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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.26  Porto Dec. 2013

 

ARTIGOS

Principais estádios evolutivos da sociologia em Portugal

Main evolutionary stages of the sociology in Portugal

Principales étapes de l'évolution de la sociologie au Portugal

Principales etapas de la evolución de la sociología en Portugal

Hernâni Veloso Neto1

Universidade do Porto


 

RESUMO
O aumento da compreensão social sobre a sociedade portuguesa também se tem ficado a dever à evolução que a sociologia registou no país, seja em termos profissionais, seja em termos académicos. Por sua vez, a expansão da sociologia portuguesa também se deve às próprias transformações sociais verificadas na sociedade. Caracterizar estes processos, configurando-os como fatores definidores de contextos evolutivos diferenciados da sociologia portuguesa, acaba por ser o principal intuito do presente texto. Acredita-se que a sociologia em Portugal comportou cinco grandes estádios evolutivos. No decurso do texto tentar-se-á especificar quer a opção pela proposta dos estádios evolutivos, quer os elementos que consubstanciam cada um dos períodos sinalizados.

Palavras-chave : Sociologia em Portugal; Estádios evolutivos; Ruturas de paradigma sociológico.


 

ABSTRACT
The increase of social understanding about the Portuguese society has also been due to developments that sociology had in the country, whether in professional terms, whether in academics. Moreover, the expansion of Portuguese sociology also due to the social changes registered in society. To characterize these processes, configuring them as defining factors of different evolutionary contexts of Portuguese sociology, turns out to be the main objective of this text. We believe that sociology in Portugal behaved five major evolutionary stages. In the course of the text will be specified both the evolutionary stages option and the elements that embody each of the periods signalized.

Keywords : Sociology in Portugal; Evolutionary stages; Sociological paradigm ruptures.


 

RESUMÉ
L'augmentation de la compréhension sociale sur la société portugaise a également été due à l'évolution que la sociologie enregistrée dans le pays, soit au niveau académique ou professionnel. À son tour, l'expansion de la sociologie portugaise doit également être due to transformations sociales vérifiée dans la société. Caractériser ces processus, de en les configurant comme facteurs définissant de différents contextes évolutifs de la sociologie portugaise, se révèle être le principal objectif de ce texte. On croit que la sociologie au Portugal s'est comporté cinq grandes étapes de l'évolution. Dans le cours du texte va essayer de spécifier l'option proposée par les étapes de l'évolution et les éléments qui incarnent chacune des périodes marquées.

Mots-clés : Sociologie au Portugal; Étapes de l'évolution; Ruptures de paradigme sociologique.


 

RESUMEN
El aumento de la comprensión social de la sociedad portuguesa se ha debido también a la evolución que la sociología registrado en el país, ya sea en términos de experiencia profesional o académica. A su vez, la expansión de la sociología portuguesa también se debe à las transformaciones sociales verificadas en la sociedad. Para caracterizar estos procesos, configurándolos como factores que definen los diferentes contextos evolutivos de la sociología portuguesa, resulta ser el principal objetivo de este texto. Se cree que la sociología en Portugal comportó cinco etapas principales de evolución. En el curso del texto se especificará la opción de las etapas evolutivas y los elementos que incorporan cada uno de los períodos señalados.

Palabras clave : Sociología en Portugal; Etapas evolutivas; Cambio de paradigma sociológico.


 

Introdução

A sociologia é um domínio científico que já se encontra amplamente instituído na sociedade portuguesa, apesar de diversas/os autoras/es a perspetivarem como uma ciência do passado recente de Portugal. Aliás, Madureira Pinto (2004: 11) diz mesmo que é, praticamente, um lugar comum afirmar-se que “a sociologia portuguesa só começou verdadeiramente após a revolução de abril de 1974”. No entanto, apesar de ter sido nas últimas quatro décadas que se constituiu uma verdadeira comunidade técnico-científica dedicada ao estudo e explicação sociológica da sociedade portuguesa, muitos acontecimentos marcantes no passado mais longínquo devem ser registados, na medida em que sem a sua existência o contexto contemporâneo dificilmente assumiria os mesmos contornos.
A implantação da democracia não incentivou a instituição da sociologia, incentivou a instituição de todo um novo social. Começou a ser pensada uma nova forma de estruturar e operacionalizar a sociedade, circunstância que criou condições para que toda uma panóplia de modos de agir e pensar que estavam reprimidos pudesse emergir. As mudanças na sociedade portuguesa, especialmente a partir da década de 70, trouxeram novas/os sociólogas/os e novos olhares porque o próprio social também mudou. O modelo social passou a permitir que a sociologia existisse e se pudesse sistematizar. Por isso é que Madureira Pinto (2004: 16) referia que a revolução de abril acelerou “o regresso a Portugal de um conjunto vasto de intelectuais, entre os quais bastantes sociólogos”. Ou seja, não foi só a sociologia que mudou com a revolução de 1974, a sociedade como um todo começou a mudar. Naturalmente que em áreas científicas como a sociologia se sentiu mais, até porque existe uma diferença significativa entre poder ser e fazer sociologia e não poder ser e fazer sociologia.
A expansão da sociologia acabou por se ficar a dever às próprias transformações sociais verificadas no país, mas o aumento da compreensão social sobre a sociedade portuguesa também se ficou, em parte, a dever à evolução que a sociologia registou, seja em termos profissionais, seja em termos académicos. Caracterizar estes processos, configurando-os como fatores definidores de contextos evolutivos diferenciados da sociologia portuguesa, acaba por ser o principal intuito do presente texto. No ponto 2 tentar-se-á enunciar a opção pela caracterização da evolução da sociologia em Portugal a partir da proposta dos estádios evolutivos, em particular a opção pela proposta dos cinco grandes estádios evolutivos. No ponto 3 procurar-se-á colocar em evidência o conjunto de características que especificam e diferenciam cada um dos períodos sinalizados. Para concluir, efetuar-se-á um breve balanço sobre os elementos explorados, procurando-se vincar virtudes e janelas de oportunidade para o futuro.

1. A proposta dos estádios evolutivos

A instauração da democracia no país permitiu um verdadeiro desenvolvimento da análise e da comunidade sociológica. Muitas/os aspirantes a sociólogas/os passaram a poder aceder à formação necessária para ter o estatuto e a prática, seja em Portugal, seja no estrangeiro. Foi um avanço importante, mas que deve ser contextualizado historicamente. A sociologia surgiu muitas décadas antes da revolução de abril. Se se analisar, por exemplo, os trabalhos de Falcão Machado (1962), Braga da Cruz (1982), Sedas Nunes (1988 e 2000), Firmino da Costa (1988), Teixeira Fernandes (1996), Machado (1996), Hespanha (1996), Nunes de Almeida (1999 e 2004), Madureira Pinto (2004) e Ferreira (2006) percebe-se com facilidade que a evolução da sociologia portuguesa não foi um processo linear, além de se terem registados avanços e recursos, períodos de maior desenvolvimento e de maior estagnação, verifica-se a existência de diferentes estádios evolutivos. Contudo, a enunciação desses períodos não é totalmente coincidente.
A análise da posição das/os diferentes autoras/es ajuda a compreender os pontos de consenso e a constituir uma proposta de percurso evolutivo. Acredita-se que a sociologia portuguesa considera cinco grandes estádios evolutivos. O primeiro período decorreu entre a década de 1870 e meados da década de 1920. O segundo período entre o final da década 1920 e o início da década de 1950. O terceiro período entre meados da década de 1950 e o início da década 1970. O quarto período entre o ano de 1974 e o final da década de 1980. O quinto período teve início na década de 1990 e ainda se encontra em vigor na atualidade.
Esta estruturação surge após se ter percorrido os diferentes roteiros de caracterização histórica e respetivos elementos de fundamentação. Um ponto comum a todas as análises é o 25 abril de 1974, que surge conotado como o principal momento de rutura. Por exemplo, Madureira Pinto (2004) e Nunes de Almeida (2004) referem que a sociologia portuguesa começou verdadeiramente com essa revolução, apesar de se poder identificar, anteriormente, um conjunto marcante de acontecimentos e épocas. Esse conjunto de contextos prévios é importante porque revela precisamente compassos evolutivos diferenciados. Mas nem todos os roteiros históricos o segmentaram. Por exemplo, em 1988, Firmino da Costa distinguia três etapas: período dos pioneiros até 1974, período de institucionalização do ensino e da investigação científica até meados da década de 1980 e um período de constituição dos sociólogos em grupo profissional a partir de final da década de 1980. Como se pode verificar, o autor congregou o período prévio a 1974 num grande estádio evolutivo, segmentado o período pós 25 de abril. Teixeira Fernandes (1996) fez precisamente o oposto, segmentou o período prévio a 1974 em duas grandes fases e configurou o pós 25 de abril como a época de institucionalização da sociologia. Para o autor, a sociologia portuguesa comportou três grandes fases evolutivas, sendo que a primeira época prolongou-se entre as últimas décadas do século XIX e o final da primeira metade do século XX. A segunda época começou a partir da década de 1950, na medida em que a situação da sociologia começou a alterar-se fruto do próprio esforço mais abrangente de promoção das ciências sociais em Portugal. Esta segunda época terminou com a revolução de 1974, começando a ser constituído um novo contexto social, extensivo à própria sociologia. Nessa terceira fase, verificou-se uma institucionalização da sociologia, enquanto disciplina autónoma que adquiriu “contornos de uma verdadeira profissão” e entrou em pleno nas universidades (1996: 17).
Teixeira Fernandes não foi o único a identificar clivagens relevantes no período pré abril de 1974, autores como Braga da Cruz, Sedas Nunes e Madureira Pinto também sustentam esse cenário. Todos sinalizam que as décadas de 1950 e 1960 foram pontos de viragem face ao que se verificara até à data, criando as bases para o que se viria a suceder no pós 25 de abril. Madureira Pinto referia que a progressiva abertura da economia ao exterior, o surto emigratório da década de 1960 e a crescente modernização do país (industrialização, urbanização, escolarização, etc.) foram criando “condições globalmente favoráveis ao desenvolvimento de um pensamento sistemático e academicamente enquadrado sobre o social” (2004: 14). No entanto, era um período que tinha de ser, necessariamente, diferenciado do que viria a suceder depois de 1974, até porque, como refere Nunes de Almeida (2004: 22), assistiu-se, na década de 1960, a um “despertar de uma ‘primeira geração informal de sociólogos’”, mas “a institucionalização da sociologia como disciplina académica, ciência ou profissão” apenas aconteceu a partir de 1974.
As décadas de 1950 e 1960 assumiram relevância por formarem um período de transição e, simultaneamente, de estabelecimento de alicerces. Distinguiram-se relativamente às décadas posteriores, mas também face às anteriores. Enquanto Teixeira Fernandes (1996) não sinalizou nenhuma rutura entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, Braga da Cruz (1982) e Madureira Pinto (2004) fazem-no. Braga da Cruz refere que a implantação da República em 1910 rompeu com o que vinha acontecendo com a sociologia desde o final do século XIX, já Madureira Pinto indica que essa clivagem apenas aconteceu com o golpe militar de 1926 e a instauração da ditadura do Estado Novo. Para este autor, a história do campo intelectual português sofreu “uma rutura decisiva com o golpe militar de 1926, na medida em que depois durante quase cinco décadas de regime ditatorial, toda a reflexão de tipo sociológico passou a ser encarada, pelo aparelho ideológico-repressivo instalado, como atividade potencialmente contrária à segurança do estado, devendo por isso ser vigiada, censurada e reprimida” (2004: 14). Esta situação não se sucedeu quando a sociologia começou a ser falada e considerada em Portugal, chegando mesmo a obter, no início do século XX “alguma consagração institucional no mundo académico, entrando em 1901 no plano de estudos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra” (idem: 11). No entanto, com a implantação do Estado Novo o cenário mudou, pelas razões já indicadas.
Esta contraposição de perspetivas ajudaram a explicar e a fundamentar as opções que se efetuou quando se indicou que se defendia que no período pré abril de 1974 se podiam vislumbrar três grandes estádios evolutivos da sociologia portuguesa. No período pós abril de 1974 também se podiam evidenciar períodos evolutivos perfeitamente diferenciáveis. Tem-se uma visão próxima da apresentada por Firmino da Costa (1988) e por Nunes de Almeida (2004). Até ao final de década de 1980, verificou- se uma institucionalização do ensino de base da sociologia e da investigação científica, mas as décadas de 1990 e de 2000 acabaram por ter registos diferentes dos verificados nas décadas de 1970 e 1980. Uma coisa permaneceu sempre, o crescimento progressivo da sociologia, encontrando-se, atualmente, totalmente implantada na realidade educativa e profissional portuguesa.
A década de 1990 fica significativamente marcada como a era em que a área das ciências sociais passou a ter “uma indiscutível visibilidade pública em Portugal” (Almeida, 2004: 25). No entender de Nunes de Almeida (2004), este contexto coincidiu “politicamente com o consulado de Mariano Gago à frente do recém-criado Ministério da Ciência e Tecnologia” (idem). A investigação científica, em geral, e a investigação nos domínios das ciências sociais, mais em particular, passou a ter outro tipo de valorização política e de projeção social. Foi uma condição necessária para que houvesse uma expansão da oferta de formação sociológica de pós-graduação, uma proliferação do ensino de base da sociologia ao setor privado e, principalmente, uma penetração extensiva das/os sociólogas/os no mercado de trabalho não académico e não público. Circunstâncias que não ocorreram nas décadas de 1970 e 1980, apesar de ter sido a institucionalização realizada durante essas décadas que permitiu que acontecesse o que se indicou.
Foi com base nestes pressupostos que se elaborou a proposta de compreensão da evolução da sociologia em Portugal à luz de cinco grandes estádios evolutivos. De seguida, vai-se caraterizar com mais detalhe os principais acontecimentos registados em cada um dos períodos.

2. Grandes estádios evolutivos da sociologia em Portugal

Acredita-se que a sociologia portuguesa, enquanto campo disciplinar, comportou transformações significativas ao longo do tempo, em parte fruto das próprias circunstâncias sociais. Ao se efetuar uma análise retrospetiva da sua evolução encontra- se diferentes compassos e registos de desenvolvimento. Defende-se a existência de cinco grandes estádios evolutivos. Na Figura 1 representa-se esses cinco períodos, os quais serão caracterizados nos próximos parágrafos.

 

 

O primeiro estádio evolutivo da sociologia portuguesa ocorreu entre a década de 1870 e meados da década de 1920, reportando-se, essencialmente, ao reconhecimento da existência da área e à sua inclusão nos quadrantes de análise e produção de conhecimento. Tal como referia Falcão Machado (1962: 2), apesar de ser “difícil datar a entrada das ideias sociológicas em Portugal”, já não o seria se fossem procurados os veículos precursores do seu aparecimento. O autor referia, desde logo, “o interesse que o movimento operário tinha por assuntos sociais e que se refletia em várias camadas da sociedade portuguesa, nomeadamente a intelectual” (idem). Também vincava o papel de Teófilo Braga na produção dos primeiros trabalhos de natureza sociológica. No ano de 1878, Teófilo Braga, conjuntamente com Júlio de Matos, fundou a revista “O Positivismo”, através da qual entraram as primeiras doutrinas sociológicas em Portugal. Teixeira Fernandes (1996: 11) refere mesmo que foi “pela pena de Teófilo Braga” que a sociologia surgiu em Portugal, mas como este autor tinha fortes influências dos trabalhos de Comte, Spencer, Stuart Mill e Letourneau, a sociologia foi “introduzida com um grau de aproximação ao positivismo” (idem).
A filosofia positivista e a visão determinística da compreensão da realidade social predominaram neste período (Cruz, 1982; Fernandes, 1996), mas que acabava por estar consonante com o “timbre da explicação científica no século XIX e inícios do século XX” (Fernandes, 1996: 13). Em 1884, Teófilo Braga publicou o primeiro tratado de sociologia português (Systema de Sociologia), onde, “de um modo geral, os pontos de vista do positivismo organicista e evolucionista eram as referências fundamentais” (Pinto, 2004: 11). Nesse período, a análise sociológica assumia “uma feição essencialmente doutrinal e ideológica, frequentemente polémica, em detrimento da produção do conhecimento científico” (Fernandes, 1996: 14). Procurava mais “a mudança do que a cientificidade, revelando-se alheia às questões epistemológicas e metodológicas” (idem). Mas apesar dessa matriz ideológica e conceptual não gerar consensos, a sociologia não deixou de entrar nos currículos académicos. A Universidade de Coimbra, mais em concreto a Faculdade de Direito, foi o palco dessa entrada (Machado, 1962; Cruz, 1982; Pinto, 2004). Avelino Calisto, em 1881, ascendeu à cátedra na Faculdade de Direito e renovou “o ensino sob a influência das novas doutrinas e ideias sociológicas” (Machado, 1962: 2). Muito mais influenciado pela sociologia foi Emídio Garcia (Machado, 1962; Cruz, 1982), adepto de Comte e de Littré defendia no programa da 4.ª Cadeira em 1885 que a política era um ramo da Sociologia. Já em 1880, um grupo de alunos seus de Direito Administrativo publicara, sob a sua direção, “uma série de monografias com o título de Estudo Sociológico” (Machado, 1962: 2).
Este conjunto de acontecimentos fez com que a faculdade elaborasse um parecer sobre a inclusão de uma cadeira de Princípios Fundamentais de Sociologia e Filosofia do Direito no plano curricular de Direito, apesar de só em 1889 é que o parecer se efetivou e foi instituída a disciplina, sendo a regência entregue a Avelino Calisto (idem). A unidade curricular foi lecionada até 1902, momento em que a reforma educativa realizada a extinguiu. Em 1903, Meneses Cordeiro, aluno de Avelino Calisto, “publicou as lições do Mestre, com o título ‘Elementos de Sociologia fundamental e de Filosofia do Direito’” ( idem: 3). Nessa sebenta transpareciam as influências de Gabriel Tarde e De Greef, mas, segundo Madureira Pinto (2004), os pioneiros da sociologia norte- americana (Durkheim, Simmel, Tönnies, etc.) também foram referências teóricas importantes nas disciplinas de direito que abordavam as questões sociológicas.
A contribuição de sociólogos estrangeiros suscitou um impulso importante na promoção da sociologia nesse período. Acabou por ser um signo relevante, especialmente se for considerado, primeiramente, o papel de Léon Poinsard e, depois, o de Paul Descamps. Segundo Falcão Machado (1962: 3), Poinsard conseguiu congregar em torno de si um conjunto relevante de colaboradores como, por exemplo, Serras e Silva, o Conde de Sobral, o Cónego Frutuoso e Silveira Lobo. Produziram diversas monografias, através das quais lhe foi possível publicar, em 1912, a famosa obra “Le Portugal Inconnu”. Não só foi “o primeiro trabalho sociológico sobre Portugal, mas, também, como que um programa ou plano de reformas sociais, que a mudança de regime não permitiu que se aproveitasse”.
O entusiasmo pela sociologia estava bastante concentrado em torno da Universidade de Coimbra, contudo foi em Lisboa, mais especificamente no Instituto de Orientação Profissional Maria Luísa Barbosa de Carvalho, em 1925, que a sociologia entrou pela segunda vez no ensino oficial. A “regência foi confiada a Vieira de Almeida” (idem: 4). Mesmo com estes avanços, a primeira fase de afirmação da sociologia em Portugal não deixou de estar marcada por uma grande indiferenciação disciplinar, uma incapacidade de institucionalização académica e por uma elevada permeabilidade às lutas político-ideológicas e às dinâmicas dos diferentes movimentos sociais (Pinto, 2004). Esta situação ainda se agudizou mais com a revolução de 1926 e a instituição do Estado Novo. Firmino da Costa (2003: 16) referia que “a análise sociológica da realidade social portuguesa era incómoda para o regime ditatorial”, daí que a sociologia fosse, “durante esse longo período, sistematicamente impedida de se desenvolver. O mesmo aconteceu, aliás, com outras ciências sociais” (idem). Por isso, o período forte do Estado Novo configurou um contexto diferente para a sociologia e para as pessoas que a procuravam desenvolver. Todavia, não deixou de representar mais uma fase evolutiva, dotada de particularidades e contributos para uma história que continuava a ser escrita.
Este segundo estádio teve como balizas temporais o final da década 1920 e o início da década de 1950. Foi o período da repressão, mas também o período de projeção da sociologia como mecanismo de desocultação da realidade social. Aliás, a sua capacidade de caracterizar e desvendar as sociedades e os fenómenos sociais que nelas existem, potenciando um maior conhecimento e intervenção social, terá sido mesmo a razão pela qual foi reprimida. O país estava “submetido a um regime ditatorial que contrariava tanto o socialismo como o liberalismo. A sociologia então praticada, sob a influência da situação do tempo, era ‘global, crítica e interventora’” (Fernandes, 1996: 16). A aproximação dos conceitos de sociologia e socialismo criava uma suspeição amplamente difundida no antigo regime (Cruz, 1982; Fernandes, 1996), por isso é que a tentavam banir.
As dificuldades das ciências sociais neste período eram significativas, mas não impediam que áreas como a sociologia continuassem a existir. Apesar dos constrangimentos, prevaleceram personalidades que continuaram a fazer sociologia e a difundir os seus preceitos. Uma das pessoas que mais se destacou durante a década de 1930 foi Paul Descamps, mais um representante da Escola de Le Play que se vinha instituindo em Portugal desde o início do século XX (Cruz, 1982). Além de dar continuidade ao trabalho realizado por Poinsard e de elaborar um estudo mais atualizado sobre Portugal, Descamps veio com o intuito de expor a doutrina le playsiana e o método da ciência social (idem). Curiosamente, o sociólogo francês foi convidado pelo próprio governo para efetuar estudos que fundamentassem, de certa forma, as opções políticas. “Apesar dos cuidados que rodearam a escolha do autor do estudo, os resultados não parecem ter agradado ao regime” (Hespanha, 1996: 5). Segundo Falcão Machado (1962: 4), foi por sugestão do próprio Oliveira Salazar (iniciava a sua carreira política na altura) que Descamps inaugurou “um curso de Sociologia na Faculdade de Direito de Coimbra, no ano letivo de 1930-31”. “No ano seguinte, o curso repetia-se na Faculdade de Direito de Lisboa” (idem). Além da exposição às teorias e métodos, Descamps iniciou os “seus alunos-colaboradores no método de observação dos fenómenos sociais, na pesquisa e no inquérito” (idem: 5), por isso é que Falcão Machado defendia que deveria “ser considerado o iniciador do período científico da sociologia em Portugal” (idem).
Em 1939 e em 1940, a sociologia integrou mais dois planos curriculares no ensino superior, bem como chegou a algumas escolas elementares. Com o apoio de Carneiro Pacheco, Ministro da Educação Nacional à data, foi criado em 1939 “o Instituto de Serviço Social, destinado à formação de assistentes sociais”, no qual figurava uma disciplina de sociologia (idem: 5). A unidade curricular teve diversos regentes, entre os quais Paiva Boléo, que já em 1937 tinha publicado um trabalho sobre “O valor médico-pedagógico dos inquéritos sociais” (idem). Em 1940, surgia a Escola Técnica de Enfermagem, no Instituto Português de Oncologia, cujo curso integrava uma disciplina de sociologia.
Todos estes trabalhos e iniciativas acabaram por não ter a capacidade de sistematizar o conhecimento sociológico em Portugal, apenas assumiam um carácter simbólico e demonstrativo que a sociologia também sobreviveu ao Estado Novo. Apesar de refletirem esforços relevantes não constituíam elementos capazes de agregar a produção sociológica e de estabelecer uma base de sistematização e de difusão alargada dos seus desígnios e produtos. Essa situação começou a alterar-se no decurso da década de 1950, com a delineação de um projeto e uma linha de ação com capacidade de funcionar como base agregadora das ciências sociais, em geral, e da sociologia, em particular. Para Karin Wall (1993: 1001), “os anos de 60 ficaram marcados pela criação de espaços institucionais de investigação não diretamente ligados aos fins pragmáticos da administração pública e pelo princípio de um esforço sistemático de reflexão científica”. Por isso, é que se referiu que o período que mediou a segunda metade da década de 1950 e o início da década 1970 representava um estádio evolutivo diferente dos registados até então.
Esse novo período ficou conotado pela definição dos alicerces institucionais da primeira plataforma agregadora e sistematizadora do ensino, investigação e debate do conhecimento sociológico. Esse projeto e linha de ação começaram a ser estruturados com a criação do Gabinete de Investigações Sociais (GIS) por parte de um conjunto de investigadores oriundos do Centro de Estudos Corporativos. O gabinete foi criado em 1962 no âmbito do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (Nunes, 1988). Inicialmente, era constituído por um grupo de economistas com ligações ao movimento católico, mas, progressivamente, foi incluindo outras formações (Pinto, 2004). No ano seguinte, sob a liderança de Sedas Nunes, o gabinete lançou a revista Análise Social. Esta publicação, conjuntamente com o trabalho do GIS, “abriram um espaço novo no campo intelectual português” (Nunes, 2000: 350), bem como expuseram situações e problemas que afetavam a maioria da população, “mais especialmente as classes sociais de menores recursos” (idem: 354), e ecoaram as “crescentes aspirações coletivas ao desenvolvimento económico, social e cultural” (idem).
O aparecimento de uma figura proeminente como Sedas Nunes acabou por se converter num eixo fulcral dessa primeira plataforma de sistematização da investigação e publicação do trabalho sociológico. O elemento referencial que no passado não existiu, surgiu na década de 1960 pela pessoa de Sedas Nunes. Com a constituição, em 1966, do Grupo de Bolseiros de Sociologia da Fundação Gulbenkian junto do GIS (Nunes, 1988; Ferreira, 2006), começou a formar-se o que Sedas Nunes designou por 2º GIS. Esta iniciativa criou condições, mas não foi o produto, até porque “os membros do Grupo de Bolseiros não se reconheciam membros do GIS nem queriam ter nada a ver com o GIS” (Nunes, 2000: 384). O elemento fulcral foi o recrutamento de um conjunto de técnicos superiores para trabalhar no GIS, pagos pelo Instituto Nacional de Investigação Industrial, pelo Fundo de Desenvolvimento da Mão de Obra e pelo Secretariado Técnico da Presidência do Conselho (idem). Este apoio estatal permitiu reunir um “grupo de jovens licenciados interessados em dedicar-se profissionalmente às ciências sociais, cuja pós-graduação e reconversão em sociólogos foi, a partir de 1969, objetivo prioritário do GIS” ( idem: 386).
Estes elementos foram fundamentais, mas não únicos. Esta primeira plataforma apenas se completou com o lançamento, em 1964, da primeira licenciatura em sociologia no Instituto Superior Económico e Social (Almeida, 2004; Hespanha, 1996). Esta instituição particular de ensino e investigação de Évora também foi responsável pelo lançamento e manutenção da segunda mais antiga publicação de natureza sociológica em Portugal, a revista Economia e Sociologia (foi lançada em 1965 com a designação de Estudos Eborenses, mas a partir da edição n.º 4 assumiu a designação indicada). Não foi uma publicação eminentemente sociológica, tal como a Análise Social nunca o foi, mas surgiu e manteve-se como um espaço para discussão e disseminação da sociologia em Portugal.
Com a conjugação de todos estes elementos foi possível, pela primeira vez em quase cem anos, estruturar e sedimentar institucionalmente a sociologia. A criação do GIS simbolizou o despertar de uma geração informal de sociólogos (Almeida, 2004; Pinto, 2004), mas que implicou uma “reconversão académico-profissional da quase totalidade dos membros desta primeira comunidade informal de sociólogos portugueses: uns tinham formação de base em letras, outros provinham da economia ou do direito e alguns eram engenheiros” (Pinto, 2004: 16). Aliás, esta foi uma característica central da sociologia portuguesa, ter sido instituída por personalidades que tinham conhecimento e interesse pela sociologia, mas que não tinham competências formalmente reconhecidas para o seu exercício.
A reconversão académica e o aparecimento de um novo conjunto de individualidades conduziram a uma mudança da matriz inicial do GIS (Nunes, 2000; Ferreira, 2006). A regeneração começou a evidenciar-se com maior veemência na entrada da década de 1970, o que, por si só, já podia ser sintomática de uma rutura de paradigma, mas com o 25 de abril de 1974 pôde ser ainda mais potenciada. A revolução de 1974 representou a clivagem definitiva no processo de institucionalização da sociologia em Portugal. Primeiramente “com a abertura do regime subsequente à morte política de Salazar, a que veio a corresponder uma intensificação dos movimentos de contestação nas universidades” (Pinto, 2004: 15), e, posteriormente, com a instauração da democracia no país, surgiu, finalmente, a oportunidade de criação de espaços de ensino, investigação e publicação sistemática de sociologia.
Segundo Karin Wall (1993: 1002), “o movimento de 25 de abril de 1974 traduziu-se por uma eclosão de iniciativas sociais, económicas, políticas e culturais que abriram novas perspetivas às ciências sociais. Os pólos de investigação e de ensino já criados puderam desenvolver-se e apareceram novos centros universitários. Estas condições de trabalho profissional em sociologia permitiram a diversificação e o aprofundamento progressivo das temáticas, dos paradigmas e das metodologias”.
Este período representa o quarto grande estádio evolutivo da sociologia portuguesa e decorreu entre 1974 e o final da década de 1980. Em cerca de 15 anos foram criadas sete licenciaturas em sociologia e surgiram três organizações representativas dos profissionais da área, daí que se considere o período como a fase da institucionalização do ensino de base da sociologia em Portugal e do lançamento de uma nova classe profissional, a das/os sociólogas/os. No que se refere ao ensino de base, a primeira das sete licenciaturas mencionadas foi logo criada em 1974, no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), decorrente da reconversão da licenciatura em Ciências do Trabalho (Nunes, 2000). Em 1979, surgiram mais duas, na Universidade de Évora (por integração do Instituto Superior Económico e Social) e na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH- UNL). As restantes foram criadas na segunda metade da década de 1980, mais precisamente em 1986 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1988 na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP)
2 e em 1989 na Universidade do Minho3. No ano de 1983 também surgiram os dois primeiros mestrados em sociologia, disponibilizados pela FCSH-UNL e pelo ISCSP (Machado, 1996).

Esta autonomização da sociologia como licenciatura também se ficou a dever, segundo Teixeira Fernandes (1996: 18), ao aparecimento, no pós 25 de abril, de diversas personalidades com os seus doutoramentos concluídos, principalmente “em universidade estrangeiras, nomeadamente em França, Bélgica, Itália, Inglaterra e Estados Unidos”, e prontas para assumirem funções de docência e investigação nas universidades portuguesas. Conjuntamente com o grupo de pessoas que começaram a sair formadas das universidades foi-se constituindo um núcleo substantivo de profissionais a exercer ou prontos a exercer sociologia. Foi um efeito que já se começou a sentir na segunda metade da década 1980, mas que obteve maior expressividade a partir da década de 1990. Como a maioria das licenciaturas apenas foi criada na parte final da década de 1980, o grande boom de sociólogas/os disponíveis para o mercado de trabalho sentiu-se durante a década de 1990.
A criação da Associação Portuguesa de Sociologia (APS) (1985), da Associação Portuguesa de Profissionais em Sociologia Industrial, das Organizações e do Trabalho (APSIOT) (1985) e da Associação Profissional dos Sociólogos Portugueses (1986) são exemplos representativos da substancialidade que a classe profissional começou a ter. No entanto, com o avolumar do número de sociológas/os, o problema das saídas profissionais ganhou relevo. Já em 1984 tinha sido realizado o 1º Encontro Nacional de Profissionais em Sociologia Industrial, das Organizações e do Trabalho, reunindo alunas/os finalistas da licenciatura do ISCTE e da FCSH-UNL para discutir o problema (Machado, 1996). A criação das associações referidas também resultou, de certa forma, dessa necessidade de pensar coletivamente o novo papel que a sociologia tinha na sociedade portuguesa e o que o futuro lhe podia reservar. Machado (1996: 57) refere que a Associação Profissional dos Sociólogos Portugueses “teve um importante papel de mobilização dos finalistas de sociologia para a discussão do problema das saídas profissionais”; no entanto, à medida que a APS se foi afirmando como uma associação de todas/os as/os sociólogas/os, foi perdendo relevo, esvaziando-se o seu intuito de existência.
O importante a reter é que no final da década 1980 fica a imagem que, além da instituição do ensino de base, já tinham sido constituídos os primeiros grupos extensivos de sociólogas/os formadas/os em Portugal e que se estava a consolidar um organismo de representação profissional dos mesmos. Importa também referir que durante a década de 1980 a investigação científica sociológica também granjeou um impulso relevante, surgindo diversos núcleos de investigação (exemplo: Centro de Estudos e Investigação de Sociologia no ISCTE (1985), SociNova - Gabinete de Investigação em Sociologia Aplicada na FCSH-UNL (1987), Instituto de Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (1989)). O próprio GIS foi sujeito a uma reestruturação, dando origem ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em 1982. Para Ferreira (2006: 35), esta foi “a derradeira etapa” da estratégia de “Sedas Nunes para a implementação académica da sociologia”. Isto porque a criação desta unidade orgânica consagrou e institucionalizou a legitimidade de uma carreira de investigação no âmbito da sociologia (Almeida, 1999: 3), estando, assim, “criadas as condições formais para a entrada em cena de uma segunda geração de sociólogos portugueses” (idem).
No final da década de 1980, as bases académicas, em termos de ensino e investigação, e as bases profissionais da sociologia portuguesa, em termos da existência de um núcleo substantivo de sociólogas/os e de estruturas de representação profissional, estavam instituídas. Os pilares que no passado não existiam ou que não eram suficientemente fortes para aguentar com a arquitetura desejada, à entrada da década final do século XX estavam estabelecidos e contribuíram para que a sociologia se emancipasse enquanto ciência e profissão nas décadas seguintes.
Analisando-se com mais detalhe a questão da profissionalização da sociologia, regista-se que a APS foi assumindo progressivamente um papel de aproximação e aglutinação das/os sociólogas/os portuguesas/es. Os dados disponíveis no Quadro 1 evidenciam essa situação. Em 1986 estavam registados 87 associadas/os, enquanto em 2008 o número já ascendia a 2.173. Para Nunes de Almeida (2004), o crescimento exponencial da APS ilustra, justamente, o vigoroso movimento de institucionalização da sociologia portuguesa.

 

 

O papel aglutinador que foi assumindo em muito se ficou a dever à organização, de quatro em quatro anos, do Congresso Português de Sociologia. A primeira edição foi em 1988. No ano de 2012 realizou-se a sétima edição. O congresso foi funcionando como o principal momento de encontro e de reflexão sobre a prática sociológica portuguesa. A partir do segundo congresso, realizado em 1992, os balanços críticos sobre a profissão ainda assumiram maior relevo, dado que nesse encontro foi aprovado, em Assembleia Geral, o Código Deontológico das/os Sociólogas/os Portuguesas/es.
A organização dos congressos também foi funcionando como uma espécie de barómetro sobre a comunidade sociológica portuguesa, permitindo que se fosse registando o volume e o tipo de trabalho que essa comunidade está a realizar. Durante os primeiros congressos realizados, o número de participantes era superior ao número de associados da APS (
Quadro 2 vs Quadro 1), mas a partir do quarto congresso essa tendência inverteu-se. O que se manteve sempre em crescimento foi o número de comunicações apresentadas, contribuindo, também, para evidenciar como a comunidade e a investigação sociológica aumentaram significativamente nos últimos vinte anos. Além disso, evidencia que, de algum modo, o perfil dos participantes também foi mudando, enquanto nas primeiras edições a maioria das pessoas apenas eram espetadoras, nas edições de 2008 e 2012 grande parte das pessoas já assumiam o papel de conferencista. No último congresso, foram aprovados 1373 trabalhos, sendo que apenas 688 acabaram por ser efetivamente apresentados durante o evento (APS, 2012). Face aos dados apresentados não se pode dizer que, em 2012, a maioria das/os participantes tinha comunicação, isto porque existiam autoras/es com mais de um trabalho. No entanto, não deixa de ser óbvio que o número de pessoas que apresenta trabalhos no evento tem aumentado progressivamente.

 

 

A organização continuada deste evento também foi permitindo verificar que a verdadeira era da profissionalização da sociologia ocorreu nas décadas de 1990 e 2000, não só pelo volume de pessoas já evidenciado, mas por considerarem um crescimento progressivo da profissionalização não académica. Nos primeiros momentos de institucionalização da sociologia, a profissão era exercida, essencialmente, por personalidades ligadas ao mundo académico, nomeadamente docentes e investigadoras/es. O cenário tem vindo a mudar. Os dados sociográficos relativos às/aos associadas/os da APS evidenciam essa situação (dados disponíveis no site da associação). Em 1988, os profissionais em instituições de ensino superior e investigação (público e privado) representavam 67% das/os associadas/os, em 1992 51%, em 1996 44%, em 2000 51% e em 2004 47%. Por sua vez, os profissionais na administração e serviços públicos passaram de 20%, em 1988, para 24% em 1992, 32% em 1996, 27% em 2000 e 32% em 2004. Os profissionais em empresas passaram de 2% em 1988, para 10% em 1992, para 13% em 1996, 14% em 2000 e 13% em 20044. Apesar dos últimos dados disponíveis serem de 2004, deixam transparecer uma tendência de penetração extensiva das/os sociólogas/os no mercado de trabalho não académico. Esta é uma característica marcante deste último estádio evolutivo.
Outro aspeto relevante é a expansão da oferta de formação sociológica de pós- graduação e proliferação do ensino de base ao setor privado. Na década de 1990, as iniciativas de abertura de licenciaturas em sociologia continuaram, expandindo-se também ao setor privado de ensino superior. Durante a década de 2000 chegaram a coexistir 18 licenciaturas em sociologia num país com a dimensão de Portugal. Porventura, algo que deveria fazer refletir os responsáveis pelas organizações de ensino superior e pelas políticas de ensino superior no país. No ano letivo de 2009/2010, pelo menos 14 licenciaturas ainda se encontravam a acolher estudantes para iniciar o ciclo de estudos.
O processo de expansão da oferta de formação de base em sociologia começou a reverter-se durante a década de 2000. Diversas instituições privadas deixaram de lecionar a licenciatura, seja por a terem extinguido (exemplos: Universidade Moderna, Universidade Católica, Universidade Independente), seja por não terem alunas/os em número suficiente para arrancarem com o curso (exemplo: Instituto Piaget). Em contraponto, verifica-se um aumento significativo da oferta de segundo ciclo. O processo de Bolonha também veio contribuir para estas reestruturações da oferta formativa. De qualquer modo, chegou-se a um ponto de saturação da oferta de base em sociologia, ou seja, no passado não existiam em número suficiente, na atualidade existem em demasiada, o que não deixa de ser um marco distintivo deste período.
Os últimos marcos distintivos que importa mencionar estão relacionados com a evolução da rede de investigação sociológica e da rede editorial de publicação científica. Sejam de natureza exclusiva da sociologia ou agregadoras das ciências sociais), quer o número de centros de investigação (subsequentemente o número de projetos), quer o número de revistas científicas (subsequentemente o número de trabalhos científicos publicados) aumentaram nas duas últimas décadas. Os dados presentes no Quadro 3 deixam transparecer, de certa forma, essa mesma ideia. Através da análise da evolução dos doutoramentos em sociologia registados em Portugal, dos projetos de investigação aprovados para financiamento e dos artigos de matriz sociológica publicados nos periódicos de referência para a sociologia portuguesa consegue-se registar a forte evolução que a investigação e a publicação periódica sociológica comportaram.

 

 

Para se obter os dados dispostos no Quadro 3 recorreu-se ao Registo Nacional de Temas de Teses de Doutoramento em Sociologia (1975-2009) disponibilizado pelo Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais (GPEARI), à Listagem de Projetos de Investigação e Desenvolvimento na área da sociologia financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) (1995-2009) e às publicações científicas periódicas de relevo para a área da sociologia em Portugal (1963-2009).
Na seleção dos periódicos foram tidas em conta as revistas gerais de sociologia e as revistas nos domínios das ciências sociais, mas que se vinham constituindo como uma referência para os domínios da sociologia (exemplo: Análise Social). Como muitas/os das/os sociólogas/os do país publicam nessas mesmas revistas, a sua inclusão era uma opção inevitável. Importa ressalvar que não foram analisados os artigos publicados por sociólogas/os portuguesas/es em revistas internacionais, será um campo a explorar noutras publicações.
Para se filtrar os textos da área da sociologia, os artigos foram classificados relativamente ao domínio das ciências sociais em que se encontravam inseridos. Para se efetuar essa classificação teve-se por base a formação académica das/os autoras/es.
Quando nada era indicado a esse respeito, realizavam-se pesquisas cruzadas para se obter esses elementos.
Como critério de seleção dos periódicos foi, ainda, utilizado um indicador bibliométrico para delimitar o número de publicações a analisar. O indicador tinha em consideração a indexação às principais bases de dados de avaliação de produção científica, tais como a Latindex e a Scielo. Os periódicos analisados foram os seguintes: Análise Social, Caderno de Ciências Sociais, Cadernos do Noroeste - Série Sociologia, Configurações, Economia e Sociologia, Fórum Sociológico, Organizações e Trabalho, Revista Crítica de Ciências Sociais, Sociologia, Sociologia - Problemas e Práticas.

Os dados obtidos mostram que as décadas de 1990 e 2000 se diferenciam claramente das demais. Cerca de 89,6% dos doutoramentos em sociologia registados em Portugal foram aprovados nesse período, sendo que 67,1% foram aprovados na década de 2000. Os dados que se dispõe relativamente aos projetos de investigação na área sociologia que foram financiados apenas cobrem uma parte das duas últimas décadas. Se esta análise for complementada com os dados disponibilizados por Teixeira Fernandes (1996), denota-se que começaram a ser disponibilizadas verbas para a área da sociologia, de forma exclusiva, a partir da segunda metade da década de 1980. Ou seja, o grande investimento no apoio à investigação sociológica, nos concursos gerais, ocorreu durante as décadas de 1990 e 2000. Teixeira Fernandes (1996) apurou que, entre 1987 e 1995, foram apoiados pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica 60 projetos de investigação em sociologia. O primeiro conjunto de projetos foi aprovado para financiamento em 1987, sendo o único conjunto de projetos nessa década. Em 1987 foram apoiados treze projetos, dez em 1991, onze em 1992, dezassete em 1993 e nove em 1995, perfazendo o total de 60 (Fernandes, 1996).
O volume principal de artigos também foi publicado durante as duas últimas décadas. Em conjunto, representam 80% do total apurado. Cerca de 36,5% foram publicados na década de 1990 (n=677) e cerca 43,5% na década de 2000 (n=806). O índice de crescimento do número de artigos publicados apresentou valores elevados até à década de 1990, estabilizando um pouco na passagem para década de 2000, apesar do números de artigos ter aumentado novamente. Estes dados ajudam a vincar ainda mais os diferentes compassos evolutivos da sociologia em Portugal, o que, no fundo, representa o que se tentou defender e demonstrar neste trabalho.

Conclusão

Para se elaborar um roteiro retrospetivo da sociologia portuguesa teve que se recorrer a diversas fontes e recursos. Uma das grandes benesses deste texto prende-se com a integração e articulação de dados e caracterizações publicadas ao longo da história por diferentes protagonistas. Com base nesses recursos foi possível registar e colocar em evidência um conjunto de acontecimentos, integrando-os num quadro analítico articulado.
A constituição dessa plataforma de análise permitiu que se desenvolvesse uma proposta de compreensão da evolução da sociologia portuguesa à luz de diferentes estádios evolutivos. Acredita-se que a proposta apresentada arroga capacidade de refletir e descrever, de uma forma faseada e sumária, a história da sociologia em Portugal. A caracterização efetuada colocou em evidência um processo de consolidação institucional amplamente sustentado no aumento das liberdades sociais e no incremento das procuras sociais. O desenvolvimento foi fruto da expansão das liberdades e garantias sociais porque durante várias décadas esteve sujeita a forte repressão, fazendo com que o exercício sociológico não deixasse de ser perspetivado como um ato de revolta, de oposição e de liberdade.
A necessidade de compreensão social da sociedade portuguesa também impulsionou a procura da sociologia e dos recursos que potenciava. “As lógicas e os mecanismos que presidem à formação dessas procuras estão identificados nos seus contornos globais e têm que ver com aquilo que autores como Touraine ou Giddens, entre outros, designam pela crescente capacidade das sociedades modernas se pensarem em si próprias” (Machado, 1996: 50). Tal como as demais sociedades ocidentais, também a sociedade portuguesa sentiu a necessidade de se tornar mais reflexiva.
As décadas de 1990 e 2000 foram o período societal em que as liberdades e procuras sociais foram mais potenciadas, favorecendo “um crescimento e qualificação sem precedentes da comunidade científica” (Almeida, 2004: 25). Por um lado, representam um período de consolidação mas, por outro lado, também representam a época de maior desenvolvimento e projeção da sociologia em Portugal. Para este progresso em muito contribuiu o aumento significativo da oferta formativa na área, das saídas profissionais, das oportunidades de investigação, das fontes de publicação da reflexão sociológica e a normalização das “rotinas de financiamento da investigação” (idem). Esta evolução teve o seu auge na criação de Laboratórios Associados, atributo que é concedido, em 2002, a duas unidades de investigação que também são referência para o estudo sociológico em Portugal: o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
O trabalho iniciado com esta análise contribuiu para que se estabelecessem os alicerces de um quadro conceptual que sustentasse o desenvolvimento de outros eixos analíticos com capacidade de potenciarem o aprofundamento da caracterização da evolução e conformação da sociologia em Portugal. As reflexões e análises efetuadas abriram algumas janelas de oportunidade para o futuro. Uma dessas possibilidades será o complemento do roteiro reflexivo realizado com a especificação das problemáticas mais trabalhadas no âmbito das três importantes fontes de produção sociológica identificadas no âmbito do presente texto: as teses de doutoramento registadas, os projetos de investigação financiados e os artigos publicados nas revistas de referência para a sociologia portuguesa. Esse trabalho poderá funcionar como um complemento de caracterização do trajeto evolutivo da sociologia portuguesa, permitindo, ainda, que se efetue uma identificação e estruturação temática de uma parte relevante da produção sociológica disponível em Portugal. Essa produção também é uma parte importante da história da sociologia portuguesa, tal como o serão as problematizações e temáticas que lhe estão subjacentes.

 

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Notas

1Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (Porto, Portugal). Endereço de correspondência: Instituto de Sociologia - Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Gabinete 251 (Torre B – Piso 2)

2 Licenciatura em sociologia do trabalho.

3 Licenciatura em sociologia das organizações.

4 Não foi possível efetuar o mesmo procedimento para o ano de 2008 devido a omissões na base de dados.

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