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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.25  Porto June 2013

 

Recensão crítica do livro

Des bons voisins. Enquête dans un quartier de la bourgeoisie progressiste

Tiago Castro Lemos1

Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) (Porto, Portugal)

École des hautes études en sciences sociales (EHESS) Paris – Centre Maurice Halbwachs (CMH) (Paris, França)

 

Sylvie Tissot, socióloga, atualmente professora de ciências políticas na Universidade Saint-Denis/Paris 8 e membro do CSU-CRESPPA, tem consagrado uma extensa parte do seu trabalho ao estudo das dimensões sociais, económicas e políticas que estão na origem dos processos de construção do território, dando, neste campo de análise, um ênfase particular aos engajamentos militantes e reformistas de determinados agentes (cf. Tissot et al, 2005; Tissot, 2007; Tissot, 2010).
Depois de em 2007 ter publicado, em L’État et les quartiers. Genèse d’une categorie d’action politique, um estudo sobre a génese e a mobilização política da categoria ‘quartiers sensibles’ nas banlieues francesas, Sylvie Tissot nesta nova obra empenha-se, novamente, na problemática da invenção de “novas maneiras de gerir zonas pobres” (p. 48). Em Des bons voisins, um trabalho realizado entre 2004 e 2010 que teve como palco a zona do South End (SE) em Boston, no Estado do Massachusetts, nos EUA, a autora vai mostrar de que forma um conjunto específico de agentes se mobilizou para transformar uma ‘zona mal afamada’ (skid row) habitada por imigrantes, associada à prostituição, ao alcoolismo e à homossexualidade, num espaço residencial das upper middle classes. Sobretudo através de um denso trabalho etnográfico, Tissot, seguindo a linha de trabalho das investigações associadas à gentrification, apresenta um detalhado retrato sobre a ambivalência, a incoerência, a contradição, a violência e, ao mesmo tempo, a eficácia social da mixité sociale enquanto ethos celebrada pelas classes médias superiores, neste trabalho denominadas como ‘progressistas’.
Após um conjunto de conversações preliminares com informantes privilegiados (alliès) e de, junto destes, ter recolhido um conjunto de informações cruciais para o desenvolvimento e orientação da pesquisa, Tissot enforma o objetivo principal desta investigação que, nas suas palavras, corresponde ao estudo da “institucionalização da democracia local e da mixité social, que vêm subtituir a remodelação voluntarista dos espaços, e a preeminência tomada, na hierarquia dos espaços desejáveis, pelos alojamentos antigos do centro da cidade em detrimento da arquitetura moderna das cités” (p. 55) Neste livro de cerca de 320 páginas, a autora vai apresentar os resultados deste trabalho através de um interessante exercício macro/micro, onde a cada manifestação estrutural apreendida é-lhe associada um caso/sujeito particular tido como exemplar.
Início dos anos 60: os EUA vivem um momento de intensa revolta onde as minorias étnicas e sexuais reivindicam o fim da exclusão social de que são alvo. Boston, e em particular o SE não são exceção: aliás, se nesta época no SE encontravam-se só 5% da população da cidade, era, também, do SE que advinham os 95% dos problemas dela (p. 59). Aqui os habitantes, sobretudo os negros, num ambiente amplamente marcado pelo militantismo e pelo associativismo, lutam por melhores condições de habitação. Igualmente nos anos 60: começam a chegar ao SE alguns indivíduos da classe média que, a baixo custo, adquirem brownstones (casas de estilo arquitetónico ‘Vitoriano’ ocupadas pela burguesia no século XIX, e posteriormente ocupadas, na sua maioria, por imigrantes e por classes populares. Simultaneamente, é proposto pelo Estado um conjunto de programas que defendem extensas reformas urbanas para Boston. Estavam lançadas as condições necessárias para se produzirem um conjunto de mudanças no espaço físico e no espaço social do SE.
Nos anos que se sucedem, o SE continua a contar com a chegada da classe média, ao mesmo tempo que se constroem torres de alojamento social que vão albergar grande parte da população que, até aí, reivindicava por melhores condições de habitação. O SE vai-se valorizando e cada vez se torna mais evidente o potencial deste espaço. Neste momento foi de extrema importância o papel dos ‘pioneiros’, habitantes intensamente interessados e influentes no processo de gentrification do SE; indivíduos aos quais se juntam uma série de associações locais (associations de quartier) que vão, igualmente, defender políticas de reformistas que tomam o SE como alvo. De entre estas associações, S. Tissot analisa atentamente a Sociedade histórica, uma associação que conta, sobretudo, com elementos de classes médias superiores, conservadoras, contra o pluralismo cultural, abertamente associadas ao setor imobiliário, que lutam pela valorização social e simbólica do SE através da patrimonialização da arquitetura ‘vitoriana’. O enaltecimento das virtudes do período Vitoriano, a importância conferida à arquitetura das brownstones como marca de uma presença burguesa passada que pode ser recuperada através de uma homogeneização social da zona; tudo isto veiculado junto de instâncias políticas e através do Tour, um passeio cuidadosamente organizado pelo SE para dar a conhecer aquilo que é um território burguês em potência.
Se, durante os anos 70 e 80, o papel da Sociedade histórica foi central na valorização do SE e na atração da upper middle class, a partir dos anos 90 ocorrem profundas mudanças no campo associativo, concomitantes às mudanças sociais e políticas que tiveram lugar nos EUA, que representam uma decisiva mudança de discurso em relação à valorização do SE, em particular no que diz respeito à coabitação de diferentes grupos. Neste momento, o SE conta com um elevado número de condominiums, o que significa um estado de gentrificação relativamente avançado e, em simultâneo, a emergência de um novo grupo que domina a cena associativa e que defende a mixité sociale: a ‘burguesia progressista’. A adoção deste novo discurso que vai marcar a ‘identidade’ territorial e social do SE ocupou o lugar do discurso conservador da Sociedade histórica que reivindicava a especificidade do SE pela sua arquitetura. Porém este facto não significou o desaparecimento do discurso conversador, mas a sua substituição - um exemplo assinável encontra-se nas diferentes tomadas de posições em relação à ‘mixité sociale’ no momento da construção do ‘Pine Inn Street’, um albergue para sem-abrigo.
A leitura deste trabalho de Sylvie Tissot pode-se tornar aliciante quando, com o apoio do expressionismo tão caro à etnografia, somos levados a refletir sobre um facto surpreendente: a passagem de uma ética conservadora para uma ética liberal não representar, em nenhum momento, a passagem de um estado de desigualdade para um estado de mais equidade social. O discurso da mixité sociale, progressista, tutor da abertura, da diversidade, da tolerância, é um poderoso eufemismo, que torna a desigualdade, o fechamento, a produção da diferença e a intolerância como algo tolerável. E esta tolerância, como mostra Tissot, é conseguida através da imposição e generalização uma ethos particular a um grupo social, como ética legítima, quer dizer, universal, comum a todos aqueles que a partilham e, mais surpreendente ainda, a todos aqueles que não a podem partilhar, porque não têm recursos, mas têm de viver nela.
Num registo que recupera e associa um conjunto de temáticas já exploradas pela sociologia, como a construção de uma moral particular às classes médias superiores (Lamont, 1992), o fechamento social e territorial particular às classes burguesas (Pinçon e Pinçon-Charlot, 1989), o reformismo como mecanismo de invenção de problemas sociais (Topalov, 1999), a demissão do Estado (social) e a violência social sobre as classes mais pauperizadas (Wacquant, 2005), a distinção como fundamento da reprodução social (Bourdieu, 1979), Tissot recolhe um conjunto de dados que permitem recuperar o processo de construção e de instituição de um sistema de vigilância através da construção e da instituição de relações amigáveis, colocando-se a questão da mixité sociale nos termos do “interesse pelo desinteresse”. Este complexo processo conta com o importante papel das associações locais, que possuindo grande parte do monopólio do controlo social e simbólico sobre o SE, têm um importante papel na dominação das relações sociais, políticas e económicas que aqui têm lugar.
Então, objetivamente, como viver e instituir esta mixité sociale? Antes de tudo, para se viver nela/dela são necessárias duas atitudes centrais e inseparáveis: incorporar, enquanto disposição, os mecanismos de tolerância com o ‘outro’ e (de)limitar constantemente quem é o ‘outro’, a saber, quem ameaça a ordem das ‘coisas’.
O processo de exclusão, simultaneamente social e espacial, de quem é indesejável opera-se sob diferentes formas. Quanto às classes populares, aos imigrantes, às minorias étnicas, sobretudo aos negros, o distanciamento opera-se, desde logo, a partir dos preços dos condominiums que tornam a acessibilidade duradoura aos espaços impossível. Depois, surge um vasto leque de ações que têm como objetivo a redução dos efeitos, potencialmente nefastos, da sua presença: o controlo dos parques por parte das associações, o que implica uma minuciosa regulamentação sobre condições de frequência; o fechamento sucessivo de bares e comércio frequentado pelas classes mais desfavorecidas, construindo nesses locais comércio, restaurantes e bares só acessíveis a classes economicamente favorecidas; a proibição de fumar e de beber na rua, em certas circunstâncias. Em resumo, o espaço público é lentamente conquistado pela upper middle classe de forma legítima (capítulo 5). Não terminando aqui o círculo, provavelmente sob o risco de revolta daqueles que estão sujeitos à exclusão, a ‘burguesia progressista’ põe em prática o que de moralmente melhor pode dar: o filantropismo, quer dizer, uma compreensão, uma sensibilidade, uma preocupação partilhada com os problemas que afetam os mais desfavorecidos, como, em particular, o racismo.
O filantropismo, esse “interesse no desinteresse”, também passa por questões sexuais, como a gay friendlness. Como mostra Tissot, apesar de a família heterossexual continuar a ser o referencial dominante, os homossexuais são acolhidos com o fervor particular dos defensores da mixité sociale. Porém, esta gay friendliness tem de obedecer aos rituais da heterossexualidade (como, por exemplo, nos bailes das associações locais, os gays vão, usualmente, acompanhados por uma amiga lésbica) ou, pelo menos, convém que tudo pareça heterossexual a nível da forma: são bem-vindos casais homossexuais casados com filhos adotados. E a heterossexualidade deve dominar em aparência, já que o flirt, os encontros, entre homossexuais estão espacialmente definidos: o parque de passeio dos cães, de preferência. E a gay friendliness, esta forma friendly de manter sob vigilância tudo aquilo que é gay, existe sob a condição regulamentar de que quem é gay tem de pertencer à upper middle class.
Mas as marcas exteriores que permitem a distinção, condição básica para poder haver mixité, não se limitam ao facto de se habitar num condominium, frequentarem-se os bares da moda ou os restaurantes de cozinha de fusão. E, aqui, Sylvie Tissot introduz um elemento de análise original e não menos pertinente: o cão, animal doméstico que, como observa a autora, não pode ser de uma qualquer raça e não pode ser, de certeza, da raça dos cães que estão associados às Cités, geralmente violentos. A hexis do cão é também um modo de distinção do dono: na altura do passeio pelo parque exclusivamente preparado para este fim, os donos comentam os comportamentos dos cães uns dos outros, avaliando assim a educação do cão, que deve ser fonte de investimento por parte do dono. E, a partir deste apêndice animal distintivo constrói-se toda uma economia de serviços e comércio que permite manter o cão na sua melhor vitalidade, o que se ‘repercutirᒠna imagem que os outros terão do dono.
Deste trabalho podem-se retirar alguns dos possíveis mecanismos de gestão e de construção da ‘ideia’ de mixité sociale: controlo social e investimento simbólico, distinção e friendliness. Uma verdadeira ethos, obrigatória a todos aqueles que querem partilhar a experiência de viver no South End; saber viver na mistura sem se misturar: “a gestão da diversidade não se reduz ao controlo de habitantes ‘indesejáveis’; ela tem como objetivo fazer com que os novos habitantes aceitem a presença de ‘outros’” (p. 135). E isto requer uma aprendizagem, que só podemos entender enquanto processo de socialização que tem como objetivo último criar “des bons voisins ”. Pertencer a uma associação, participar num baile, num convívio no parque, numa foundraising, tudo rituais que mais não são do que atos de instituição (Bourdieu, 1982), que têm como objetivo, mais do que marcar a diferença entre aqueles que moram no SoWa (zona artística, alvo de uma ampla gentrificação, dando lugar a galerias, comércio e algumas habitações) e aqueles que moram na zona do Union Park, marcar a diferença entre aqueles que não podem viver no SE daqueles que lá vivem.
Um texto a explorar detalhadamente, porque em cada problemática que levanta se encontram argumentos para denunciar a inércia incorporada pelas estruturas sociais, que não são mais do que estruturas arbitrárias de representação do mundo social, e que são cuidadosamente (re)produzidas pelos grupos socialmente dominantes e autorizadas a existir pelos grupos socialmente dominados, que se apresentam sobre a forma de uma ethos ‘progressiste’, quer dizer, liberal no sentido social. Mas, se, tal como fez S. Tissot em Des bons voins, se submeterem à análise científica estas estruturas, que sustentam a ‘ideia’ de mixité sociale, facilmente se rompe com a sua aparência e traz-se à luz formas altamente dissimuladas de sexismo, de racismo, de conservadorismo em sentido político, de neo-liberalismo em sentido económico, que vão prevalecendo sob a forma de “folclorização da miséria” (p. 217). E porque não é possível uma anulação radical da conflitualidade de pontos de vista entre os investigadores e a sua população, Sylvie Tissot, logo no capítulo I, faz o balanço de como não são eticamente lineares as relações sociais que ocorrem no curso da investigação.

 

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre (1979), La distinction, Paris, Éditions du Seuil.         [ Links ]

– (1982), “Les rites comme actes d’instituition”, in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 43, 58-63.         [ Links ]

LAMONT, Michèle (1992), Money, Morals and Manners. The culture of the French and American upper-middle class, Chicago, University of Chicago Press.         [ Links ]

PINÇON, Michel; PINÇON-CHARLOT, Monique (1989), Dans les beaux quartiers, Paris, Éditions du Seuil.         [ Links ]

TISSOT, Sylvie (2007), L’État et les quartiers. Genèse d’une catégorie d’action politique, Paris, Éditions du Seuil.         [ Links ]

– (2010), “Quand la mixité sociale mobilise des gentrifieurs. Enquête sur un mot d’ordre militant à Boston”, in Espaces et Sociétés, nº 140-141, 127-142.         [ Links ]

– (2011), Des bons voisins. Enquête dans un quartier de la bourgeoisie progressiste, Paris, Éditions Raisons d’agir.         [ Links ]

TISSOT, Sylvie (et al.) (2005), Reconversions militantes, Limoges, Polim.         [ Links ]

TOPALOV, Christian (dir.) (1999), Laboratoires du nouveau siècle. La nébuleuse réformatrice et ses réseaux en France, 1880-1914, Paris, Éditions de l’EHESS.         [ Links ]

WACQUANT, Loic (2005), Punir les Pauvres, Paris, Éditions Agone.         [ Links ]

 

Notas

1 Bolseiro de Doutoramento da FCT. Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) (Porto, Portugal) e École des hautes études en sciences sociales (EHESS) Paris – Centre Maurice Halbwachs (CMH) (Paris, França). E-mail: tcastrolemos@gmail.com

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