fórmulas comuns de ascensão da carreira, a produção de arte feminista rodeia-se cada vez mais de produção teórica altamente especializada de investigadoras feministas, com estudos graduados em questões de género, que dão o seu contributo para autonomizar a discursividade das obras, das/os intervenientes, assim como do próprio movimento que se tem feito sentir no campo da arte. São discursos críticos especializados, cada vez mais globalizados, que vêm acompanhando a arte feminista, e que se multiplicam em revistas, livros, monografias, catálogos ou mesmo noutros contextos académicos ou urbanos – o que auspicia um cenário positivo de uma gradual disseminação dos feminismos através da arte. Também a história da arte feminista, a teoria feminista e encontros feministas no âmbito académico, as exposições em espaços comerciais, dão mostras do interesse de várias instituições, o que se traduz em apoios, financiamentos, e reprodução discursiva.
Nos dias que correm, ainda é evidente que os homens são ainda os guardiães do sistema de legitimação e de referências artísticas, regularizando todo um conjunto de práticas e disposições que tendem a favorecer carreiras de artistas, principalmente de homens. A ordem social do campo da arte não está assim à parte de outras arenas de trabalho na sociedade, porque são continuadamente validadas, sobretudo no sistema principal da arte, desde o topo da hierarquia, todo um conjunto de normativas (impostas) e inquestionáveis, que asseguram a desigualdade e a primazia do artista “génio” (homem).
As práticas engendradas ao longo da história, concebidas e partilhadas pelas estruturas de poder legitimadoras, que asseguram, no presente, experiências de discriminação de género, têm sido combatidas por agentes (outsiders) que têm vindo a ascender a determinados postos de decisão. A ascensão de mulheres e homens feministas (enquanto galeristas, comissárias, críticas, historiadoras, editoras, etc.) que tencionam veicular arte feminista em instituições legitimadoras, tem-se revelado uma estratégia eficiente de autoempoderamento, que tem rompido com mecanismos discriminatórios manifestos através da dominação masculina.
As desigualdades de género no mundo artístico têm vindo a atenuar-se, o que envolve mudanças numa tradição que ainda é discriminatória porque sub-representa as mulheres. Atualmente, embora exista uma maior inclusão de mulheres artistas nas instituições principais, ainda longe da paridade, essa visibilidade conquistada não existiria sem reivindicações de mulheres, nem sem a organização de exposições alternativas, num tempo em que a produção, a promoção e a diversidade da arte feminista estão em crescendo.

Considerações finais

Só um gatekeeping que permita uma mais equilibrada exposição e consagração de homens e mulheres, mediante a implementação de políticas focadas na igualdade de género, aumentará as possibilidades de desenvolver as carreiras artísticas das mulheres, o que aumentará o ensejo de consagração de artistas feministas. Uma outra medida, esta sugerida por Idalina Conde, implicaria a introdução de incentivos específicos e oportunidades para mulheres artistas – e.g. prémios e bolsas de estudo (em particular de estudos no estrangeiro), que muitas citam como das principais portas (“gates”) (Cf. Conde, 2003: 323); mas também, poder-se-ia acrescentar, a promoção de concursos de arte dirigidos a mulheres, mas com uma mobilização de agentes culturais (curadores, críticos e galeristas) que ocupem postos de poder no campo da arte, assim como a criação de novas redes locais, nacionais e internacionais, apelativas para a inclusão de apoios económicos (quer através do mecenato, quer institucionais, públicos ou privados). Importa também incluir instituições artísticas (universidades, galerias, centros culturais ou museus) que possam atuar em rede em torno da projeção de políticas de igualdade. Uma medida ainda mais estruturante passaria pela anuência de leis pela igualdade15 aprovadas em parlamento, que recomendassem às administrações públicas as políticas de paridade na legitimação e consagração artística. É, ainda, imperativa a adoção de políticas culturais preconizadoras da variedade de opiniões e ideologias, de diversos estilos artísticos, de variadas técnicas e suportes, mas também inclusiva de grupos minoritários (desde artistas mulheres, negros/as, pessoas com deficiências, movimentos sociais, etc.) que promova a diversidade e a representatividade de fações sociais – que evitem a exclusão social.
É também indispensável a mobilização de agentes artísticos que tenham interesse em aumentar a visibilidade e garantir o devido valor a muitas mulheres artistas. Importa que os/as teóricos/as (intelectuais, editoras, académicos/as, críticos/as, comissários/as) que escrevem sobre arte aumentem o número de referências de obras de arte produzidas por artistas mulheres pelo principio de que as consagradas na história da arte de hoje, se tornam nas referências e role-models das gerações vindouras.
Para uma disseminação dos feminismos discursivos na arte é, também, fundamental preconizar um ativismo consciente que exprima os desígnios e lutas das mulheres, articulando-o com os núcleos associativos, sobretudo com a própria teoria feminista. Há também que recuperar os ativismos do passado e as fórmulas semióticas mais diretas; há que aproveitar os recursos do presente e utilizar os espaços públicos, aproveitar as novas tecnologias e usar as redes sociais – nem que tais desígnios impliquem o passar ao lado de uma carreira artística em prole dos propósitos do movimento feminista.

 

Referências bibliográficas

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Artigos on-line

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Notas

1 Artigo realizado para o âmbito da tese de doutoramento (com o apoio da FCT) intitulada “Condições de Produção e Práticas de Receção da Arte Feminista” – Universidad del País Vasco.

2 Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Porto, Portugal). Endereço de correspondência: Instituto de Sociologia - Faculdade de Letras da Universidade do Porto - Gabinete 251 (Torre B – Piso 2) - Via Panorâmica, s/n - 4150-564 Porto - Portugal. E-mail: fonsecarppd@hotmail.com

3 “(…) Podem surgir problemas de prazos e atrasos nos pagamentos, entre o comprador e galerista e entre galerista e artista, ou querelas relacionadas com descontos e reajustamentos de preços e a sua repercussão nas margens de ganho respetivas destes dois últimos. Genericamente, nestes períodos, tende naturalmente a verificar-se um afrouxamento das relações económicas entre galeria e artista.” (Melo, 1994: 46)

4 Considere-se, a título de exemplo, a capa da revista Time em que Damien Hirst surge como uma “rock star”, ostentando poder e reforçando a fama que o artista pompeia no campo da arte.

5 A inclusão das obras de arte num mercado concorrencial terá começado no século XIX quando os/as artistas, muitos/as sem os seus mecenas, refletiram sobre o que ocorria dentro da esfera político- económica (e em certos casos se lhe adiantavam), procurando mudar os fundamentos do juízo estético com a finalidade de vender o seu produto. No que diz respeito às mulheres artistas, circunstâncias sociais, familiares, mas também de ordem institucional, eram impeditivas para que estas acedessem às escolas de arte e se dedicassem à criação artística.

6A história da arte é reveladora de como determinado estilo, descoberto por determinado/a artista, consegue depois reunir seguidores/as que se apropriam desse estilo, ainda que de forma individual, formando posteriormente o que tão vulgarmente foi designado como “corrente artística”.

7 As tendências artísticas, os diferentes estilos, as correntes artísticas, as escolas concorrentes, são essenciais para fundamentarem e estruturarem uma história da arte com as suas direções e discursos canónicos. As categorizações contextualizadoras de tendências, estilos ou correntes, não deixam de ser discursos que têm uma utilidade autolegitimadora.

8 O mercado secundário pode incluir aqueles espaços que, muitas vezes não sendo instituições reconhecidas pelo mercado primário, legitimam exposições de arte, eg.: galerias e centros culturais locais, juntas de freguesia, bares, discotecas, cafés, etc. Estes espaços alternativos, onde o mercado também funciona, não têm, porém, o prestígio e a movimentação dos grandes agentes artísticos, o que muitas das vezes pode dificultar a ascensão de uma carreira artística.

9 Dados relativos aos homens retirados em The Week, 8 Feb 2012.

10 Dados relativos às mulheres retirados em: Johnson, 2008: s/p.

11 Dado relativo à obra de Barbara Kruger, retirado em Russeth & Douglas, 2011: s/p.

12 Curadores e programadores jogam um papel fundamental como legitimadores porque estabelecem enquadramentos e determinam se os projetos artísticos devem, ou não, ser incluídos em circuitos institucionais. São estes agentes que classificam os trabalhos que permitem que estes acedam aos públicos (Cf. Conde, 2003: 312).

13 Ainda no que concerne à discriminação, Idalina Conde revela que os formatos de obras como instalações ou novos media consistem em fatores de exclusão por parte de instituições (Cf. Conde, 2003:312), mas sobretudo por parte de agentes económicos.

14 Considere-se como exemplo o icónico trabalho artístico feminista de Barbara Kruger

15 Lei que também foi aplicada em Espanha mas que não é respeitada pela maioria das instituições públicas.

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