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Sociologia

versão impressa ISSN 0872-3419

Sociologia vol.25  Porto jun. 2013

 

A inovação social como utopia renovada: o caso da Associação Humanitária Habitat1

Social Innovation as a renewed utopia: the case of Habitat For Humanity Braga

L’Innovation Sociale come utopie renouvelée: le cas de l' Association Humanitaire Habitat

La innovación social como una utopía renovada: el caso de la Asociación

Vera Diogo2 Paula Guerra3

2Instituto Politécnico do Porto
3Universidade do Porto


 

RESUMO
Neste artigo, refletimos acerca dos diferentes discursos acerca da inovação social produzidos no âmbito de ação da Associação Humanitária Habitat (AHH). A análise dos discursos presentes focaliza quatro dimensões: a identitária, a interaccional, a cívica, a interorganizacional e a interescalar. Sustentamos que a inovação social propõe uma mudança que restaura a capacidade de resiliência dos sistemas, a partir da capacitação das populações, potenciando o seu capital humano e social. As organizações do terceiro setor assumem aqui um papel central, sendo também este o momento de equacionar a possibilidade do desenho de uma utopia renovada.

Palavras-chave: Identidades; Terceiro Setor; Inovação Social; Utopia.


ABSTRACT
This article presents a reflection about the diverse discourses on social innovation developed under Associação Humanitária Habitat’s intervention. The analysis is focused on four dimensions: identity, interaction, civic, interorganizational and interscale dimension. We defend that social innovation implies the type of change that rehabilitates the resilience capacity of social systems, promoting people’s capacities, improving human and social capital. The third setor organizations have a crucial role in this process; given this scenario, we propose the conceptualization of social innovation as the possibility of a renewed utopia.

Keywords: Identity; Third Setor; Social Innovation; Utopia.


RÉSUMÉ
Dans cet article, nous réfléchissons sur les différents discours sur l'innovation sociale produite dans le champ d'application de l'Habitat Association Humanitaire (AHH). L'analyse de ces se concentre sur quatre dimensions: l'identité, l'interaction, la vie civique, l'interorganisationnelle et interscalaire. Nous soutenons que l'innovation sociale propose un changement qui restaure la résilience des systèmes, de l'autonomisation des personnes, le renforcement de leur capital humain et social. Les organisations du tiers secteur assumer un rôle central à cet égard, donc c'est aussi le temps d'examiner la possibilité d'élaborer une utopie renouvelée.

Mots-clés: Identité; Troisième Secteur; Innovation Social; Utopie.


RESUMEN
En este artículo se reflexiona sobre los diferentes discursos sobre la innovación social producido por la acción de la Asociación Humanitaria de Hábitat (AHH). El análisis de estos se centra en cuatro dimensiones: la de la identidad, la interaccional, la cívica, y la interescalar entre otras. Sostenemos que la innovación social se propone un cambio que restaura la resistencia de los sistemas, desde el empoderamiento de las personas, mejorando su capital humano y social. Las organizaciones del tercer sector asumen un papel central en este caso, este es también el momento de considerar la posibilidad de elaborar una utopía renovada.

Palabras-clave: Identidad; Tercer sector; Innovación social; Utopía.


 

1. Enquadramento e dimensões da inovação social

A inovação social é a proposta de uma via efetiva e criativa para a resolução de problemas sociais, no sentido de melhorar o bem-estar social e promover o desenvolvimento. A inovação social antevê-se como ativação dinâmica da relação entre estrutura e agência, através da afirmação do papel do indivíduo na sociedade, do poder de agência de indivíduos e organizações, e da incessante capacidade humana para a reinvenção. Como nos diz Westley, “como seres humanos, quando cessamos de mudar, morremos, e da mesma forma, quando os sistemas sociais param de mudar, tornam-se rígidos, e, mais vulneráveis a choques externos” (Westley, 2008: 1-2). As crescentes dimensões da exclusão social são, justamente, um sintoma da rigidez do atual sistema socioeconómico.

A mudança social processa-se em ciclos de longa duração, de acordo com as dinâmicas de resiliência dos sistemas socioecológicos, no constante (re)equilíbrio das suas forças. Atualmente, assistimos a fortes desiquilíbrios, na qualidade ambiental, na estabilidade das economias e dos sistemas políticos e na justiça social, que comprovam a necessidade de mudança. Ora, a inovação social vem propor uma mudança que restaura a capacidade de resiliência dos sistemas, a partir da capacitação das populações, potenciando o seu capital humano e social.
Nesse processo de capacitação, as organizações do Terceiro Setor assumem um papel central, porém as suas iniciativas só serão efetivas na promoção de desenvolvimento, se, em primeiro lugar, se centrarem nas pessoas com quem trabalham – ou seja, a adoção da máxima – “trabalhar com e não para” – e, em segundo lugar, cooperarem ativa e produtivamente entre si e com as entidades do setor público e do setor privado – praticar o trabalho em rede.
Segundo Nilsson, a significância de um processo de inovação social mede-se não só pela escala que atinge – “número de pessoas, área geográfica, como pelo seu alcance – capacidade de agitar diversas dimensões sociais, e, ainda pela ressonância que provoca – a intensidade com que capta a imaginação das pessoas” (Nilsson, 2003: 3). O alcance implica uma abordagem integrada dos problemas sociais, percebendo que as suas causas são tão complexas como as formas que assumem, estando frequentemente interligadas diferentes dimensões da exclusão (ex: habitação degradada/insucesso escolar). A ressonância situa-se na capacidade de uma iniciativa social captar a imaginação dos indivíduos, de forma a integrar-se nas suas estruturas mentais, nas suas práticas sociais, promovendo uma reinterpretação e uma apropriação da mensagem que favoreça a sua reprodução. Estes três critérios são fundamentais na análise de qualquer dinâmica de inovação social, visto que abrangem o seu potencial de difusão.
Embora a ação social ou serviços sociais sejam o domínio mais difundido, as práticas de inovação social abrangem vários domínios da sociedade, desde a economia à política, da tecnologia à ética, destacando-se as políticas sociais, o desenvolvimento local e o planeamento urbano. A inovação social tem um caráter fortemente abrangente, na medida em que são numerosos os fenómenos socioecológicos que requerem a sua abordagem, a saber: o aumento da esperança média de vida; o aquecimento global; a crescente diversidade cultural dos países e das cidades; a agudização e o alargamento das desigualdades sociais; o aumento de problemas de saúde de longo prazo; os problemas resultantes de estilos de vida marcados pela abundância; as dificuldades na passagem à idade adulta; a discrepância entre o crescimento económico dos países e a felicidade das populações (Mulgan et al., 2007a). Todos estes fenómenos se demarcam pela sua inerente complexidade que só pode ser abordada pelas conexões interdimensionais dos problemas em análise, aliando a ação deliberada de indivíduos e grupos com a emergência da oportunidade (Born et al., 2009) num contexto de modernidade complexa.
O caso dos serviços públicos arreiga-se, em grande medida, com a capacidade de interação efetiva entre a entidade estatal que os gere e as dinâmicas da sociedade civil nas comunidades que deles usufruem. Segundo Charles Leadbeater, a chave para a melhoria da qualidade de serviços públicos está na capacidade de desenvolver soluções locais e baseadas em relações sociais funcionais. Grande parte dos atuais problemas sociais resultam da disfuncionalidade das relações que sustentam as comunidades, da qual o envelhecimento e a solidão a ele associados são paradigmáticos. As soluções de peer-to-peer têm-se demonstrado valiosas, justamente, porque “um dos motivos que leva as pessoas a mudarem os seus hábitos e comportamentos, seja deixar de fumar, ter uma alimentação mais saudável ou fazer reciclagem, é o facto de respeitarem pessoas que conseguiram fazer o mesmo” (Leadbeater, 2009:5). A aposta neste tipo de solução impõe uma flexibilização dos sistemas públicos, atualmente marcados por uma forte centralização, racionalização e burocratização. Para tal, é necessário encarar os serviços públicos, ao mesmo tempo, como prolongamento e como alicerce, das relações sociais que sustêm o dia a dia das populações.

2. Modalidades de operacionalização da inovação social

Segundo Mulgan, o desenvolvimento de um processo de inovação social assenta em três pilares estruturantes do sistema socioeconómico em que este se insira – procura efetiva, oferta efetiva e estratégias efetivas. A procura efetiva é o reconhecimento da necessidade social abordada por promotores diretos – consumidores de produtos, de serviços ou voluntários – e promotores indiretos – patrocinadores, fundações. A oferta efetiva é a nova ideia gerada para responder a essa (s) necessidade(s), e as formas de a operacionalizar e expandir que lhe são associadas. As estratégias efetivas correspondem aos financiamentos, aos agentes envolvidos e às metodologias de aplicação que favorecem a absorção da inovação social pelos mercados. Este é, habitualmente, o pilar menos estável, “dado o número limitado de organizações e redes, assim como de profissionais de gestão na área, que permita estabelecer comunidades de prática, o que provoca a escassez de métodos e técnicas apropriados, levando os promotores a sentirem-se amadores” (Mulgan et al., 2007b: 5).
É recorrente a utilização das redes de cooperação como meio de difusão de inovação social. Contudo, não basta apostar na sua função de transmissão de informação e de plataforma de interação de capital social. A estrutura de determinada rede é fundamental, na medida em que “uma rede com demasiados elos fortes poderá diminuir a diversidade de ideias e padrões, enquanto uma rede com demasiados elos fracos poderá cair na dispersão e na perda de informação, é assim crucial ter a mistura certa de bees and trees (abelhas e árvores: pequenas e grandes organizações)” (Moore e Westley, 2009: 21).
Para que uma inovação se consiga expandir nas redes sociais, há certas condições que dependem das características da mesma. Podemos elencar as seguintes: “vantagem relativa; reduzida competição; capacidade de ser testada e resultados comprovados; compatibilidade e complementaridade; simplicidade; baixo preço e valorização de investimentos” (Mulgan et al., 2007b: 14-15). Ora, uma iniciativa que inclui, em si, criatividade e valor adicional relativamente às alternativas existentes, estará seguramente em vantagem. Um projeto será também melhor sucedido se operar num campo onde tem reduzida competição por parte de outras ideias. Uma ideia que possa facilmente ser testada e comprovar a sua eficácia atrairá mais facilmente promotores. Também uma ideia adaptável ao contexto social e à tecnologia existente será mais rapidamente aplicada, por implicar menores investimentos e ser articulável com projetos já em curso. Por último, quanto mais simples, menos dispendiosa e financeiramente arriscada, for uma ideia nova, maior será a sua capacidade de ser desenvolvida e de se adaptar a diferentes contextos (Mulgan et al., 2007a).
Contudo, não podemos descurar a influência determinante de certos fatores externos na efetivação das estratégias de crescimento de um projeto inovador, como a disponibilidade de fontes estáveis de financiamento, incluindo para situações que requerem maior nível de risco; o desenvolvimento dos níveis intermédios das redes; a solidez do conhecimento e experiência na área da inovação social, e o grau de incentivo à adoção de melhores performances em modelos inovadores na gestão dos setores público e privado. As dificuldades que os processos de inovação, geralmente, enfrentam são a falta de procura para adoção de novos modelos de intervenção, por parte de entidades públicas ou de outras organizações, a ausência de agentes intermediários que aproximem a procura da oferta, a relativa ausência de recursos para investigação e desenvolvimento na área social, a escassez de capital para gerar crescimento em organizações sociais e a debilidade dos mercados de trabalho na área de gestão (Mulgan et al., 2007b: 24).
A articulação daqueles pilares estruturantes pode processar-se num continuum de possibilidades de desenvolvimento que vai do crescimento organizacional (extremo de máximo controlo) à inovação sistémica (extremo de difusão não controlada). O crescimento organizacional baseia-se na difusão de um processo inovador pela transformação interna de uma organização que se expande como órgão único ou através da criação de filiais. Já a inovação sistémica extravasa os limites das organizações e difunde-se enquanto modelo ou comportamento imbuído de princípios inerentes ao projeto social que lhe subjaz, como a reciclagem, a formação contínua, a democracia parlamentar, etc. (Mulgan et al., 2007b: 17).
Embora o crescimento organizacional seja das formas mais visíveis de promover inovação, o caminho contrário, ainda que menos evidente, obtém resultados mais frutíferos. Uma inovação social bem sucedida depende de várias reinterpretações, por parte dos seus promotores diretos, dos beneficiários, dos patrocinadores e do público em geral. Quando todo este processo de reinterpretação é bem sucedido, o impacto da inovação atinge proporções que uma inovação garantida por uma só organização nunca poderá atingir. Sendo o objetivo último da inovação social “mudar a forma como as sociedades pensam”, é necessário, em primeiro lugar, inserir a nova ideia nos valores, padrões socioculturais e normas, nas estruturas mentais tipo e nas práticas sociais de uma dada sociedade, de forma a que esta seja apropriada e reproduzida. “Não se conhecem casos de uma só organização ter produzido inovação sistémica, no sentido em que é aqui compreendida” (Mulgan et al., 2007b: 22-23).

3. A inovação social no Trilho da justiça espacial

Antes de mais, uma palavra sobre o conceito de justiça: interpretamo-lo aqui à luz da perspetiva de John Rawls (2003). Sustenta Rawls que o princípio básico da justiça é a garantia da maximização dos padrões mínimos de Bem-Estar – o princípio de maximin – a maximização dos mínimos sociais. Portanto, a existência de desigualdade de oportunidades deve levar à ampliação das oportunidades daqueles que tenham menos (Rawls, 2003). Este princípio baseia-se nos critérios de “diferença” – o reconhecimento de desigualdades sociais e económicas deve resultar na atribuição de benefícios aos mais desfavorecidos e de “liberdade” – cada um tem direito ao mesmo grau de liberdade que termina onde começa a liberdade do outro, resultando que os graus de liberdade de cada um são interdependentes.
Assim, a visão de Rawls afasta-se claramente das interpretações da justiça como igualdade, assumindo declaradamente a existência inevitável de desigualdades sociais. Contudo, as desigualdades só podem ser admitidas como consequência do exercício de cargos e funções acessíveis a todos em condições de justa igualdade de oportunidades. Podemos aqui fazer uma ponte para o ideal de justiça afirmado no Manifesto do Partido Comunista, por Marx e Engels, tratar igual o que é igual, tratar diferente o que é diferente, que, em curtas palavras, expõe a necessidade de atribuição de benefícios àqueles cujas oportunidades são mais limitadas (Marx e Engels, 1998 –21 de fevereiro de 1848).
A perspetiva de Rawls é analisada por Bret (2009), no sentido de compreender as potencialidades do seu caráter universal na análise de realidades diversas. Bret defende que a recusa do universal em favor de particularismos culturais pode correr o risco de cair no relativismo ou no comunitarismo, a ponto que as práticas sociais específicas ganhariam autoridade normativa, legitimando os factos com a sua mera existência e, assim, negando a liberdade dos indivíduos para lá do espaço-tempo em que vivem. Tendo em conta que, apesar das suas diferenças, os seres humanos partilham uma mesma condição enquanto “pessoas morais” e, portanto, o seu valor é universal. O caráter racional e o nível de abstração inerente às propostas de Rawls são, para Bret, elementos catalisadores da sua capacidade de alcançar validade universal. Bret aconselha, pois, o discernimento entre ideias que contribuem para a ocidentalização do mundo e a teoria de Rawls, que pretende avaliar o cumprimento dos princípios de justiça como equidade em todo o mundo, incluindo no mundo ocidental (Bret, 2009: 41, 45).
O caráter racional das premissas rawlsianas permite-nos não só refletir sobre o mundo, como agir sobre ele e transformá-lo, pois a ação é o objetivo último de todo o pensamento. Ora, se observarmos a realidade da grande maioria dos países, vemos facilmente que a maximização dos mínimos sociais não é eficiente, as desigualdades sociais estão longe de aumentar as possibilidades dos mais desfavorecidos. É sobre esta realidade, nomeadamente sobre as desigualdades em níveis de desenvolvimento, que importa agir no sentido da mudança, respeitando princípios universais de justiça. O conceito de justiça incorpora, assim, uma dimensão de agência, uma componente prática de projeto em construção (Bret, 2009; Brawley, 2009: 27).
A noção de justiça espacial é entendida como a perspetiva integrada da justiça social e política numa determinada área geográfica. A aceção espacial permite-nos avaliar, tanto os resultados dos sistemas de redistribuição, como os graus de acesso e participação nos processos de tomada de decisão, quer a nível quantitativo, quer qualitativo. Permite-nos, ainda, transpor barreiras disciplinares e propor metodologias de promoção da justiça e da democracia. Analisando as realidades multiescalares a que vivemos, percebe-se claramente a causalidade espacial da justiça, nomeadamente na face do desenvolvimento e do subdesenvolvimento (Soja, 2009: 32-33).
Assim, se as principais questões a respeito do desenvolvimento concernem a distribuição dos recursos e a organização das atividades socioeconómicas de acordo com critérios de eficácia (capacidade de atingir objetivos) e eficiência (capacidade de rentabilizar meios na prossecução de fins), a articulação entre estes critérios deve adequar-se ao ideal de justiça como equidade (maximização das oportunidades de todos, privilegiando os mais desfavorecidos, no sentido de garantir a igualdade de oportunidades). A justiça assume-se como condição e, ao mesmo tempo, como objetivo central do desenvolvimento, dando propósito aos processos de decisão e planeamento público. Como aliás, o enuncia Marcuse, a respeito do planeamento urbano: “a justiça (a cidade justa) é o objetivo último do planeamento, não um objetivo entre objetivos, e não apenas de vários planos, mas do planeamento em geral” (Marcuse, 2009: 49).
O conceito de desenvolvimento espacial é muito útil para estruturar uma perspetiva integrada, dada a alocação geográfica das populações, dos serviços e dos recursos. A dimensão espacial do desenvolvimento é inerente à constituição das próprias sociedades, as geografias do desenvolvimento e do subdesenvolvimento são espelho dessa realidade. É importante compreender a amplitude de escalas de análise da espacialização do desenvolvimento – local, regional, inter-regional e global – escalas que não são estanques, mas porosas, inter-relacionando-se e sobrepondo-se em diversas dimensões (Figueiredo, 2010). Enfim, é também no espaço que são mais visíveis as exclusões e as inclusões (Guerra, 2002).
Para compreender o conceito de desenvolvimento espacial deve observar-se, antes de mais, a dialética entre espaço e sociedade, space is place, ou seja, o espaço é socialmente construído, assim como as sociedades são construídas no espaço de tal forma que, como um espelho, o próprio espaço ganha identidade social, reproduzindo as condições sociais que o moldaram (Soja, 2009). Citando Castells, “o espaço não é um reflexo da sociedade, é a sociedade” (Marques, 2004: 9). Esta constante evolui mediante dois pilares estruturantes da própria condição humana: a dualidade espaço-tempo e o binómio indivíduo-sociedade.
Quanto ao binómio indivíduo-sociedade, a condição de indivíduo implica ser portador de determinados padrões sociais, inculcados através do contínuo processo de socialização em que a consciência e a própria personalidade se formam, integrando os valores, as normas e os comportamentos próprios a determinada cultura, com determinada historicidade. Em processo recíproco, é esse indivíduo portador de símbolos e de representações socialmente adquiridas que tem o poder, não só de reproduzir, como de renovar significações e, com elas, padrões de conduta. O património simbólico é produzido no domínio intersubjetivo das relações entre indivíduos e grupos sociais que reproduzem e modificam símbolos anteriormente construídos, nomeadamente, em torno de determinados lugares. Assim se constrói socialmente o mesmo espaço, que, tornado lugar antropológico, molda a interação dos indivíduos em sociedades determinadas histórica e geograficamente.
A realidade que experienciamos, enquanto seres pensantes e produtores de conhecimento, tem um caráter inevitavelmente espácio-temporal. A este respeito, Massey fala-nos do caráter integrado da dualidade espaço-tempo, questão central para os desafios atuais das ciências sociais (Massey, 1999: 7-8). Para o compreender devemos percecionar as múltiplas temporalidades, as múltiplas histórias que, interagindo entre si, na sua relação com a espacialidade, dão forma ao futuro, um futuro que é construído, antes de ser predizível. Isto implica pôr de parte o determinismo histórico e as conceções simplistas, unitárias e/ou etnocêntricas da História, abrindo-nos horizontes para a realidade multifacetada e o caráter aberto da própria história (Massey, 1999: 7-8). Após um século de tradição historicista, na última década tem-se reconhecido o papel ativo do espaço na sua relação com as sociedades, enquanto gerador de efeitos positivos e negativos sobre as populações (Soja, 2009).
Esta visão da justiça como o garante da liberdade económica, social e política dos cidadãos enquanto esfera de realização plena do objetivo último do desenvolvimento – o Bem-Estar social é fundamental para o processo de mudança sistémica que a inovação social preconiza.

4. A Associação Humanitária Habitat como referencial analítico

4.1. Enquadramento e descrição

A Associação Humanitária Habitat (AHH) é uma Associação sem fins lucrativos centrada na temática da habitação e filial da Habitat for Humanity International, (HFHI), uma ONG internacional cujo objetivo último é a erradicação da pobreza habitacional. A HFHI foi fundada em Americus, na Georgia, por Millard e Linda Fuller, um casal que trocou uma vida de luxo por uma vida de serviço à comunidade, com o apoio de diversas congregações cristãs. Com inspiração cristã e ecuménica, a Habitat professa a “Teologia do Martelo” n pondo de parte as nossas divergências, podemos encontrar um território comum, trabalhando em conjunto na construção de casas simples, dignas e acessíveis. Porém, a Habitat não está vinculada a qualquer igreja em particular e inclui nos seus princípios a não descriminação por raça, género ou religião (Fuller e Scott, 1980).
Foi, justamente, o exemplo inspirador do casal Fuller, lido num artigo de revista, que levou o seu gerador, empresário e antigo piloto, a reunir um grupo de amigos para fundar a filial portuguesa a – Associação Humanitária Habitat – em 1996. As casas Habitat são, tanto quanto possível, construídas nas localidades de residência das famílias, pois é tida em conta a importância das redes locais de solidariedade social. O terreno é, na maior parte das vezes, propriedade das famílias ou é doado por amigos, por familiares, pelos municípios ou por outras instituições.
Hoje, a Habitat Portugal já realizou 25 construções de raiz, 9 reconstruções e 14 reparações que criaram alojamento digno para 174 pessoas no distrito de Braga. Tendo obtido o título de Instituição de Utilidade Pública, em 2007, o trabalho da AHH é reconhecido, mantém estreitas parcerias com o poder local, empresas e instituições de ensino – como veremos a seguir – e tem sido alvo de cobertura mediática por diferentes meios de comunicação social nacionais. Em 2010, iniciou-se o primeiro projeto no concelho de Amarante, em parceria com a empresa de construção civil Mota Engil. Este passo poderá levar ao crescimento daquela estrutura organizacional que atualmente se limita a um corpo profissional de quatro pessoas, incluindo um estagiário e órgãos sociais voluntários.
A pobreza habitacional é um problema global, mas com importantes especificidades locais e dimensões socioculturais que apenas podem ser tratadas com o envolvimento de todos os atores locais. Em todo o mundo, apenas nas áreas urbanas cerca de 1 bilião de pessoas vive em pobreza habitacional. Em Portugal, estima-se que 65% da população vive em habitação degradada (Habitat for Humanity International, 2010). Nos Estados Unidos da América, a HFHI trabalha, sobretudo, com comunidades urbanas marginalizadas. No nosso país, a AHH lida com a pobreza escondida nas áreas semirrurais e peri-urbanas. Assim, a Habitat apoia e encaminha as famílias que não cumpram os critérios de seleção, no sentido de encontrarem apoio da Segurança Social ou outra solução habitacional. Os critérios de seleção consistem na efetiva necessidade habitacional, no compromisso de participar na construção e na capacidade de pagar uma prestação mensal.
Estes critérios baseiam-se no primeiro pilar estrutural da metodologia da Habitat que é trabalhar em parceria com as famílias, estabelecendo um compromisso. A Habitat auxilia as famílias a construírem as suas próprias casas, um pouco à imagem da autoconstrução apoiada, embora a quantidade de trabalho das famílias seja reduzida, em comparação com o trabalho voluntário. As famílias são também incentivadas a realizar voluntariado nas restantes obras da Habitat4.
O segundo pilar estrutural da Habitat é o voluntariado. Todos os órgãos diretivos5 são constituídos inteiramente por voluntários. Também 90% do trabalho de construção é feito por voluntários locais e internacionais, ao abrigo do programa Global Village (GV). Os voluntários GV, de uma forma geral, perspetivam estas experiências como a sua contribuição para a equidade social e como uma forma de conhecer realidades alheias e de criar ligações importantes com as comunidades locais. O voluntariado local é, principalmente, estruturado por dois programas – o voluntariado escolar – e o team building – programa de voluntariado empresarial. Os voluntários a título individual são integrados nos dias de construção de outras equipas e, noutras situações, formam pequenas equipas para reparações que exijam menor número de pessoas. O voluntariado local a título individual carece de estabilidade. Contudo, existe um grupo significativo de membros regulares.

4.2 Representações de inovação social

Ao procurar perceber como era percecionada a identidade organizacional pelos vários atores6 e avaliar a sua associação com os princípios de inovação social, encontrámos duas categorias, a definição da organização pela sua função social ou pelo seu impacto na vida pessoal do entrevistado. Da mesma forma, os entrevistados pronunciaram-se relativamente à mensagem da iniciativa em que estavam envolvidos, ao motor/fundamento da mesma e à sua importância. Quanto à mensagem, a AHH associa-a ao seu papel junto das famílias proprietárias, o motor desta iniciativa é associado aos pilares enunciados pela literatura como condições operativas para a difusão da inovação social, valorizando-se, sobretudo, o trabalho em rede (a quase totalidade dos voluntários internacionais identificou também o trabalho em rede como principal motor da Habitat). Contudo, na análise dos momentos de observação participante, perspetivámos a evidência da apropriação do princípio de trabalhar com no ritual de início de dia de trabalho da equipa Global Village observada. Reunidos frente à obra, após colocar o devido equipamento, os voluntários formam um círculo, unem as mãos ao centro e logo as atiram ao ar dizendo “It’s not a hands out, it’s a hands up!” (todos os elementos da equipa). O que se associa ao que uma das voluntárias revela posteriormente, “ it works because its focused on the people, I’ve seen other similar projects and the only ones who work are those who focus on the people” (12)7.
No que diz respeito à importância da intervenção, o nível de resultados diretos é mais valorizado, devido à natureza material e palpável do seu produto, a construção de casas, cujos efeitos são imediatamente visíveis. Assim, confirma-se a reinterpretação da missão da Habitat na erradicação da pobreza habitacional, concentrando a sua energia nesse objetivo que é, em si, um processo. Vários membros da organização expressam uma forte consciência da amplitude do papel social da organização, assim como manifestam partilhar os princípios segundo os quais o projeto da Habitat se estrutura: trabalhando com as famílias e não para estas, envolvendo os voluntários nesse trabalho, e cooperando com empresas e instituições (“é trabalhar em parceria com famílias e instituições” (I); “deve ser empresas ali que ajudam... e depois têm pessoal voluntário p’a fazer o trabalho, não é?” (XV)).

 

 

Em seguida, procurámos perceber a dimensão interaccional da AHH, isto é, a efetividade da aplicação do princípio trabalhar com, tendo verificado que este se expressa, particularmente, na perceção do problema pela população-alvo, dominada pela defesa de maior cooperação entre o Estado e o Terceiro Setor (“eu acho que o governo devia ajudar estas associações” (XI); “o Estado podia ajudar mais estas associações” (XIII); “o Estado não dar a estas associações, é uma coisa que anda a fazer mal! Dão ajuda p’a muita coisa que não necessitava e pr’ali que necessita não dão!” (XV)). Esta revelação da forte consciência da importância das Organizações do Terceiro Setor (OTS) e da cooperação do Estado e das empresas com estas organizações demonstra que não é apenas a organização a trabalhar com as pessoas, mas as pessoas beneficiadas a defenderem o papel daquela no desenvolvimento.

Analisando a tabela 2, vemos como são valorizadas as relações estabelecidas no seio desta iniciativa. A respeito das variações no grau de interação da população-alvo com outros membros das organizações e do projeto em análise, as limitações prendem- se com o contacto mais próximo das famílias, durante a construção das casas, seguido de um contacto periódico e, sobretudo, realizado com a comissão de famílias. Os efeitos percecionados por técnicos, colaboradores e voluntários das relações criadas, nas representações da população-alvo, de certa forma, são corroborados pela perceção da importância da cooperação entre OTS, Estado e Empresas manifesta pela mesma, na medida em que representa uma abertura de mentalidades, uma ampliação da consciência dos papéis dos diversos agentes de desenvolvimento, que foi potenciada pelo envolvimento com a AHH.

 

 

 

 

Relativamente à dimensão cívica, sobressai a valorização do papel de voluntário , enquanto prática cidadã, sendo a figura mais presente nos discursos a do voluntário internacional. Os atores entendem uma ordem individual e uma ordem social de motivações para o voluntariado. Podemos dizer que a prática do voluntariado as une de forma particularmente frutífera, no sentido em que o indivíduo se autoajuda, se desenvolve como pessoa, ajudando o próximo. Os motivos percecionados do voluntariado concentram-se na responsabilidade social ou dever cívico (“E sabem que estão a construir para que finalmente, aquela família, aquelas crianças vão ‘tar como eles estão, nas suas casas, não é?” (V)), chegando alguns a apontar o puro altruísmo (“eu acho que uma pessoa que tem bom coração que tem aquela vontade de ajudar, faz tudo e mais alguma coisa em troca de nada! De uma boa amizade e... pronto!” (XIII)) e na necessidade individual ((…) “há várias razões, até porque há vários tipos de pessoas a fazer voluntariado (…) a grande parte é porque têm (…) outro tipo de trabalho (…), então vêm p’ra fazer coisas diferentes (…)” (XVI)). A questão das possibilidades financeiras é enunciada pelo facto de grande parte dos voluntários nesta organização, os voluntários internacionais, despenderem uma quantia considerável, não só na sua deslocação, mas no donativo entregue à associação. Os principais motivos apresentados para a realização do programa de voluntariado pelos voluntários internacionais são a ajuda ao próximo (“Desire to help others” (E)), o exercício da responsabilidade social (“volunteering for a good cause” (D)), a vontade de conhecer outros países (“another chance for me to see a new country” (F)) e também a possibilidade de contribuir noutros países (“wanted to help a different part of the world” (B)). Portanto, há uma certa correspondência entre os motivos percecionados pelos voluntários e pelos seus interactores.
Sendo o papel de voluntário associado à entreajuda, ele é aproximado à conceção do papel de cidadão, particularmente pelo fundador da Habitat, que nos chama a atenção para o papel ativo do indivíduo, para o seu poder enquanto agente de mudança e para a importância da definição de objetivos e do exercício das capacidades e das liberdades individuais (“não conheço a palavra impossível, nem 'não consigo'! (…) Detesto ouvir. Proibi os meus filhos de me dizerem, jamais, 'Não consigo, pai!' Porque a gente consegue... Resta ver que quantidade de energia se põe para conseguir…” (VIII)). É justamente esta forte aposta no poder de agência dos indivíduos que se baseiam as teorias da inovação e do empreendedorismo social, as primeiras apontando, sobretudo, os atores sociais alvo das intervenções como membros ativos da própria inovação, e as segundas, focando o papel crucial de empreendedores que conseguem ver oportunidades onde as dificuldades toldam a visão. Assim, é feita uma clara associação entre o significado do voluntariado e a conceção do papel do indivíduo na sociedade, com ênfase na ideia de entreajuda ou de ajuda ao próximo, associada ao sentimento de partilha que une os seres humanos.
Na dimensão interorganizacional analisámos a perceção do funcionamento da rede estabelecida pela organização, da importância da mesma e da sua associação à conceção de desenvolvimento por parte dos atores. A
tabela 4 mostra-nos a perceção dos atores sobre a rede interorganizacional estabelecida; a sua utilidade percebida centra-se na resolução dos problemas das comunidades. Mostra-nos, ainda, a conceção de desenvolvimento expressa pelos entrevistados, ficando clara a aposta na cooperação como via privilegiada para o desenvolvimento, salientando-se a ponte entre a entreajuda entre indivíduos e a cooperação interorganizacional.

 

 

Assim, se os efeitos percecionados da cooperação são, mormente, associados com a resolução dos problemas das comunidades (“aquela casa já não ‘tá a cair, ou aquela família já não ‘tá a correr risco de vida, percebes?” (V); “em Palmeira havia, em 96, 18 famílias em risco (…) ‘tamos agora a alojar uma, duma casa que vagou, lá está, eram as 18 famílias que era preciso apoiar” (VIII)), significa que a importância desta cooperação é reconhecida (“é muito importante que a junta saiba, que o padre saiba, tudo o que sejam atores dentro da comunidade saibam o que se ‘tá a passar, para não haver a tal força de bloqueio (…)” (I); (o poder local) “qualquer coisa, apesar de saber que nem sempre os podemos ajudar, já nos consultam(…) para saber (…) como é que nós (…) mesmo não estando lá, como poderíamos ajudar a eles próprios tentarem solucionar alguns casos...” (V)). Sendo ainda identificados, minoritariamente, a continuidade do trabalho, o aumento de fontes de financiamento e a ampliação da escala de ação e o impacto desta nas comunidades. Aqui, faz sentido fazer uma ponte para a perceção da população-alvo de que a melhor forma de solucionar o problema da habitação seria haver maior cooperação entre o Estado, as OTS e as empresas. O efeito de abertura das comunidades para o trabalho com associações e com as próprias entidades de poder local, apontado por este técnico, é, de alguma forma, confirmado por aquelas representações. Estes proprietários, realmente, demonstram consciência da importância da participação de todos os atores na resolução dos problemas (“é sinal que as pessoas da freguesia também ajudam e...a Junta também ter ajudado…foi bom” (XI); “acho que o governo devia ajudar estas associações (...) p’ra seguir os projetos p’ra frente porque isto é um projeto rentável. Não de beneficio próprio, mas de benefício de ajudar o próximo” (XI)). Também os voluntários internacionais são quase unânimes em afirmar a extrema importância da cooperação entre organizações, avaliando, maioritariamente, a obra em que participaram entre importante a muito importante para a comunidade. Porém, o seu conhecimento dos parceiros da rede da AHH é limitado, sendo o conhecimento da rede da HFHI um pouco mais abrangente.
Em suma, podemos compreender que a cooperação, o trabalho em rede, assume um papel importante no seio desta associação, sendo reconhecido pela sua população-alvo.
Na dimensão interescalar pretendíamos avaliar os efeitos da interação com a dimensão global desta organização, particularmente a partir das experiências de voluntariado internacional. Da avaliação da importância da interação glocal e dos efeitos identificados, podemos perceber que as representações da população-alvo foram afetadas pela interação com os voluntários internacionais, mas não tanto no sentido introspetivo, e mais no sentido da extroversão, da descoberta de novas culturas, da abertura a outras classes sociais e de uma maior confiança na entreajuda entre seres humanos (“é como aquele mundo que faz assim, da Unicef...imaginei o mundo assim...isso quer dizer que há entreajuda...não é?” (XI)).

 

 

A perceção dos voluntários internacionais sobre a sua interação com as famílias assenta no objeto de questionamento por parte das famílias: “porque vieram eles de tão longe para ajudar-nos?”. Quanto à sua conceção do voluntariado internacional, quatro dos onze entrevistados consideram que este implica solidariedade internacional, apontando um deles que o programa Global Village lhes permite exercer a responsabilidade à escala universal da cidadania (“I think GV provides one with the opportunity to contribute first hand help to others on a worldwide basis. It fulfills a responsibility much broader than your country of citizenship” (E)), ideia que é associada ao papel de cidadão também por outro voluntário (“Ative participant exercising a universal responsibility to help” (A)). O verdadeiro impacto do programa Global Village nas famílias Habitat não estará, pois, na autorreflexão sobre o seu próprio papel na comunidade, mas na reflexão sobre as fronteiras éticas, sociais e geográficas que dividem os grupos humanos (“uma pessoa que só tem isto e isto e às vezes pensa que é mais que qualquer um e afinal não vale a pena ter (...) porque a gente vê pessoas assim que são humildes e prontos p’ra ajudar quem precisa!” (XIII)). Aqui podemos perscrutar que, de acordo com as definições de Allardt (1993), esta proprietária expressa que as diferentes oportunidades quanto ao Ter, não devem impedir os cidadãos de Amar sem fronteiras e, assim, Ser mais realizados e mais humanos.

5. A renovação de uma utopia – ponto de chegada e pontes para o futuro

Porque desenvolver é planear, todo o ato de planeamento se depara com as temporalidades e espacialidades que nos condicionam. Assim, pensar o desenvolvimento implica, antes de mais, uma reflexão espácio-temporal: como distribuir espacialmente recursos de forma a satisfazer as necessidades prementes, permitir a prosperidade e corresponder às aspirações de uma dada comunidade? Ao tentar responder às grandes questões que nos coloca o desafio do desenvolvimento, devemos, antes de mais, analisar as problemáticas, observar e consultar os atores em interação no espaço-tempo em que nos movemos. Pois é nesse espaço-tempo que podemos operacionalizar os três vetores do desenvolvimento sustentável, o que só pode conseguir-se em pleno com a participação de todos os atores económicos e sociais que moldam a face dos lugares e que construirão as futuras formas espaciais e estruturas sociais (Guerra, 2012).
A construção de um futuro próspero em Bem-Estar, sendo o propósito de todo o desenvolvimento, depende da possibilidade de participação todos os seres humanos, porque os indivíduos são atores de mudança e não destinatários passivos das estruturas. Assim, o desenvolvimento está, incontornavelmente, afeto à promoção de justiça e reflete-se nas estruturas sócioespaciais, porque “o espaço é a sociedade” (Marques, 2004: 9). A inovação social floresce nas relações que se criam nas comunidades, nas regiões e nos estados, com o objetivo último de ampliar as liberdades individuais dos indivíduos, quer em termos de recursos, quer de oportunidades. As duas dimensões essenciais da justiça espacial que cimentam o exercício da cidadania, sem o qual o indivíduo não tem ação sobre a sociedade.

A conceção de desenvolvimento dos participantes deste estudo vai neste sentido, partindo de uma base tão simples quanto idealista, no mundo de hoje, (“é trabalhar todas as pessoas para o mesmo fim, percebes?” (V); “que houvesse assim uma união…” (XI)), que talvez esteja longe de compreender que o desenvolvimento diz respeito a todos por igual, porque “todos temos várias necessidades, (…) todos ao mesmo tempo temos alguma coisa p’ra dar. É só fazer a ligação (…) do que temos p’ra dar com as necessidades” (I). Ou seja, defendem-se, aqui, os mesmos princípios que defendeu Roque Amaro a nível do desenvolvimento local (1993), em que assenta o desenvolvimento sustentável a propósito da análise da qualidade de vida de Sen (1993) ou da conceção de justiça de Rawls (2003). É, pois, fortemente sentida a necessidade de políticas que incentivem os processos de desenvolvimento no sentido da melhoria do bem-estar social e da garantia de justiça espacial. Esta necessidade é detetada com base na consciência da complexidade social, fortemente apoiada por uma convicção da necessidade de uma mudança social que promova as relações humanas e que fortaleça a cooperação intersectorial centrada no reconhecimento do papel das OTS, por parte do Estado e dos agentes privados.
Há, ainda, o entendimento de que a entreajuda entre seres humanos é a base de qualquer processo de cooperação, a associação entre indivíduos antecede a relação entre instituições e, em última análise, são os indivíduos que se relacionam. Concomitantemente, também está na consciência dos interactores que as organizações sociais podem funcionar como catalisadores do estabelecimento de relações funcionais, sendo reconhecidos os vários papéis do Terceiro Setor, quer como fonte de respostas sociais e apoio de proximidade às populações, quer como promotor da cidadania e, ainda, como criador de valor económico. Tal vai de encontro ao posicionamento do government to governance, isto é, a inclusão da população como executora ativa dos seus destinos e produtores de conhecimento em inovação social, assinalando uma mudança de discurso da Comissão Europeia do governamental para o empreendedor (Llie e During, 2012).
Ora, a cidadania, cujo exercício implica o relacionamento entre seres humanos, a consciência de direitos e deveres, a noção de ajuda ao próximo e a definição de objetivos e meios de cooperação comunitária, é associada ao voluntariado, enquanto meio de contribuição, e ao associativismo, enquanto meio de prossecução de objetivos e de participação ativa na comunidade. Esta participação ativa é reclamada perante a consciência do poder de agência do indivíduo na sociedade, consciência que se vê adormecida e cujo ressurgimento é essencial para potenciar o desenvolvimento. Só uma mentalidade proactiva e uma forte consciência do poder que representa o exercício da cidadania, de liberdades como o pensamento, a reunião e a associação, podem efetivar uma cooperação verdadeiramente promotora de desenvolvimento.
A dimensão educativa é facilmente visível, uma vez que, para promover uma mentalidade proactiva e ativar o exercício da cidadania, é necessária uma sensibilização, uma mobilização, sobretudo das populações excluídas, cujas incapacidades têm vindo a ser colocadas, sistematicamente, antes das suas capacidades e do seu poder como cidadãos de pleno direito. Mas não apenas entre as populações excluídas se verificam baixos níveis de cidadania, a larga maioria da população portuguesa atravessa uma crise de desresponsabilização social, que se lê na abstenção, na fraca participação em órgãos associativos e na reduzida adesão a programas de voluntariado. Esta ausência é, sobretudo, sentida em organizações de proximidade. E o voluntariado, em Portugal, carece, regra geral, do espírito de compromisso, existindo, portanto, uma necessidade premente de apostar numa sensibilização a nível do voluntariado, o que poderá ser colmatado com políticas de incentivo, nomeadamente, partindo da educação e da inclusão do serviço cívico nos programas extracurriculares das escolas públicas, à semelhança das escolas internacionais, onde este se integra nos próprios currículos.
Nesta análise organizacional vimos que os modelos ideais não se aplicam à realidade observada e detetámos junto dos atores a consciência de que não há processos perfeitos, e, como tal, perante a imperiosa complexidade dos problemas sociais, as iniciativas necessitam manter o seu foco de ação de forma clara e determinada, tentando, sim, melhorar os processos, mas almejando sempre os resultados.
Então, a nível de processos, percebemos dificuldades na dimensão interaccional. Ainda que o foco do programa seja a construção de habitações e, por esse motivo, a interação com a população-alvo diminua de intensidade após o período de construção, detetamos algum mal-estar por parte das famílias Habitat, assim como de alguns dos seus interactores, face a esta evolução de relações. Uma possibilidade interessante para alterar esta realidade é investir na integração das famílias como voluntárias em obras de novos proprietários Habitat, o que, na organização mãe, faz parte dos critérios de seleção de famílias. E, sendo o voluntariado um pilar estrutural desta organização, há, aqui, uma disfunção a nível da ressonância da mensagem da organização para a população-alvo. Portanto, apostar no cumprimento desta condição é potencializar a reinterpretação da missão da Habitat pelas famílias e, ao mesmo tempo, dar mais estabilidade ao grau de interação com as mesmas, no longo prazo. Por outro lado, encontrámos também pontos muito positivos, como já referido: a participação ativa da população-alvo no processo, a frutífera inclusão dos voluntários na vida da organização e a funcional cooperação com órgãos do poder local e entidades do setor privado.
Assim, a Habitat resolve problemas habitacionais em articulação com o poder local e desperta empresas e instituições para o voluntariado e para o dever cívico, mobilizando “as estruturas dinâmicas de capital relacional” à escala local (André et al., 2006). O seu contributo para o desenvolvimento e a justiça espacial manifesta-se, de forma material, nas casas construídas nas comunidades de pertença dos seus proprietários, garantindo o direito ao local e evitando os problemas associados à deslocalização de populações. O interconhecimento que a comunidade local facilita e o sentimento de pertença associado às identidades locais impulsionam relações geradoras de desenvolvimento e, de um modo geral, relações funcionais. Neste sentido, a ideia de Leadbeater (2009) de que a melhor forma de promover atitudes e comportamentos é garantir que os cidadãos respeitam as pessoas que os manifestam é mais facilmente realizável ao nível local. A constituição de redes operativas pela AHH evidencia-se na participação de vários agentes nas suas obras: órgãos do poder local, empresas fornecedoras e dadoras de materiais de construção, empresas participantes no programa de voluntariado para empresas, escolas participantes no programa de voluntariado para escolas, voluntários da comunidade envolvente, incluindo vizinhos e amigos das famílias, voluntários habituais da AHH, voluntários internacionais participantes no Programa Global Village. Tais redes constituem, efetivamente, estruturas dinâmicas, dada a sua inerente complexidade e a variabilidade das suas formas, e são essas dinâmicas que permitem a atividade da AHH. O produto final – as casas Habitat – são o objetivo último do seu projeto. Assim, esta organização aposta na dimensão material da justiça espacial, entendendo a habitação como um elemento potencialmente catalisador da inclusão social.

 

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Notas

1Este artigo retoma e amplia uma investigação levada a cabo no âmbito do Mestrado em Riscos, Cidades e Ordenamento do Território na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e que deu origem a uma Dissertação intitulada Dinâmicas de Inovação Social e suas Implicações no Desenvolvimento Espacial. Três Iniciativas do Terceiro Setor no Norte de Portugal, concluída em 2010, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

2Escola Superior de Educação – Instituto Politécnico do Porto. Assistente Convidada – UTC Ciências da Educação. Doutoranda em Sociologia – Faculdade de Letras, Universidade do Porto (Porto, Portugal). E-mail: veradiogo@ese.ipp.pt veralvespdiogo@gmail.com

3Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Socióloga e Professora Auxiliar. Departamento de Sociologia. Investigadora do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Porto, Portugal). E-mail:mariadeguerra@gmail.com pguerra@letras.up.pt

4O valor médio de mensalidade ronda os 150€ e o prazo máximo para finalizar o pagamento das prestações é de 20 anos. Os custos incorporados no orçamento correspondem apenas aos materiais e à (reduzida) mão de obra profissional, sem juros e sem qualquer margem de lucro.

5A saber: a Direção, Comissão de Construção, Comissão de Famílias, Comissão de Angariação de Fundos e de Voluntariado.

6Foram entrevistados elementos com vários papéis na intervenção da AHH, a saber: proprietários de casas Habitat (população-alvo), fundadores, técnicos, colaboradores e voluntários. Entrevistas que foram completadas por momentos de observação participante, sendo a metodologia deste estudo de cariz qualitativo e de enfoque interpretativo.

7Passamos a expor a caracterização dos participantes citados neste artigo, por ordem de citação: 12 – Especialista das Ciências Sociais e Humanas, Sexo feminino, 63 anos, Estados Unidos da América; I – Especialista das Ciências Sociais e Humanas, Sexo Masculino, 32 anos, Braga; XV – Trabalhador da Construção Civil e Obras Públicas, Sexo Masculino, 41 anos, Braga; XI – Pensionista, Sexo Masculino, 38 anos, Braga; XIII – Outro Pessoal dos Serviços Diretos e Particulares, Sexo Feminino, 34 anos, Braga; XVIII – Outro Pessoal dos Serviços Diretos e Particulares, Sexo Feminino, 41 anos, Braga; V – Especialista das Ciências Sociais e Humanas, Sexo Feminino, 32 anos, Braga; XVI – Diretor de Produção, Exploração e Similares, Sexo Masculino, 38 anos, Braga; E – Reformado, Sexo Masculino, 55 anos, Estados Unidos da América; D – Secretários e operadores de equipamentos de tratamento de Informação, Sexo Masculino, 53 anos, Canadá; F – Advogados, magistrados e outros juristas, Sexo Masculino, 47 anos, Estados Unidos da América; B – Reformado, Sexo Masculino, 64 anos, Estados Unidos da América; VIII – Diretores e gerentes de pequenas empresas, Sexo Masculino, 64 anos, Braga; A – Diretores e gerentes de pequenas empresas, Sexo Masculino, 40 anos, Canadá.

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