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Sociologia

Print version ISSN 0872-3419

Sociologia vol.25  Porto June 2013

 

Para uma gramática museológica do (re)conhecimento: ideias e conceitos em torno do inventário participado

Towards a museological grammar of recognition: Ideas and concepts about participatory inventory

Pour une grammaire muséologique de la reconnaissance: Idées et concepts de l'inventaire participatif

Hacia una gramática museológica del (re)conocimiento: Ideas y conceptos sobre inventario participativo

Lorena Sancho Querol1

Universidade de Coimbra


 

RESUMO
No âmbito da problemática relativa à Museologia Social e da sua conceção de museu como fenómeno social, e tomando como ponto de partida os desafios associados ao novo paradigma patrimonial consolidado pela UNESCO, em 2003, apresenta-se uma reflexão teórica em torno da dimensão participativa da salvaguarda dos bens que configuram a nossa diversidade cultural. Estes bens, pelo seu interesse intrínseco no domínio da delimitação de identidades socioculturais, podem ser objeto de patrimonialização através do museu. Desse modo, o inventário transforma-se num exercício de construção de sentidos e de significados coletivos.

Palavras-chave: Museologia Social; Patrimonialização; Inventário participado; Património Cultural Imaterial.


ABSTRACT
A theoretical reflection is herein exposed, enshrined in the field of Social Museology and its concept of Museum as a social phenomenon, and taking as a starting point the challenges that come with the new Heritage paradigm proposed by UNESCO in 2003, in which a series of concepts for the museological practice of the safeguard of the assets that conform our cultural diversity are defined. These assets, due to their intrinsic value for the definition of the sociocultural identities, can be subjected to heritagisation through the museum. This way, the inventory becomes an exercise of collective construction of significances and senses.

Keywords: Social Museology; Heritagisation; Participatory inventory; Intangible Cultural Heritage.


RÉSUMÉ
En ce qui concerne la Muséologie Sociale et sa conception de musée en tant que phénomène social, et en partant des défis associés au nouveau paradigme patrimonial consolidé par l’UNESCO en 2003, on présente ici un essai théorique ou une série de concepts est définie dirigés a la pratique muséologique de sauvegarde des biens qui constituent notre diversité culturelle. Ces biens, par son intérêt spécifique pour la définition des contours de l’identité socioculturelle, peuvent être l’objet d’une patrimonialisation à travers du musée. Comme ça, l’inventaire est converti en essai de construction de sens et significations collectifs.

Mots-clés: Muséologie Sociale; Patrimonialisation; Inventaire participatif; Patrimoine Culturel Immatériel.


RESUMEN
En el ámbito de la Museología Social y de su concepto de museo como fenómeno social, y tomando como punto de partida los desafíos asociados al nuevo paradigma patrimonial consolidado por la UNESCO en 2003, se presenta una reflexión teórica sobre la dimensión participativa de la salvaguarda de aquellos bienes que conforman nuestra diversidad cultural. Estos bienes, por su interés intrínseco para la delimitación de las identidades socioculturales, pueden ser objeto de patrimonialización a través del museo. Es así como el inventario se convierte en un ejercicio de construcción de sentidos y significados colectivos.

Palabras-clave: Museología Social; Patrimonialización; Inventario participativo; Patrimonio Cultural Inmaterial.


 

Introdução

Quando, em 2003, a UNESCO aprova o documento que formaliza a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial (PCI), inicia-se, a nível internacional, um processo de reconhecimento formal das manifestações e expressões que constituem a dimensão mais afetiva e humana das nossas heranças culturais e, por isso, uma das grandes riquezas da humanidade. Este processo, cujas origens podemos situar nas primeiras tentativas de identificação e estudo definidas pelo Japão com a Declaração dos Tesouros Humanos Vivos, em 1950, coloca-nos perante o desafio de formular políticas culturais capazes de responder às necessidades de um novo paradigma patrimonial. Um paradigma onde a dimensão imaterial constitui o outro ingrediente vital de um conceito de património amplo, flexível e socialmente ativo, com o objetivo de garantir a longevidade da diversidade cultural, sustentar o diálogo intercultural e multicultural, e favorecer o desenvolvimento humano a partir de uma noção ampla de cultura que remete para a ideia de herança da humanidade. A questão que se coloca, e que está subjacente à reflexão que aqui apresentamos, é a de equacionar quais os princípios, os métodos e as práticas mais apropriados para o exercício de uma função museológica como a do inventário, se queremos que ela responda a um modelo de patrimonialização socialmente comprometido com a dimensão imaterial das nossas culturas e com a emergência de novas formas de salvaguarda de caráter coletivo. Com este objetivo, reconhecemos no novo paradigma um conjunto de aspetos teórico- metodológicos profundamente relacionados com as maneiras de entender e gerir os bens culturais das comunidades locais definidos pela corrente da Nova Museologia e, ao mesmo tempo, uma interessante via de acesso ao modelo de justiça social centrado na Teoria do Reconhecimento (Fraser, 2000; 2008) e na Ecologia de Saberes (Santos, 2006: 127-153).
Como, a partir da década de 90 do século XX, a Nova Museologia evolui, dando lugar à Museologia Social ou Sociomuseologia, com a finalidade de adaptar o seu paradigma patrimonial às características e necessidades da sociedade contemporânea – visando contribuir para o desenvolvimento sustentável da humanidade, com base na igualdade de oportunidades e na inclusão social, cultural e económica (Moutinho, 2010:27) – quisemos analisar, não só esta fusão de ciências sociais em favor de uma patrimonialização assumidamente participativa, mas também a sua relação com a definição do novo paradigma patrimonial e, finalmente, os produtos que dela resultam no âmbito do museu, da gestão patrimonial e do acesso ao conhecimento relacionado com a diversidade sociocultural dos territórios.

1. Adequando métodos e atitudes a um novo paradigma patrimonial

Ao longo das últimas décadas temos visto ampliar-se, progressivamente, o conceito de património cultural a outras dimensões do foro cultural. Este facto tem-se traduzido numa profunda mudança de paradigma, alimentada pelos princípios e pelas metodologias de movimentos como o da Nova Museologia, onde o eixo central do processo de patrimonialização é constituído pelo sujeito, as suas circunstâncias e a diversidade cultural que resulta da sua capacidade criativa e de adaptação ao meio.

Desta forma, durante a segunda metade do século XX, e de acordo com o aparecimento e a evolução de novas ideologias baseadas na democracia participativa, que colocam a participação como critério central de atuação no seio das sociedades contemporâneas (Geilfus, 1997; Appadurai, 2009: 23-29; Santos, 2011: 137-50), o conceito de património histórico, até aí associado ao monumental como forma de poder, e a uma noção de História de leitura tendencialmente unidirecional (Sancho Querol, 2010a: 3; 2011: 61), foi sofrendo uma série de modificações provocadas pela necessidade de ampliação. Primeiro em direção a uma dimensão mundial (com a Convenção de Paris) e, mais tarde, a partir de 1982, em direção a uma dimensão social, o conceito iria integrando outras formas de cultura e de património até aí consideradas num plano secundário. Este percurso que “desmonumentaliza” o património e torna a leitura da História mais plural é, em teoria, refratário das lógicas mais técnicas, aproximando-se dos indivíduos e favorecendo a participação.
Orientado pela UNESCO com o objetivo de alimentar um diálogo transversal entre culturas, com base no respeito e na valorização da diversidade cultural, este processo foi evoluindo numa direção específica: reconhecer que o património cultural é o resultado de um processo de valorização social da diversidade cultural de um coletivo, através da participação dos seus membros e tendo em vista a sua salvaguarda a longo prazo no âmbito do desenvolvimento local (Sancho Querol, 2011: 297). Mas também, que a vertente marcadamente social e desenvolvimentista que protagoniza esta metamorfose, ao reconhecer a relação indissociável que existe entre as dimensões material e imaterial dos nossos bens culturais, envolve uma atualização do conjunto de metodologias até agora utilizadas nas áreas relacionadas com o estudo e a gestão do património, nas quais os museus ocupam um lugar relevante.
Sob este ponto de vista, se cada um dos passos do processo iniciado em 1950 foi fundamental, podemos afirmar que o momento da sua materialização definitiva, a nível mundial, tem lugar com a aprovação da Convenção para a Salvaguarda do PCI, momento em que a UNESCO reconhece formalmente a dimensão imaterial de muitos dos nossos bens patrimoniais, colmatando assim uma lacuna histórica que esteve na origem de uma discriminação patrimonial de consequências irreversíveis.
A Convenção representa, assim, o princípio de um novo capítulo para este organismo e para a história de um fenómeno sociocultural como o património, desencadeando aquilo que podemos considerar como uma era da “patrimonialização da diferença” (Abreu, no prelo), do ponto de vista do reconhecimento e da valorização do processo de desenvolvimento dos referentes identitários locais. Desta forma, contrastando com a visão hierárquica de património até então vigente, a UNESCO reconhece e estabelece que o seu valor é dado pelas próprias comunidades, abrindo assim um caminho sem retorno que se manifesta na passagem “de un enfoque eurocéntrico, monumental, elitista del patrimonio a una visión antropológica y omnicomprensiva de la cultura y de todos los componentes materiales e inmateriales que la conciernen” (D´Uva, 2010: 70).
Por outro lado, ao equiparar em termos práticos a dimensão material e a imaterial, reconhecendo que o processo é tão importante como o produto para a definição, preservação e legitimação das identidades dos coletivos, contribui para a formulação de uma nova gramática patrimonial. Esta gramática define a fronteira entre um discurso sobre o passado, a materialidade, a perda ou a autoridade do saber institucional2 – mais próprio do século XX – e um discurso centrado na vida, no reconhecimento de novas cartografias sociais resultantes da prática de uma justiça social que privilegia a construção de uma noção plural de conhecimento, e no exercício de práticas coletivas de salvaguarda.
Desta forma, quando falamos do novo paradigma patrimonial, referimo-nos a esse conceito de património aberto e em constante construção, que resulta da união das manifestações materiais e imateriais e que, por isso, põe a tónica no sujeito.

2. Cruzando olhares com a Sociologia

Ao refletir neste processo sob a perspetiva da Museologia Social, damo-nos conta de que o novo modelo da UNESCO parece trazer para o presente vários dos conceitos e critérios definidos por esta corrente, colocando em primeiro lugar a necessidade de assumir, compreender e integrar nos novos modelos de gestão patrimonial a sua natureza social e evolutiva.
Com este objetivo, procurámos conhecer de perto a evolução desta corrente museológica e, sobretudo, a relação que nos permite colocá-la num mesmo nível quanto à formulação de todo um conjunto de conceitos e práticas patrimoniais que nos põem em contacto com o novo paradigma.
Assim, se sob o ponto de vista da evolução do museu e das práticas a ele associadas podemos falar da vigência da Museologia “tradicional” até ao final da II Guerra Mundial, como “aquella que se hace desde arriba, sólo por especialistas, con discursos museográficos propuestos y autorizados por las instituciones culturales oficiales, quienes generan los espacios museológicos para un pueblo pasivo” (Méndez, 2007: 266), sabemos que, a partir dos anos 50 do século XX, se começa a configurar a estrutura do museu “contemporâneo” com base numa progressiva identificação com o território, o património cultural e a comunidade, de forma que estes três eixos de atuação tenderão, com o tempo, a relacionar-se com um conjunto de interesses e valores de cunho humano, próprios de um contexto de vivência democrática chamado a reconhecer que o museu tem, necessariamente, forma, conteúdo e protagonistas (Méndez, 2007: 265).
No âmbito deste processo de definição do museu contemporâneo, e com base nesta tríade conceptual, iniciar-se-á a formulação dos princípios da Nova Museologia, a partir de 1958, no contexto do Seminário Regional da UNESCO sobre o Papel Pedagógico dos Museus (Rio de Janeiro, 1958). Assim, sob a firme consideração de que a Museologia respondia ao perfil de uma ciência especializada, começar-se-á a delinear o papel social do museu, tomando como ponto de partida a sua componente pedagógica e as reflexões de especialistas como Paulo Freire que, ao colocar o intercâmbio de saberes num regime de igualdade que rompe com as tradicionais barreiras da comunicação vertical do conhecimento – até então profundamente institucionalizadas –, abrirá o caminho em direção a uma progressiva e necessária mudança social, baseada num mundo substantivamente democrático (Freire, 1980).
No entanto, as bases desta corrente museológica só se estabelecem definitivamente na década de 70, na América Latina, com a Declaração de Santiago (UNESCO, 1972).
Considerada como um ex-libris do pensamento museológico renovador e, simultaneamente, uma mudança de direção que permitiria o desenvolvimento da Nova Museologia, esta Declaração formularia, pela primeira vez, a função social do museu, considerando-o como um instrumento dinâmico de mudança social que privilegia a participação das comunidades. Da mesma forma, defenderia a criação do conceito de “museu integral”, baseado na interdisciplinaridade, e a definição do/a museólogo/a enquanto ser político-social (Cândido, 2010: 146).

Por outro lado, é certo que as tecnologias e a sua progressiva introdução nos museus, assim como a evolução das lógicas expositivas e de interação com os públicos – orientadas para a participação ativa e não meramente contemplativa –, que dão forma à emergente economia das experiências (Pine e Gilmore, 1999) levariam a Nova Museologia para novos rumos, muitos deles patentes em museus considerados globais. Mas não é menos verdade que, na lógica da questão que referíamos na introdução, uma das dimensões mais inovadoras deste tipo de correntes museológicas é a sua ligação ao local e o modo como permitem às comunidades intervir na definição e gestão dos seus patrimónios.
A partir daqui, e sem sair do contexto latino-americano3, não só devido à sua relevância, mas também ao papel que teve no contexto da evolução de uma Museologia centrada no desenvolvimento local, e na valorização e renovação da significância da diversidade cultural que caracteriza cada comunidade, centrar-nos-emos no trabalho realizado por algumas personalidades de referência, até agora menos conhecidas do lado de cá do Atlântico. Entre elas, para além do próprio Paulo Freire, cujo espírito democrático e consciência social se haveriam de refletir nas suas teorias sobre pedagogia e desenvolvimento, influenciando a evolução da Museologia Social de um e de outro lado do Oceano Atlântico, devemos citar, igualmente, o trabalho realizado por especialistas como Waldisa Guarnieri.
Pioneira da Museologia Social, com um percurso profissional centrado no desenvolvimento de uma Museologia socialmente comprometida, que estabelecia uma relação indissociável entre a noção de processo e o conceito de museu, Guarnieri focalizaria o seu trabalho na implementação de duas medidas: a sistematização desta disciplina como área científica do saber que resulta da transversalidade de ideias, conceitos e métodos procedentes de outras ciências sociais, com vista ao desenvolvimento integral da pessoa, e a formação de profissionais em Museologia.
Neste segundo campo, e sobre estes mesmos pilares, Guarnieri daria forma, em 1977, ao primeiro curso de Museologia do Brasil, no seio da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Davam-se assim, os primeiros passos em direção à variante museológica hoje conhecida como Museologia Social ou Sociomuseologia, do ponto de vista do seu reconhecimento num contexto académico e associada a outra disciplina das ciências sociais: a Sociologia.
Sob esta perspetiva, o trajeto de Guarnieri haveria de ficar marcado por uma preocupação constante relacionada com a procura do equilíbrio entre a preservação patrimonial e o desenvolvimento social, através do processo museológico (Bruno, Fonseca e Neves, 2010: 179-180).
Após a sua morte, as pessoas por ela formadas, onde encontramos especialistas de referência como Cristina Bruno, Maria Ignez Mantovani, Marcelo Araújo ou Maria Inês Coutinho, prosseguiriam até à atualidade o caminho iniciado por Guarnieri.
Além disso, a esta mesma ideologia ir-se-iam unindo, progressivamente, especialistas procedentes de outros centros de estudo, como é o caso de Mário Chagas, Manuelina Cândido ou Myriam Sepúlveda dos Santos.
Simultaneamente, deste lado do Atlântico, e em função dos contextos geográficos e culturais, destacar-se-iam as iniciativas, teorias e projetos museológicos desenvolvidos por personalidades como Ägren, De Varine, Stránský, Rivière, Oddon, Desvallés, Moutinho, Lameiras-Campagnolo, Van Mensch, Gregorova, o Hainard. A partir de organismos como o International Council of Museums (ICOM), o International Committee for Museology (ICOFOM), o International Movement for a New Museology (MINOM), a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT), a Reinwardt Academy de Amsterdão ou o Museu de Etnografia de Neuchâtel, e sob a inspiração destes princípios, várias destas pessoas organizariam cursos especializados onde se consolidariam os diversos saberes museológicos que alimentam o conceito contemporâneo de museu, assente numa base interdisciplinar, e também em publicações, documentos orientadores ou projetos museológicos.
Neste sentido, convém apontar que, desde logo, quiçá pelo âmbito em que se origina o Seminário de 1958, a Mesa Redonda de 1972 ou os documentos que se sucederam no processo de formulação deste movimento renovador para a Museologia internacional (UNESCO, ICOM, MINOM…), segundo a investigação realizada por Bruno, Fonseca e Neves (2010: 169, 174), e apesar do oceano que nos separa, é possível detetar, entre essa diversidade de especialistas, uma comunicação transversal que se irá manifestar numa consolidação de ideias e ideais, e que tem evoluído em direção a uma progressiva colaboração em diversos projetos deste lado do oceano Atlântico.
Continuando com o nosso passeio pela História, e tendo em conta a evolução deste movimento, constata-se que a consolidação da Nova Museologia, a nível mundial, tem lugar com a Declaração do Quebec (ICOM, 1984), documento onde a interdisciplinaridade e a participação social passam a ocupar um papel relevante no processo de construção do museu, aqui considerado como lugar de entendimento e experimentação do património, e onde, consequentemente, se coloca o sujeito no primeiro plano da ação.
O pensamento fundador do movimento fica assente em sete pontos, que colocam o indivíduo como sujeito ativo que “entende a cultura, a identidade, o património e a herança cultural como fenómenos que são construídos e reconstruídos pelos processos de interação” (Primo, 2008: 51). Entre eles, cabe destacar: a descentralização do objeto a favor da comunidade, a tendência para a preservação in-situ ou a ampliação do conceito de objeto museológico (Van Mensch, 1990: 50).
Na mesma direção se cria em Portugal, em 1985, no contexto do II Atelier Ecomuseus-Nova Museologia – celebrado em Lisboa – o MINOM, que, mais tarde, seria reconhecido pelo ICOM. Para o grupo de especialistas que lidera estas iniciativas, Quebec e MINOM devem ser entendidas como “um todo coerente, que contribuiu desde então para o reconhecimento, no seio da Museologia, do direito à diferença” (Moutinho, 1995: 57).
Alguns anos depois formular-se-ia a Declaração de Caracas (1992), onde o ICOM daria continuidade ao desenvolvimento da função social do museu através de um conjunto de medidas teórico-práticas.
Chegados a este ponto, no contexto da mudança de paradigma patrimonial referido anteriormente, Santiago, Quebec e MINOM acabam por constituir um marco fundamental, pela sua forma de definir um novo modelo de gestão social e dinâmica do conhecimento associado às formas de cultura local, a partir do museu, e por colocar esta instituição – e a sua intervenção junto às comunidades – no caminho que leva ao desenvolvimento local e a uma prática da salvaguarda socialmente ativa, muito próxima da recomendada pela UNESCO em 2003.
De facto, a Nova Museologia constituiu e ainda constitui, sobretudo para regiões como a América Latina, “una alternativa vigente para democratizar, descentralizar y ciudadanizar las decisiones y aciones, para investigar, conservar, promover y difundir el patrimonio natural y cultural de los pueblos y de las naciones, frente a los intentos de enajenación, destrucción y comercialización de dicho patrimonio” (Méndez, 2007: 269). Podendo assim afirmar-se que, de certa forma, se antecipou ao processo de evolução do próprio conceito de património, centrando, desde as suas origens, a atenção no sujeito e reformulando o lugar e função do objeto para passar a interpretá-lo como uma consequência da capacidade criativa e de adaptação desse mesmo sujeito, relativamente a um território e aos processos históricos e sociais a ele associados.
Este caráter visionário desenvolver-se-ia com o tempo, traduzindo-se em diversas fórmulas museológicas centradas no desenvolvimento local através do reconhecimento da dimensão social do património e, com ela, dos seus diversos potenciais ao nível da inclusão social, da valorização e reutilização dos recursos locais, ou da educação não formal.
Entre elas, podemos destacar:

  • Museu de Comunidade, como o Anacostia Community Museum – Washington, 1967 – (Kinard, 1971 in Bolaños, 2002: 285-287) ou como o atual Museu da Comunidade Concelhia da Batalha – Portugal, 2011;
  • Museo Escolar, como a Casa del Museo, no México, na década de 70 (De Carli, 2004: 14) ou o Museo Escolar de Pusol – Espanha, 1969 – considerado exemplo de boas práticas de salvaguarda pela UNESCO, em 2009;
  • Ecomuseu e a sua variada descendência (De Varine, 1978 in Bolaños, 2002: 282-284), como foi, nas suas origens, o Écomusée du Creusot- Montceau-Les-Mines – França, 1971-74 – (Rivière, 1993: 199-200), o Ecomusée de Haute-Beauce – Canadá, 1978 – (Mayrand, Kerestedjan e Labella, 2004: 51-64), ou o Ecomuseu Municipal do Seixal – Portugal, 1982 –, mas também as redes atuais de Ecomuseus que se foram desenvolvendo em países como Itália, onde se encontra conectado ao conceito de Mappa di Comunità4.

Paralelamente, num contexto mundial, e sob a orientação da UNESCO, a Convenção para a Proteção do Património Mundial Cultural e Natural (1972) e a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (1982) contribuiriam para a ampliação progressiva da noção de património, que se refletiria no reconhecimento da Museologia como agente privilegiado de desenvolvimento social e cultural no seio das sociedades contemporâneas.
A partir daí, durante a década de 90, e à medida que em Portugal, vão ganhando forma diversas experiências museológicas baseadas na Nova Museologia, entre as quais se contam o Museu do Trabalho Michel Giacometti, o Museu Etnológico de Monte Redondo ou o já referido Ecomuseu Municipal do Seixal, a reflexão teórica consolidaria a relação existente entre Museologia e Ciências Sociais, centrando a atenção na Sociologia para desenvolver o caráter social do museu e o seu importante papel ao nível do desenvolvimento local, de forma que, pouco a pouco, irão ampliar-se algumas das suas premissas. Simultaneamente, inicia-se, pela mão de um conjunto de especialistas procedentes de um e de outro lado do Atlântico, a reformulação deste movimento acompanhada de uma redenominação mais de acordo com a estratégia museológica defendida (Moutinho, 2007: 187-188).
Deste ponto de vista, é possível afirmar que, enquanto a Nova Museologia defendia o estudo das características sociais do contexto, situando a participação no centro do processo de construção do projeto museológico e promovendo, simultaneamente, a ampliação do conceito de objeto museológico rumo a uma prática que centrava a sua atenção no processo e nas suas variadas dimensões socioculturais, a Museologia Social tomava como ponto de partida o caráter evolutivo das sociedades e, considerando que o museu deve dar um passo em frente para poder desenvolver a sua função social, colocava a participação num novo patamar mediante a formulação do princípio da participação (Moutinho, 2010: 28).
Considerando que a valorização e promoção da diversidade cultural no âmbito do desenvolvimento local constituem uma responsabilidade social, em cujas raízes se situa o museu como mediador de um processo profundamente participativo que conduz ao desenvolvimento da pessoa, a Museologia Social passava a defender o exercício de uma prática museológica centrada no desenvolvimento sustentável e na inclusão social, cultural e económica (Moutinho, 2010: 27-28).

3. Territórios convergentes ou… porque Património e Participação partilham algo mais que o P.

É deste modo que, na Nova Museologia, primeiro, e na Museologia Social, depois, nos deparamos com algumas das linhas teórico-metodológicas que, não só alimentam o processo de ampliação do “velho modelo” de património em direção a um processo de construção social do conceito, centrado na prática de uma patrimonialização evolutiva, mas constituem, igualmente, o eixo central de atuação da salvaguarda socialmente ativa que a ele se encontra associada.
Num cenário desta natureza, e com o objetivo de desenvolver alguns aspetos de fundo relacionados com o reconhecimento e a prática do novo paradigma, surgem, entre outras, as seguintes questões:

  • De que forma define a Sociomuseologia o princípio da participação?
  • Que relação existe entre este princípio e o conceito de participação comunitária defendido pela UNESCO na Convenção de 2003?
  • Não estaremos a falar de um princípio cultural “partilhado”, que tem a sua origem em movimentos socioculturais como o da Nova Museologia/Sociomuseologia e que, como fruto de todo um processo evolutivo, constitui atualmente um eixo fundamental das políticas culturais?
  • Que reflexos têm este princípio na prática do novo paradigma patrimonial?

Em busca de respostas procurámos analisar os pontos de vista e as opções metodológicas de três especialistas que se relacionam com esta corrente museológica ao longo das últimas décadas: Hugues De Varine5, Cristina Bruno6 e Isabel Victor7, com o objetivo de refletir em torno do princípio que estrutura a ação sociomuseológica e da lógica construtiva que nos permite conectar este princípio com as linhas metodológicas definidas pela UNESCO, em 2003. Finalmente, damos forma ao enquadramento teórico que desemboca na definição de um conceito que emana da própria Convenção e que vem sendo praticado pela Nova Museologia desde as suas origens: o de inventário participado.

3.1. A chave da Museologia Social

Procurando uma definição atual deste princípio na ótica da Museologia Social, tomamos como ponto de partida a perspetiva que nos apresenta De Varine quando se refere ao método participativo (Sancho Querol, 2011: 307-310) já que, para o autor, constitui a chave da Museologia para alcançar o seu objetivo principal: o desenvolvimento do território a partir dos conhecimentos associados às formas de cultura local, com o museu como gestor do processo, permitindo que a comunidade se transforme na protagonista de uma dinâmica cultural que desemboca no seu desenvolvimento sustentável.
Segundo este autor, a visão que conduz a uma prática equilibrada da gestão patrimonial é aquela que considera o património como parte integrante do território e da vida quotidiana da comunidade e, consequentemente, o museu como um reflexo do dinamismo local. Desta forma, assenta na já mencionada tríade conceptual Território - Património - Comunidade (De Varine, 2009: 53; 2011: 31-39).
Esta tríade, que configura a estrutura da Museologia contemporânea e a função social do museu (Fernández, 2003: 95), coloca-nos perante o que, para Bruno, constitui uma componente essencial do museu contemporâneo: o seu caráter público de estudo e salvaguarda ativa dos gestos, das técnicas e dos significados sociais dos indicadores da memória das distintas sociedades, ao longo do tempo e em espaços geográficos expandidos, centrando assim o interesse na sua vertente educativa, isto é, no seu potencial como instrumento educativo que coadjuva nos processos de organização e ação comunitária (Sancho Querol, 2011: 312), de forma que, a partir de aí, o museu possa ser “un poderoso instrumento de gestión para el desarrollo comunitario” (Méndez, 2007: 265).
Além disso, quer De Varine, quer Bruno, consideram que o novo conceito de património constitui um capital social, cultural e económico vital no processo de desenvolvimento do território, sendo a participação o conceito gerador de cada uma das fases deste processo de desenvolvimento, que se dá através de instituições de expressão e ação local, como o museu.
Nesta mesma linha, aquela autora apresenta-nos uma interessante ideia de participação, segundo a qual trata-se da “estratégia segura das ações democráticas em suas distintas aplicações”, referindo-se à dimensão social do conceito ao acrescentar que “participação significa, também, a valorização da posição/opinião do outro, a necessidade da negociação, a exigência do respeito à diferença, entre muitos outros aspetos relevantes quando atuamos com o outro e para o outro” (in Sancho Querol, 2011: 312).
Em concordância com esta definição, Victor lembra-nos que as formas de gestão apropriadas ao novo paradigma patrimonial envolvem a implementação de dinâmicas ativas baseadas na participação, considerada como ferramenta capaz de decifrar e dar um novo significado ao valor estruturante da memória, mediante um processo de investigação e documentação que parte de um exercício fundamental: o de aprender a escutar (Victor, 2010: 34-36). Desta forma, refere a necessidade de equiparar, a um mesmo nível, especialistas e comunidade no processo de construção de significados e de reconhecimento da identidade patrimonial dos nossos bens culturais.
Sob a perspetiva da teoria sociomuseológica, a partir das considerações de Bruno, Victor e De Varine, e no entendimento do processo museológico como um exercício democrático e cultural que propicia a participação ativa da comunidade no desenho e implementação de políticas museológicas, poderíamos, então, definir o princípio da participação como o direito de todo o ser humano a intervir nos processos de identificação, construção e definição dos conceitos, dimensões e significados da realidade histórica e cultural de um determinado coletivo, através do museu e com vista ao desenvolvimento local, isto é, a participar ativamente no processo contemporâneo de patrimonialização.
Em resposta às outras questões, e em relação aos conceitos e às recomendações da UNESCO, a perspetiva de partilhar um princípio como este parece coerente com os argumentos que existem de um e de outro lado, sobretudo se tivermos em conta as origens e evolução do referido paradigma.
Deste ponto de vista, poderíamos, inclusive, considerar que o momento de arranque para o reconhecimento e a prática de uma metodologia participativa é constituído pela Declaração de Santiago, precisamente porque nesse momento, e mediante a presença de uma série de especialistas procedentes de diferentes áreas da cultura, ganha-se consciência da necessidade de caminhar em direção a uma integração da dimensão social do património nos museus para, a partir daí, se proceder a uma progressiva construção coletiva dos conceitos e significados associados ao que, com o tempo, acabaria por ser o conceito de património apresentado.
É assim que, ao definir o novo paradigma patrimonial, a UNESCO coloca a participação comunitária como eixo central de atuação, contribuindo para a construção de uma justiça social assente no reconhecimento e na transversalidade de saberes, com os que, para além de garantir a “buena puesta en marcha y sostenibilidad de las iniciativas de salvaguarda” pretende “comprometer a los portadores como agentes en el manejo de su propio destino” (Mujica, 2010:61).

3.2. Para uma prática coletiva do património

Juntamente com a prática do novo modelo de património, surge então a necessidade de estudar “los diferentes elementos que estructuran una manifestación y que necesariamente hacen parte de un complejo de prácticas asociadas, no necesariamente objetivadas por los atores e inscritas a niveles diferentes del hecho social” (Morales, 2010: 171).
É assim que o novo paradigma patrimonial nos coloca perante o desafio de resignificar conceitos complexos, e por vezes perversos, como o de comunidade, pois é com base nesta unidade social que se definem as linhas de atuação ao longo do processo de salvaguarda.
Em sintonia com Waterton e Smith (2010: 8) e Cohen (1985: 98), e longe das receitas predefinidas e aplicadas uniformemente – mais próprias do “velho modelo” patrimonial –, o novo paradigma parece insinuar-nos uma ideia de comunidade de geometrias variáveis, que constitui, em cada caso, o resultado de uma série de acontecimentos históricos, de sinergias locais e de formas de relação sociocultural e económica em constante mudança.
A partir daqui, e por constituir a base metodológica do processo que leva à identificação e ao reconhecimento de heranças culturais a que, posteriormente, optamos por atribuir o estatuto patrimonial, constatamos que o princípio da participação se encontra estreitamente conectado com uma das funções clássicas do museu: o inventário. Desta forma, registamos que Museologia Social e Convenção confluem novamente na formulação de um conceito que emana diretamente da Convenção e cujas origens podemos localizar no foro desta Museologia: o inventário participado.
Para desenvolver este conceito socorremo-nos da abordagem pioneira da memória coletiva e dos quadros sociais da memória, desenvolvida por Halbwachs (2004: 25-50) e, considerando que esta memória resulta da justaposição de memórias individuais, e que estas são o resultado de construções pessoais dos acontecimentos, no sentido social e temporal dos processos, questionamos o caráter único do facto social que temos visto prevalecer nas últimas décadas.
Desta forma estabelecemos uma relação direta entre o conceito polissémico de memória que nos permite reapoderar-nos das diferentes escalas do passado, enraizando presentes e alimentando continuidades que nos permitem estruturar construtivamente os processos de desenvolvimento local, e um conceito plural e socialmente ativo de património que nutre a essência do inventário na sua vertente participada.
De fato, quando em 2005 a UNESCO estabelece a existência de “inventários ativos” e “inventários passivos”, fá-lo com o objetivo de responder às necessidades do novo paradigma, reconhecendo nos primeiros a capacidade de produzir conhecimento e de regenerar-se regularmente, atualizando e ampliando os saberes associados ao conceito contemporâneo de património (UNESCO, 2005: 18).
Com este mesmo objetivo, o organismo refere a importância de que este tipo de inventários sejam “open-ended” (UNESCO, 2005: 20), isto é, inacabados ou em constante construção, precisamente pelo facto de que, para se tornarem elementos úteis do conhecimento e da salvaguarda do património cultural, e porque trabalham a partir de um conceito de comunidade flexível e em constante evolução, precisam de uma atualização regular.
Estes fatos levam-nos a concluir que, neste contexto, o inventário constitui uma prática global e integrada da dimensão social do património e, consequentemente, uma forma de projeção das comunidades. Além disto, e como lembra Bortolotto (2008: 22), no âmbito do museu contemporâneo o inventário deixou de ser um fim em si mesmo, para passar a ser um meio de identificação que permite alcançar a salvaguarda, agora entendida como transmissão e continuidade, colocando-se o desafio de aprender a construir inventários ativos. Esta é a razão pela qual os inventários não devem, “como hasta ahora lo hemos hecho, definirse desde manifestaciones puntuales, sino desde problemáticas histórico-culturales, o por lo menos desde ejes temáticos más amplios que den cuenta de estos procesos” (Morales, 2010: 169).
Tomando como ponto de partida e base teórica os princípios do desenvolvimento centrado na construção de uma justiça cognitiva global (Santos, 2009: 43-57) e os métodos e objetivos definidos pela Museologia Social (Victor e Melo, 2009: 7) e considerando:

    → Uma ideia de cultura enquanto sistema coletivo de significado socialmente construído e culturalmente partilhado (Hall, 1997) que, tal e como reconhece a Declaração de Salvador (2007), é um “bem de valor simbólico, direito de todos e fator decisivo para o desenvolvimento integral e sustentável”(Diretrizes, ponto 1);
    →Uma noção coletiva, dinâmica e polissémica de património, que resulta de um processo de ativação social dos valores associados às realidades que conformam a nossa diversidade cultural, e que se traduz numa perspetiva profundamente substantiva dos fenómenos culturais locais;
    →Uma ideia de museu que, como nos lembra Bruno, “tem na participação a essência de sua lógica institucional”, outorgando-lhe una função “estruturadora e definidora do recorte patrimonial, da dinâmica das ações museológicas e das relações que são estabelecidas com a comunidade envolvente” (in Sancho Querol, 2011: 312) e onde o museu constitui um projeto coletivo centrado na democratização das ferramentas museológicas, com vista ao desenvolvimento local.
    →Um ideal de participação que coloca a comunidade (considerada como “first voice” dos patrimónios locais) como principal atora e gestora do processo de identificação, reconhecimento e valorização do seu património e, consequentemente, como protagonista e fruidora do processo de desenvolvimento local que resulta de uma patrimonialização inclusiva (Galla, 2008: 11-22).
Propomos que o inventário participado, variante democrática desta função patrimonial, seja definido como a intervenção de pessoas e comunidades na identificação e na documentação dos seus recursos culturais, o que envolve o seu reconhecimento como elementos de identidade local e pessoal, isto é, como património cultural.
Perante um desafio desta natureza e considerando que, a partir das ideias de Morales (2010: 168) e dos conceitos definidos por Desvallées e Mairesse (2010: 68), a patrimonialização poderia ser definida como uma seleção valorizada que envolve um processo de ativação simbólica do valor patrimonial de uma determinada manifestação cultural, em função do seu caráter representativo em relação à identidade de um coletivo, podemos então concluir que o inventário participado é, na sua essência, um processo de patrimonialização evolutivo, centrado na salvaguarda ativa dos recursos culturais de uma comunidade e no reconhecimento do seu status social, com base num processo de “compreensão/memorização/formação-ação” (Lameiras-Campagnolo e Campagnolo, 1993: 50).

Seguindo esta lógica participativa e com base nas linhas que definem o novo paradigma patrimonial, poderíamos falar, então, de uma tripla caracterização segundo a qual este inventário se perfila como um ato territorial, participativo e evolutivo.
Já em termos práticos, o inventário pode ser realizado, tal e como refere a UNESCO, por uma pessoa, um coletivo ou uma comunidade, de forma que o museu assuma o papel de mediador entre os bens que se pretende conhecer/reconhecer/inventariar e a própria comunidade – da mesma forma que poderia assumi-lo uma associação ou um organismo de poder local – para orientar, facilitar e dinamizar o processo “sin dirigir, de manera que la información contenida en el expediente refleje el sentimiento y el conocimiento de la comunidad” (Mujica, 2010:60).
Como propõe De Varine, ou como temos observado nas experiências de trabalho realizadas (Sancho Querol, 2010b; 2011: 179-208), com este objetivo, especialistas e comunidades colocam-se num mesmo nível para decidirem, de forma participativa e igualitária, os métodos, os princípios e os objetivos de cada uma das fases do processo de inventário. É assim como o inventário passa a constituir o primeiro passo do processo de desenvolvimento local de um coletivo e, simultaneamente, uma ferramenta primordial do plano de gestão patrimonial dos recursos culturais e naturais do território, com vista à salvaguarda ativa dos valores que caracterizam a sua diversidade.
Sob esta perspetiva, a opção participativa surge enquanto expressão e exercício de igualdade entre poderes estabelecidos no seio de um território, relativamente aos gestos, saberes e práticas que constituem as especificidades culturais da comunidade ou comunidades que nele habitam, exigindo uma gestão produtiva do conhecimento e do diálogo que vem responder aos princípios de atuação defendidos pela Ecologia de Saberes. Desta forma, o conjunto de dados – isto é, de novo conhecimento produzido ao longo do processo e associado a um determinado bem cultural – será o resultado de uma metodologia centrada na copresença dos/as diferentes agentes ao longo do processo, na coprodução e na coautoria do conhecimento.
Num contexto desta natureza, Bruno lembra que a fórmula baseada na participação constitui a mais importante contribuição das últimas décadas ao conceito de inventário, envolvendo agora um objetivo especial: o fortalecimento da gestão social do património cultural (Sancho Querol, 2011: 312).
Ademais, e retomando a ideia que dele nos propõe a Museologia Social, o museu parece ser uma instituição especialmente apropriada para orientar este processo de gestão social, de forma que, segundo esta lógica, ao colocar o inventário participado na origem do processo de patrimonialização e desenvolvimento local, estamos iniciando, simultaneamente, um triplo caminho:


  • Por um lado, um processo progressivo de educação patrimonial baseado no reconhecimento da capacidade de gestão, de valorização e de ressignificação da comunidade em relação às especificidades culturais e naturais que definem a identidade local;
  • Em segundo lugar, e tendo em conta que a sistematização da informação relacionada com o inventário participado envolve um processo de autorreflexão individual e coletiva, o facto de que este redundará num melhor conhecimento e valoração das manifestações culturais por parte da própria comunidade de forma que, como nos lembram várias das personalidades referidas, ao mesmo tempo estaremos alimentando o reforço dos poderes do coletivo mediante o reforço da sua identidade cultural;
  • Em terceiro lugar, e pelo facto de devolver o conhecimento que resulta do inventário participado aos/as criadores/as e praticantes, estaremos criando as condições apropriadas para o exercício de uma salvaguarda ativa e consciente por parte da própria comunidade.

Conclusão

Falar de Museologia Social significa falar de uma Museologia de “pequena escala” mas de interessante impacto social, cultural e económico, que centra a sua atuação no desenvolvimento da pessoa, através da identificação, do estudo, da valorização e da dinamização de determinados aspetos culturais e identitários do coletivo que integra, mediante a utilização de métodos de intervenção e atuação participativos.
O paradigma patrimonial definido em 2003 pela UNESCO e os desafios a ele associados, colocam-nos perante a possibilidade de contribuir para a construção de uma justiça cognitiva plural que privilegia o reconhecimento do outro e a legitimação de saberes locais, alimentado, simultaneamente, dinâmicas que permitem reforçar as relações com a(s) comunidade(s), no âmbito de um processo de desenvolvimento intencionalmente humanizado e sustentável. Neste contexto, o inventário participado constitui uma via democrática de construção, entendimento e projeção das nossas raízes culturais no presente.

 

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Notas

1 Doutora em Museologia. Investigadora em Pós-doutoramento, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra (Coimbra, Portugal). Professora, IADE-U Instituto de Arte, Design e Empresa (Lisboa, Portugal). E-mail: lorenaquerol@gmail.com.

2Que ainda prevalecem com frequência sob a denominação de Western Authorised Heritage Discourse ou AHD, sendo criticados por diversos/as especialistas do setor dos Estudos do Património (Waterton e Smith, 2010: 12).

3Sobre a evolução da Nova Museologia no contexto europeu recomenda-se a consulta de obras como: Van Mensch, 1990; Rivière, 1993; Moutinho, 1994, 1995; Primo, 1999; Fernández, 2003; Mayrand, Kerestedjan e Labella, 2004; Mayrand, 2007.

4 http://www.mappadicomunita.it/

5 Hugues De Varine (França): Historiador, antigo presidente do ICOM e consultor internacional em desenvolvimento comunitário e participação cidadã.

6Mª Cristina de Oliveira Bruno (Brasil): Museóloga, Professora Titular de Museologia no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP).

7Isabel Victor (Portugal): Coautora do projeto museológico do Museu do Trabalho Michel Giacometti (desde 1987) e diretora do Museu entre 1995 e 2010. Ex-diretora da Rede Portuguesa de Museus (2010- 2012).

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